Resumo: Este trabalho analisa o sistema de sanções administrativas em vigor na Polícia Militar do Estado de Pernambuco por força da Lei nº 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado, em especial no que se refere às penas de restrição de liberdade (detenções e prisões), seus fundamentos, sua aplicabilidade e eficiência, bem como a adequação aos preceitos universais das doutrinas de Direitos Humanos e aos princípios da dignidade da pessoa humana. Parte-se do pressuposto de que algo há de se fazer em busca da atualização de um regime que historicamente não evoluiu tanto para os militares quanto o fez para o cidadão civil. Não bastasse ter estancado no contexto temporal, a usabilidade dos preceitos punitivos do citado Código ainda enfrenta barreiras no cenário estrutural em que a Corporação se encontra, com o redimensionamento das estruturas físicas dos quartéis, que abandonaram o aspecto de grandes fortalezas para se tornarem peças arquitetônicas mais enxutas e com uma conotação que favoreça uma aproximação maior com a sociedade, mas que comprometem as condições de acomodar e alimentar dignamente aqueles em cumprimento de sanções administrativas. O escopo da proposta deste trabalho é delineado tomando-se por base um referencial teórico, através do qual se conclui por oferecer proposta de modificação no atual regime disciplinar em vigor na Corporação, buscando restaurar os fins a que as punições se destinam (reeducar o transgressor e prevenir novas transgressões) sem distanciá-las dos fundamentos dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana, como reforço da hierarquia e da disciplina, pilares que sustentam a quase bissecular Polícia Militar do Estado de Pernambuco.[1]
Palavras chave: Prisão e detenção disciplinares. Direitos Humanos. Hierarquia e disciplina.
Sumário: 1. Introdução; 2. As sanções disciplinares na Administração Pública; 3. A hierarquia e a disciplina militares; 3.1. As sanções disciplinares militares; 3.2. A evolução punitiva no tempo e a positivação das detenções e prisões disciplinares; 4. As punições militares em face dos Direitos Humanos; 5. O atual regime de sanções administrativas disciplinares na Polícia Militar de Pernambuco e a inviabilidade logística para cumprimento das penas restritivas de liberdade; 5.1. Como agir diante dessa realidade?; 6. A previsão de penas de prestação compulsória de serviço; 7. Considerações finais; 8. Referências
1. Introdução
Desde as primeiras elucubrações acerca do direito natural ou mesmo do direito divino, o homem buscou retribuir os atos que ofendessem as regras de conduta em comunidade com sanções, cuja finalidade inicial era pautada tanto na vingança quanto no exemplo que causaria o temor e coibiria novas transgressões.
Não se pode negar que a convivência social demanda o estabelecimento de limites, que quando não são respeitados atentam contra os direitos e liberdades alheias, e a ausência de tais inibidores levaria a um sistema caótico e descontrolado, que Hobbes (O Leviatã, 1651) muito bem definiu em sua obra, através do conceito Bellum omnia omnes, ou seja, num mundo sem regras haveria uma constante guerra de todos contra todos, cada um com a finalidade de se sobrepor aos demais, e onde o mais forte prevaleceria.
As teorias de Tomas Hobbes fundamentaram a estipulação, através de Rousseau, do “Contrato Social” (O contrato social, 1762), pelo qual os homens abriam mão de parte dos seus direitos em favor de um Governo que lhes garantisse a convivência pacífica entre seus pares.
O Estado passava então a estabelecer e fiscalizar limites ao livre arbítrio e a penalizar as atitudes que extrapolavam tais fronteiras, em regra, seguindo a política conhecida como: “olho por olho, dente por dente”, como forma de equilibrar a ação antissocial praticada com a sanção aplicada, contudo permitindo graves distorções em sua utilização, posto que o equilíbrio se pautava no valor econômico de cada indivíduo e não na igualdade do valor social. Exemplo claro de tais distorções era quando um rico, apenado com açoites ou com a morte, podia oferecer um escravo para sofrer os martírios em seu lugar.
Com o passar dos tempos, as penas foram evoluindo e se humanizando. O processo mais remoto disso é visto na obra de Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas, 1764), que levanta a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva, o que levaria à aplicação de punições de consequências muito superiores e mais terríveis do que os males produzidos pelos delitos.
Mesmo com as bases filosóficas lançadas, os efeitos práticos da humanização das penas proposto por Beccaria demoraram a verificar-se, exemplo disso foi a sentença a que foi submetido Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em 1792 (Casos criminais célebres, 2003), condenado a morrer na forca, a chamada “morte natural para sempre”, restando bem visível o sentimento de vingança inscrito na medida, bem como a imposição do exemplo pelo horror, sendo notório que a sanção ultrapassava a pessoa do réu, ao atingir toda a sua descendência.
A evolução dos Direitos Humanos e dos primados da dignidade da pessoa humana levou à busca de penas mais humanizadas e que, mesmo não infligindo tamanhos terrores e martírios, ainda fossem capazes de alcançar seus objetivos de: reforçar a existência de normas e limites; coibir, através do exemplo, o cometimento de novas transgressões; e reeducar o transgressor, reinserindo-o no convívio social.
A vida castrense, por seu turno, também estabelece regras próprias de conduta e convivência, em especial diante dos primados da hierarquia e da disciplina, que exigem, daqueles que cerram as fileiras das forças policiais, conduta diferenciada dos demais, posto que são o baluarte da defesa dos seus concidadãos e exemplos a serem seguidos, não se admitindo dos militares, agentes delegados do poder de polícia do Estado, o descumprimento das normas cuja observância possuam o dever institucional de fiscalizar.
Nesse diapasão, e embora o fundamento das sanções administrativo-disciplinares se aplique aos funcionários públicos como um todo, o foco do presente trabalho foram os Policiais Militares do Estado de Pernambuco, em face do que prevê a Lei 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco.
No contexto atual, dois prismas se abriram para a análise das penas administrativas de restrição de liberdade aplicadas aos militares do Estado de Pernambuco: o logístico e o dos Direitos Humanos.
Diante do viés logístico, buscou-se analisar se a redução das estruturas físicas das Unidades Policiais e a modificação na dinâmica de fornecimento de alimentação interferem no adequado alojamento dos apenados, o que poderia fazer com que a restrição de liberdade perdesse a sua aplicabilidade fática.
Pela ótica dos Direitos Humanos, vislumbrou-se o aspecto da adequação da restrição de liberdade aos princípios dos direitos fundamentais, pois ainda que haja a previsão constitucional para tal, a evolução de que se falou previamente, e que restringiu ao cidadão comum a possibilidade de ser preso exclusivamente aos casos de flagrante delito ou de cumprimento de ordem judicial, não parece ter lançado seus auspícios sobre os militares, que continuaram podendo ser submetidos a prisões e detenções por decisões meramente administrativas.
