Arguição de suspeição contra membro do ministério público. A revogação do art.104 do código de processo penal

A
adaptação das leis infraconstitucionais a novos princípios de uma recente
Constituição é um processo necessariamente lento , e
marcado por dissensos entre as várias correntes dogmáticas que se disponham a
interpretar e conhecer com profundidade os novos paradigmas estabelecidos pelo
pacto fundador da sociedade ( assim entendida a Constituição).Tal fenômeno
deve-se presumir mais complexo quando ocorre dentro de um sistema normativo
onde a principal fonte do Direito é a própria lei , e quando várias sãoemitidas diariamente , causando certa perplexidade entre
saber-se o que está em vigência ou não , mormente quando a Jurisprudência se delinea mais como fonte de interpretação normativa do que
fonte criadora , situação normal dentro da tradição romano-germânica.

Assim
parece ocorrer em relação às inovações produzidas no seio do Ministério Público
após a Constituição de 1988 , e vários dispositivos
infraconstitucionais anteriores.Elencá-los é tarefa
exaustiva, porquanto na maior parte dos casos , somente uma interpretação
sistemática e moderna poderá detectar as incompatibilidades de algumas normas
jurídicas com os princípios fundamentais do Ministério Público.
Delimitando o tema à atuação processual penal , muito
se encontrará de incompatibilidade entre o Código de Processo Penal , e os arts.127 e 129 da Constituição da República , notadamente
quando se almeja uma aplicação fiel dos princípios da inamovibilidade
, do Promotor Natural , e da titularidade privativa da  ação penal
pública.

Um
dos temas de vital importância é a questão das arguições
de suspeição contra membros do Ministério Público em exercício da atividade
processual penal. Não apenas pela garantia que merece o membro do Ministério
Público de não se ver abrupta e arbitrariamente excluido
da lide penal , quanto pela garantia à sociedade
da  condução imparcial de um processo , onde a figura do Juiz jamais possa
interferir na acusação quer de forma direta , ou indireta.

Ao
disciplinar o procedimento para a arguição de
suspeição contra Juizes , membros do Ministério
Público , escrivães e serventuários , o Código de
Processo Penal dispõe expressamente , no art.104:

LIVRO
I – Do Processo em Geral (artigos 1
a 393)

TÍTULO
VI – Das Questões e Processos Incidentes (artigos 92 a 154)

CAPÍTULO
II – Das Exceções (artigos 95 a
111)

 ART.104 – Se for argüida a suspeição do órgão
do Ministério Público, o juiz, depois de ouvi-lo, decidirá, sem recurso,
podendo antes admitir  a produção de provas no prazo de 3 (três) dias.

Imagine-se
a hipótese de aplicação desse artigo hodiernamente:

O
réu , por algum motivo , decide exceptuar
o òrgão do Ministério Público , aduzindo fatos que
possam inferir a suspeita de parcialidade.O Juiz do feito ouve o Promotor de
Justiça , ou Procurador ( caso ocorra em segunda instância) , logo em seguida inadmite a suspeição , ou a admite , de conseguinte
afastando o Representante do Ministério Público daquela lide penal , tudo isso
sem recurso. Mais , a eventual produção de provas é
mero juizo de discricionariedade.

Imagine-se
agora a situação do Promotor de Justiça ante tal fato .Sem
poder impugnar tal decisão , salvo numa exaustiva e quase forçada utilização da
correição parcial , ou via mandado de segurança , que não raro é recebido como
correição. Afastado da titularidade da acusação à revelia do Procurador Geral
de Justiça , e dos Órgãos da administração superior
(Colégio de Procuradores e Conselho Superior). À semelhança de uma remoção compulsória , haverá o Membro do Ministério Público que se
ver afastado de suas funções.

