Resumo: Este artigo tem como objetivo fundamental analisar a aproximação entre a Teoria Pura do Direito, no que diz respeito à validade das normas jurídicas, e a recepção das normas infraconstitucionais anteriores à constituição, dando-se especial atenção a como o tema é tratado no ordenamento brasileiro.
Palavras-chave: teoria pura do direito; recepção; direito constitucional.
Sumário: Introdução. – 1. O fundamento de validade das normas infraconstitucionais na Teoria Pura do Direito. – 2. A teoria da recepção das normas infraconstitucionais: 2.1. O poder constituinte originário; 2.2. As normas infraconstitucionais anteriores ao exercício do poder constituinte originário 3. Aproximações entre a Teoria Pura do Direito e a teoria da recepção das normas infraconstitucionais Conclusão. – Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A relação de direito intertemporal que permeia a nova ordem constitucional e as normas jurídicas infraconstitucionais anteriores a ela é tema de grande relevância para o estudo jurídico, especialmente para a teoria geral do direito e o direito constitucional.
Neste trabalho, busca-se demonstrar a aproximação entre as ideias de Hans Kelsen, expostas na sua Teoria Pura do Direito, e a maneira pela qual é encarada a recepção de normas infraconstitucionais, especialmente no que diz respeito à alteração da sua natureza jurídica (“status jurídico”).
Para tanto, são inicialmente expostas as principais ideias da Teoria Pura do Direito quanto ao sistema escalonado das normas jurídicas e ao fundamento de validade das normas jurídicas pertencentes a certo ordenamento jurídico.
Em seguida, são enfrentados temas ligados ao direito constitucional, especialmente quanto ao poder constituinte originário e a forma pela qual a doutrina lida com a relação entre a nova ordem constitucional e as normas infraconstitucionais anteriores à mudança constitucional.
Feitas tais considerações basilares, passa-se ao objetivo principal deste artigo: o estudo acerca da aproximação entre as ideias de Hans Kelsen, especialmente naquilo que diz respeito ao fundamento de validade das normas infraconstitucionais, e a teoria da recepção trabalhada no ordenamento brasileiro, dando-se maior enfoque às alterações da natureza jurídica das normas jurídicas recepcionadas, nos casos em que a nova constituição exige que outra espécie normativa trate da matéria.
1. O FUNDAMENTO DE VALIDADE DAS NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS NA TEORIA PURA DO DIREITO
Neste tópico inicial, serão analisados alguns contornos da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, dando-se especial enfoque à estrutura escalonada do ordenamento jurídico e ao fundamento de validade das normas infraconstitucionais.
O autor definia o Direito como “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”. Em seguida, afirmava que o vocábulo norma deveria ser entendido como um instituto que indica que algo deve ser, regulando a conduta humana de determinada forma, isto é, permitindo algum comportamento, tornando-o obrigatório ou conferindo um poder a alguém (competência)[1].
A partir destes elementos, Hans Kelsen esclarecia que a conduta humana poderia ser regulada de forma positiva em algumas situações, como quando: a) é obrigatória uma ação ou omissão (neste segundo caso, é proibida a ação em sentido contrário); b) é conferida uma competência ou um poder para alguém para que ele produza, através de certa atuação, “determinadas consequências pelo mesmo ordenamento normadas, especialmente (…) para produzir normas ou para intervir na produção de normas”; c) o ordenamento jurídico prevê atos de coerção e atribui a alguém poder ou competência para realizar estes atos coercitivos, sob as condições fixadas pelo próprio ordenamento jurídico; d) uma conduta que, em geral é proibida, é excepcionalmente permitida a um indivíduo[2].
A regulamentação negativa de uma conduta estaria presente, segundo Hans Kelsen, quando ela, apesar de não ser expressamente permitida, não é categoricamente proibida. Neste caso, a conduta seria permitida num sentido meramente negativo[3].
Avançando em sua teoria, o autor qualificava a ordem jurídica como uma ordem social, na medida em que regularia a conduta humana com relação a outras pessoas, e como uma ordem coercitiva, uma vez que fixaria sanções para hipóteses de descumprimento da conduta devida[4].
