Recentemente os meios de comunicação estiveram voltados para uma questão polêmica: a legalidade ou não da permissão para o abortamento de fetos anencefálicos. Toda a polêmica, que ganhou repercussão com uma reportagem publicada em uma revista semanal, chegou ao Supremo Tribunal Federal, mobilizando vários segmentos da população, com posicionamentos conflitantes, que enriqueceram e aqueceram ainda mais o debate, por si só tão envolvente.
O tema tem enorme relevância social pois reflete em valores morais íntimos de cada indivíduo. Não há dúvidas que a questão é espinhosa: de um lado, a gestante, em pleno gozo dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, de outro, o nascituro, cujo mesmo direito é garantido desde a concepção.
É pertinente e imprescindível aclarar, antes de mais nada, como extremamente relevante, entender o que é a anencefalia. Trata-se de uma malformação do tubo neural, que se apresenta no inicio do desenvolvimento fetal e é caracterizada pela ausência da abóboda craniana, havendo pouco ou nenhum hemisfério craniano. Embora as causas ainda não sejam conhecidas, estudos recentes indicam que fatores ambientais possam estar relacionadas com a ocorrência desta malformação, dentre os quais a baixa ingestão de ácido fólico (vitamina B9). No entanto, é sabido que o anencéfalo não tem nenhuma expectativa de sobrevida fora do útero materno. A anencefalia é fatal em 100% dos casos, sendo que 75% já nascem mortos e 25% morrem no primeiro dia de vida. Casos raros, com percentual inexpressivo, relatam a sobrevida por poucos dias.
Entretanto, apesar da completa inviabilidade do feto, a legislação penal brasileira não autoriza o abortamento.
O crime de abortamento – erroneamente chamado de “aborto” – designa a interrupção de vida-intra-uterina, com a morte do produto da concepção. In casu, o bem jurídico tutelado é a vida intra-uterina em desenvolvimento. Porém, em duas situações pré-determinadas, está autorizada a interrupção da gestação, o que representa verdadeira excludente de ilicitude. A primeira delas é chamada de “aborto” terapêutico ou necessário e o requisito essencial e o iminente perigo de morte da gestante e, a segunda, chamada de ”aborto” sentimental ou humanitário, tem como requisito a necessidade de ser a gestação decorrente de estupro.
É importante ressaltar que, no primeiro caso, o bem que se está tutelando é a vida da gestante – que, por conclusão óbvia, se sobrepõe à vida do nascituro. Já no segundo, tutela-se a integridade psíquica ou saúde psico-emocional da gestante – que, por igual obviedade, credita-se maior valor à vida do ser nascente.
Conquanto a autorização legal para o aborto naquelas situações previstas na legislação, o chamado “aborto” eugênico ou seletivo, tido como aquele realizado em casos de malformação fetal, não foi previsto e, portanto, autorizado pela legislação penal.
Prima facie, é esse o ponto inicial de todo o debate, dividido em, basicamente, dois movimentos divergentes: pró-aborto e pró-vida. São grupos mesclados: assim como no movimento pró-aborto existem religiosos e fiéis, no pró-vida existem médicos e outros profissionais da saúde.
É notória, nos casos de anencefalia, a preferência pelos seus defensores de utilização do termo “antecipação de parto” ao já estigmatizado “aborto eugênico”. Isso se deve, primeiramente, ao fato de que o termo “eugênico” faz remissão aos horrores nazistas para purificação de raça praticados na Segunda Grande Guerra.
É, por imperativo, de se acrescentar que a quase totalidade dos defensores da antecipação de parto em casos de anencefalia não pregam a eugenia ou seletividade ampla e irrestrita. Defendem a legalização apenas nos casos específicos de anencefalia em que não há nenhuma chance de vida extra-uterina, ou seja, trata-se de feto completamente inviável.
De outro lado, o movimento pró-vida fundamenta-se no direito à vida do nascituro, sob o argumento de que “todos nós nascemos para morrer”, tendo o anencéfalo, portanto, o direito de nascer, mesmo que venha morrer imediatamente.
O ponto nevrálgico deste debate está no fato de que o anencéfalo é nascituro e, como tal, tem direitos civis assegurados e tem seu direito à vida tutelado pela lei penal.
Por outro lado, não se pode desprezar o fato de que a malformação é 100% fatal, tornando a vida extra-uterina completamente inviável. Aliado a isto, tem-se o fato de que, muitas vezes, a continuidade da gestação pode ser extremamente prejudicial à saúde psíquica da mãe, pois acarreta sofrimento indescritível para aquela que desejou a criança, mas sabe que não a terá consigo.
Contra-senso pensar-se em tutelar a vida de um feto inviável em detrimento da saúde de uma mulher, uma cidadã. Mais evidente a incongruência quando se pensa que o aborto legal tutela a saúde da gestante – seja física ou psíquica – em detrimento do direito à vida daquele feto, na maioria das vezes, plenamente viável.
Na divergência de opiniões e por causa do silêncio da Lei, fica a cargo do Judiciário propiciar solução à questão, através de uma decisão justa e legal. As dificuldades de abordagem e decisão, que são muitas, não podem ser desprezadas. Os conflitos, na sua maioria, refletem o embate entre o espiritual e o temporal, a fé e a razão, repercutindo no íntimo de cada indivíduo, em gritante conflito de valores éticos e morais.
Uma das dificuldades a ser enfrentada na busca desta solução é a separação do Julgador de suas convicções estritamente religiosas, pois, num Estado laico, as decisões precisam estar fundamentadas em princípios do direito e não nas crenças religiosas. Formada a sua convicção, o Julgador precisa estabelecer critérios racionais para fundamentar sua decisão. É bom lembrar que não existe hierarquia entre os princípios e direitos fundamentais consagrados na Carta Magna. Contudo, a decisão, no caso concreto, será sempre um reflexo das convicções e valores agregados às experiências e vivência do Julgador.
Certo ou errada a antecipação de parto de fetos anencéfalos? Nem um, nem outro. É apenas uma escolha cuja responsabilidade é inevitável.
A Bioética tem um perfil instigador, levantando questões e apontando caminhos, mas jamais fará a escolha. Nenhum deles é necessariamente errado, mas todos eles implicam em uma conseqüência. Assim, permitir ou não a antecipação de parto em casos de anencefalia é uma questão de escolha de cada um e de todos nós.
Advogada Militante
Especialista em Bioética
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