O que se pretende por meio do presente trabalho é fazer breves comentários sobre a validade do casamento do transexual e do intersexual, este mais conhecido como hermafrodita, após a realização da cirurgia de transgenitalização, ou de adequação, e a redesignação sexual civil.
Da transexualidade e da intersexualidade
Dentro da tipologia da homossexualidade, a transexualidade é considerada pela medicina como uma desordem da sexualidade que se caracteriza por uma inversão da identidade psicosocial (identidade de gênero) do indivíduo, que conduz a uma neurose reacional obsessivo-compulsiva, e se traduz em uma identificação psicosocial oposta aos órgãos genitais externos, com um desejo compulsivo de modificação de sexo. Para o transexual houve um equívoco da natureza, pois seu sexo psicológico é o posto de seu sexo biológico, e como o registro civil se dá com base neste, ele também se apresenta contrário ao seu sexo civil ou legal.
Já a intersexualidade, costuma ser conceituada na doutrina médica como uma desarmonia entre o sexo genético, gonadal e fenotípico, que causa uma ambigüidade biológica, apresentando o indivíduo características sexuais relativas tanto ao sexo masculino, como ao sexo feminino. Como observa Aracy Klabin[1]: “enquanto o transexual suscita o problema de harmonizar a mente do indivíduo com seu corpo, o hermafrodita suscita o problema de harmonizar o corpo do indivíduo ao seu verdadeiro sexo, através da alteração cirúrgica.”
Desde algumas décadas o desenvolvimento da medicina já permite, tanto em um, como em outro caso, a correção destes problemas por meio de uma cirurgia para a adequação ao sexo psicológico preponderante, e, a partir daí surge um dos principais problemas jurídicos do final do século passado, que e a possibilidade de redesignação, ou adequação, do sexo civil, registrado, ao sexo psicológico, novo sexo biológico, e os efeitos daí resultantes, principalmente na área do direito de família, cujo problema principal reside na possibilidade de estas pessoas virem, ou não, a contrair casamento, ou de constituírem família por qualquer outra forma prevista no direito.
Não cabe mais a discussão em torno da licitude da cirurgia de transgenitalização, principalmente por sua característica mutiladora, uma vez que desde alguns anos boa parte da doutrina já vinha se manifestando pela licitude da intervenção, entendendo que ainda que consistisse em uma mutilação, ela tem um fim medicinal, que é a adequação sexual do indivíduo a sua realidade psicosocial, o que leva a validade do consentimento manifestado pelo paciente, transexual ou intersexual, que exerce um direito próprio, um direito ao próprio corpo, sem ofensas ao direito alheio e aos princípios constitucionais, principalmente o da dignidade da pessoa.
Cabe ressaltar que com relação a intersexualidade as cirurgias de correção não experimentaram as mesmas repercussões negativas, como experimentaram as de transgenitalização, devido a que o caráter curativo, medicinal, citado, sempre foi mais facilmente aceitado tanto pela medicina como pelo Direito.Por outro lado, os casos de intersexualidade se constatam mais facilmente quando nasce a criança, momento em que já se deve fazer a cirurgia para adequação do sexo, tendo em conta o sexo preponderante biológico, de maneira que, ao fazer o registro do nascimento, este já está de acordo com o sexo resultante do procedimento operatório.
Feita a cirurgia, tanto no transexual como no intersexual, podem eles passar a adotar comportamentos heterossexuais ou comportamentos homossexuais. No caso do intersexual a adequação do sexo fará com que seja considerado homem ou mulher, não apresentando maiores problemas para a alteração do nome e do sexo jurídico no registro do nascimento.
Os transexuais, sem embargo, enfrentaram durante muitos anos maior resistência a redesignação sexual. A exceção de poucos países como Estados Unidos, Suécia, Alemanha, Itália, dentre outros, os transexuais enfrentam uma grande discriminação social e seus direitos não estão assegurados por lei, fazendo com que seja constante a busca da tutela jurisdicional para ver seus direitos a redesignação sexual e as conseqüências dela resultantes reconhecidos.
Fundamentos jurídicos para a redesignação do sexo
Conforme anteriormente citado, o desenvolvimento da medicina permite. desde algumas décadas, a adequação do sexo do indivíduo, buscando a conformidade entre seu sexo morfológico e seu sexo psicosocial, sempre que, cientificamente comprovado, esteja presente uma identidade sexual de gênero preponderante do sexo oposto. Estes avanços científicos deveriam em um primeiro momento ser suficientes para permitir a realização de cirurgias de transgenitalização, uma vez que a ciência médica reconhece como suficientemente éticas e dão a elas um caráter eminentemente curativo e terapêutico.