Com esse fim, é importante entender porque, no cenário atual, as sanções disciplinares não atingem seus objetivos de reeducar e de prevenir o cometimento de novas transgressões, e a necessidade de propor alternativa ao sistema em vigor, aliando os princípios da hierarquia e da disciplina com os primados dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana, ou se o regime instituído já atinge a tais propósitos.
Estabelecido o cenário, mostrou-se necessária a análise da eficiência e eficácia do atual sistema de sanções disciplinares, com destaque para as punições restritivas de liberdade, bem como a sua adequação aos preceitos insculpidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Dignidade da Pessoa Humana, e se considerou cabível e necessária a proposição de alternativa ao regime em vigor, tendo sido este o propósito a que se destinou o corrente estudo.
2. As sanções disciplinares na administração pública
Como já falado anteriormente, o Estado necessitou criar um conjunto de regras de conduta a serem seguidas pelos indivíduos em sociedade, como forma de estabelecer e respeitar os limites de cada um. Contudo o descumprimento de tais preceitos fez surgir o jus puniendi, o direito que o Estado tem de punir aqueles que não seguem os princípios da coexistência em comunidade. O jus puniendi é exercido primordialmente pelo direito penal e suas sanções.
O mesmo Estado, enquanto entidade responsável pelo bem estar, pela convivência harmônica e pela satisfação das necessidades de seus concidadãos, lança mão de diversas pessoas e institutos para tornar isso possível. A essa coletânea de pessoas físicas e jurídicas, órgãos, serviços e agentes, dá-se o nome de Administração Pública.
A Administração Pública, por seu turno, necessita estabelecer as regras para o seu próprio e correto funcionamento, de modo a alcançar os objetivos a que o Governo se destina, de forma eficiente e eficaz.
Tais normatizações aplicam-se não apenas ao Poder Público enquanto ente, mas também, e em caráter especial, a todos os seus agentes, posto que a atuação de cada um deles é o que faz funcionar a máquina estatal e, por conseguinte, a falha na atuação de um agente público nada mais é do que a falha na atuação da própria Administração.
Surge então a necessidade de estender à Administração Pública o jus puniendi que o Estado detém, como bem definiu Freitas:
(…) “como ramo do Direito Administrativo que tende regular as relações disciplinares entre o Estado-Administração e seu corpo funcional, ou seja, tem em vista a normatização dos deveres dos servidores, suas proibições, a apuração das faltas cometidas pelos mesmos, bem como o bom emprego da respectiva sanção disciplinar, objetivando, desse modo, permitir o bom funcionamento da máquina administrativa em acordo com os preceitos legais que norteiam a Administração Pública.” (FREITAS, 1999, p. 120)
É inegável o reconhecimento de um liame entre as sanções penais e as sanções disciplinares, em especial no que se refere às funções da pena que são, de acordo com a melhor doutrina, duas: retributiva e preventiva (geral e específica).
A pena é retributiva por ser uma espécie de devolução ao transgressor do mal praticado. Nasceu da chamada vingança estatal, baseada nos fundamentos romanos da lex talioni (Lei de Talião), que buscava um equilíbrio de valores entre o crime e a pena, sendo bem lembrada pelo bordão: “olho por olho, dente por dente”. Talioni vem de “tal” ou “idêntico” e deu origem ao termo retaliação.
Já o caráter educativo-preventivo se dá quando a pena é capaz de incutir na consciência do indivíduo que ele não deve transgredir as normas, seja pelo receio de ser punido novamente (específica), ou pelo temor de que a sanção aplicada a seu próximo seja cabível a si, em caso de agir em desconformidade com as regras (geral).
Sendo patente e clara a necessidade de regular a relação entre o Estado-Administração e o agente público, surgem as normas obrigacionais e proibitivas a que os servidores públicos devem se submeter em face do exercício da função, pois como já mencionado acima, suas ações são a personificação das ações do Estado.
Em suma, para que o Estado alcance os fins a que se destina, há de exigir dos seus servidores, nos mesmos moldes do que ocorre nas relações de trabalho tuteladas pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), a forma como deseja que o serviço venha a ser executado, o que fazer e o que não fazer; e o descumprimento de tais preceitos será retribuído com a aplicação de uma sanção que busque reeducar o transgressor e prevenir, através do exemplo, o cometimento de novas infrações. E aí se estará diante do Direito Administrativo Disciplinar, que é o conjunto de normas e princípios de que se cerca o Poder Público para reger o ideal funcionamento da Administração Pública.
3. A hierarquia e a disciplina militares
No mesmo esteio em que se fundamenta o Direito Administrativo Disciplinar, encontram-se as bases do Direito Administrativo Disciplinar Militar, que é uma especialidade daquele ramo do direito público aplicado a uma categoria específica de servidores.
Antes de trazer à baila outras fundamentações, impende destacar que os servidores públicos militares, ou militares federais/estaduais, em mais recente designação da categoria, diferem dos servidores civis em alguns aspectos, sendo o mais importante deles a sua missão institucional com graus de abrangência e de comprometimento mais rígidos.
Se por um lado os servidores civis obrigam-se a empenhar-se pela melhor execução de suas atribuições em prol de uma coletividade que busca ou necessita dos seus serviços, os militares também o fazem, contudo a missão é temperada com o “risco da própria vida”.
Colocar a própria vida em risco pelo bem de outrem é, por si só, um grande diferencial na esfera atributiva das duas classes de servidores mencionadas e a razão maior para a estipulação de regimes administrativos disciplinares diferenciados.
Trazendo à baila as palavras de Sérgio Coutinho, em que pese referindo-se ao Exército, mas com plena aplicabilidade à categoria dos servidores militares em geral, tem-se que:
“O Exército, como componente das Forças Armadas do país, é instrumento político do Estado e, ao mesmo tempo, é instituição nacional. É um aparelho voltado para a guerra, organizado, equipado e treinado para aplicação da violência. A sua natureza e destinação bélicas impõem que esteja submetido a valores éticos que lhe confiram finalidades morais, que tornem legítimo o uso da violência e que deem limites toleráveis à sua ação, sem o que, quando empregado, poderá se transformar em um instrumento letal indiscriminado, inescrupuloso e fora de controle da Nação a que serve.” (COUTINHO, 1997, p. 63)
Mutatis mutandis, os militares estaduais também são indivíduos com treinamentos e destinações que, se não estritamente beligerantes, mas gozando da prerrogativa de uso da força e do poder coercitivo do Estado no exercício de suas funções e de quem se exige, por conseguinte, a preservação e o culto de valores éticos, morais e profissionais que vão além do simples comprometimento em dar o melhor de si no cumprimento do dever, justificando sua submissão a um sistema de normatizações sui generis de direito e obrigações.