Visto
sob outro ângulo , é poder o magistrado afastar de
suas funções o Membro do Ministério Público com o arbítrio de impedir que
determinado órgão de execução possa dar continuidade ao mister da acusação. Se
o magistrado pode dizer quem não acusa , pode
interferir na acusação , em prejuizo mesmo da
garantia constitucional da imparcialidade dos juizes . Aquele que julga , jamais poderá confundir-se com aquele que acusa.

Por
óbvio que esta dissertação não pretende ( e nem
poderia) desconhecer a possibilidade de que o Membro do Ministério Público
esteja afeto a causas de suspeição iguais àquelas imputadas aos juizes , nem
que possa ser excepcionado quando assim não fizer sponte
propria.

O
que se defende é a impossibilidade de que tal decisão se origine de um ato
judicial, porquanto incompatível com os princípios fundamentais do Ministério Público.Busca-se também uma solução consentânea com o
sistema normativo a ponto de que a arguição de
suspeição do Promotor ou Procurador de Justiça seja dirigida e julgada por
órgão dotado de atribuição constitucional para tanto , e cuja decisão esteja ao
abrigo dos princípios da autonomia funcional e do Promotor Natural.

Tratando
sobre a autonomia funcional do membro do Ministério Público ,
bem assevera Hugo Nigro Mazzilli se tratar de “órgão constitucional
independente “ , garantia essa adquirida desde a Lei Complementar nº 40/81 , que já a erigia à categoria de princípio
institucional . Transcrevendo Eurico de Andrade Azevedo ,
este define o princípio da autonomia funcional como:

“…
Isto siginifica que os seus membros, no desempenho de
seus deveres profissionais, não estão submetidos a nenhum órgão  ou
poder – nem ao Poder Executivo, nem ao Poder Judiciário, nem ao Poder
Legislativo – submetendo-se apenas à sua consciência e aos limites imperativos
da lei ”(MAZZILLI ,Hugo Nigro .Regime Jurídico do
Ministério Público.Saraiva, 1995 , p.92).

O
raciocínio alcança as raias da trivialidade quando se declara que o magistrado
não poderá afastar o membro do Ministrério Público de
suas funções em determinada ação penal , pelo simples
fato de que o Promotor de Justiça não lhe deve qualquer obediência de caráter
administrativo , deve obediência a decisões judiciais como qualquer cidadão as
deve  , podendo impugná-las .

Na
possibilidade legal, (diga-se não de caráter jurídico), de poder o magistrado
afastar um membro do Ministério Público de suas funções julgando-o suspeito de
parcialidade, reside flagrante ofensa ao princípio do Promotor Natural, que
paulatinamente se confirma no nosso ordenamento jurídico institucional.
Dito outrora, aquele que julga não se confunde com aquele que acusa. Logo, não
pode o juiz decidir se o Promotor pode ou não acusar, pois, se assim o faz ,
interfere na acusação. Se pode decidir quem não poderá
acusar, poderá obliguamente alçar-se à condição de
acusador indireto , que não faz a acusação mas nela interfere.

Se
já não possuirá a imparcialidade que lhe exige a garantia do Juiz Natural,
violará de forma concreta a garantia do Promotor Natural porquanto o devido
processo legal induz à existência de um órgão acusador pré-existente ao fato,
por isso mesmo imparcial.

Promotor
Natural é Promotor Titular ou cuja designação se faça sob a sua aquiescência
expressa ou tácita ( v.g. designação para auxiliar ,
ou acompanhar determinado processo  ) ou ainda sob aquiescência que se
denomine “ presumida” ( férias, licença , etc).

Promotor
Natural é o Promotor pré-constituido ao fato, cujo
provimento no exercício da sua função não ocorra de forma especial quando para
determinado caso já exista atuando outro órgão do Ministério Público. Promotor
Natural é órgão de acusação ou fiscal da lei estável ,
isento e imune a vicissitudes , preservada sua posição cujo afastamento decorre
de exceção prevista em lei e que só ocorre por decisão de orgão
superior do Ministério Público respaldado no princípio da unidade. De sua
autonomia funcional decorre que o Promotor Natural é
órgão que não se sujeita a estranhos poderes, alheios ao Ministério Público.
Garantida a sua inafastabilidade, estará garantida a
imparcialidade da acusação.

