As semelhanças de família das famílias: um balizamento jusfilosófico

Alexandre de Lima Castro Tranjan[1]

Orientado por: Ari Marcelo Solon[2]

Resumo: A Constituição da República do Brasil (1988) institui uma série de possibilidades para a organização familiar. O modelo do Código Civil de 1916, de uma família fechada e centrada na figura de chefia do homem, termina de ser enterrado. Entretanto, muito teve ainda de ser percorrido desde o modelo constitucional. E ainda falta, na doutrina, a consolidação da etapa final rumo à plena liberdade de organização familiar. O presente ensaio retoma brevemente esse percurso histórico e oferece um balizamento teórico e epistemológico, a partir da filosofia da linguagem de Wittgenstein, em direção ao entendimento mais plural possível para o tema, à luz do princípio da autodeterminação do indivíduo e dos grupamentos humanos.

Palavras-chave: Organização familiar; Filosofia da linguagem; Pluralidade.

 

Abstract: The Constitution of the Republic of Brazil (1988) established a list of possible recognised family structures. The model from the Civil Code of 1916 of a closed, nuclear family centered on the man’s authority is buried for good. However, much is yet to be achieved since the most recent Constitution was established. And the doctrine still lacks a consolidation of the final stage towards a full liberty of family organization. The present essay briefly summarizes the historical background and offers a theoretical and epistemological direction towards the most plural possible understanding on this theme, in the light of the principle of self-determination of the individual and of human groups.

Keywords: Family organization; Philosophy of language; plurality.

 

Sumário: Introdução. 1. Modelos Familiares. 2. Para além da definição e do rol; 3. Das semelhanças de família, os jogos de linguagem; Conclusão: a intersubjetividade e a autodeterminação; Referências.

 

Introdução

No já-tão-arcaico Código Civil de 1916, considerava-se família um núcleo fechado, composto por laços de consanguinidade. Separavam-se os filhos ilegítimos dos legítimos, bem como os adotivos dos biológicos. O conjunto completo de direitos cabia apenas aos filhos do casal concebidos no seio do casamento, através da reprodução sexuada entre os cônjuges. A posição de mando e o pátrio poder cabiam ao homem, considerado “chefe de família”.

A crítica imediata seria de que se trata de um modelo patriarcal, centrado no homem, socialmente valorado acima da mulher. Não deixa de ser verdade. Entretanto, mais do que isso, o modelo familiar do Código de 1916 é epifenômeno do processo de acumulação capitalista[3]. Sendo o homem, na época, o indivíduo economicamente ativo do núcleo familiar, centrar-se nele a chefia da família significa posicionar a fonte de receita como, também, fonte de mando. Ademais, o modelo hermético de homem-mulher-e-filhos-legítimos cumpre a função de manter o patrimônio na mesma família, preservando as dinastias capitalistas ao longo das gerações.

Não é preciso discorrer explicando o porquê desse ideal de família, em termos de moral e liberdade, ser obsoleto e inaplicável atualmente. Para as “almas liberais”, é óbvio; para moralistas fanáticos, qualquer argumentação seria inócua. A análise, a partir daqui, será de cunho descritivo acerca das mudanças recentes mais significativas na descrição jurídica de família, para que, ao cabo, seja sugerido um horizonte teórico para essa noção.

 

  1. Modelos familiares

A Constituição de 1988, sob a influência do Zeitgeist liberal do final do século, positiva o ideal de família democrática, pautada pela igualdade entre os gêneros. É o desdobramento natural de um longo e doloroso processo de emancipação feminina, que até hoje não é pleno — e está longe de sê-lo. Não mais se chama de “pátrio poder” a autoridade paterna sobre o filho. Agora, ambos os pais desfrutam o “poder familiar”. Seguindo o ideal de igualdade jurídica, o Código Civil de 2002, equipara a idade mínima para celebração do casamento (art. 1517) e a de obrigatoriedade do regime de separação de bens (art. 1641, II) entre homem e mulher. Também marcada pelo paradigma da igualdade é a relação entre os filhos, não mais sujeitos à diferenciação jurídica entre legítimos e ilegítimos, biológicos e adotivos.

A desierarquização das relações familiares acompanha a progressiva flexibilização de sua estrutura. Confirmou-se, em 2013, através da Resolução 175, o reconhecimento de que não mais apenas homem e mulher, mas também homem e homem, mulher e mulher, podem celebrar o casamento, não mais importando a heteroafetividade da relação. Também a família monoparental, desde a Constituição, é reconhecida como entidade familiar (art. 226, §4º) tanto quanto a biparental constituída pelo casamento (art. 226, §§1-2). Mais recentemente, começou a ser aceita a organização anaparental da família e, não muito depois, a estrutura multiparental.