Em seguida, a obra de Hans Kelsen começava a traçar os contornos sobre os fundamentos de validade da ordem jurídica, tema analisado com mais vagar posteriormente. Assim, o autor mencionava que uma ordem deveria ser entendida como um sistema de normas cuja unidade reside no fato de todas elas apresentarem o mesmo fundamento de validade. Por consequência, uma norma jurídica pertenceria a determinada ordem jurídica quando a sua validade se fundasse na norma fundamental deste ordem[5].
O foco deste artigo, no que diz respeito à Teoria Pura do Direito, reside justamente no fundamento de validade das normas jurídicas, de sorte que o estudo da obra deve ser direcionado a este ponto.
Inicialmente, destaque-se que, para Hans Kelsen, afirmar que uma norma jurídica “vale” significava que ela é vinculativa, no sentido de impor ao indivíduo o dever de se comportar de determinada maneira[6].
A primeira premissa fixada pelo autor, no que dizia respeito à validade de uma norma jurídica, é a de que tal validade só poderia ser fundamentada em outra norma. Nesse contexto, a norma que servisse como fundamento de validade poderia ser chamada de norma superior e a outra, de inferior[7].
Esse raciocínio de busca da validade de uma norma em outra superior não poderia repetir-se ao infinito. Desta forma, deveria haver uma que fosse a última, fundamentando a validade de toda a ordem jurídica. Como norma mais elevada, ela teria de ser pressuposta, já que as normas postas por alguma autoridade teriam a sua validade condicionada à instituição de tal competência (norma superior). Assim, a norma mais elevada não teria a sua validade decorrente de outra norma nem poderia ter o seu fundamento de validade questionado[8].
Essa norma mais elevada é designada, na Teoria Pura do Direito, como norma fundamental (Grundnorm) e funciona como ponto de convergência de uma ordem jurídica, isto é, as normas jurídicas pertenceriam ao mesmo sistema quando o seu fundamento de validade, em último grau, fosse a mesma norma fundamental[9].
Discorrendo sobre o fundamento de validade da ordem jurídica, Hans Kelsen falava em dois tipos de sistema de normas: estático e dinâmico.
As normas de um ordenamento do tipo estático seriam válidas se obedecessem ao conteúdo prescrito por uma norma superior, até que se chegasse à norma fundamental. Esta norma fundamental não prescreveria somente o método de produção do Direito, mas também o conteúdo de validade de todas as normas inferiores, cujos mandamentos fossem extraíveis, de forma lógica, do conteúdo da norma fundamental[10].
Já o ordenamento que seguisse o princípio estático teria como característica o fato de a norma fundamental pressuposta não prescrever o conteúdo de normas inferiores, mas apenas a instituição de um fato produtor de normas. Neste caso, da norma fundamental não se deduziriam outras normas por operações lógicas, já que ela não determinaria conteúdo algum, apenas forneceria o fundamento de validade do ordenamento jurídico[11].
Hans Kelsen defendia que a ordem jurídica tem “essencialmente um caráter dinâmico”, uma vez que a norma fundamental pressuposta apenas fixa a forma pela qual deve se dar a produção de outras normas, não mencionando o seu conteúdo. Assim, o autor chegava à conclusão de que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”[12].
A norma fundamental representaria, então, “a instauração do fato fundamental da criação jurídica”, funcionando como ponto de partida da criação do Direito positivo. Assim, poderia ser chamada de constituição em sentido lógico-jurídico, diferenciando-a da Constituição em sentido jurídico-positivo. Na obra de Hans Kelsen, a norma fundamental é, então, uma norma pressuposta[13].
Assim, o fundamento de validade de uma norma pertencente a um ordenamento jurídico deveria ser verificado à luz da sua recondução à norma fundamental, isto é, seria necessário averiguar se ela foi produzida de acordo com a norma fundamental[14].
Em sequência, o autor definia que a função da norma fundamental é a de fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva. Ela responderia, sem ter que se recorrer a entidades metafísicas, o porquê de se conferir significação objetiva a sentidos objetivos de certos fatos. Segundo o autor, a pressuposição da norma fundamental resolveria a questão, indicando que deve-se se comportar segundo prescreve a Constituição[15].
Percebe-se, então, que a validade, na doutrina de Hans Kelsen, é verificada a partir da análise da conformidade da norma jurídica inferior com a superior, até que se chegue à norma fundamental, pensada, pressuposta e cuja autoridade não remonta a nada superior.
Mais à frente, o autor detalhava a estrutura escalonada da ordem jurídica.
