Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal analisar a incompatibilidade entre o modelo de proteção autoral positivado em nosso ordenamento jurídico e as atuais necessidades surgidas no contexto de desenvolvimento tecnológico, de globalização e de forte disseminação cultural. Nesse sentido, analisa-se a viabilidade jurídica da tutela de interesses diversos daqueles pertencentes ao autor, mas tão legítimos quanto estes. O trabalho dividido em três partes. Inicialmente apresenta-se o processo histórico que deu origem à atual concepção de proteção autoral e como se caracteriza essa tutela. Posteriormente serão demonstrados alguns exemplos de como a tecnologia e as atuais demandas por informação desconstroem essa estrutura inflexível e evidenciam suas falhas. Por fim, são analisadas as relações entre a origem da matéria “direito do autor” e as atuais insuficiências da estrutura de sua tutela jurídica, tentando-se propor uma solução no sentido de uma coordenação de interesses.
Palavras-chave: Direito Autoral. Globalização.
Abstract: this article intends to analyze the incompatibility between copyright protection standard of our positive law and the current needs arising in the context of technological development, globalization and strong cultural dissemination. Accordingly, the article analyzes the legal feasibility of the protection of interests that are different from those owned by the author, but also are as legitimate as these. The work is divided into three parts. Initially it presents the historical process that led to the current conception of copyright protection and how this protection is characterized. After that, some examples of how technology and current demands for information deconstruct this inflexible structure and show its failure will be demonstrated. Finally, the conclusion analyzes the relationship between the origin of the matter "right of the author" and the current weaknesses of its legal protection structure, trying to propose a solution towards a coordination of interests.
Keywords: Copyright. Globalization.
Sumário: Introdução. 2. Proteção autoral: formação histórica do conceito e caracterização da tutela. 2.1. Direito do autor: proteção conferida realmente ao autor ou tutela em favor dos grupos econômicos detentores dos direitos patrimoniais? 2.2. Elementos constitutivos do direito de propriedade intelectual: o que caracteriza o direito do autor? 3. A evolução tecnológica e a crise da estrutura inflexível de tutela patrimonial do direito autoral. Conclusão: o mundo globalizado e suas novas demandas: a necessidade de acesso à cultura e à informação como elementos a serem mais ponderados pelo sistema jurídico de proteção autoral. Referências.
Introdução.
Baseado na noção de que a atividade criativa e original de uma pessoa deve ser protegida para que ela e outras se sintam estimuladas a produzirem cada vez mais obras de cunho literário, artístico ou científico que engrandeçam a cultura de um povo, surgiu o modelo jurídico atual dos direitos autorais. Esse sistema de proteção foi positivado no Brasil por meio da Lei nº 9.610 de 1998, determinando-se a proteção das facetas moral e patrimonial do direito em questão, a qual, salvo poucas exceções previstas em Lei, é assegurada de forma inflexível.
Em consequência dessa tutela rigorosa, praticamente sem brechas por meio das quais o sistema possa melhor se adaptar às vicissitudes do caso concreto, tem-se que o autor, ou, como na maioria dos casos, o detentor dos direitos patrimoniais cedidos pelo autor, é absolutamente protegido, sendo ignoradas as demandas sociais por acesso à cultura e por produção de mais cultura, a partir de um processo de contato com obras já disponibilizadas. Ou seja, outros direitos, tão legítimos quanto o direito do autor, são mitigados em virtude de uma concepção magnamente patrimonialista que beneficia, sobretudo, as editoras, produtoras, gravadoras entre outros.
Esse choque de direitos torna-se atualmente mais relevante diante do fenômeno da globalização, proporcionado pelo desenvolvimento de muitas tecnologias da informação. De fato, esse processo de destruição ou, pelo menos, encurtamento de fronteiras geográficas para a transmissão de dados, informações, cultura, valores entre outros bens está pondo em cheque o modelo atual de proteção autoral, baseado em mecanismos de tutela inflexíveis e mostrando-se inábil o suficiente para lidar com as liberdade e agilidade ínsitas ao mundo digital.