Outro aspecto que não pode ser esquecido é o de que, como instrumento do poder fiscalizador e coercitivo do Estado, indispensável é que se exija desses agentes, conduta ilibada e exemplar, definidas através dos princípios da deontologia policial, e que dão legitimidade às ações, vez que o caráter legal é estabelecido na norma.
A adequação das condutas dos agentes públicos em geral é a busca pelo que o ex-Ministro da Justiça Márcio Tomaz Bastos delineou ao definir, outrora, que “as instituições têm que ser virtuosas”. No mesmo caminho, e especificamente focada no regime policial militar, pode-se citar a manifestação do Desembargador Josué Antônio Fonseca de Sena, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), no Mandado de Segurança nº 0211507-5: “O cargo de policial militar certamente exige do investido uma retidão de conduta, bem como o comportamento exemplar intocável diante da dignidade que se espera de tal profissão”. (TJPE, 2010)
Seguindo a linha desse raciocínio, as instituições militares dependem de uma estrutura organizacional que possibilite o controle dos indivíduos que as compõem, para sua adequação aos preceitos mais rígidos que o militarismo exige. Surgem então os dois princípios básicos para que as engrenagens de tal sistema funcionem: a hierarquia e a disciplina, que para os Policiais Militares do Estado de Pernambuco são definidas através da Lei 6.783 de 17 outubro 1974 – Estatuto dos Policiais Militares de Pernambuco.
O referido diploma estabelece que a hierarquia é a organização da autoridade em diversos níveis dentro das instituições militares, enquanto a disciplina é a obrigação de obedecer tanto às ordens emanadas pelas autoridades hierárquicas quanto às normas a que estejam submetidos, e a abrangência de tais princípios alcançam inclusive os militares estaduais aposentados ou reformados.
3.1. As sanções disciplinares militares
Entendido que o regime castrense é hierarquizado e disciplinado, e que dos militares (estaduais, in casu) é demandada uma observância e adequação maior a preceitos éticos, morais, profissionais e normativos, não se poderia olvidar que isso suscitasse a criação de um sistema disciplinar diferenciado e capaz de alcançar a subsunção dos militares ao dever de obediência às ordens e de observância aos regulamentos e normas que regem inclusive situações da sua vida privada e que digam respeito à eficiência da instituição.
Por tal ciclo de exigências e limitações, as instituições militares são definidas na doutrina como “Instituições Totais”, denominação teorizada por Erving Goffman (Manicômios, Prisões e Conventos, 1956) e adaptada ao universo militar por Frank Mc Cann: “característica central das ‘instituições totais’ é a ruptura das barreiras que separam as três esferas da vida – sono, lazer e trabalho – por meio do controle de onde, quando e como elas ocorrem”. (Mc CANN, 2009, p. 16-17).
Em decorrência de tais fundamentos, e mesmo levando em conta que um dos mais fortes elos entre os militares é a identificação com a causa que defendem, deduz-se que o fiel cumprimento dos preceitos a que se voluntariaram levaria à chamada disciplina consciente – cumprimento espontâneo de valores e deveres institucionais – mas em face da falibilidade humana, vê-se justificada a existência não apenas de um sistema administrativo disciplinar militar, como também que este seja imbuído de preceitos e regramentos mais rígidos, dadas as características da vida castrense abordadas preliminarmente, com normatização de sanções próprias, dentre as quais estão inseridas as penas administrativas de restrição de liberdade: detenção disciplinar e prisão disciplinar.
3.2. A evolução punitiva no tempo e a positivação das detenções e prisões disciplinares
As instituições militares sempre trouxeram consigo sanções disciplinares de restrição de liberdade como parte do seu cabedal punitivo, que ainda continham: castigos físicos, trabalhos forçados e penas capitais em casos mais graves como o de deserção.
As origens históricas de tais penalidades, segundo a doutrina, remontam aos exércitos romanos, que aplicavam cárceres, trabalhos forçados, castigos físicos e até a morte como forma de manter o controle de seus soldados, que nem sempre atendiam à sua vocação ou eram oriundos de escolas militares, pois havia aqueles arregimentados de ocasião, quando se fazia necessária a ampliação das tropas em face do período de conquistas e expansão dos impérios. Os mesmos preceitos se seguiram através das Ordenações Portuguesas, de onde se originou o militarismo brasileiro, mas não chegavam a fugir às regras que se aplicavam ao cidadão comum naquele período temporal, visto que se viviam os momentos anteriores ao delineamento dos direitos humanos.
Os primeiros fundamentos para o processo de evolução histórica das penas foram lançados pelo filósofo Cesare Beccaria, na obra Dos delitos e das penas (1764), reforçados por Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir (1975), ambos tratando basicamente da necessidade de adequação do quantum punitivo ao quantum incidente.
Embora Beccaria tivesse dado o pontapé inicial para a humanização das penas, a própria evolução da sociedade tem inspirado a continuidade de estudos buscando a adequação das sanções ao mínimo indispensável para a preservação da dignidade humana sem, contudo, destituí-las de suas finalidades retributivas, reeducativas e preventivas, mas evitando que se repetissem no tempo sentenças como a que se segue:
“JUSTIÇA que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde.
MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta Cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792, Eu, o desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha, Escrivão da Comissão que o escrevi. Sebão. Xer. de Vaslos. Couto.” (DOTTI, Rene Ariel. 2003, p. 27)
A simples leitura do texto deixa claro o sentimento de vingança pública incutido na pena aplicada e a sua exacerbada dosimetria que extrapola a esfera individual do réu, atingindo a totalidade de seus bens e mesmo a sua descendência.
E, em contraponto à brutalidade do sistema, ganhou corpo a defesa de um processo evolutivo e humanizador, que veio a ser responsável por diversas modificações no sistema punitivo brasileiro, com a extinção dos castigos corporais, a extrema limitação da aplicabilidade da pena de morte, a proibição dos trabalhos forçados e a estrita previsão da possibilidade de prisões aos casos de flagrante delito e de ordens judiciais devidamente fundamentadas.