Bem
mais que uma garantia do membro da Instituição , a
preservação de um órgão acusador isento , inamovível e inafastável
, antecedente ao fato é a garantia do cidadão de não ser acusado de forma
excepcional , de ter mantido na acusação, membro do Ministério Público que nela
funciona isentamente.Se o Promotor de Justiça, ou
Procurador puder ser afastado do processo por decisão que não se origine de
seus pares, estará o cidadão sujeito a órgão acusador não independente, quase
num regresso à justiça privada.Viola-se dessarte o
próprio teor do art. 5º LIII da Constituição da República, verbis:

LIII
– ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

Poder
o magistrado afastar o Membro do Ministério Público de suas funções equivale a
removê-lo compulsoriamente , situação para a qual
somente com o devido processo legal , e direito a recurso , pode o Conselho
Superior do Ministério Público fazer. Sem maiores esforços vê-se de forma
evidente que o art.104 do Código de Processo Penal ofende ao princípio da inamovibilidade.

Inamovibilidade , autonomia funcional ,
Promotor Natural , devido processo legal , tamanha incompatibilidade vertical
do art.104 do Código de Processo Penal com a Constituição da República conduz
ao raciocínio de que se não o aceitarmos como tacitamente revogado , há que se
inquiná-lo do estigma da inconstitucionalidade material superveniente. De
qualquer forma é norma jurídica espúria cuja mera tentativa de aplicação deve
ser rejeitada veementemente , usando em sendo
necessário , a via do remédio heróico do mandado de segurança contra ato do
juiz que solicitar informações do Promotor de Justiça com vistas a instruir
incidente de exceção de suspeição contra o membro do Ministério Público.

Traçada
em breves linhas a revogação do art.104 do Código de Processo Penal e sugerido
o instrumento legal para evitar a sua aplicação ,
convém discutir-se o procedimento para a arguição de
suspeição do membro do Ministério Público.

Foi
rememorado que o membro do Ministério Público está sujeito a ser excepcionado
pelas mesmas causas de suspeição a que estão sujeitos os juizes, diferente entretanto é o processamento dessa suspeição.

No
art.43 , VII , a Lei federal nº
8.625/93 , elenca como dever do membro do Ministério
Público “ declarar-se suspeito ou impedido nos termos da lei”.Definir as
hipóteses de suspeição e impedimento comentando-as não caberia neste artigo ,
pois o objetivo é apenas a forma de se processar a suspeição.

Em
havendo causa de impedimento ou suspeição deve o membro do Ministério Público
declara-se suspeito ou impedido conforme o caso ,
todavia , não o fazendo caberá à parte interessada excepcioná-lo . Essa regra
geral deve ser aplicada no âmbito do Ministério Público  como o é noutras
instituições.

Parte
interessada, e necessariamente legítima, para excepcionar o membro do
Ministério Público no processo penal, pode ser não apenas o réu, mas também a
vítima. Ambos , este último com menor frequencia podem sentir receio da atuação do membro do parquet no processo , suspeitando inexistir a necessária
imparcialidade. A exemplo , imagine-se a hipótese da
amizade ou inimizade com o reu ou a vítima. Existindo
inimizade entre o réu e o membro do Ministério Público ,
pode aquele suspeitar da imparcialidade deste para exarcerbar
a acusação , entretanto , havendo amizade , poderá então a vítima suspeitar a
imparcialidade acreditando na benevolência e piedade do membro do Ministério
Público para com o réu.