Sem embargo, é necessário que se busque outros fundamentos, de caráter jurídico, principalmente nos países, como no Brasil, onde não existe uma legislação que regulamente o tema. Neste sentido, vários são os fundamentos encontrados na doutrina, girando, na sua grande maioria, sobre os direitos da personalidade.
Não resta dúvida que a atribuição do nome e da identidade sexual de uma pessoa, assim como aquela que consta no registro de nascimento, resulta do direito da personalidade, entendendo-se este como um conjunto de direitos de caráter absoluto atribuídos a pessoa, que se dirigem a seu reconhecimento e não lesão na sua existência imediata e na esfera vital mais própria e pessoal,[2] tendo, portanto, um duplo sentido, uma vez que são direitos que pertencem a cada pessoa individualmente, pelo simples fato de existir, cujo conteúdo e respeito estão diretamente relacionados com a vontade de cada um. Como bem observa Patrick Glenn,[3] “cabe a cada um definir sua personalidade. Imposta do exterior, a noção de personalidade perde seu sentido”, motivo pelo qual eles não aparecem definidos em lei e apresentam uma grande dificuldade para a caracterização e precisão de seu conteúdo.
Como um dos direitos da personalidade, tem o indivíduo o direito a uma identidade pessoal, que segundo Rubens Limongi França,[4] “é o direito que tem a pessoa de ser conhecida como aquela que ela é, e de não ser confundida com as outras pessoas.” Constitui o laço de ligação entre o indivíduo e a sociedade em geral, que não se manifesta somente pelo nome, mas também por outros caracteres, como o sexo, e que vão influenciar na forma de tratamento desta pessoa nos diversos conjuntos sócias que ela freqüenta em sua vida, como a família, os negócios, etc.
Ainda que se de juridicamente mais relevância ao nome do que o caractere sexual, aquele, decorre deste, ou melhor, da identidade sexual do indivíduo ao nascer, se do sexo masculino, ou do sexo feminino, permitindo-se, inclusive, no caso da escolha de um nome que manifeste uma identidade de sexo equivoca e exponha o sujeito ao ridículo, a possibilidade de modificação para uma adequação.
O sexo por sua vez é definido de acordo com o sexo morfológico, ou seja, a aparência de seus órgãos genitais externos, e, nada mais justo que, permitindo-se que se modifique o sexo morfológico do indivíduo, por meio da transgenitalização, se permita, também, a redesignação de sua identidade sexual (sexo masculino ou feminino) e de seu nome, para adequar-lo a nova realidade, e permitir que este possa gozar de sua identidade pessoal e sexual, de acordo com a personalidade que efetivamente desenvolveu, distinta daquela que foi socialmente imposta ao nascer, sem observar todos os demais caracteres e fatores internos e externos que influenciam na formação de sua personalidade e, conseqüentemente, de sua sexualidade.
Deve-se levar em consideração também que a Constituição Federal garante o direito ao próprio corpo assim como o direito a saúde a todos os cidadãos. Entendendo-se a saúde como “um estado de normalidade orgânica e funcional, tanto no físico como no mental, que permite uma integração social através de uma atividade de trabalho e de relação e que reclama uma proteção defensiva pelo Direito”[5] assim como, um estado de bem estar capaz de proporcionar o perfeito desenvolvimento da personalidade, enquanto não tenha reconhecida sua verdadeira identidade sexual, o transexual não conseguirá vivenciar na sua plenitude este estado de bem estar, uma vez que o desequilíbrio entre sua sexualidade biológica e psíquica o priva da tranqüilidade e da felicidade suficiente e necessária para o pleno desenvolvimento de sua identidade sexual, e, por via de conseqüência adquirir uma estabilidade psicológica suficiente para que possa ter uma vida digna na sociedade.
Efeitos da cirurgia de transgenitalização no Direito Civil
Depois de realizada a cirurgia, surge ao transexual outro problema. Agora que seu sexo morfológico está em perfeita conformidade com seu sexo psicosocial, ele continuará com uma identidade pessoal relativa a seu antigo sexo morfológico. Um transexual masculino, por exemplo, passa a ter sexo morfológico feminino, continuando com uma identidade civil masculina, o que fará que ele passe a buscar a redesignação de seu sexo civil e a troca do nome.