Partindo dessa contraposição de direitos potencializada pela globalização, o presente trabalho propõe as seguintes questões: é a vertente patrimonial da proteção autoral a mais importante? Gera ela lucros efetivos realmente para o autor ou para terceiros? Como o desenvolvimento tecnológico está apresentando situações que põe em cheque o modelo atual de proteção autoral, descortinando a necessidade de flexibilizá-lo? Qual a importância dessa flexibilização e qual seria uma possível solução para a concretização dessa proposta?
Nesse sentido, foi o trabalho dividido em três partes. Inicialmente apresenta-se o processo histórico que deu origem à atual concepção de proteção autoral e como se caracteriza essa tutela. Posteriormente serão demonstrados alguns exemplos de como a tecnologia e as atuais demandas por informação estão desconstruindo essa estrutura inflexível e evidenciando suas falhas. Por fim, serão analisadas as relações entre a origem da matéria “direito do autor” e as atuais insuficiências da estrutura de sua tutela jurídica, tentando-se propor uma solução.
2. Proteção autoral: formação histórica do conceito e caracterização da tutela.
2.1. Direito do autor: proteção conferida realmente ao autor ou tutela em favor dos grupos econômicos detentores dos direitos patrimoniais?
O primeiro instrumento normativo do direito autoral foi a lei do Copyright, que entrou em vigor na Inglaterra em 1710, no reinado da rainha Ana[1]. Entretanto muito antes de essa lei ser promulgada já havia a noção de tutela e de legitimidade dos direitos ínsitos ao autor.
De fato, na Antiguidade greco-latina o aspecto moral da proteção autoral era reconhecido e protegido, não por meio de leis, mas pela forte percepção social de que ao autor era devido o reconhecimento da autoria e à sociedade era dado saber quem seria o emissor da mensagem, da criação. O plágio, assim, não era considerado lesão a um direito. Entretanto havia a sanção moral caracterizada pelo repúdio público e pela desonra. Dessa forma, não existia ainda a concepção de proteção da esfera patrimonial do autor, sendo o importante para os antigos a tão só identificação do produtor da obra.
Esse sistema de reconhecimento do direito apenas no íntimo, na moral social, e não através de uma regulamentação positivada permanece por toda a Antiguidade e Idade Média. Isso porque nesses períodos a capacidade de escrever era algo dotado apenas por poucos e a difusão do conhecimento se dava majoritariamente por via oral, não havendo finalidade lucrativa na produção intelectual e vivendo os autores sob o regime de mecenato. O advento, porém, da imprensa no início da Idade Moderna traz consigo a facilitação do acesso às obras escritas, porque aumenta a quantidade de exemplares disponíveis no mercado. A sociedade passa a ter maior acesso à informação, desvinculando-se da Igreja, praticamente única detentora de conhecimento, adquirido por meio das cópias de seus monges. Além disso, possibilitada a produção em grande escala, para os padrões da época, o custo dos livros foi barateado, gerando uma “corrida” da população para o mercado fornecedor. Tornou-se, então, interessante para determinado setor social, o dos editores, publicar as obras com exclusividade, podendo-se então dominar determinada fatia do mercado. Por outro lado, diante da facilitação de produção de cópias, aumenta a incidência de plágio, que agora, porém, vem associado ao elemento “perda econômica”, gerando maior incômodo nas classes que exploravam essa atividade. É assim que começa a surgir o interesse social pela regulamentação da matéria. Ao tornar-se objeto do mercado, passível de gerar lucros, os direitos autorais despertaram os interesses não mais somente dos autores, mas também, e principalmente, dos editores. As violações ao direito do autor, por sua vez, deixaram de ter um cunho tão somente moral e passaram a gerar prejuízos na esfera patrimonial. Consequentemente, havendo o interesse do poder econômico, os editores passaram a reivindicar uma tutela jurídica específica e efetiva para os direitos dos autores sob o argumento de que estes eram os verdadeiros e únicos titulares do direito sobre o bem produzido, uma vez que a obra era produto da criatividade daqueles sujeitos. Como os autores dependiam dos editores para verem suas obras publicadas e difundidas, essa reivindicação perante a autoridade estatal beneficiava diretamente os editores, cujas empresas se tornariam os únicos veículos de publicação de determinadas obras por eles detidas. Produto dessas reivindicações, desenvolve-se o sistema de privilégios[2] governamentais, que se caracterizava por uma permissão, geralmente temporária, dada pelo Estado ao impressor para que somente ele pudesse publicar determinado livro. Esse sistema era vantajoso tanto para o editor, que passava a não ter concorrentes, quanto para o Estado absolutista, que estava se formando e aumentando sua esfera de dominação, pois poderia ser previamente censurado o que seria ou não publicado.