Inicialmente, Hans Kelsen ratificava o fato de o direito regular a sua própria criação e que “a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas”. Assim, uma norma jurídica inferior só deve ser considerada válida se produzida pela maneira determinada pela norma superior[16].
O ponto de partida desse estudo, quando voltado à ordem jurídica estadual, é a Constituição. Ela representaria o “escalão do Direito positivo mais elevado”, quando entendida em seu sentido material[17].
O autor fazia distinções entre Constituição nos sentidos material e formal.
No sentido material, a Constituição equivaleria à norma positiva ou ao conjunto delas que regularia a produção de normas jurídicas gerais. Ela poderia ser produzida pela via consuetudinária ou por um ato legislativo de um ou vários indivíduos. No primeiro caso, haveria uma Constituição não escrita, enquanto que o segundo resultaria numa Constituição escrita, sem prejuízo de uma Constituição material apresentar parte escrita, oriunda de um ato legislativo, e parte não escrita, reflexo do Direito criado consuetudinariamente. O autor ainda ressaltava a possibilidade de uma Constituição material ser codificada, de modo que, quando tal fosse feito por um ato legislativo, ela se transformaria em constituição escrita[18].
Já a Constituição em sentido formal representaria o documento (Constituição escrita) que, além de regular a produção de normas jurídicas, também cuidaria de outros assuntos politicamente importantes, disposições que não seriam passíveis de modificação da mesma forma que as leis simples[19].
Avançando na definição da Constituição em sentido material, o autor defendia que a regulação da produção de normas jurídicas gerais (leis e decretos) passava pela fixação de competência a determinados órgãos[20].
Por fim, quanto à Constituição, Hans Kelsen relembrava que ela poderia determinar também o conteúdo das futuras leis, prescrevendo ou vedando determinados conteúdos, o que não seria raro nas constituições positivas. Os direitos e liberdades fundamentais seriam exemplos de impedimentos de que certas leis venham a existir[21].
No escalão imediatamente inferior ao da Constituição, segundo Hans Kelsen, estariam as normas criadas pela legislação e pelo costume, considerando que, normalmente, as Constituições estabelecem um órgão legislativo com competência para produzir as normas gerais a serem aplicadas pelos tribunais e autoridades administrativas[22].
A Constituição poderia, além de estabelecer o fato legislativo como produtor do direito, dando significação objetiva ao sentido subjetivo (dever-ser), também fixar que o fato consuetudinário desempenharia a mesma função[23].
Ao cuidar do fenômeno da criação do direito, o autor relembrava a premissa de que, numa ordem jurídica, a produção de qualquer norma jurídica era determinada por outra norma do sistema e, em último grau, pela norma fundamental, de sorte que uma norma só pertenceria a uma ordem jurídica quando produzida em conformidade com outra norma do mesmo sistema[24].
Por conta disso, Hans Kelsen destacava um ponto importante: a produção de uma norma jurídica era simultaneamente criação do Direito e aplicação do Direito, pois pressupunha a aplicação da norma jurídica superior, que regulamentaria tal processo[25].
Esta regulamentação pela norma superior poderia ocorrer de duas maneiras: a) fixação do órgão competente e do processo correspondente; b) determinação do seu conteúdo[26].
Após a fixação destas premissas sobre o sistema escalonado de normas jurídicas, Hans Kelsen dedicava uma parte à análise do conflito entre normas de diferentes escalões, reservando um tópico específico à “lei ‘inconstitucional’”.
Nesta parte da sua obra, o autor era categórico ao defender que o fundamento de validade de uma lei residia na Constituição, isto é, “uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição”. Por consequência, ao legislador constitucional não bastaria apenas fixar os órgãos e o procedimento legislativo, mas também lhes caberia atribuir competência para determinado órgão fiscalizar a constitucionalidade das leis[27].
Desta forma, pode-se concluir que Hans Kelsen apresentava um escalonamento de normas no qual era necessário que a norma inferior respeitasse a norma superior, seu fundamento de validade.
Por consequência, uma lei deveria obedecer à Constituição, seja quanto aos órgãos competentes, ao procedimento adequado ou ao conteúdo permitido, sob pena de, não o fazendo, ser anulada. Somente se respeitadas estas exigências, poderia se dizer que determinada norma jurídica pertenceria validamente a determinado ordenamento jurídico.
