Resumo: Baseado na Lei Complementar nº 95/1998, sua integração com a Lei de Introdução ao Código Civil e com o Código Civil Brasileiro, bem como nas determinantes de formação da teoria geral do Direito de Empresa, o presente estudo demonstra a vigência do decreto-lei nº 3.708/1919 que regula a constituição de sociedades por quotas de responsabilidade limitada e sua coexistência com os demais tipos societários alinhados pelo Código Civil Brasileiro e legislação especial. A justificativa de tal proposição se assenta no fato de que o tipo societário em questão, longe de estar ultrapassado, pela simplicidade de sua regulação, melhor atende aos interesses e necessidades das pequenas iniciativas empresariais. A relevância social é perceptível ante a eloquência dos números das micro e pequenas empresas no Brasil, para as quais, ainda mais, a racionalização de custos é fator determinante de sobrevivência, o que interessa a toda a sociedade em razão dos valores sociais que se agregam à empresa.
Palavras-chave: Sociedade Limitada; Vigência do Decreto-Lei n. 3.708/1919; Tipos Societários no Brasil.
Abstract: Based on Complementary Law nr 95/1998, its integration with Introductory Law to Civil Law and brasilian Civil Law, as well as on the formation determinants of Company Law general theory, the present essay demonstrate the effectiveness of decree nr 3,708/1919 which regulates the constitution of limited companies, and its coexistence with the other types of companies listed in the Brazilian Civil Law and special legislation. Justification of such proposition settles on the fact that the partnership type in question, far from being old-fashioned, due to its regulation simplicity, best answers the interests and necessities of small companies. Social relevance is perceptible in the face of the great number of micro and small companies in Brazil, to which, and most specially, costs rationalization is determining factor of survival. And this interests the whole society because of the social values added to the company.
Keywords: Limited Partnership; Duration of Decree Law 3.708/1919; Types of Companies in Brazil.
Sumário: Introdução. 1. Considerações gerais sobre as sociedades empresárias. 2. Tipos societários no Brasil atual. 3. A sociedade por quotas de responsabilidade limitada; 3.1- Breve histórico; 3.2- Conceito; 3.3- Generalidades. 4- A sociedade limitada no código civil brasileiro; 4.1- Necessidade de Nova Regulação; 4.2- Generalidades. 5- Regulação da sociedade limitada no Brasil atual. 6. Interpretação da cláusula de revogação do artigo 2.045 do Código Civil; 6.1- A Lei Complementar nº 95/1998; 6.2- A eventual aplicação do mecanismo da revogação fácita. 7- Vigência do decreto-lei nº 3.708/1919. Conclusão. Referências bibliográficas.
“No Direito está a única terapêutica adequada à crise social. No Direito. Não em falsas aparências dele.” Jacy de Souza Mendonça
INTRODUÇÃO
Considerando-se a dimensão das questões econômicas e sua importância nas sociedades contemporâneas[1], toda discussão acerca de aspectos que interfiram direta ou indiretamente no seu aperfeiçoamento é valiosa.
A proximidade da economia e do direito deve ser compreendida como sucessivas tentativas de aprimoramento de ambos para que cumpram aquilo a que se devem destinar: a promoção do ser humano.
Sob esse enfoque, é forçoso constatar que o papel da iniciativa privada na atualidade é fundamental na busca da harmonização social, tendo em vista que é em sua esfera que a empresa floresce, agregando valores sociais indispensáveis.
A diversidade de meios e formas com que o homem se estabelece em busca do lucro comporta os extremos dos conglomerados econômicos e da microempresa, bem como de toda a gama de possibilidades existente nesse largo.
Embora não seja possível – e nem prudente – desconsiderar a força do investimento vultoso de capital em iniciativas de grande porte, interessam-nos mais de perto as pequenas oportunidades de investimento, se não por outros motivos, pelo fato de representarem mais de noventa por cento das iniciativas empresariais no Brasil[2].
É sabido que os empreendimentos pequenos se desenvolvem revestidos dos formatos jurídicos de empresário individual ou de sociedade limitada[3], por ambos melhor se amoldarem às necessidades daqueles que investem nesse nível.
A limitação da responsabilidade representa importante estímulo ao investimento e, portanto, ao giro econômico.
Daí, uma vez adotado o tipo societário que permitia a proteção do patrimônio pessoal de todos os sócios, sem os embaraços da sociedade anônima, na Alemanha nos idos de 1892, rapidamente se difundiu pelo mundo.