 

2. Para além da definição e do rol

A partir dessa breve retrospectiva histórica, evidencia-se a tendência à ampliação do rol de configurações possíveis daquilo que se enquadra no conceito de entidade familiar. Resta a questão: até onde é possível que esse alargamento se realize sem que se distensione completamente o conceito, de modo a perdê-lo? Aqui, sugiro um novo horizonte hermenêutico para a noção de família, a partir das ideias de Wittgenstein.

 

Qualquer definição restritiva está fadada ao fracasso, pelo menos parcialmente. Uma elucidação pode ajudar o intérprete a afastar algum erro de interpretação, algum mal-entendido específico, mas não todos os enganos possíveis que poderiam surgir (WITTGENSTEIN, 1996, § 87, p. 60). Se pergunto “eu e meu cachorro somos uma família”, alguém pode me responder “não, uma família envolve duas ou mais pessoas”. Mas se alguém me disser, simplesmente, que “uma família envolve duas ou mais pessoas”, posso ser levado a pensar que um grupo de pesquisa é uma família. Aí, será dito “essas pessoas precisam ser ligadas por vínculos afetivos estreitos”, e logo poderei pensar que um time de futebol bem entrosado pode ser considerado uma família. Toda explicação pode ser entendida de mais de uma maneira, já que é sempre possível que imaginemos uma situação a que a elucidação intentada mostre-se inócua[4]. Assim, uma explicação pode pedir outra, que pode pedir outra, e assim sucessivamente, sem que se encontre um fundamento (Grund) final em que todo o resto se apoie.

 

Se a tentativa de limitar conceitualmente a entidade familiar é infrutífera, poderíamos pensar em estipular, em nossa discussão, um rol de possibilidades a que se remeteria nosso leitor sempre que em dúvida a respeito da questão. Entretanto, tratar-se-ia de outro tiro n’água. As definições ostensivas estão condenadas à mesma limitação das explicativas, a saber, ainda há mais de uma maneira de interpretá-las, mais de um jeito de entender quais seriam os objetos constantes na lista (WITTGENSTEIN, 1996, §§ 28-9, pp. 37-8). Também, sempre que pensássemos em uma lista fechada de objetos a que corresponde um conceito, poderíamos cogitar algum outro objeto aplicável. Ainda, o contexto em que os objetos se inserem pode mudar de tal modo que eles possivelmente não mais fossem pertinentes a nossa lista[5].

 

Percebemos que mais desconstruimos do que elaboramos um conceito. E isso é inevitável. Os paradoxos que demonstramos acima são evidências da impossibilidade de se fixar um conceito único de família. Podemos ser capazes de reconhecer uma família quando nos deparamos com ela, mas não é possível que tracemos um limite rígido entre o que pode ou não se encaixar em nossa noção. De fato, nossa abordagem pode parecer se esquivar da tarefa de determinar o objeto de sua análise, fugindo de decidir por uma ou por outra definição já encontradas na doutrina. Mas é justamente através da fuga às conceituações restritivas que podemos balizar nosso entendimento de maneira mais apropriada.

Ora, o que entendemos por família não é senão um emaranhado de situações, de casos semelhantes uns aos outros sem que haja, contudo, uma única característica essencial que ligue todos eles[6]. O leitor pode pensar em muitas hipóteses de escolher um elemento que preencha tal lacuna, mas dificilmente logrará êxito[7]. O vínculo consanguíneo não pode sê-lo, dadas as possibilidades de configuração de vínculo familiar sem parentesco biológico. Pensa-se, imediatamente, que “a adoção”, que não envolve relação consanguínea, “é um ato de amor”. Então, o elemento essencial poderia ser o afeto. Mas nem sempre existe um vínculo afetivo saudável entre os familiares, como a psicanálise freudiana nos demonstra: que um filho odeie o pai por um complexo de Édipo é plenamente possível. Talvez pensemos, ainda, em família como conjunto de habitantes de uma mesma residência. Mas isso não necessariamente é a realidade de todas as famílias, que podem muito bem habitar mais de um imóvel, morar separadas ou, ainda, como é a infeliz realidade de milhões de brasileiros, não possuir residência fixa.