Para os fins deste trabalho, as considerações acima sobre como uma norma jurídica extrai validade de determinado ordenamento jurídico é suficiente. No tópico seguinte, serão analisados aspectos relativos às normas jurídicas infraconstitucionais anteriores à constituição. Somente na quarta parte deste artigo, serão demonstrados aspectos que indicam a ligação entre as ideias da Teoria Pura do Direito e a forma pela qual o ordenamento brasileiro trabalha com a recepção de normas infraconstitucionais, especialmente quanto à natureza jurídica de tais normas após a nova constituição.
2. A TEORIA DA RECEPÇÃO DAS NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS
2.1. O poder constituinte originário
A noção de poder constituinte originário remonta às lições de Emmanuel Sieyés, para quem a origem e a organização dos poderes do Estado (poderes constituídos) seriam produto do poder constituinte originário, superior aos demais. O povo seria o titular deste poder, sendo-lhe dado criar uma ordem jurídica do nada e dispor sobre tudo[28]. É o poder, portanto, que elabora a Constituição de um Estado[29].
Jorge Miranda alerta que o fator determinante para a abertura de cada era constitucional não é a aprovação de uma nova constituição formal, mas o momento de ruptura ou, em suas palavras, o de “corte ou contraposição frente à situação ou ao regime até então vigente, em nome de uma nova ideia de Direito ou de um novo princípio de legitimidade, seja por meio de revolução, seja por outro meio”[30].
O autor fala em poder constituinte material e poder constituinte formal, que seriam dois momentos que se sucederiam e completariam[31].
O poder constituinte material se manifestaria no momento de ruptura, isto é, seria exercido pela entidade determinante para a mudança constitucional em prol de uma “nova ideia de Direito”[32].
A partir da fixação da “nova ideia de direito”, isto é, após o exercício do poder constituinte material, passa-se à “formalização que se traduz ou culmina no ato de decretação da Constituição formal ou ato constituinte stricto sensu”. Ao fim do exercício do poder constituinte material (opção pela ruptura em favor de uma nova ideia de direito), chega-se, então, à elaboração da Constituição formal[33].
São apontadas três características básicas do poder constituinte originário: ele é inicial, autônomo/ilimitado e incondicionado[34].
O caráter inicial do poder constituinte originário decorre do fato de ele não pertencer à ordem jurídica, mas iniciá-la[35]. Como o dito acima, o poder constituinte material representa uma nova ideia de Direito, sendo um momento de ruptura da ordem jurídica vigente, de modo que não está sujeito a ela. Dessa forma, ele é exterior ao ordenamento vigente e inaugura uma nova ordem jurídica.
Como o poder constituinte originário não pertence a uma ordem jurídica (inicial), ele também não é regulado por nenhum ordenamento. Por isso, fala-se que ele é ilimitado, podendo decidir o que bem entender, sem ser atingido por nenhuma restrição[36].
Jorge Miranda, no entanto, defende haver três espécies de limites materiais direcionados ao poder constituinte: transcendentes, imanentes e heterônomos[37].
Os limites transcendentes seriam originários do direito natural, de valores éticos superiores e de uma consciência jurídica coletiva, impostos ao Estado e demarcando a sua esfera de intervenção. Seriam exemplos desta espécie de limites os direitos fundamentais imediatamente ligados com a dignidade da pessoa humana. Os limites transcendentes atingiriam o poder constituinte material e, por consequência, o formal[38].
Os limites imanentes seriam aqueles impostos ao poder constituinte formal e ligados à “nova ideia de Direito” e de configuração do Estado objetivadas quando do exercício do poder constituinte material. Assim, se um Estado pretende continuar soberano, por exemplo, não seria dado ao poder constituinte formal dispor em sentido contrário[39].
Por fim, os limites heterônomos decorreriam da conjugação com outros ordenamentos jurídicos, referindo-se a princípios, regras ou ato de direito internacional que resultem obrigações para todos os Estados ou para algum deles em especial. Jorge Miranda ainda divide os limites heterônomos de direito internacional em: a) de caráter geral, que seriam os princípios de jus cogens, como o art. 2º da Carta das Nações Unidas; b) de caráter especial, que corresponderiam às limitações decorrentes de deveres assumidos pelo Estado em face de outro(s) ou da comunidade internacional em seu conjunto[40].