Decerto portanto que somente o réu ou a vítima poderão excepcionar
o membro do Ministério Público , pois que existente , em tese , o interesse
legítimo.Não poderão excepcionar o membro do parquet
outras pessoas envolvidas no processo , tais como o Juiz , o Advogado ou
Defensor , serventuários da justiça , ou o assistente de acusação.

O
primeiro, pelas mesmas razões que o impedem de apreciar a suspeição não poderá arquir a suspeição do membro do Ministério Público quer por
motivo de terceiro (réu ou vítima ) ou por motivo
próprio.Tal possível fosse , pudesse o Juiz crer que o membro do Ministério
Público atuaria parcialmente por animosidade ( ou outro motivo), estaria
julgando-o por seus próprios valores , cabendo a ele sim declarar-se suspeito,
posto que impedido de transferir sentimentos pessoais ao processo , tampouco
poderia o Juiz representar o réu ou a vítima.

Mesmo
raciocínio caberia ao advogado , salvo quando
estivesse postulando em nome da vítima ou do réu .Por dever ético , não poderia
o advogado , o juiz , o defensor, ou o membro do Ministério Público estender a
terceiros eventuais animosidades.

Tal
raciocinio porem deve ser ressalvado
, no caso de impedimento por parentesco entre esses órgãos , hipótese na
qual , a omissão de declarar-se impedido poderia inclusive configurar falta
funcional.

Os
serventuários da justiça também não poderiam excepcionar o membro do Ministério
Público  pois inexistente o mínimo
comprometimento de suas relações com o mérito da causa. Bem assim
, o assistente de acusação , cuja própria admissão no processo depende
da oitiva do Ministério Público , não poderia excepcionar posto que indutivo
querer subsistir a figura do acusador.

Em
havendo a legitimidade para a arguição de suspeição , creio deva ser ela dirigida ao Conselho Superior
do Ministério Público  , órgão dotado de legitimidade para apreciar a
suspeição do membro do Ministério Público.


que se considerar mutatis mutandis
ser o afastamento do Promotor ou Procurador de Justiça de determinada causa , hipótese de grave exceção equivalente à remoção
compulsória.Esta é julgada pelo Conselho Superior , ex vi do art.15,VIII da Lei
nº 8.625/93 , logo se a remoção é julgada por esse
órgão de administração superior , providência equivalente , a suspeição há que
por ele também ser julgada , com recurso voluntário ao Colégio de Procuradores
, que por ser instância ad quem  não julgaria a
suspeição originariamente.

Recebida
a exceção poderia ser instaurado processo , em
princípio de caráter não disciplinar , com abertura de prazo para defesa prévia
, instrução e produção de provas , com manifestação final apenas por parte do
membro do Ministério Público.

As
leis orgânicas do Ministério Público tanto no plano federal (8.625/93) quanto
no plano estadual ( Lei complementar nº 013/91) não exploram a matéria , que na omissão legal
poderia quiçá ser regulada através de provimento.

Conclusões:

1
– É inaplicável o art.104 do Código de Processo Penal por ter sido revogado
pelos arts.  127, caput
parágrafos 1º e 2º e 5º, LIII da Constituição da República;

2
– O afastamento por suspeição do membro do Ministério Público determinado pelo
juiz, conflita com os princípios institucionais da autonomia funcional
, da inamovibilidade e do Promotor Natural;

3
– À tentativa de aplicação do art.104 do Código de Processo Penal, pode o membro do Ministério Público, ao lhe serem
solicitadas informações pelo juiz, opor-se pela via do mandado de segurança
objetivando resguardar o direito líquido e certo à sua titularidade;

4 – A arguição de suspeição do membro do
Ministério Público pode ser feita somente por quem tenha legítimo interesse, e
deve ser dirigida ao Conselho Superior do Ministério Público a quem caberá
processar e julgar, com recurso voluntário para o Colégio de Procuradores.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luis Fernando Cabral Barreto Junior

 

Promotor de Justiça no Maranhão
Professor de Direito Civil, Administrativo e Ambiental da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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