Ocorre que, embora o cidadão comum tenha alcançado todos esses direitos, os militares permaneceram sendo tutelados por um regime específico e que lhes preteriu de certas faculdades, ditas universais, em face da manutenção, em sede constitucional, das prisões disciplinares, na forma do seu Art. 5º, inciso LXI: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (Constituição Federal, 1988).
Por conta disso, permaneceram válidas e em pleno uso as previsões normativas disciplinares que estabelecem sanções restritivas de liberdade aos militares, diante das transgressões que, eventualmente, verifiquem-se na conduta subsumida.
Até alguns anos atrás, as corporações policiais militares dos estados membros e do Distrito Federal eram todas tuteladas, na esfera administrativo-disciplinar, pelo Regulamento Disciplinar do Exército, fruto da origem dessas instituições policiais e do fato de que a Constituição Federal as define como forças reservas e auxiliares do Exército Brasileiro, na forma do artigo 144, Parágrafo 6º daquela Carta Magna: “§6º – As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.” (Constituição Federal, 1988).
Através de pesquisa normativa, verificou-se que 23 das 27 unidades federativas são regidas por regulamentos/códigos disciplinares ou de conduta próprios, permanecendo os quatro entes restantes (Maranhão, Paraná, Sergipe e o Distrito Federal) sob a égide do Regulamento Disciplinar do Exército, e sujeitos às transgressões e punições ali tipificadas.
A respeito disso, cabe aqui destacar posicionamento do General do Exército Brasileiro Adriano Pereira Júnior, em entrevista concedida a uma emissora de televisão:
“Não existe carreira de soldado do Exército, este é treinado para a guerra que é um serviço excepcional. E o soldado da PM tem uma vida inteira para desempenhar essa função, assim ele não pode ser pautado pelo REGULAMENTO DO EXÉRCITO, que é feito para períodos de exceção. As funções são de natureza diferenciada. Usar o regulamento do Exército para a Polícia Militar é infringir direitos trabalhistas duramente conquistados ao longo de décadas, precisamos rever isso com o máxima urgência.” (JÚNIOR, Adriano P. 30 julho 2012. Rio de Janeiro: Entrevista ao programa Canal Livre, Band)
No caso específico do público alvo do presente trabalho, policiais militares do estado de Pernambuco, há a submissão aos ditames contidos na Lei 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco (CDME), que prevê em seu Art. 28, o rol das seguintes punições: advertência; repreensão; detenção; prisão; licenciamento a bem da disciplina; e exclusão a bem da disciplina. Afora as punições elencadas, há ainda a previsão de medidas administrativas que englobam: cancelamento de matricula em curso ou estágio; afastamento do cargo, função, encargo ou comissão; movimentação da Unidade; suspensão da folga, para prestação compulsória de serviço administrativo ou operacional à Unidade; e suspensão de pagamento, no saldo dos dias faltados, injustificadamente, e interrupção compatível à contagem do tempo de serviço, conforme disposto em legislação própria. No mesmo dispositivo ainda é mencionada a possibilidade de aplicação de advertência como medida alternativa à aplicação de penalidade disciplinar.
4. As punições militares em face dos direitos humanos
A evolução dos Direitos Humanos trouxe consigo outro marco no processo de modernização das penas, pois em sua premente busca pelo equilíbrio entre a infração cometida e a sanção aplicada, levava ainda em conta a valorização da vida, e da integridade física e mental mesmo a daqueles que cometeram crimes, focando a primazia da dignidade da pessoa humana.
Além da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos que estabelece como regra o status libertatis e o tratamento digno e não degradante a todos os homens, outro documento foi importante ao positivar as garantias para as pessoas submetidas às medidas restritivas de liberdade: o Tratado de São José da Costa Rica (1969) incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por força do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, que só corroborava com os fundamentos até então prescritos.
Dessa forma, ainda que os diplomas em comento não tenham feito quaisquer ressalvas em relação aos militares em geral, seja incluindo-os ou excluindo-os do rol de beneficiários das proteções universais ante o instituto da prisão, o assunto suscitava debates na doutrina e na própria jurisprudência, sendo inegável a constatação de que a mudança da mentalidade social encaminhava o direito para a modernização do regime punitivo disciplinar aplicável aos membros da caserna, de modo a adequá-lo aos preceitos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e suas normas derivadas, como declarou Jarbas Passarinho:
“Novos critérios de valores morais, revelações científicas revolucionárias, particularmente no domínio psíquico, outros conceitos de liberdade e de direitos humanos, mudaram de modo radical a feição dos exércitos, pondo em relevo como nunca a responsabilidade dos chefes, no tocante a obterem integral cooperação de seus soldados.” (PASSARINHO, Jarbas. 1987, p. 20)
Mais uma vez, mutatis mutandis, tem-se a perfeita adequação dos ensinamentos, focados originalmente nas Forças Armadas, aos militares estaduais.
De maneira concreta, o direcionamento de ações nesse sentido é visível nos termos da Portaria Interministerial nº 2, da Secretaria de Direitos Humanos da República em conjunto com o Ministério da Justiça, de 15 de dezembro de 2010, que estabelece as Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública.
O referido documento, dentre outras importantes diretrizes, prescreve as seguintes:
“1) Adequar as leis e regulamentos disciplinares que versam sobre direitos e deveres dos profissionais de segurança pública à Constituição Federal de 1988;[…]
32) Erradicar todas as formas de punição envolvendo maus tratos, tratamento cruel, desumano ou degradante contra os profissionais de segurança pública, tanto no cotidiano funcional como em atividades de formação e treinamento.” (SEDH/MJ, 2010)
O Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), por seu turno, e acompanhando as linhas estabelecidas pela Portaria Interministerial, publicou em abril de 2012, a Recomendação 012 – CONASP/MJ, propondo aos Governadores dos Estados a extinção das penas disciplinares de privação de liberdade, sugerindo inclusive uma nova redação para o Art. 18 do Decreto Lei nº 667, de 02 de julho de 1969 – Lei básica das polícias e bombeiros militares, a fim de consignar expressamente a vedação. Para os membros do CONASP/MJ, o texto ficaria assim (em negrito as principais alterações ao texto original):
“Art.18 – As polícias e Corpos de Bombeiros Militares serão regidos por Regulamento Disciplinar estabelecidos em Lei Estadual específica, respeitadas as condições especiais de cada corporação, sendo vedada pena restritiva de liberdade para as punições disciplinares, e assegurada o exercício da ampla defesa e o direito ao uso do contraditório.” (CONASP/MJ, 2012, grifo nosso)
Não menos interessante é o posicionamento de Ythalo Frota Loureiro, Promotor de Justiça do Estado do Ceará, em artigo publicado na revista Ministério Público & Sociedade (Ano 5, nº12), ao tratar sobre a edição do novo Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará, que extinguia as penas administrativas de cerceamento de liberdade:
“O Novo Código Disciplinar, em boa hora, extinguiu as melindrosas cadeias disciplinares (prisão disciplinar), que, encarcerando os policiais militares em xadrez, na verdade, humilhava-os, rebaixando-os aos criminosos que costumavam prender. As antigas prisões e detenções disciplinares eram medidas duras demais para transgressões disciplinares, além de possuírem duvidosa capacidade de redirecionamento dos policiais militares aos seus misteres profissionais. Eram sanções completamente incompatíveis à dignidade do encargo policial.” (LOUREIRO, Ythalo Frota. 2005, p. 24)
Em pronunciamento anterior, datado de 2004, o mesmo membro do Ministério Público faz duras críticas ao regime disciplinar, alegando que estes priorizam o respeito à hierarquia e à disciplina em detrimento do respeito aos direitos humanos, acrescentando que a ideologia militar se fundamenta no autoritarismo e no pessimismo em relação à natureza humana, e por isso, nos frequentes momentos em que se deparam com conflitos de valores fundamentais, aplicaram os valores militares aprendidos na corporação, com prejuízo da dignidade da pessoa humana (LOUREIRO, Ythalo Frota. 2004).