De fato, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada se caracterizou, marcadamente, por aliar, num único tipo, a simplificação – que representa baixa onerosidade para o empreendedor – e a limitação dos riscos – o que interfere na racionalização dos preços finais dos produtos – e por isso se tornou tão popular.
Num país como o Brasil, no qual, de um lado, tem-se baixa taxa de escolarização e, de outro, um mercado de trabalho cada vez mais exigente, empreender é alternativa para a subsistência de milhares de famílias.
Sob essa ótica, quando a lei vem introduzindo complexidades desnecessárias – o que implica, imperativamente, em mais custos -, não cumpre seu papel de aperfeiçoar a sociedade e promover o ser humano.
Por isso nosso interesse em perquirir sobre a subsistência do tipo societário criado pelo decreto-lei nº 3.708/1919 – sociedade por quotas de responsabilidade limitada – a par da sociedade limitada dos artigos 1.052 a 1.087 do Código Civil Brasileiro. Mormente quando existe projeto de lei no Senado tencionando aproximar ainda mais a sociedade limitada do Código ao modelo da sociedade anônima. Este o problema a ser enfrentado nessa reflexão, que parte da hipótese positiva.
A singeleza daquela atende melhor ao interesse do universo de nano e microempresas existentes no país e, portanto, indiretamente, de toda a sociedade.
No momento em que se busca incentivar a regularização das pequenas iniciativas empresariais no país[4], é oportuno trazer a questão à tona, vez que a sociedade limitada como está no Código Civil Brasileiro, impõe gravames de difícil absorção para os pequenos, no nosso sentir.
O título do presente estudo remete ao artigo da lavra de Fábio Ulhoa Coelho[5] publicado na Revista do Advogado, ainda no ano em que se inaugurou a vigência do atual Código Civil.
A investigação do problema aqui levantado se justifica na necessidade de responder a questão posta e devolvê-la de modo satisfatório à sociedade brasileira, o que se buscará fazer da forma mais simples e objetiva possível.
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS
Os únicos tipos societários empresariais de relevância no Brasil são as sociedades limitada e anônima.[6]
O valor das sociedades empresárias está em que elas viabilizam iniciativas que não se concretizariam de modo individual, posto que as forças de uma única pessoa não seriam suficientes para lhes dar vida e mantê-las. Daí, a sua personalização.
Na atualidade, assim como o próprio direito de empresa, o sentido e a abrangência do direito societário superam a concepção liberal.
“Deve-se reconhecer ao direito societário a função de constituir um instrumento de implementação de políticas públicas que objetivem a consecução dos valores consagrados pelo ordenamento jurídico. Assim, não cumpre o direito societário apenas a disciplina dos chamados interesses intrassocietários (interesses dos sócios).” [7]
Tal realidade se baseia nos postulados constitucionais da regulação da ordem econômica, ilustrados pelos princípios gerais contidos no artigo 170 da Constituição da República.
O conceito de sociedade empresária está explícito no artigo 981 do Código Civil[8]. Assim, singelamente, teremos uma sociedade empresária quando duas ou mais pessoas congregarem capital e trabalho para o empreendimento de atividade econômica perseguindo lucro. Considera-se empresária a sociedade que exerça atividade própria de empresário e simples as demais, nos termos do artigo 966 e seu parágrafo único do Código Civil.
Desse modo, em nossos dias, a sociedade mercantil, comercial ou empresária pode ser conceituada como a pessoa jurídica de natureza privada que tem por objeto a exploração de atividade empresarial.
Há princípios que orientam o direito societário, como o da conservação da empresa, da defesa da minoria, da liberdade de contratar e autonomia da vontade, da legalidade[9].
A sociedade é a titular de direitos e deveres. Não se confunde com o estabelecimento, nem com a empresa, nem com a firma, nem com os sócios.
A formação da sociedade pressupõe uma identidade de intenções entre as pessoas que firmam o contrato social, ou seja, a reunião de pessoas em torno de objetivos econômicos. Em caso de dissolução, o patrimônio líquido da sociedade será rateado entre seus membros.
A sociedade empresária comporta três elementos para sua formação: a pluripessoalidade – que admite exceções -, o capital social e a affectio societatis.
No artigo 983 do diploma civil, está que a constituição da sociedade empresária deve se adequar a um determinado tipo societário – sociedade em nome coletivo, em comandita simples, limitada, anônima ou em comandita por ações[10] – conforme a conveniência dos sócios. Pode, ainda, ser uma sociedade em comum ou em conta de participação, que não são personificadas.