Entretanto, com o desenvolvimento do mercado, a classe burguesa foi se fortalecendo assim como os ideais liberais. Os privilégios sociais como um todo passaram a ser criticados, especialmente pelo fato de estarem vinculados ao monopólio, entrave à atividade econômica. De fato, sendo determinado grupo de impressores os únicos detentores de privilégios governamentais, somente eles poderiam imprimir os livros, inexistindo livre concorrência nesse setor econômico e dificultando-se a autorregulação do mercado, posto que o Estado determinava quem imprimia e o que poderia ser impresso. É nesse contexto que a Inglaterra sai à frente na questão da regulamentação e promulga o Copyright Act, de 1710. A Revolução Francesa, porém, foi o real marco do desmantelo do sistema de privilégios, que deu lugar à noção de propriedade literária. O direito autoral passou a ser reconhecido como propriedade, e não mais como mero privilégio concedido pela Coroa[3]. Desfalcados pela perda de seus monopólios, o editores passaram a agir estrategicamente sobre o discurso jurídico do direito autoral, fortalecendo ainda mais a percepção de que a obra era o fruto da própria criação intelectual do autor, sendo, pois, a forma de propriedade mais legítima existente, posto que plenamente adquirida com esforços exclusivos do autor. Consequentemente, as formas de tutela dessa nova forma de propriedade foram se tornando mais e mais rígidas, e os editores, dos quais os autores eram reféns ao tentar divulgar suas obras, foram por outra via readquirindo o direito exclusivo de publicar determinadas obras, na medida em que o autor cedia a eles parte de seus direitos patrimoniais.
A Revolução Francesa, contudo, somente reconheceu ao autor o direito autoral no que concerne a sua esfera patrimonial, sendo a esfera moral, anteriormente a única reconhecida, ignorada diante da possibilidade de lucro gerada pela propriedade intelectual e da conseqüente necessidade de se reger a produção desse lucro. Somente a partir do séc. XIX, por via jurisprudencial, foi que o conteúdo moral do direito de autoral passou a ser reestruturado e tutelado juridicamente. Ou seja, “a legitimidade dos direitos morais do autor antecede ao reconhecimento normativo dos direitos patrimoniais. Enquanto na consciência de seus titulares os direitos morais antecedem aos patrimoniais, estes precedem àqueles no que se refere à disciplina legal”[4].
Diante do exposto, é fácil perceber que o advento da imprensa foi realmente a grande mola propulsora do debate aqui tratado. Por um lado, ela foi grande difusora do conhecimento por toda a sociedade, na medida em que todos passaram a poder ter acesso às grandes obras, inserindo-se no discurso intelectual e, inclusive, podendo participar desse discurso, na medida em que o acesso à informação gera maior debate de temas e uma maior possibilidade de novas produções intelectuais acerca de questões anteriormente trabalhadas. É o direito de acesso à informação e à cultura que começa a forjar-se e a ser valorizado no seio social. Entretanto, a possibilidade de obtenção do lucro desperta o interesse pela tutela patrimonial do direito, que passa a sobressair sobre qualquer outra forma proteção e, inclusive, sob qualquer outra forma de interesse que tente se sobrepor ao interesse econômico do autor. Saliente-se, ainda, que essa tutela inflexível, na medida em que não pondera a existência de outros interesses tão importantes quanto o lucro do autor, é produzida sob um referencial fático falso. Sim, porque os autores na realidade não eram os destinatários finais da maior parte das vantagens financeiras obtidas com a comercialização das publicações.