Como se demonstra, é bastante sólida a mobilização no sentido de estender aos militares os auspícios da humanização das sanções com vistas aos preceitos universalmente aceitos acerca dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana e à vedação do cerceamento da liberdade que não em casos de flagrante delito ou de ordem judicial devidamente justificada, demonstrando a total inadequação das penalidades administrativas de restrição de liberdade no cenário sociológico-jurídico vivido.
5. O atual regime de sanções administrativas disciplinares na polícia militar de pernambuco e a inviabilidade logística para cumprimento das penas restritivas de liberdade
No âmbito da Polícia Militar de Pernambuco há a previsão legal de seis modalidades de penas disciplinares: a) advertência; b) repreensão; c) detenção; d) prisão; e) licenciamento a bem da disciplina; f) exclusão a bem da disciplina.
A advertência e a repreensão são modalidades de uma mesma forma punitiva: a admoestação. Ambas partem do princípio de que a transgressão não foi grave e de que o histórico do transgressor leva a crer que uma reprimenda meramente verbal ou escrita será suficiente para fazê-lo refletir sobre a atitude que ensejou a sanção, reconhecer o erro e não mais voltar transgredir. Afeta diretamente a consciência e honra subjetiva do indivíduo. Instituto mais próximo do ideal previsto na chamada “disciplina consciente”. Assemelham-se à advertência prevista no Estatuto do Servidor Público e na Consolidação das Leis Trabalhistas.
A detenção e a prisão são formas de punição através do cerceamento da liberdade do transgressor. Possuem forte liame com as sanções penais e destinam-se às transgressões de grau médio e grave. De todas as categorias de empregados (atrelados ao regime da CLT) ou de servidores (vinculados ao regime estatutário), aplicam-se exclusivamente aos militares. Seu objetivo é o de retribuir ao infrator o fato típico praticado, restringindo-lhe o arbítrio e a liberdade de movimentação. Além de privar o militar apenado, temporariamente, do seu direito de ir e vir, também serve de exemplo aos demais sobre as repercussões que podem advir como consequência do cometimento de atos contrários às normas e regulamentações. Sem correspondente nas normas administrativo-disciplinares vigentes.
Licenciamento e exclusão a bem da disciplina são as sanções mais gravosas que podem ser aplicadas, em sede administrativa, aos militares. Leva em conta que a transgressão cometida inviabiliza a permanência do transgressor nas fileiras da corporação, por não se coadunar com os preceitos e diretrizes que regem a polícia militar. Pode ser aplicada tanto na esfera das praças quanto na dos oficiais e, em virtude do seu caráter terminativo da relação de trabalho, demandam um procedimento rigoroso e solene. Facilmente equiparável à demissão por justa causa prevista na norma trabalhista ordinária ou à demissão tratada no estatuto que rege os servidores públicos.
Ora, apresenta-se desnecessário discorrer acerca da adequação das sanções unicamente admoestativas, ou mesmo das demissionárias, aos preceitos dos direitos humanos. As primeiras por se restringirem ao plano da consciência e da autocrítica do infrator, as segundas pelo fato de se mostrarem plenamente cabíveis ao ficar evidenciada a inadequação do homem ao serviço e às finalidades a que se propõe a Administração Pública que, como já discorrido previamente, exige um patamar diferenciado de procedimentos e regras a serem rigidamente cumpridos.
Restam então as sanções administrativas de restrição de liberdade e a indagação sobre a recepção ou não aos fundamentos dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana.
As sanções de privação de liberdade em uso no estado de Pernambuco e previstas no código disciplinar que rege os militares estaduais são a detenção e a prisão.
A principal diferença entre os dois institutos é a de que a definição da detenção informa a restrição do militar às dependências da unidade militar em que serve, mas sem confinar-lhe a nenhum aposento específico e sem importar em prejuízo para a instrução ou para o serviço.
Já a prisão, além de delimitar o espaço de circulação do apenado à área do aquartelamento, ainda prevê o confinamento em local específico, seja o alojamento ou mesmo a cela, chamada de xadrez no linguajar de caserna.
Sendo penalidades que restringem o militar às dependências do batalhão (ou equivalente) em que é lotado, há de se supor que o prédio contenha instalações suficientes, adequadas e dignas para alojar os apenados.
Se, outrora, os quartéis ocupavam prédios grandes e fortificados, com muros altos e postos de sentinela, onde um grande número de militares cumpriam suas jornadas de serviço, que previam escalas com turnos de 24h (vinte e quatro horas), o que ensejava a necessidade de alojamento para os horários de descanso, e ainda contavam com celas prisionais, herança trazida das Forças Armadas (e que remontam aos cárceres para prisioneiros de guerra), atualmente as unidades policiais têm gradativamente passado por reformas e reconstruções que as tornam enxutas e funcionais em relação ao caráter cada vez mais dinâmico do serviço.
Os resultados de tais evoluções arquitetônicas são: a redução dos espaços reservados aos alojamentos, que perderam parte da funcionalidade em face da prevalência de escalas de 12h (doze horas) de serviço desempenhadas eminentemente fora do aquartelamento, e deram lugar a simples vestiários; e a desativação dos xadrezes, em especial depois da construção do Centro de Reeducação da Polícia Militar (CREED), cuja função atual é a de receber presos oriundos da justiça militar, o que difere das prisões administrativas em comento.