Historicamente, sabe-se que houve natural evolução das sociedades, ditada, gradualmente, pelas necessidades materiais da questão, como tudo no direito de empresa.
As sociedades empresárias podem ser classificadas quanto à natureza do ato constitutivo (contratuais ou estatutárias), quanto à composição econômica (de pessoas ou de capital) e quanto à responsabilidade dos sócios (responsabilidade ilimitada, limitada ou regime misto) [11].
2- TIPOS SOCIETÁRIOS NO BRASIL ATUAL
No Brasil, atualmente, os tipos societários se dividem em sociedades não-personificadas e sociedades personificadas.
As sociedades não-personificadas citadas no diploma civil podem ser de dois tipos: sociedade em comum e sociedade em conta de participação.
Os tipos societários personificados mencionados pelo Código Civil são: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade anônima e sociedade em comandita por ações.
Embora a legislação consagre diversos tipos de sociedades empresárias em nosso país, a verdade é que apenas três têm utilização e importância real: a sociedade em comum, a sociedade limitada e a sociedade anônima, estando os demais tipos em desuso[12].
Todavia, é preciso observar, com Luiz Antonio Soares Hentz [13], que a constituição de empresas se dá para atender as finalidades visadas pelo empreendedor e que há certa liberdade nesse ato, devendo-se permitir a adoção de sistemática que não corresponda a modelo legal conhecido:
“Embora essa prática, no Brasil, seja pouco utilizada – parece ao intérprete que o legislador esgotou as possibilidades -, nada obsta a criação por contrato de modelos específicos, mormente quando as formas típicas não atendem à necessidade vislumbrada. Basta que não se prejudique direitos de terceiros e que sejam obedecidos os preceitos estipulados para validade dos negócios jurídicos em geral. Trata-se de utilização da autonomia da vontade e do poder de contratar, obediente à forma, objeto e legitimidade dos contratantes.”
Em que pese o comando do artigo 983 do Código Civil[14], a permissão para a adoção de tipos societários inominados talvez melhor atendesse ao interesse do desenvolvimento econômico.
A exigência da adoção e menção de tipo societário no contrato social é feita para dar publicidade aos termos do contrato a fim de preservar interesses de terceiros.
Nesse ponto, percebe-se clara antinomia entre o contido no artigo 983 e nos artigos 2.045 e 2.037 do Código Civil: o legislador não menciona o decreto-lei nº 3.708/1919 como revogado no artigo 2.045 e dispõe, no artigo 2.037, que se devem aplicar as disposições de leis referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis não revogadas pelo código, aos empresários e sociedades empresárias, mas olvida-se de incluir a sociedade por quotas de responsabilidade limitada no rol do artigo 983, o que merece ser reparado.
No entanto, a adoção da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, cujas características são por demais conhecidas no meio empresarial brasileiro, nenhum prejuízo oferece, não afrontando as normas que disciplinam o registro de empresas (lei nº 8.934/1994, art. 35, I e decreto 1.800/1996, art. 32, II, d e art. 53, II, a), que exigem a menção ao tipo societário, mas não os restringem aos tipos do Código Civil.
Na prática, de há muito, os contratos sociais – que se referiam quase exclusivamente à sociedade por quotas de responsabilidade limitada – embora façam indicação do tipo societário, inserem cláusulas específicas aos interesses dos sócios, de acordo com as peculiaridades do negócio celebrado, que refogem, ampliam ou restringem as características legais do tipo adotado, o que atende perfeitamente sua finalidade, tanto do ponto de vista jurídico, como do fático. Essa, aliás, pode ser apontada como a principal vantagem do tipo.
Ademais, o Código Civil, longe de unificar o direito privado – e mesmo as obrigações – no país, respeitou, quanto à regulação do direito de empresa, sua característica de fragmentarismo, decorrente de seu caráter instrumental. Nem mesmo todo o direito societário está no Código, o que demonstra que ele se adequou de modo conveniente a sua qualidade de norma geral.
O fato da sociedade por quotas de responsabilidade limitada não constar do rol do artigo 983 não deve ser óbice para seu reconhecimento e utilização. O dispositivo não menciona os tipos da sociedade em comum e da sociedade em conta de participação e nem por isso o legislador civilista deixou de reconhecê-los e discipliná-los, como se vê nos artigos 986 a 996.