2.2. Elementos constitutivos do direito de propriedade intelectual: o que caracteriza o direito do autor?
Direitos de propriedade intelectual são aqueles relacionados à proteção das criações do intelecto humano. Fundamentam-se na materialização de uma criação em um determinado suporte físico, diferindo-se da propriedade material, que se adquire por qualquer meio lícito[5]. Consequentemente, por serem adquiridos tão somente a partir da materialização, os direitos autorais dispensam o registro como elemento constitutivo do direito. Assim, por meio desses direitos os autores adquirem direitos exclusivos sobre suas produções, independentemente do valor técnico ou artístico que apresentem.
É importante destacar as diferenças entre os direitos de propriedade industrial e os direitos autorais[6]. Ambos possuem o elemento comum da criação intelectual como ponto de partida para a incidência da tutela jurídica. Entretanto, a propriedade industrial diz respeito à inventividade humana relacionada à esfera da técnica, surgida, pois, para solucionar questões práticas como, por exemplo, a melhor maneira de produzir determinado produto ou a melhor forma de apresentar determinado produto ao consumidor final, entre outras. Por sua vez, o direito autoral diz respeito às manifestações do espírito no campo estético, como nos casos das produções literárias, artísticas e científica.
Esse direito de propriedade intelectual possui dois aspectos que são tutelados pelo ordenamento jurídico e que são oriundos da mencionada evolução histórica do instituto, que consagrou as duas formas de perceber esse direito e os dois planos fáticos de sua repercussão. Há um aspecto moral, que se caracteriza, no ordenamento brasileiro, pelos direitos garantidos no art. 24 da Lei 9610/98, tais como: reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; conservar a obra inédita. As garantias asseguradas nesse aspecto de constituição do direito autoral são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, por serem direitos personalíssimos do autor.
Por outro lado, o direito autoral também se constitui por uma faceta patrimonial, esta sim transferível e renunciável, tendo caráter de direito real sobre bem móvel. O plexo de direitos inseridos nesse aspecto são os elencados no artigos 28 e 29 da mesma Lei 9610/98, sendo alguns deles: direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica; a reprodução parcial ou integral, a edição e a adaptação dependente de autorização prévia e expressa do autor.
Dessa forma, pode-se concluir que o direito autoral surge no mundo jurídico atrelado à difusão do conhecimento e da arte, à necessidade de proteção de quem produz a nova informação compartilhada socialmente, estimulando-se, por meios das garantias de cunho moral, a promoção e o aumento do desenvolvimento cultural no país[7]. Esse aspecto em nada destoa do direito constitucional de acesso ao conhecimento e à cultura, inserido no art. 215 da Constituição Federal.
A esfera de proteção patrimonial, por sua vez, diante da possibilidade de cessão de direitos, escamoteia uma questão muito interessante na seara do direito autoral. Ao ceder seus direitos, o autor deixa de auferir quase todo o lucro com a venda de suas obras, as rígidas regras presentes na lei 9610/98 tornam-se, pois, meros instrumentos a serviço dos grandes grupos econômicos de editores, gravadores, produtores. Por que, então, os artistas cedem seus direitos? Para poderem atingir notoriedade na sociedade, “fazendo sucesso” e, assim, conseguindo benefícios patrimoniais com sua obra, quer atraindo milhares de pessoas para seus shows, quer sendo convidados para palestras sobre a temática de seus livros ou ainda tendo suas pesquisas financiadas por instituição de grande porte. Ou seja, a cessão dos direitos patrimoniais é uma via para se obter o reconhecimento social assegurado pela esfera de proteção moral dos direitos do autor. Saliente-se, porém, que é justamente por meio desses contratos de cessão e das rígidas vedações positivadas na lei que o direito de acesso à cultura e, especialmente, a divulgação do trabalho do artista são atravancados.
3. A evolução tecnológica e a crise da estrutura inflexível de tutela patrimonial do direito autoral.
O advento da imprensa foi o marco estimulador das demandas por produção de uma tutela específica para os valores econômico oriundos da atividade criativa e intelectual de alguém materializada em um suporte. Entretanto, o desenvolvimento científico não parou por aí. Pelo contrário, o ser humano passou a buscar formas de produzir em maior escala, diminuindo certos elementos que implicavam maiores custos de produção, entre eles o fator tempo. Na seara do direito autoral, foram aperfeiçoadas as técnicas de impressão baseada nos tipos móveis de Gutenberg, o que facilitou e dinamizou o processo. Além disso, surgiu a máquina de xérox, que possibilitou a qualquer indivíduo adquirir parte ou o todo de obras impressas, sem precisar adquirir o original, publicado pelos editores detentores dos direitos autorais.