Como última característica do poder constituinte originário, fala-se que ele é incondicionado, no sentido de não ser regido, no que tange à forma, pelo direito preexistente[41]. Assim, o exercício do poder constituinte é livre de formar pré-estabelecidas, não se sujeitando a nenhum processo ou procedimento fixado anteriormente[42].
Pode-se, ainda, falar numa quarta característica do poder constituinte originário: a perenidade. Com isto se quer dizer que o exercício de tal poder não o esgota, de modo que ele permanece latente até ser reutilizado pelo seu titular[43].
Das quatro características analisadas, as duas primeiras são sobremaneira importantes para se compreender que o exercício do poder constituinte originário funda uma ordem jurídica independente da anterior e que não está sujeito, ao menos em princípio, a nenhuma limitação.
Como o exercício do poder constituinte originário dá ensejo a uma nova ordem jurídica, independente da anterior, chega-se à seguinte indagação: como funciona a relação entre a nova Constituição e as normas infraconstitucionais anteriores a ela?
Feitas as considerações básicas sobre o exercício do poder constituinte originário, pode-se passar ao tópico seguinte, destinado a responder a indagação anterior, sob a ótica do direito brasileiro.
2.2. As normas infraconstitucionais anteriores ao exercício do poder constituinte originário
Como visto acima, considera-se o poder constituinte originário como inicial, de modo que ele funda uma ordem jurídica nova. A partir desta constatação, deve-se questionar acerca da relação entre a nova ordem constitucional e o direito infraconstitucional anterior.
Um primeiro ponto a ser abordado é a situação do direito infraconstitucional anterior que seja incompatível materialmente com a nova constituição. Nessa hipótese, confrontam-se aqueles que defendem a ideia de revogação e os que acreditam haver inconstitucionalidade superveniente.
A opção por uma ou outra tese tem implicações práticas relevantes, uma vez que, entendendo tratar-se de revogação, por exemplo, exclui-se a possibilidade de análise do ato normativo por meio de ADI e dispensa-se a cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF)[44].
A tese da revogação das normas infraconstitucionais anteriores e incompatíveis com a nova ordem constitucional foi acolhida pelo STF, não sendo possível buscar a paralisação dos efeitos do ato normativo prévio por meio de ADI, já que não se trataria de inconstitucionalidade, mas de revogação automática do ato a partir da nova ordem constitucional[45].
Uma segunda questão diz respeito às normas infraconstitucionais que sejam materialmente compatíveis com a nova constituição, mas destoem dela em aspectos formais.
Neste caso, o mais relevante é que a norma infraconstitucional tenha sido produzida de acordo com a ordem constitucional vigente à época da sua elaboração, fazendo incidir a regra “tempus regit actum”[46].
Assim, o fenômeno da recepção desconsidera as alterações formais promovidas pela nova ordem constitucional: o importante é que a norma infraconstitucional anterior seja materialmente compatível com a nova constituição. Há uma revalidação da norma anterior[47].
Luís Roberto Barroso é preciso ao definir as duas regras básicas que, no ordenamento brasileiro, regem a relação entre o direito infraconstitucional anterior e a nova constituição: a) todas as normas infraconstitucionais anteriores, naquilo que forem compatíveis com a nova ordem constitucional, continuam válidas, mas agora com outro fundamento de validade; b) as normas infraconstitucionais anteriores que forem incompatíveis com a nova ordem constitucional é tida como automaticamente revogada[48].
Há, por fim, um terceiro problema: a alteração de competência legislativa por parte da nova constituição e as normas infraconstitucionais anteriores e editadas por entes que passaram a ser incompetentes para tanto.
A solução proposta passa por duas situações: a) quando o ente federativo mais amplo engloba a competência dos mais restritos; b) quando o ente federativo mais restrito assume a competência que outrora era do mais amplo. No primeiro caso, não há como se imaginar, por exemplo, uma “federalização” das legislações municipais, até mesmo por inviabilidade prática. Todavia, no segundo caso, é possível defender uma prorrogação da vigência de lei federal, por exemplo, até que sejam editadas as leis pelo ente competente[49].
Para os fins deste trabalho, o foco deve ficar em torno do segundo problema: o da recepção das normas infraconstitucionais materialmente compatíveis com a nova ordem constitucional. Neste contexto, são fundamentais as considerações feitas, especialmente naquilo que diz respeito ao fato de a norma passar a extrair validade da nova constituição.