De modo distinto se dá com a antiga sociedade de capital e indústria, antes regulada nos artigos 317 a 324 do Código Comercial, em vista do comando do artigo 2.045 do Código Civil, que foi extirpada do ordenamento nacional como tipo societário.
3- SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
O tipo societário do decreto-lei nº 3.708/1919 angariou grande popularidade no país, sendo consagrado pelo uso maciço entre nós. Isso se deveu ao fato da legislação reguladora ser suficientemente aberta para acomodar as mais variadas necessidades dos empreendedores e suas empresas.
Certo que o decreto-lei, mesmo quando vigia solitário no ordenamento nacional, sofria críticas, das quais a mais acirrada parece ter sido de Fran Martins[15], apontando o laconismo da norma como defeito essencial. Em que pese a exiguidade do decreto, ele vem servindo bem aos propósitos a que se destina por mais de oito décadas sem jamais ter sofrido qualquer alteração. O que há de mais positivo no decreto 3.708/1919[16] é, justamente, a flexibilidade que possibilita aos empresários. Nelson Abrão[17], antes da aprovação do novo texto do Código Civil de 2002, já alertava para isso:
“Diante desse fato acentuado, aparecendo a sociedade limitada como modelo mais em voga, o texto deveria ser adaptado à realidade sem traumas ou mudanças substanciais, porque, em vez de refundir o substrato jurídico, caminharia a passos largos o legislador se procurasse libertar a empresa de preceitos rígidos ou proposições contrárias à vida societária (…)”.
Não há contrassensos em seu texto. E o volume de ações judiciais envolvendo sócios e sociedades por quotas de responsabilidade limitada não é, visivelmente, intenso, a justificar modificações que enrijeçam a sua prática e a operacionalidade. A eventual constatação de discrepância numérica quando do cotejo de ações judiciais envolvendo sociedades por quotas de responsabilidade limitada e demais tipos societários se explica facilmente em relação aos tipos menores por seu reduzido uso e em relação à sociedade anônima, além de utilização bem menor, por sua conformação de sociedade de capital.
Por evidente, quanto mais simples os atos e formalidades, menores custos se somam ao desenvolvimento da atividade empresarial. Daí decorre nosso interesse em demonstrar o vigor da sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
3.1- Breve Histórico
A criação da sociedade limita foi precedida de longa reflexão jurídica, para que se encontrasse o equilíbrio ideal entre as sociedades anônimas e as sociedades de pessoas. A iniciativa legislativa coube ao deputado alemão Oechelhaeuser, após a Revolução Industrial de 1870, como informa Nelson Abrão[18], remetendo a Jacques Hatt.
O legislador teve em mente uma espécie de sociedade individualista, que se aproximasse, na estrutura, da sociedade em nome coletivo, mas que dela se distinguisse pela redução da responsabilidade dos sócios à sua contribuição. A justificativa foi que as formas de sociedades de comércio em vigor, à época, não bastavam mais às necessidades econômicas: importava fazer penetrar o princípio da responsabilidade limitada, que se implantava com vigor irresistível na vida econômica, nas sociedades de base individualista, nas quais o capital e a inteligência – nas palavras do deputado – “entram em contato direto; a capital igual e a força humana igual, as sociedades individualistas produzem, sem contradita, valores superiores àqueles das sociedades coletivas.”[19]
Há certa polêmica na doutrina quanto à origem desse tipo societário, havendo autores que a ligam ao direito anglossaxônico[20]. Mas, a maioria da doutrina atual assenta a sua origem no tipo criado na Alemanha, tendo em vista que a private partnership equivalia à sociedade em nome coletivo, a limited partnership à sociedade em comandita e a private company nasceu da sociedade anônima[21], sendo dela uma variação, que permitiu a criação da modalidade da exempt private company, de estrutura familiar e reduzida, desobrigada de publicar balanços. O traço mais evidente de similaridade entre a private company e a sociedade limitada constava dos articles of association, prevendo cláusulas estatutárias que restringiam a transferência das ações e a sua subscrição pública[22].“O que se pode admitir apenas é que a private company guarda certa analogia com a sociedade limitada, não quanto ao aspecto essencial da maior atuação pessoal em relação à anônima, mas pelo fato de não apresentar certa abertura em face do número de sócios e do processo de subscrição das ações.” [23]
Parece-nos, assim, que a citada modalidade de company mais se aproxima da sociedade anônima de capital fechado do que da limitada, propriamente dita. No entanto, como tudo o mais, esse tipo societário é fruto de evolução social e a proposta alemã pode ter sofrido alguma influência do direito inglês. O projeto do Deputado Oechelhaeuser foi convertido em lei em 1892 e foi sendo, sucessivamente, aperfeiçoado, através de modificações legislativas. “De modo geral, porém, pode afirmar-se que a criação alemã de sociedade limitada propiciou ao mundo nova técnica jurídica para o desenvolvimento econômico” [24], refletindo-se em vários outros países, como, p.e.: Portugal, 1901; Áustria, 1906; Brasil, 1919 e França, 1925. A Itália a adotou em 1942, com seu novo Código Civil e na Espanha ela foi introduzida em 1953.