Dando um salto histórico de vários séculos, o ser humano começou a obter resultados no seu novo objetivo de processar dados de forma automatizada, economizando tempo. Em 1898 foi construída a primeira máquina para processamento de estatísticas demográficas do censo americano[8]. Em 1951 Eckert e Mauchly produzem o primeiro computador comercializável, o Universal Automatic Computer (UNIVAC)[9]. Os softwares passam a fazer parte do cotidiano social, sendo indispensáveis para a realização de determinadas tarefas por parte das máquinas. Sua estrutura e sua conceituação despertam o interesse dos juristas e põem em cheque os sistemas de patente e de direito do autor então vigentes. Surge o debate, adiante tratado, de qual seria a melhor forma de proteger juridicamente essas novas tecnologias que eram a “alma” das máquinas.
Da mesma forma, a inventividade humana também foi capaz de criar meios de comunicação e de transmissão de dados que superavam as fronteiras geográficas. É o surgimento da rede mundial de computadores, que fez das formas de acesso à cultura, à informação e ao conhecimento um processo ilimitado, em tempo real e gratuito. Mais do que isso, por se constituir de uma complexa rede de dados e de informações, a internet ainda não permite, apesar de todo o avanço na seara do controle, uma perfeita identificação dos emissores da mensagem, dos divulgadores de certos dados, enfim, dos sujeitos que desrespeitam as normas do copyright e disponibilizam dados de forma gratuita para todo e qualquer interessado em acessar aquelas informações, sem que para tanto seja oferecida qualquer contraprestação financeira ao autor das obras.
Consequentemente, pode-se perceber que o surgimento da tecnologia digital e das redes de informação foram os principais fatores de desencadeamento de significativas transformações na seara autoral. Tais transformações afetam o ponto crítico da matéria, qual seja, o conflito entre o interesse individual do autor e o coletivo de liberdade de expressão, de acesso ao conhecimento, à informação e à cultura proporcionado pelo desenvolvimento tecnológico. Além disso, os novos mecanismos de produção propiciados pela dinâmica tecnológica atual são muitas vezes incompatíveis com o modelo vigente de tutela autoral.[10]
Passemos agora à análise de alguns exemplos tidos como importantes inovações tecnológicas capazes de abalar os pilares de sustentação do modelo posto de direitos autorais. São eles: reprografia (xérox), Software livre, creative commons, Mp3 e programas de troca de dados pela internet (P2P).
A reprografia é a mais antiga dessas inovações, mas vem sendo cada vez mais, juntamente com o desenvolvimento de softwares avançados, aperfeiçoada. As máquinas de xérox são mais e mais eficientes, produzindo cópias de maior qualidade e mais duradouras de forma muito rápida. Ao lado dessas vantagens situa-se o maior benefício trazido pelo uso da xérox para a disseminação do acesso ao conhecimento e à informação: por demandar pouco material (praticamente só papel e tinta) e podendo produzir inúmeras cópias de várias obras diferentes num curto espaço de tempo, os custo com a aquisição das cópias é infinitamente menor quando comparado com os livros publicados pelas editoras. É nas Universidades onde se localiza o maior número de cópias ilegais de livros[11], diante da menor capacidade econômica dos estudantes, tendo os “xeroqueiros” muitas vezes sede fixa nos prédios das Universidades. Dessa forma é impossível ignorar o papel da reprografia como difusora do conhecimento e, consequentemente, como ferramenta importante na produção de novos conhecimentos. É desarrazoado pensar na proteção absoluta dos direitos dos autores, ignorando-se o direito ao conhecimento de milhares de estudantes. Saliente-se que pela fugacidade das fotocópias muitos alunos preferem adquirir o livro original, mas não têm dinheiro o suficiente para adquirir todos os livro necessários para conhecerem bem uma matéria, posto que em todas as disciplinas é preciso consultar mais de uma obra.