3. APROXIMAÇÕES ENTRE A TEORIA PURA DO DIREITO E A TEORIA DA RECEPÇÃO DAS NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS
Percebe-se que, em um ponto crucial, há convergência entre a estrutura escalonada da ordem jurídica, defendida por Kelsen, e a teoria da recepção adotada pelo direito brasileiro: em ambos os casos, defende-se que a norma infraconstitucional retira validade da Constituição.
Nesse sentido, como mencionado por Luís Roberto Barroso, a norma infraconstitucional, anterior à nova ordem constitucional e que seja com ela compatível, retira o seu fundamento de validade da nova Constituição.
Ressalte-se que Hans Kelsen chegou a abordar expressamente o problema da recepção no sentido posteriormente defendido por Luís Roberto Barroso, destacando que o conteúdo das normas anteriores continua o mesmo, mas seu fundamento de validade é alterado. A recepção, então, deveria ser encarada como uma forma de produção de direito, uma vez que as normas anteriores teriam o seu fundamento de validade modificado[50].
Esse detalhe é importante para se compreender um efeito importante da teoria da recepção: o mecanismo de alteração da espécie normativa da norma infraconstitucional anterior à nova constituição. Antes de se enfrentar este tema à luz do direito brasileiro, é preciso analisar a estrutura escalonada do ordenamento jurídico feita pela CF/88.
Como é peculiar às Constituições, a CF/88 determinou o método de produção do direito infraconstitucional, além de fixar, em seu art. 59, sete espécies normativas oriundas do processo legislativo: a) emendas à constituição; b) leis complementares; c) leis ordinárias; d) leis delegadas; e) medidas provisórias; f) decretos legislativos; g) resoluções.
Como este artigo é focado nas normas infraconstitucionais, são desnecessárias considerações acerca das emendas constitucionais.
De forma semelhante, não se dará maior atenção aos decretos legislativos e às resoluções, pois se destinam a regular matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, independentemente de sanção ou veto. Ressalvadas algumas exceções, as espécies se diferenciam na medida em que os decretos legislativos são voltados às matérias com efeitos externos e as resoluções, às que tenham efeitos internos, como o regimento de cada uma das Casas[51].
As medidas provisórias, além de não serem propriamente produto de processo legislativo, como bem aponta José Afonso da Silva[52], acabam resultando, caso aprovadas, em leis ordinárias, frente à vedação do art. 62, III, da CF. Por isso, para fins de análise da teoria da recepção, não se justifica um estudo pormenorizado das medidas provisórias.
De forma semelhante, as leis delegadas divergem das leis ordinárias apenas quanto ao procedimento, já que as delegadas não podem tratar de matérias sujeitas aos decretos legislativos, às resoluções (atos privativos do Congresso Nacional) e às leis complementares (art. 68, §1º). Assim, quanto a determinadas matérias, há concorrência entre a possibilidade de lei ordinária e lei delegada regularem o tema. Desta forma, mostra-se suficiente discorrer apenas sobre as leis ordinárias.
Chega-se, então, ao ponto crucial quando se estuda a recepção das normas infraconstitucionais anteriores à CF/88: as diferenças entre as leis ordinárias e as complementares.
Quanto ao quórum de aprovação, há uma diferença básica: enquanto as leis ordinárias são aprovadas por maioria simples, desde que presente maioria absoluta (art. 47, CF), as leis complementares só são aprovadas por maioria absoluta (art. 68, CF).
Há, ainda, outra diferença: as leis complementares estão reservadas a certas matérias, expressamente mencionadas na CF, como o feito nos arts. 79, parágrafo único, 93, caput, 121, caput, 128, §5º, 131, caput, 134, §1º, 142, §1º, 146, 169, caput, e 184, §3º, por exemplo.
Não há hierarquia entre essas duas espécies normativas, mas apenas delimitação de matérias que podem ser tratadas por uma ou outra. Assim, se uma lei ordinária trata de tema reservado à complementar, ela é inconstitucional não por ser hierarquicamente inferior à outra, mas por tratar de matéria alheia ao seu âmbito normativo[53].