No Brasil, a novidade, rejeitada pelo Imperador, em 1867, foi incluída no projeto do Código Comercial elaborado por Herculano Marcos Inglez de Souza, em 1912, que não prosperou. Em 1918, o Deputado Joaquim Luiz Osório, inspirado em Inglez de Souza, apresentou o projeto de lei para a criação do tipo societário, que se converteu no decreto-lei nº 3.708, em 10 de janeiro de 1919.
3.2- Conceito
A sociedade por quotas de responsabilidade limitada é aquela formada por duas ou mais pessoas, cuja responsabilidade se restringe à integralização do capital.
Conforme já se disse, a sociedade por quotas passou a ser o tipo mais adotado no Brasil, pois é de simples formação, a responsabilidade fica restrita ao total do capital social, a operacionalização é menos custosa e dá maior liberdade aos contratantes, inclusive quanto à adoção do nome empresarial – firma social ou denominação, desde que seguidas da expressão limitada, por extenso ou abreviada, sob pena de se tornar a responsabilidade dos sócios ilimitada.
A nomenclatura adotada pelo decreto-lei n° 3.708/19, se nos afigura mais apropriada do que o simplismo sociedade limitada, conforme comentaremos adiante.
As sociedades por quotas de responsabilidade limitada têm papel relevante em nosso contexto econômico, como já atestado pelas estatísticas citadas, o que se deve às vantagens que cumula. No dizer de Geraldo Augusto de Almeida:
“Sendo, por exemplo, as sociedades por ações estruturas complexas que exigem amplos e custosos quadros funcionais, a disciplina normativa das (…) limitadas passou a ter uma importância cada vez mais acentuada. De início, as sociedades por quotas eram relativas a pequenas empresas e ainda exercem essa função, mas, hoje em dia, esse tipo de sociedade abrange um número imenso de agremiações, até chegarmos às holdings ou controladoras de grandes estruturas empresariais. E vemos até sociedades anônimas que se entrelaçam para formar complexos econômicos sujeitos a uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada.” [25]
A sociedade limitada é uma sociedade contratual, híbrida quanto a sua estrutura econômica e de regime de responsabilidade limitada para todos os sócios.
3.3- Generalidades
Segue-se uma visão panorâmica da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, de caráter meramente expositivo.
O decreto-lei nº 3.708 de 10 de janeiro de 1919, introduziu o tipo da sociedade por quotas de responsabilidade limitada no Brasil, somando-o aos tipos previstos nos artigos 295, 311, 315 e 317 do Código Comercial[26].
O conteúdo e a forma dos contratos da sociedade por quotas deviam se adequar ao estipulado nos artigos 300 e 301 do Código Comercial, por expressa remissão do decreto-lei. A menção ao fato de ser limitada a responsabilidade dos sócios à importância total do capital social é obrigatória no contrato, como peculiaridade desse tipo.
O decreto lhes facultou a adoção de firma ou denominação social. A firma, quando não individualize todos os sócios, deve conter o nome ou firma de um deles, devendo a denominação, quanto possível, dar a conhecer o objetivo da sociedade, devendo, em ambos os casos, o nome empresarial conter a palavra limitada. Em caso de omissão dessa declaração, os sócios gerentes e aqueles que fizerem uso da firma social serão tidos como solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais.
Não se permite sócios de indústria nesse tipo societário, ou seja, não se admite que a contribuição do sócio se constitua em serviços.
As quotas que um sócio venha a adquirir posteriormente à constituição da sociedade serão distintas das originalmente adquiridas.