Ao admitir-se esta possibilidade, outra série de efeitos passa a ter uma possível existência, como por exemplo, o que se refere ao seu casamento, se for casado, já que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é considerado inexistente; o que diz respeito a possibilidade ou não do transexual vir a contrair matrimônio com pessoa de sexo oposto ao seu sexo de conversão; o que diz respeito aos filhos que ele tenha; ou, ainda o que diga respeito a determinados aspectos laborais, da seguridade social e até mesmo, em competições esportivas, nas quais ainda existe uma distinção de classes masculinas e femininas. Será que se poderia admitir um transexual que tem na sua formação um corpo masculino e uma massa muscular masculina, competindo com mulheres?
Para não alongar a exposição, passasse a análise exclusiva dos problemas que podem surgir com relação ao casamento.
Efeitos com relação ao casamento
De plano se pode citar ao menos duas hipóteses nas quais pode ser comum se encontrar algum problema. A primeira trata da hipótese de transexuais que enquanto mantém um estado de casado com pessoa de sexo biológico distinto ao seu, se submetem a cirurgia. A segunda se refere ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo (sem impedimentos ao matrimonio) que depois da cirurgia pretende contrair matrimonio com pessoa de sexo oposto ao seu, já redesignado.
Não é difícil que o transexual venha a descobrir-se como tal já quando adulto, e muitas vezes depois de haver contraído matrimônio. Nestes casos o casamento, sem sombra de dúvidas, acaba se degenerando, já que a conduta do transexual pode chegar a configurar um dos motivos geralmente invocados no pedido de separação judicial, como o fato de deixar de manter relações sexuais com o seu cônjuge, a inclinação socioafetiva do transexual por indivíduos do mesmo sexo, caracterizando um conduta desonrosa, ou até mesmo uma injuria grave, se chega a consumar a relação sexual.
Pode acontecer, que, ainda casado, resolva fazer a cirurgia de transgenitalização. Neste caso a doutrina diverge quanto aos efeitos que resultam na relação matrimonial. Alguns afirmam que ao fazer a cirurgia e assumir um sexo idêntico ao de seu cônjuge, faz com que desapareça um dos elementos essenciais a existência do matrimônio que é a diversidade de sexo, passando o casamento assim a ser considerado como inexistente.
Um grande equívoco, diga-se de passagem, já que a simples cirurgia não leva a redesignação da identidade sexual, que continua sendo a mesma até que ele promova a alteração do registro civil, não cabendo portanto argumentar que não existe mais o requisito da diversidade de sexo. Por outro lado, aquilo que existe no mundo jurídico, é válido e produz plenos efeitos, como uma relação duradoura como o casamento, não pode simplesmente deixar de existir, como causa de uma cirurgia.
Outros afirmam que no caso a cirurgia levaria a nulidade absoluta do casamento, fato que, ao menos no direito brasileiro seria inconcebível, uma vez que a nulidade é, ao lado da anulabilidade, um grau de invalidade do ato jurídico, que, segundo Marcos Bernardes de Mello[6], está intimamente ligada a “deficiência dos elementos complementares do suporte fático, relacionados ao sujeito, ao objeto ou a forma do ato jurídico” no momento de sua formação e não posteriormente. Além do fato de que não previsão no artigo 1.548 do Código civil, que trata da nulidade do casamento.
Todavia, existem aqueles que afirmam que a comunhão de vida e de interesses que se forma com o casamento, impõe, dentre outros deveres, também, um limite de disposição sobre o próprio corpo de cada um dos cônjuges, o que proibiria que o cônjuge transexual, enquanto casado pudesse manifestar seu consentimento para a realização da cirurgia, prevalecendo assim, sobre a vontade individual os interesses da comunhão familiar. Alegação que também pode se descartar, já que um cônjuge não tem como impedir que outro realize um ato médico que tem um caráter terapêutico, como é considerada a transgenitalização. Óbvio que se o cônjuge não concorda que o outro realize o procedimento cirúrgico, teria todo o direito a pedir a separação judicial, ainda que não exista uma previsão específica de causa, na antiquada previsão do artigo 1.572, do Código Civil.