É nesse contexto de choque entre dois direitos constitucionais que se critica o retrocesso da Lei 9610/98, a qual instituiu o novo sistema de proteção autoral. De fato a antiga lei de 1973 permitia que fossem feitas cópias sem intuito de lucro de exemplar completo de obra. A nova lei, porém, prevê em seu artigo 46, inciso II apenas a cópia de “pequenos trechos” sem fins lucrativos. Dessa forma, assegurou-se tão somente o direito do autor, mais especificamente, o direito das editoras, que, por manterem seu monopólio sobre a publicação, não investem no barateamento das obras, o que estimularia a maior quantidade de aquisições. Cria-se, então, na realidade do dia a dia escolar e universitário uma esfera de atuação à margem do sistema jurídico, que desrespeita claramente e conscientemente as normas sem qualquer constrangimento e sob a certeza de impunidade, o que claramente enfraquece o próprio sistema. Em países desenvolvidos como a Alemanha, por exemplo, existem editoras que são conhecidas dos estudantes por publicaram obras clássicas em papel de qualidade inferior e sem o esplendor das capas duras e estilizadas, mas com preços bastante acessíveis, que desestimulam a compra de exemplares fotocopiados.
Como outro exemplo tem-se os softwares livres. Antes, porém, de conceituar o que são essas tecnologias e o que as faz hábeis a tornar a proteção autoral vigente anacrônica, é importante analisar o porquê de serem os softwares protegidos pelo direito autoral, e não pelo sistema de propriedade industrial.
O software é “um instrumento que consegue dar logos, ou seja, alma e pensamento a uma máquina e a transforma num elaborador de informações”[12], compreendendo não somente o programa em si, mas também o suporte magnético no qual ele está inserido. Partindo dessa noção e levando-se em consideração que o software é muitas vezes o cerne dos bens produzidos pela indústria, atuando como uma resposta inovadora e criativa capaz de aumentar as vendas de uma empresa e de fazê-la concorrer de forma mais competitiva no mercado, percebe-se que esse produto se assemelha com os demais protegidos pela propriedade industrial. Atendem, assim, os softwares aos requisitos da Lei nº 9279/96 de patenteabilidade, quais sejam: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Entretanto, boa parte da doutrina entende que o software é um produto do engenho humano, de caráter criativo e imaterial, devendo ser tutelado pelo direito do autor[13]. Esse foi o entendimento defendido pelas empresas produtoras de software numa tentativa de alcançar exclusividade e proteção jurídica por mais tempo, uma vez que a proteção patentária é de no máximo 20 anos, enquanto a autoral chega até 70 anos[14]. Salienta-se, porém, que no mundo globalizado e informatizado de hoje os softwares são atualizados rapidamente, tornando-se muito facilmente obsoletos e, portanto, não sendo mais utilizados, não demandando, de fato, exclusividade protegida por tanto tempo. Dessa forma, percebe-se que desde o princípio não faz sentido a inserção dos softwares na seara do direito autoral.
Sob o termo software livre entende-se o tipo de programa que permite aos usuários ter a liberdade de executarem, copiarem, distribuírem, estudarem, modificarem e aperfeiçoarem um determinado programa de computador[15]. Ele se baseia especificamente em quatro liberdades[16]: de executar o programa a qualquer propósito; de estudarem como o programa funciona e adaptá-lo para as necessidades do usuário, sendo o acesso ao código-fonte um pré-requisito dessa liberdade; de redistribuírem cópias de modo que o usuário possa ajudar a um terceiro; aperfeiçoarem o programa e de liberarem os seus aperfeiçoamentos, de modo que toda a comunidade se beneficie. Destaque-se que um programa de computador somente é considerado software livre se existirem todas essas liberdades. A mera abertura do código-fonte, sem a concessão dessas quatro liberdades, caracteriza um programa de código fonte aberto (open source).