Em caso de quotas possuídas em condomínio, os co-proprietários devem exercer em comum seus direitos em face da sociedade, designando entre si um representante para tal fim. Se, no entanto, não existir essa designação, os atos praticados pela sociedade em relação a quaisquer co-proprietários produzem efeitos contra todos, inclusive quanto aos herdeiros dos sócios. Os co-proprietários da quota indivisa respondem solidariamente pelas prestações que faltarem para completar o pagamento da mesma.
Na sociedade por quotas, faculta-se aos sócios a exclusão de sócio remisso. Isso se dará com a tomada das quotas pelos demais sócios ou sua cessão a terceiros, que passam a integrar a sociedade. De todo modo, é devido o pagamento ao proprietário primitivo das entradas por ele realizadas, deduzindo-se os juros da mora e outras prestações estabelecidas no contrato e eventuais despesas.
O decreto-lei permite que a sociedade adquira suas próprias quotas liberadas, desde que essa operação se faça com fundos disponíveis e sem ofensa do capital estipulado no contrato. A aquisição deve ser feita por meio de acordo dos sócios. Também é admissível na hipótese de exclusão de algum sócio remisso, quando se deverá manter intacto o capital social.
A limitação da responsabilidade dos sócios ao montante do capital social, bem se entende em caso de decretação da falência da sociedade. Nessa circunstância, apurando o administrador judicial da falência que o capital não chegou a ser completamente integralizado, todos os sócios respondem solidariamente pela parte que faltar. Se, no entanto, todo o capital foi integralizado, via de regra, não remanesce responsabilidade aos sócios.
Todavia, o recebimento de valores, dividendos ou quaisquer quantias pelos sócios, ainda que autorizados pelo contrato, feito com prejuízo ao capital social obriga a sua devolução.
A principal característica desse tipo é, justamente, a limitação da responsabilidade dos sócios. Tanto assim que os gerentes ou os que derem o nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.
Também enseja responsabilidade ilimitada – para aqueles que tenham votado favoravelmente – a deliberação de sócios que infringir o contrato ou a lei.
A nulidade do contrato social não exonera os sócios do pagamento de suas contribuições para o capital social, na parte em que tais prestações forem necessárias para cumprimento de obrigações contraídas.
O uso indevido da firma é ato de alta gravidade. Nesse casos, o decreto-lei expressamente faz menção ao cabimento de ação de perdas e danos, sem prejuízo da responsabilidade criminal, contra o sócio que usar indevidamente da firma social ou que dela abusar.
O uso da firma cabe aos sócios gerentes, nomeados no contrato social. Em caso de omissão contratual, todos os sócios dela poderão usar.
É licito aos gerentes delegar o uso da firma somente quando o contrato não contiver cláusula que se oponha a essa delegação. Tal delegação, contra disposição do contrato, dá ao sócio que a fizer pessoalmente a responsabilidade das obrigações contraídas pelo substituto, sem que possa reclamar da sociedade mais do que a sua parte das vantagens auferidas do negócio.
Os sócios gerentes podem ser dispensados de prestar caução pelo contrato social, o que normalmente ocorre, na prática.
Fiel ao princípio da aparência, as sociedades por quotas de responsabilidade limitada responderão pelos compromissos assumidos pelos gerentes, ainda que sem o uso da firma social, se as obrigações tiverem sido contraídas em seu nome ou proveito, nos limites dos poderes da gerência.
Aos sócios que divergirem de alteração do contrato social assiste a faculdade de retirada da sociedade, mediante o reembolso da quantia correspondente ao seu capital, na proporção do último balanço aprovado, do que devem ser deduzidas as prestações correspondentes às quotas respectivas, no que for necessário ao pagamento de obrigações contraídas, até a data do registro definitivo da modificação do contrato social.
Ao regime das sociedades por quotas de responsabilidade limitada devem-se aplicar, subsidiariamente, as disposições da lei das sociedades anônimas, no que for compatível.
4- A SOCIEDADE LIMITADA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
O Código Civil de 2002 vem regulando a sociedade limitada nos artigos 1.052 a 1.087, com algumas impropriedades, no entendimento de estudiosos[27], tendo em vista que cria formalismo excessivo e custos desnecessários e que seu texto final foi aprovado desconsiderando recomendações de especialistas[28], tais como: adoção do nomen juris sociedade de responsabilidade limitada; realização mínima imediata de dez por cento do capital inicial da sociedade; permissão de sociedade entre cônjuges; não aplicação das normas da sociedade simples como fonte subsidiária; permissão da unipessoalidade superveniente por um ano e valor uniforme das quotas, entre outras.