A tese que parece ser mais acertada é aquela que prevê a possibilidade de extinção do casamento por injúria grave. Sem embargo, pode acontecer algum caso em que o outro cônjuge deseje permanecer casado com o transexual, situação em que o casamento permanecerá valido e emanando os efeitos previstos na lei enquanto o cônjuge transexual não proceda a redesignação sexual, pois o elemento essencial, diversidade de sexo, continuará.
E a solução fica mais simples, para o caso de o transexual que permanece casado querer promover a redesignação de seu sexo civil e nome. Devido ao impedimento legal, deve o juiz somente reconhecer o pedido quando ele estiver divorciado.
Possibilidade do transexual solteiro, redesignado, contrair matrimônio
Já quanto a segunda hipótese, a do transexual solteiro, divorciado ou viúvo (sem impedimento para o casamento) que depois de ser submetido a cirurgia para troca de sexo queira casar por primeira vez, ou em segundas núpcias, com pessoa do sexo oposto ao seu novo sexo morfológico, se deve fazer a análise sob duas perspectivas.
Se ele ainda não fez a redesignação de sexo, ou, ainda que tenha promovido, não tenha logrado êxito na demanda, permanecendo com o sexo civil que consta no registro de nascimento, resultará em uma identidade de sexo, e a conseqüente falta de um dos elementos do casamento, o que se dispensam maiores comentários.
Por outro lado, no caso de haver logrado êxito na pretensão de modificação de sua identidade sexual e nome no registro civil, duas outras conseqüências podem surgir.
A primeira diz respeito a aqueles primeiros casos de pedidos de redesignação sexual, que foram julgados nos tribunais brasileiros, e, ao invés de conferirem aos transexuais um novo sexo entre o masculino e o feminino, até com certa maldade e preconceito, determinavam alguns juízes que se fizesse constar um 3º sexo, ou seja, que os indivíduos deveriam ter no seu registro que eram transexuais. Nestes casos, levando-se em consideração que a lei, inclusive a Constituição, costuma citar a necessária diversidade de sexo entre homem e mulher, por óbvio que o requisito essencial também não estaria presente. Cabe a eles, no entanto a alternativa de voltar a promover a redesignação, para a real adequação, já que transexual não especificamente um gênero de sexo (que se limita ao masculino e feminino), além de ser uma clara violação do principio constitucional da dignidade da pessoa, dentre outros.
Já se ele logrou êxito na ação para alteração do sexo civil, de masculino, para feminino, ou vice-versa, e conseqüentemente também de seu nome, nada obsta que ele venha a contrair núpcias com pessoa do sexo oposto ao seu novo sexo, já que estão presentes todos os elementos essências a existência do negocio jurídico do casamento, e uma vez casado produzirá todos os efeitos previstos na legislação.
Problema pode surgir caso o transexual não informe a sua condição de transexual ao futuro cônjuge antes do casamento. Neste caso, ao tomar conhecimento do fato, se estaria diante de um caso de erro essencial em relação a pessoa do cônjuge, capaz de viciar o consentimento, uma vez que foi manifestado em desacordo com a realidade (falta de conhecimento da identidade anterior do outro cônjuge e de sua atual identidade de transexual redesignado) e que torne insuportável a vida em comum.
Para tal, por foca do artigo 1560, III, do CCB, este conhecimento deve se dar nos primeiros 3 anos do casamento. Após, restará somente a alternativa da dissolução da sociedade conjugal por meio da separação, que hoje já não necessita mais de uma motivação específica, ao contrario das disposições dos artigos 1.572 e seguintes do CCB.
[1] Klabin, Aracy Augusta Leme. Transexualismo, Em: Revista de Direito Civil, vol 17, pp 27-49, São Paulo: RT, 1981, p.32.
[2] Larenz, Karl. Derecho Civil. Parte General. Madrid:EDERSA, 1978, p. 56.
[3] Glenn, Patrick. Travaux de l’association Henri Capitant, lê corp human et le droit, tomo XXVI, 1975, pp. 52 e 53, citado por Vieira, Tereza Rodrigues. Natureza jurídica do direito à mudança de sexo e os direitos da personalidade. Ob. Cit., p. 356.
[4] França, Rubens Limongi. Manual de Direito civil, vol.1. 4ed. São Paulo: RT, 1980, p. 415.
[5] Peman Gavin, Juan. Derecho a la salud y administración sanitaria. Zaragoza: Real Colegio de España, 1989, p. 31.
[6] Mello, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 76.
Doutor em Direito Civil.
Professor de Direito Civil da Fundação Universidade Federal do Rio Grande/RS.
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