Percebe-se, então, que a proposta do software livre desconstrói a noção de uso dos programas da forma que eles vêm, prontos e acabados, pagando-se por isso, sem que se possam corrigir as falhas do sistema apresentadas no cotidiano do uso. Ele traz além dessa vantagem de haver milhares de pessoas desenvolvendo melhorias para o programa[17], o fato de serem mais baratos (não são necessariamente gratuitos) e de poderem ser compartilhados de forma simples por entre todos os usuários da rede. Saliente-se, porém, que ele não implica uma ausência de tutela de direito ao autor. De fato, existe um titular de direitos autorais sobre o software, aquele que originalmente criou o programa. O que ocorre aqui é que as exploração e divulgação são efetuadas de forma livre, mediante uma licença denominada GPL (General Public License), sem a necessidade de autorização do primeiro autor para utilizar, modificar e distribuir o programa de computador[18]. Essa inovação tecnológica permite, pois, balancear tanto os interesses da comunidade quanto os do autor, sem haver apenas a predominância dos interesses deste que, por dominar determinado setor do mercado, pode impor os preços que bem deseja sob determinado produto.
Outra inovação tecnológica que pode ser destacada é o sistema de creative commons. Aqui houve uma adaptação da idéia do software livre para a esfera cultural, sendo essa licença caracterizada pelo ex-ministro da cultura Gilberto Gil como a reforma agrária da propriedade intelectual. Creative Commons consiste em uma licença conferida pelo autor para que suas obras sejam disponibilizadas na internet para que outras pessoas as possam acessar, dispondo ele da obra da forma como bem entender. Isto é, ao conceder a licença, o autor decide sobre as seguintes questões[19]: se haverá ou não obrigatoriedade de o usuário sempre ter de atribuir a autoria; se haverá ou não permissão para uso comercial; se haverá ou não permissão para a realização de obra derivada; e se a obra será ou não jogada em domínio público. Dessa maneira, ao ser determinada pelo autor a forma como sua obra será disponibilizada, os usuários ficam a ela adstritos. É o chamado share alike.
Percebe-se, portanto, esse sistema de livre acesso pela internet a obras disponibilizadas é bastante conveniente para o autor em si, harmonizando-se com o direito de todos de acessarem a produção cultural e as informações. Por meio do creative commons podem os autores divulgar seus trabalhos alcançando a notoriedade que almejam, sem que para isso seja necessário excluir milhares de sujeitos. Isso porque os ganhos obtidos pelo artista serão advindos de uma futura popularidade de suas obras, e não da cessão de direitos autorais que garante a um determinado grupo corporativo a real obtenção do lucro, por meio da exploração exclusiva das obras. Além disso, todos os direitos morais do artista estão resguardados, na medida em que os usuários devem se limitar à forma de uso conferida pelo autor.
Por fim, também é importante destacar duas outras tecnologias que se desenvolvem bastante por meio do uso da rede mundial de computadores: o MP3 e os programas de troca de dados entre usuários, conhecidos como P2P (peer-to-peer). Primeiramente o MP3, que é uma forma comprimida de arquivos de música que reduz a qualidade do som de forma imperceptível, de forma que eles podem ser armazenados muito mais facilmente e adquiridos (“baixados”) de forma muito mais rápida. Esses arquivos são geralmente permutados por meio de programas que, realizando a troca descentralizada de dados diretamente entre usuários conectados à internet, imprimem maior rapidez e facilidade no acesso às obras. O primeiro desse tipo de programa P2P foi o Napster.[20]
Tanto o MP3 quanto a os programas P2P são também vias de libertação do artista do domínio dos editores, produtores e gravadores. Isso porque, os artistas podem divulgar seus trabalhos, tornando-se conhecidos e, então, conforme já destacado, angariando lucros por outros meios tais como shows, palestras e patrocínios.
Dessa maneira, percebe-se que a proteção autoral da forma como é posta na Lei 9610/98 apresenta muitas falhas que são desveladas pelas necessidades de uso do cotidiano e pelas respostas que a globalização e a tecnologia apresentaram a essas demandas. Esse sistema rígido de proteção, quase sem exceções que permitam o desenvolvimento do ensino e da pesquisa, que protege mais os cedentes dos direitos patrimoniais que o próprio autor e que inviabiliza sob muitos aspectos o acesso da população à produção cultural, à informação e ao conhecimento, apresenta-se anacrônico na era da informação, devendo ser revisto.