O leitor provavelmente chega a um ponto em que se sente impaciente com a exposição. Mas teremos logrado êxito caso, junto com tal incômodo que causamos, tenhamo-lo feito perceber que o essencial para que consideremos objetivamente uma família não existe. Na verdade, o próprio ideal de objetividade ruirá caso estendamos nossa investigação. Mas voltemos à ideia de um emaranhado de relações de que falamos anteriormente. Naquele momento, provavelmente pareceu que não trouxemos nada de novo senão o que nós e o leitor já sabemos. E é exatamente aí que podemos achar a resposta para a pergunta que norteia nossa análise.

Nunca nos preocupamos em definir precisamente o que era família quando, em nossas relações, consideramos tal ou qual pessoa como um familiar[8]. E quando pensamos nas famílias dos outros, sabemos que elas não são exatamente como a nossa. Isso não é um empecilho, na medida em que, sem grandes dificuldades, reconhecemos uma família quando nos deparamos com uma. Ainda que não haja um fio condutor único, uma essência mesma do conceito de família, no uso comum da linguagem atribuímos a ideia de família a diversas configurações possíveis. É como se as famílias formassem, no âmbito conceitual, uma família. Sem que uma característica comum necessariamente esteja presente a todos os seus membros, cada um se liga a outro por fatores distintos, mas sempre presentes. Ainda que corramos o risco de fractalizar o argumento, podemos dizer que as famílias têm umas com as outras “semelhanças de família[9]”, formando, em conjunto, uma grande família abstrata das famílias concretas possíveis. Mas o que faz com que nosso entendimento assim seja?

 

3. Das semelhanças de família, os jogos de linguagem

            O que nos serve ao entendimento das semelhanças de família entre as famílias não é senão a série de contextos sociolinguísticos em que a palavra se insere. T. Em outras palavras, é pelo próprio uso da linguagem que os termos surgem e são aplicados. Um nome não possui um significado descolado e independente da frase ou, melhor dizendo, da proposição (Satz) em que está inserido[10]. Não existe uma linguagem a priori em relação à comunicação, ainda que esta se dê apenas hipoteticamente, no pensamento. E as inúmeras situações em que a linguagem é ou pode ser empregada como um ferramental são denominadas jogos de linguagem.

 

Não existe um rol fixo e imutável de jogos de linguagem possíveis. Eles são incontáveis, em sentido estrito, porque são incontáveis as hipóteses em que nós, seres humanos, podemos externar nossas emoções, sentimentos, pensamentos, vontades, entre muitos outros, para interagir com nossos semelhantes, ou mesmo diferentes — quem nunca conversou com o cachorro?. Ademais, novos jogos de linguagem morrem, enquanto outros envelhecem e morrem (WITTGENSTEIN, 1996, § 23, pp. 35-36). A consulta ao Oráculo de Delfos é um jogo de linguagem morto há vários séculos, ao passo que as reações a posts do Facebook são um recém-nascido jogo linguístico.

 

O esforço em tentar definir o conceito de família é vão justamente em decorrência da maleabilidade, da fluidez e da infinitude em potencial dos jogos de linguagem. A ideia de família só ganha seu sentido quando empregada em jogos de linguagem e, assim, está sujeita às mesmas alterações que afetarem o contexto em que se desenrolam esses jogos. Qualquer conceito apresentará, como vimos, algum grau de rigidez, e construirá edificações abstratas sujeitas às marretadas da realidade.

Em virtude dessa dimensão essencialmente prática da linguagem, para que não caiamos no abismo da carência de fundamentação (Grundlosigkeit) das explicações, devemos entender o conceito de família a partir da própria pluralidade dos jogos de linguagem em que o conceito se insere. Se tratamos de um conceito usado e forjado no e pelo cotidiano, devemos entendê-lo a partir dele. Em termos mais concretos, ao falarmos de uma família, baseamo-nos nas experiências dos usos dessa linguagem. Trata-se de uma consideração intersubjetiva, em que tal ou qual grupamentos humanos são mencionados como uma família ou se denominam como tal. Vejamos, a seguir, qual o desdobramento para a hermenêutica da conclusão a que chegamos.

 

Conclusão: a intersubjetividade e a autodeterminação

Podemos entender que nos deparamos com uma família apenas de acordo com o contexto social em que ela se insere. A consideração comum, em dado corpo social, de certo conjunto de pessoas como sendo uma entidade familiar, ou ainda, a afirmação do próprio grupo como sendo uma família, são os elementos de que dispomos para nossa análise. E deve ser balizado nesse sentido nosso julgamento.