Outro fator relacionado às modificações estruturais dos quartéis da Polícia Militar de Pernambuco foi mudança no sistema de fornecimento de refeições, que, anteriormente, eram preparadas nos chamados “ranchos” e servidas nos refeitórios ou “cassinos”, e passaram a ser supridas individualmente mediante o pagamento de auxílio alimentação, conforme regulado pelos Decretos Estaduais nº 29.181 e 29.788, ambos do ano de 2006.
Resumidamente, as citadas normas extinguiram o fornecimento de alimentação pelos quartéis e instituíram o pagamento de vale-refeição no contracheque mensal dos militares estaduais.
Em valores atuais, o benefício é de R$154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) e equivale a 22 (vinte e duas) parcelas/refeições de R$7,00 (sete reais) cada, destinados a cobrir a média de dias úteis do mês trabalhado em expedientes administrativos, ou, no caso dos que concorrem a escalas, cobrir os dias de serviço no mesmo período, com uma pequena margem para eventuais sobrejornadas.
Fazendo então uma análise da aplicabilidade das penas administrativas de restrição de liberdade diante dos fatores expostos, tem-se que:
1 – A indisponibilidade de alojamento adequado para acomodar os apenados, interfere na sua permanência no perímetro do quartel em regime integral, obrigando os comandantes a liberarem os policiais em cumprimento de punições para pernoitarem em suas residências, o que compromete a essência da pena de restrição de liberdade em si.
2 – O outro obstáculo vivenciado é o que diz respeito à alimentação, pois considerando que os militares estaduais recebem mensalmente 22 (vinte e dois) vales-refeição, calculados para cobrir o estritamente necessário para os dias em que estejam de serviço, com poucas exceções, caso estejam cumprindo prisões e/ou detenções, os servidores precisarão arcar, com expensas próprias: o café da manhã, o almoço e o jantar dos dias em que estiverem recolhidos.
Pelo que foi exposto, resta demonstrada a total incompatibilidade do regime de cumprimento das sanções disciplinares de restrição de liberdade no atual cenário logístico-operacional vivido pela Polícia Militar do Estado de Pernambuco.
5.1. Como agir diante dessa realidade?
Após a análise da doutrina emanada das Nações Unidas, que reserva a prisão como última alternativa no tratamento de delinquentes, e ainda as recomendações da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Segurança Pública, no tocante à humanização no tratamento dos operadores de defesa social e da própria evolução conjuntural e cultural da sociedade, era evidente que não se poderia ficar inerte.
As penas restritivas de liberdade já cumpriram seus papéis em um momento histórico no qual se encaixavam perfeitamente pelo próprio arcabouço social em que se vivia, mas hoje se demonstram obsoletas, inadequadas, inaplicáveis e ineficazes no que se refere a atingir seus objetivos de reeducar e de prevenir novas transgressões e, por conseguinte, de reforçar as bases da hierarquia e da disciplina, pilares de sustentação de todas as instituições militares.
Ainda na análise do cenário nacional, observou-se que as penas alternativas à prisão configuram-se em meio eficaz no trato dos infratores em relação à sociedade em que se inserem. Apresentam reforço positivo tanto no interesse do infrator, quanto no da sociedade. Descabido então seriam os servidores públicos responsáveis pela segurança e incolumidade das pessoas, serem tratados disciplinarmente com a mais cruel das privações, a da liberdade, e daí se inferiu que a Polícia Militar de Pernambuco não deveria ficar atrelada a um regime que ainda acolhesse tal tipo de sanção administrativa.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, na cidade de Porto Alegre, no ano de 1993, chegou-se à conclusão de que as penas alternativas geravam menos reincidência. Observou-se que, de todos os apenados que tiveram suas penas substituídas pela a prestação de serviços, apenas 12,54% reincidiram, ou seja, cerca de ¼ da média nacional de 48% de reincidência em relação aos que não foram beneficiados pela aplicação de penas alternativas no mesmo período. (SCHEICARA. 1998, p. 09)
É inegável o dinamismo da sociedade, assim como é inegável o dinamismo evolutivo do direito. A vida castrense precisa se atualizar e implantar medidas modernas e mais eficazes no combate à indisciplina dentro dos quartéis. Por outro lado, medidas modernas e humanizadas não significa deixar de punir e fechar os olhos diante das infrações, mas envidar todos os esforços para a educação ou reeducação dos seus servidores, reconhecendo que, nos casos daqueles contumazes indisciplinados, a solução final é a expulsão, afinal, na função de preservação da ordem pública, não se pode contar com policiais que ensejem a desconfiança e insegurança da indisciplina, e a própria sociedade não quer isso.
A privação da liberdade fica reservada aos criminosos de alta periculosidade, ainda que policiais militares, àqueles infratores irremediáveis da disciplina, aos que apresentem incorrigíveis desvios de conduta e de caráter, e se demonstrem nocivos ao convívio social da tropa e, consequentemente, à nobre missão de preservação da ordem pública.
Durante as pesquisas bibliográficas e doutrinárias realizadas, observou-se que algumas corporações já militam no campo da modernização de seus sistemas administrativo-disciplinares, dentre as quais se destacam a Polícia Militar do Estado do Ceará, que aboliu a prisão disciplinar e implantou a suspensão do serviço com prejuízo da remuneração, e a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, juntamente com a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que propuseram um sistema temperado, mantendo prisões e aplicando suspensões.
Não se pode negar que a suspensão, também presente nos Estatutos do Servidor Público (Federal e Estadual) e na Consolidação das Leis Trabalhistas, traz consigo uma sanção menos indesejável do que a restrição de liberdade, por outro lado, abarca a desvantagem de ocasionar prejuízo ao serviço, vez que o sancionado não cumprirá as suas obrigações enquanto estiver suspenso, assim como, no momento em que alcança o salário do servidor, poderá extrapolar os limites da pena, atingindo não só a pessoa do infrator como também seus familiares ou outros que dependam da sua renda, fator repudiado pelo direito pátrio.
Também é importante frisar que no caso da suspensão (ou da aplicação de qualquer tipo de sanção) é esperado o sentimento inicial de insatisfação por parte do apenado, e que a sua permanência em casa, ocioso e sabedor de que ainda suportará decréscimo financeiro, poderá acarretar desentendimentos familiares, sendo certo, segundo informações obtidas diretamente junto à Corregedoria Geral da Secretaria de Defesa Social, que já há um número alto de reclamações por agressões domésticas, à luz da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha, e arriscar a ver esse número crescer não seria uma boa alternativa.