Conclusão: o mundo globalizado e suas novas demandas: a necessidade de acesso à cultura e à informação como elementos a serem mais ponderados pelo sistema jurídico de proteção autoral.
A globalização como fenômeno mundial caracterizado pela realização de inúmeras transações de bens, serviços, informações entre outros de forma livre e sem qualquer barreira geográfica, torna a possibilidade de acesso à informação muito mais rápida, fácil e variada. Dessa forma, o mercado passa a exigir que os agentes econômicos e sociais sejam portadores dessas informações, estando sempre atualizados no que diz respeito aos aspectos gerais da sociedade e às especificidades de suas matérias. Adquirir informação e conhecimento torna-se indispensável para a dinâmica social contemporânea.
É nessa dinâmica que também se situa o alargamento da proteção autoral e o enrijecimento das normas de direito do autor. Ora, num mundo onde a criatividade, a inventividade e a originalidade passam a ser um dos pilares de muitas empresas, tornando-se valorizados no mercado e na sociedade, manifestar-se criativamente e produzir uma obra original é uma façanha que deve ser muito bem protegida. Isso, especialmente quando consideradas a internet e seu enorme potencial difusor, sem que se possa identificar o violador, o plagiador, perdendo-se na rede a noção de quem seja o real autor. Há uma preocupação em identificar-se o elemento “quem” da mensagem, conferindo a ele os “louros” de sua autoria. É o aspecto moral da proteção autoral.
Por outro lado, o mundo globalizado e suas inovações tecnológicas, permitiram a venda pela internet, a criação de e-books, de aplicativos que disponibilizam as obras para uso pessoal e mesmo a realização de venda tradicional de forma mais efetiva, lucrativa e rápida. Assim, o interesse dos editores, produtores, gravadores, ou seja, da classe detentora dos direitos autorais aumenta cada vez mais no sentido de protege o direito adquirido com exclusividade e que lhe garante o monopólio na publicação de determinadas obras. É a potencialização do lucro que desperta dos que obtêm lucro com sua atividade de intermediação, localizando-se entre o autor e a demanda social por cultura e prejudicando a ambos, pagando pouco ao primeiro e cobrando muito dos segundos.
Essa pleito dos “editores” junto ao poder legislativo para a não flexibilização da tutela autoral é, como já demonstrado, antigo, relacionando-se com a tentativa de manter os privilégios anteriormente detidos e o monopólio econômico gerado por esses privilégios. É o aspecto patrimonial da proteção patentária. É esse aspecto que se torna um entrave ao direito à informação da coletividade, estabelecendo o choque entre esses dois direitos constitucionais. Isso, uma vez que é a sua regulamentação legal que cria proibições à difusão das obras, impedindo o livre acesso.
Dessa maneira, acredita-se ser a modificação da forma como o ordenamento trata a faceta patrimonial da proteção autoral a chave para uma maior flexibilização dessa tutela e, portanto, uma compatibilização entre ela e o direito de acesso à informação e à cultura. Como proceder a essa modificação legal ainda não pode ser, por meio dos estudos até agora realizados, claramente vislumbrado. Entretanto, a inserção de norma proibitiva da fixação de contratos de exclusividade entre o autor e as empresas responsáveis pela divulgação de suas obras apresenta-se como boa possibilidade. Isso porque, não sendo, por exemplo, as únicas no mercado a publicarem obras de determinado autor, as editoras teriam que concorrer entre si para obter a preferência do público, baixando os preços, oferecendo diversas opções de material, no qual fosse feita a impressão e, enfim, lutando para obter espaço no mercado, o que beneficia o consumidor. Por outro lado, a criação de mais casos que não constituam ofensa ao direito do autor (artigo 46 da Lei 9610/98). Talvez seja esse o caminho a seguir para atualizar a proteção patentária, mantendo-se a tutela plena dos direitos morais do autor e flexibilizando-se a seara patrimonial.
Graduada no Curso de Direito da Faculdade de Direito do Recife– CCJ – Universidade Federal de Pernambuco, mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista Capes
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