Analisando o tema à luz da Teoria Pura do Direito, pode-se afirmar, então, que as normas jurídicas infraconstitucionais relacionadas às matérias reservadas às leis complementares, para serem consideradas válidas, devem extrair a sua validade da norma superior – CF/88. Para que tal aconteça, estas normas jurídicas devem ser leis complementares.
Assim, as normas jurídicas infraconstitucionais posteriores à CF/88 só podem validamente regular as matérias reservadas às leis complementares se leis complementares efetivamente forem. Caso se sujeitem ao procedimento legislativo das leis ordinárias, há invalidade da norma jurídica.
Pelo mesmo motivo, qualquer alteração na legislação vigente sobre as matérias reservadas à lei complementar também só pode ser feita por meio desta espécie normativa. Repita-se: a norma infraconstitucional deve extrair validade da constituição e a CF/88, quanto a determinados temas, condicionou a validade à observância do procedimento legislativo das leis complementares.
É neste ponto que a Teoria Pura do Direito parece sustentar a teoria da recepção das normas infraconstitucionais anteriores à nova ordem constitucional.
A ideia de que as normas infraconstitucionais recepcionadas gozam do mesmo “status jurídico” reservado à matéria que regulam é justificada pelo fato de a CF/88 só atribuir validade às normas jurídicas daquela espécie para que tal regulação (criem, revoguem ou modifiquem normas anteriores).
Dê-se um exemplo para tornar a premissa mais clara: uma lei ordinária anterior à CF/88 foi recepcionada como lei complementar porque ela não pode mais ser alterada ou revogada por lei ordinária, mas só por complementar. Se ela só pode ser influenciada por lei complementar, ela tem o mesmo “status jurídico” desta última.
Ao se estudar a recepção das normas infraconstitucionais anteriores à nova constituição, defende-se justamente que, desde que materialmente compatíveis, elas são recepcionadas e permanecem válidas, procedendo-se às devidas alterações de “ordem formal”, que dizem respeito justamente ao “status jurídico” da norma[54].
O CTN (Lei n. 5.172/1966) é o exemplo mais claro desta alteração formal.
Na área tributária, as leis complementares desempenham duas funções: a) complementar as disposições constitucionais sobre a matéria, dispondo, por exemplo, sobre os conflitos de competência entre os entes federativos (art. 146, I, da CF) e acerca das limitações do poder de tributar (art. 146, II, da CF); b) fixar normas gerais de direito tributário (art. 146, III, da CF), aumentando o grau de detalhamento dos modelos tributários já criados genericamente pela CF[55].
A Lei n. 5.172/1966 foi inicialmente designada como “Lei do Sistema Tributário Nacional”, tendo caráter de lei ordinária. Destaque-se que a Constituição de 1946, vigente à época, sequer previa a lei complementar como espécie normativa[56].
Com a vigência da Constituição de 1967, a lei complementar passou a figurar no ordenamento jurídico brasileiro e a ela foi reservada a regulamentação das matérias tratadas pela Lei n. 5.172/1966, que já então se chamava de Código Tributário Nacional[57].
A partir de então, passou a ser discutida a sobrevivência do CTN, o que foi resolvido a partir da teoria da recepção. Como o CTN nasceu formalmente válido (na vigência da Constituição de 1946) e era materialmente compatível com a Constituição de 1967, ele foi recepcionado, de modo que o CTN estaria no mesmo nível de eficácia das leis complementares[58].
Percebe-se, mais uma vez, a aproximação entre a Teoria Pura do Direito e a teoria da recepção. Como o defendido neste trabalho, as ideias de Hans Kelsen servem de fundamento para se defender que ao CTN deve ser tratado como lei complementar: como só terá validade constitucional a alteração do CTN que se der por lei complementar, ele tem natureza jurídica de lei complementar[59].
De forma semelhante, o Código Penal foi instituído pelo Decreto-Lei n. 1.848/1940, espécie normativa não prevista na CF. Como a matéria afeita à legislação penal é residualmente deixada a cargo das leis ordinárias, o Código Penal, atualmente, tem natureza jurídica de lei ordinária. Isso se vê, por exemplo, das sucessivas alterações pelas quais ele passou, todas oriundas de leis ordinárias, tais como: a Lei n. 13.104/2015, a Lei n. 12.978/2014, a Lei n. 12.850/2013, a Lei n. 12.720/2012 e a Lei n. 12.015/2009.