Outras forças, como a Polícia Militar do Estado de São Paulo, a Polícia Militar do Pará e a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais também evoluíram seus diplomas disciplinares no sentido de prever a possibilidade de comutação de parte da pena de reclusão em prestação de serviço, o que, embora já apresente um bom sinal, além de não apresentar diferença sensível em relação ao cerceamento de liberdade, ainda as deixam muito presas ao passado que se busca deixar pra trás.
Por outro lado, a imposição de sanção de prestação compulsória de serviço, com suspensão da folga, enseja em vantagens para os três atores do processo: a instituição, o administrado e a sociedade, garantindo ainda o reforço da hierarquia e da disciplina, mas sem submetê-los ao cárcere.
A Polícia Militar de Pernambuco ganharia pelo fato de que o custo da punição de prestação de serviços é zero, em especial se comparado ao ócio e ao prejuízo para o serviço advindos da punição de privação de liberdade, pois o punido, além de estar produzindo e auxiliando, como força complementar, o Estado na persecução dos índices previstos no Pacto Pela Vida[2], não teria os custos administrativos de alojamento e alimentação, nem se obrigaria a dispor da guarnição de serviço para velar pela sua permanência no quartel.
Ao transgressor, o maior beneficio seria a correção de sua infração em liberdade, permitindo que se mantenha em contato com a comunidade, gerando um convívio social saudável durante o cumprimento da punição, em especial quando se leva em conta que o meio favorece o desenvolvimento do homem. Outro aspecto é o de que, conforme identificado na pesquisa sobre reincidência e penas alternativas (IBCCrim, 1993), as chances do prestador de serviços voltar a transgredir são muito menores, comprovando o efeito reeducativo da medida.
A terceira parte a lucrar seria a Sociedade, que dispõe de mão-de-obra extra, gratuita e qualificada na prestação de um serviço indispensável e primordial como o de segurança.
Por fim, observa-se ainda um aspecto em que os três atores do processo ganham: a prestação de serviços gera para a Corporação um marketing positivo junto a Comunidade, uma vez que a medida e a proximidade entre o policial e a população é simpática tanto para essa comunidade, quanto para o infrator.
Dito isso, propõe-se que o Código Disciplinar dos Militares Estaduais seja revisado com foco na atualização da lista de transgressões, tornando-as consonantes com a realidade social cotidiana, e que sejam excluídas da lista de sanções as penas de detenção e prisão, substituindo-as pelas de prestação compulsória de serviços no horário de folga.
6. A previsão de penas de prestação compulsória de serviço
O primeiro passo a ser seguido é a propositura de um projeto de Lei que modifique a Lei nº 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado, permitindo a alteração do Art. 28 do referido diploma, revogando os incisos I e II, e acrescentando a previsão da prestação compulsória de serviço com suspensão da folga. De modo a permitir um alcance mais amplo dos objetivos pretendidos, devem ser observando os critérios abaixo:
1 – A sanção de prestação compulsória de serviços com suspensão da folga aplicar-se-á exclusivamente às transgressões médias e graves, ou nos casos de reincidência em transgressões leves que, preliminarmente, sejam sancionadas com advertências ou repreensões. Permitindo a gradação das punições em face da evolução das transgressões;
2 – A prestação compulsória seja cumprida, preferencialmente, na modalidade de Policiamento Ostensivo Geral a Pé, em turnos de serviço não inferiores a seis, nem superiores a oito horas ininterruptas. A medida visa possibilitar uma maior proximidade do apenado com a comunidade o que é produtivo tanto para a sua reeducação, quando para a integração polícia-comunidade, em especial quando, diante do dinamismo operacional que se vive, quase não existe emprego de policiamento a pé de maneira ordinária;
3 – A sanção não seja cumprida em jornada imediatamente anterior ou posterior ao serviço ordinário, não sendo permitida a geminação de turnos. Visando evitar prejuízos tanto ao serviço regular quanto ao cumprimento da sanção, por superposição de jornadas;
4 – O limite máximo por transgressão seja de até quinze jornadas extras mensais, o que, somado a uma prestação média de 15 serviços ordinários, levando-se em conta a jornada mais utilizada na Corporação (12x36h), perfaria um total de trinta dias, limite outrora estabelecido para as detenções e prisões;
5 – Para fins de modificação de comportamento (melhoria e depreciação), considerar-se-ão as penas aplicadas às transgressões médias produzindo os mesmos efeitos das extintas detenções e as penas vinculadas às transgressões graves como se se tratasse das extintas prisões, acompanhando o regramento já existente na referida Lei nº 11.817 de 24 de julho de 2000 – Código Disciplinar dos Militares do Estado;
6 – Para os fins de anulação das punições da ficha disciplinar com o decorrer do tempo, seja observado o prescrito no item anterior;
7 – Considerando-se que as sanções de prestação compulsória se serviço com suspensão da folga passarão a ser penas propriamente ditas e não mais medidas administrativas complementares, seja revogado o inciso IV do §1º do Art. 28 do Código Disciplinar dos Militares Estaduais;
8 – Permanecem válidos todos os recursos disciplinares existentes aplicando-se, nos mesmos moldes, às penas de prestação compulsória com suspensão da folga;
O controle externo à Corporação, que de certo trará mais confiança tanto para quem recorre à correição, bem como, isenção para quem julga e avalia, permanecendo sob os auspícios da Corregedoria Geral, ressalvados os poderes normativamente instituídos aos Comandantes, Chefes e Diretores.
A aplicação de prisões disciplinares restringir-se-á aos casos de repetidas violações ao rol de transgressões, indicando ser o agente um infrator contumaz e imune às penas previstas, ou nos casos de extrema necessidade de conter graves abusos e ofensas à ordem pública, devidamente motivados e homologados pelo Comandante Geral e sempre prévias às penas de exclusão.
As modificações sugeridas proporcionam um maior controle disciplinar dos servidores do sistema, garantindo sua aplicabilidade e eficiência punitiva, extinguindo a sensação de impunidade que permeia o atual mecanismo de cumprimento de sanções administrativas para os militares estaduais, resguardando a disciplina militar em sua natureza rígida e rigorosa.
7. Considerações finais
No seio da Administração Pública, é indiscutível a necessidade de manutenção da disciplina, e mesmo nas esferas da vida social ela é cultivada. Importância ainda maior assume o controle da hierarquia e da disciplina no seio das chamadas instituições totais, como é o caso dos manicômios, prisões e conventos, no dizer de Erwin Goffman (Manicômios, prisões e conventos, 1984), e no qual é possível facilmente inserirem-se as corporações policiais militares.