Desta forma, em vez de tentarmos à exaustão encontrar uma definição teórica universal de família, devemos moldar nossa compreensão pela prática, caso a caso, pela autocompreensão das partes envolvidas e pelas relações costumeiras que mantêm umas com outras. Não pensar, mas ver: nossa fonte de compreensão deve ser única e exclusivamente a comunhão entre (i) a autodeterminação do grupo em questão e (ii) a consideração comum, intersubjetiva, por parte do meio que a circunda. Trata-se de uma visão doutrinária não apenas radicalmente orientada em defesa da liberdade, da pluralidade e da autodeterminação do indivíduo em seu seio familiar, mas também a mais neutra possível, por não se basear em discursos, narrativas, relatos, cuja fonte seja qualquer uma senão os próprios indivíduos considerados em sua autonomia.

 

Referências

GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 325.

 

STERN, David G. Wittgenstein’s Philosophical Investigations: an introduction. Nova York (Estados Unidos): Cambridge University Press, 2004. p. 118.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. [Em:] Wittgenstein (coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1996.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. O Livro Azul. Tradução de Jorge Mendes. Lisboa: Edições 70.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 3ª edição bilíngue. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020.

 

[1] Acadêmico de Direito na Universidade de São Paulo (USP).

[2] Professor Associado de Filosofia e Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP).

[3] Modelos familiares androcêntricos, evidentemente, não são exclusividade do capitalismo, já presentes em outros modos de produção. A imbricação da vida econômica na vida privada nos sistemas escravista ou feudal não será objeto da presente discussão, não se tratando de um ensaio de história do direito.

[4] Na literatura secundária sobre Wittgenstein, essa noção ficou conhecida como paradoxo da explicação, que “arises because we can always imagine a situation in which an explanation misfires because a further explanation is needed”. (STERN, 2004, p. 118).

[5] Na literatura secundária sobre Wittgenstein, essa noção ficou conhecida como paradoxo da ostentação ou, para traduzir melhor seu sentido, da “mostração”. Ele surge “because we can always imagine a situation in which an ostensive definition misfires, or is misunderstood, because some aspect of the taken-for-granted context or circumstances is abnormal” (ibidem).

[6] Da mesma forma, Wittgenstein mostra o que é um jogo (de linguagem) através de uma série de exemplos, sem contudo estipular um rol taxativo. Ao contrário, diz que “estão aparentados uns com os outros de muitos nomes diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de “linguagens””.  (WITTGENSTEIN, 1996, §65, p. 52)

[7] “Nem sempre o essencial e o inessencial estão claramente separados”. (Idem, § 62, p. 51).

[8] Da mesma forma, não definimos o que é um jogo quando queremos jogar algo, nem mesmo nos preocupamos em definir regras que cubram todos os casos que possam vir a surgir enquanto jogamos. Isso não nos impede de jogar, nem atrapalha nossa eventual diversão quando jogamos. Cf. Idem, § 68, p. 53.

[9] Este é o método explicativo que Wittgenstein usa para analisar os jogos de linguagem em Idem, §67, pp. 52-53. De maneira bastante didática, vemos em BAMBROUGH (apud STERN, 2004, p. 113), que o conjunto ABCDE pode ser entendido como um só conjunto, mesmo que só haja características comuns (a, b, c, d, e) entre ABCD (a) ABCE (b) ABDE (c) ACDE (d) BCDE (e), sem que uma só seja comum a todos. Trata-se de uma relação similar ao entrecruzamento de fibras de uma corda vegetal, como proposto em (GLOCK, 1998, p. 325)

[10] Poderia se dizer, de forma um pouco polêmica, que essa noção da formação do sentido da palavra através de seu uso revela-se constante no pensamento de Wittgenstein, já proposta, de certa forma, desde o Tractatus: “3.3. Só a proposição tem sentido; é só no contexto da proposição que um nome tem sentido.” (WITTGENSTEIN, 2020, p. 145). Para que se afaste a controvérsia, consideremos apenas escritos posteriores, em que tal ideia toma forma sem sombra de dúvida: “O sentido da expressão depende inteiramente do modo como a usamos. Não imaginemos o sentido como uma relação oculta que o espírito estabelece entre uma palavra e uma coisa, nem que esta relação contém a totalidade de usos de uma palavra, tal como se poderia dizer que a semente contém a árvore” (WITTGENSTEIN, 2018, p. 128).

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