A mesma alteração sofreu o Código de Processo Penal, criado pelo Decreto-Lei n. 3.689/1941. Após a vigência da CF/88, que não prevê esta espécie normativa, o CPP foi modificado por diversas leis ordinárias, como a Lei n. 13.257/2016, a Lei n. 12.736/2012, a Lei n. 12.694/2012 e a Lei n. 12.403/2011.
Podem ser mencionados outros exemplos, como o Decreto-Lei n. 4.657/1942, que atualmente é denominado de “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro” e que já foi alterado por leis ordinárias, como a Lei n. 12.376/2010, e o Decreto-Lei n. 911/1969, que trata de aspectos processuais relevantes sobre a alienação fiduciária e que já foi modificado por leis ordinárias posteriores à CF/88, como a Lei n. 13.043/2014.
O STF enfrentou este tema, ainda que forma lateral, no julgamento do HC 74.675/PA, sob a relatoria do ministro Sydney Sanches. Tratava-se de habeas corpus impetrado em favor de ex-prefeito da cidade de Marabá/PA, impugnando acórdão do TJPA que havia recebido denúncia por crimes previstos no Decreto-Lei n. 201/67. Uma das teses suscitadas no HC era a de que a CF não havia previsto o Decreto-Lei como espécie normativa, de modo que a legislação que baseou a denúncia não produziria mais efeitos. O voto do relator, que indeferiu o HC, afirmou que “embora a Constituição de 1988 não inclua o ‘Decreto-Lei’ como forma de processo legislativo, nem por isso revogou o Decreto-Lei nº 201, de 27.02.1967, que regula a responsabilidade penal dos Prefeitos e Vereadores”[60].
Percebe-se, portanto, a aproximação existente entre as ideias postas na Teoria Pura do Direito, especialmente naquilo que diz respeito à norma inferior retirar validade da superior, e a teoria da recepção adotada pelo direito brasileiro. Em resumo: pode-se defender que a Teoria Pura do Direito fundamenta a ideia de recepção da norma anterior com uma nova natureza jurídica, já que as normas posteriores, para tratar de tais matérias, devem ser aprovadas pelo procedimento previsto para as espécies dessa “outra natureza jurídica”.
CONCLUSÃO
Após as considerações sobre a Teoria Pura do Direito, conclui-se que uma norma jurídica é considerada válida quando encontra fundamento nas normas que lhes são superiores, até que se chegue à sua compatibilidade com a norma fundamental. Esta validade pode ser ligada a aspectos formais ou materiais, fixados na norma superior.
Em seguida, verificou-se que, segundo a teoria da recepção, as normas infraconstitucionais anteriores à nova constituição são consideradas recepcionadas desde que materialmente compatíveis com a nova ordem constitucional, desprezando-se eventuais alterações formais. Após a alteração constitucional, a norma infraconstitucional passa a retirar a sua validade da nova constituição.
Mais à frente, demonstrou-se que, no ordenamento brasileiro, a recepção da norma infraconstitucional pode provocar alteração na sua natureza jurídica, nas hipóteses em que a nova constituição fixa que determinada espécie normativa deve reger a matéria.
Assim, chegou-se ao objetivo deste trabalho: demonstrar que a Teoria Pura do Direito, ao indicar que a norma jurídica deve extrair validade da norma superior, como a legislação infraconstitucional o faz com relação à Constituição, é capaz de justificar a alteração da espécie normativa mencionada acima.
Isto se dá da seguinte forma: se há a recepção da norma infraconstitucional e a nova constituição fixa que determinada espécie normativa é que deve regular a hipótese, a alteração do “status jurídico” da norma anterior decorre do fato de que a norma jurídica posterior deve extrair validade da Constituição, inclusive quanto a aspectos formais. Se somente por lei complementar pode-se se dispor sobre certo tema, por exemplo, a norma anterior passa a ter esta natureza porque somente serão válidas as modificações feitas por meio de leis complementares, não por leis ordinárias.
Desta forma, conclui-se que a Teoria Pura do Direito é plenamente compatível com a teoria da recepção das normas infraconstitucionais e lhe serve perfeitamente de fundamento, especialmente quando se tem em mente o desenvolvimento do tema no direito brasileiro.
Bacharel e Mestrando em Direito pela UFBA. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil pela UCSal. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
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