Entendida a necessidade de controle disciplinar, é mais fácil entender que a punição, não só no âmbito militar, mas em todas as atividades, tem a finalidade precípua de regular diretamente as ações humanas, e surgem então os diplomas destinados a prever uma punição que corresponda a uma falta cometida (princípio da retributividade da pena).
Mesmo diante do controle, a falibilidade humana faz perceber que existirão atitudes indesejadas, momento em que será indispensável a reeducação do indivíduo, quando caberá a aplicação efetiva de punição face ao erro já consumado.
Por fim, existe ainda o momento em que a sanção transcende da pessoa do punido e alcança também seus pares, superiores e subordinados, seja pelo temor de, em agindo de maneira desconforme com norma, também sofram do mesmo mal, seja visando o reforço da norma imposta e a harmonia na coletividade a que pertence e, no caso do policial militar, essa coletividade é a tropa.
Em acordo com os princípios constitucionais vigentes é necessário que a punição disciplinar seja aplicada de forma justa e equilibrada, visto que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (Constituição Federal, Art. 5º, 1988), aí residindo a necessidade de estabelecer limites ao alcance punitivo estatal, posto que a ausência de tais parâmetros poderia ensejar em aplicações desequilibradas no quesito da dosimetria do quantum punitivo, sendo esse o entendimento de José Armando da Costa: “é o sistema predileto dos sádicos perseguidores. O mau administrador encontra neles o poder disciplinar como estilete de vingança pessoal” (Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar, 1981).
Ainda em face do aspecto de que, embora o controle disciplinar, e com ele a imposição de penalidades, seja algo indispensável, também já foi bem demonstrado que o atual sistema está por demais obsoleto e preso a preceitos que não evoluíram com o tempo, como se esperaria de uma sociedade democrática de direito, como os ligados aos Direitos Humanos e à dignidade da pessoa humana.
Muitos foram os direcionamentos doutrinários e mesmo filosóficos em prol da necessidade de humanização das penas administrativo-disciplinares militares, e a Polícia Militar de Pernambuco não poderia deixar de acompanhar a locomotiva do progresso nessa seara.
Mais do que provado restou que o sentimento incutido tanto naqueles que aplicam as punições quanto na tropa em geral, que se submete aos auspícios do diploma disciplinar, é de que a aplicabilidade e eficácia das penas restritivas de liberdade entraram em colapso, além do que não se adequam aos preceitos dos direitos fundamentais conquistados ao longo de anos de evolução histórica.
O cenário logístico também é fator que influencia no cumprimento das penalidades, seja pela falta de acomodações condignas ou pela indisponibilidade de recursos para provimento de alimentação. Propor uma solução que se baseasse na construção de novos cárceres e no provimento de refeições para garantir o mínimo existencial no período de reclusão seria encaminhar a instituição ao regresso do que se conquistou para a sociedade, sem contar que seria negar aos militares, em que pese a necessidade de serem submetidos a tratamento mais rígido e diferenciado, o direito de serem reconhecidos como cidadãos.
Propor singelamente que as penas de cerceamento de liberdade sejam extintas seria muito fácil, o grande problema é fazer isso sem deixar de lado a preocupação com o reforço da hierarquia e da disciplina, e esse foi o desafio assumido pelo presente projeto.
Nesse diapasão, sugere-se não apenas a modificação do rol punitivo, mas uma revisão geral do Código Disciplinar, adequando os tipos ali estabelecidos à realidade cotidiana, em face do princípio da mutação normativa, mas também a extinção das penas de detenção e de prisão, restritivas de liberdade em essência.
Na ótica deste trabalho, algumas das transgressões disciplinares hoje previstas podem ser reprimidas através de simples admoestação, verbal ou escrita, acreditando-se no sentimento maior de amor às normas e da disciplina consciente que tanto se ouve falar nos períodos de formação das escolas militares.
Ainda assim, há também aquelas situações em que a gravidade do mal causado à administração exige medidas mais drásticas, ou quando o transgressor insiste em transigir as regras a que jurou se submeter, e aí se estabelece o campo para a aplicação de sanções mais rígidas em face do benefício à coletividade, momento em que teriam espaço as penas de prestação compulsória de serviço com suspensão da folga.
Impor ao administrado uma medida que lance mão do seu horário livre além de reprimir a ação atentatória à boa ordem do serviço, não deixando imperar a sensação de impunidade que, no entender de Beccaria, favorece o cometimento de novas transgressões, também não submete o apenado a um regime até certo ponto degradante e que, invariavelmente, o leva a comparar a sua situação com a do criminoso comum que o mesmo servidor se predispõe a combater na sua lida diária.
Não bastasse tudo isso, apontam-se complementarmente como decorrências positivas: o reforço operacional na manutenção do Pacto Pela Vida em detrimento do prejuízo deixado pela lacuna do militar afastado do serviço em face do cumprimento de medida disciplinar, e o marketing positivo junto às comunidades ao se disponibilizar mais efetivo para atender aos seus anseios na área da segurança.
Outros caminhos se assomam quando são levadas em conta possibilidades como a de comutação parcial da pena em prestação alternativa ou na propositura de suspensão disciplinar com prejuízo pecuniário, contudo, e como já discorrido anteriormente, no primeiro caso não se observa considerável evolução no processo punitivo, mantendo muito forte o liame com os institutos que se pretende deixar para trás; já no segundo, há o receio de que, mesmo diante de limites normativamente impostos em relação à reprimenda financeira, esta atingirá não só o militar, mas todos aqueles que dele dependem para o seu sustento, sem se esquecer de que o Estado não contará com o servidor para o desempenho de suas tarefas durante o período de afastamento.
Por todos esses motivos que se aponta como remédio ao aparato disciplinar em voga a revisão de suas transgressões (na possibilidade de adequação temporal), a extinção das penas de cerceamento de liberdade (prisões e detenções), e a implantação da modalidade punitiva de prestação compulsória de serviço com suspensão da folga.
A adoção dessas medidas contribuirá para a restauração da eficácia do sistema de controle da disciplina, estabelecendo um ambiente melhor de trabalho aos militares estaduais, e refletindo na qualidade do serviço prestado junto à Comunidade, público alvo e maior beneficiário de todo o mecanismo estadual de defesa social.
Oficial da Polícia Militar de Pernambuco Graduado em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar do Paudalho; Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio do Recife; Extensão Universitária em Policiamento Comunitário pela UFPE; Extensão Universitária em Enfrentamento às Drogas pela UFSC; Pós Graduação em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Estácio do Recife em andamento
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