4.1- Necessidade da Nova Regulação
Primeiramente, é fundamental perscrutar da exposição de motivos do Código Civil Brasileiro de 2002[29] as razões para que o diploma em questão se ocupasse do tipo.
A matéria de direito societário nos trabalhos da comissão organizadora ficou a cargo de Sylvio Marcondes Machado, que buscou fazer uma “revisão dos tipos tradicionais de sociedade”, ou seja, procurou examinar cuidadosamente[30] o tema, para dar configuração mais técnica à sociedade empresária, em função das características que a atividade empresarial assume no mundo contemporâneo[31].
A resposta à indagação do motivo que determinou a inclusão de uma sociedade limitada no Código, que menciona uma disciplina mais elaborada para a sociedade limitada, mais detalhada, facultando a constituição de órgãos complementares de administração, se centra na justificativa da previsão desse tipo para “a constituição de entidades de maior porte do que as atualmente existentes” [32].
Há completo silêncio em relação ao decreto-lei nº 3.708/1919. Não há qualquer referência à eventual obsolescência ou imprestabilidade da sociedade por quotas que obrigaria a sua substituição por inovadora regulação. Apenas existe a indicação já citada da aplicação do novo tipo aos empreendimentos de maior porte, que passam a desempenhar função cada vez mais relevante no setor empresarial, “sobretudo em virtude das transformações por que vêm passando as sociedades anônimas.” [33]
De fácil percepção, portanto, que o fato de existir regulação de uma sociedade limitada no Código Civil não implica em automática e necessária invalidação da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, que bem continua a se prestar aos empreendimentos de menor porte.
Nessa esteira, a legislação civilista, ao disciplinar a sociedade limitada, buscou um meio termo entre a sociedade do decreto-lei nº 3.708/1919 e a sociedade anônima. A sociedade limitada do Código é indicada para aqueles investidores de maior porte que não queiram assumir o peso da constituição e manutenção de uma sociedade anônima. Chega a ser uma simplificação da sociedade de capital fechado.
Confirma esse sentir a existência do projeto de lei SF PLC 118/2007[34], de autoria do Deputado Luis Carlos Auly, cujo parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania assim se expressa sobre os objetivos da alteração:
“primeiro, reformular diversas normas que regem a sociedade limitada e algumas que regem a sociedade anônima, a fim de aproximar a sociedade limitada à natureza de sociedade híbrida e/ou de capitais, nas quais a relação entre sócios é de natureza impessoal e o sócio detentor do maior número de quotas controla a sociedade. Com as mudanças propostas, visa o PLC nº 118, de 2007, afastar a sociedade limitada da natureza de sociedade de pessoas, pela qual os sócios são escolhidos em caráter personalíssimo e os sócios minoritários possuem poderes quase idênticos aos do sócio majoritário.”[35]
Repita-se: em nenhum momento se encontra no Código Civil e em sua exposição de motivos a reprovação da sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Reforça-se a vocação da sociedade limitada do código para empreendimentos de maior porte.
4.2- Generalidades
A intenção da lei civil de aplicar a sua sociedade limitada a iniciativas de maior porte, num tipo societário mais aproximado da sociedade anônima, fica bastante clara quando se olha para os dispositivos dedicados ao novo tipo societário[36].
Com relação ao nome adotado para o tipo, tecnicamente, o termo deixa a desejar, posto que uma sociedade possa ser limitada em vários aspectos: limitada a determinados tipos de objeto social, limitada quanto ao número total dos sócios, limitada quanto à responsabilidade dos sócios, limitada quanto ao montante do capital social, limitada quanto ao número de filiais, etc..
Teria sido salutar a preocupação técnica na elaboração legislativa a menção, pelo menos, à responsabilidade, para que o nome correspondesse inequivocamente ao tipo, como é comum no direito estrangeiro[37].
De modo geral, as modificações introduzidas na sociedade limitada pelo Código dificultam sua operacionalização, especificamente no sentido de exigir maior formalização nas deliberações sociais, o que representa, obviamente, maiores custos.
O código trata a sociedade limitada em oito seções: disposições preliminares, das quotas, da administração, do conselho fiscal, das deliberações dos sócios, do aumento e da redução do capital, da resolução da sociedade em relação a sócios minoritários, da dissolução.
Aproveitam-se da sociedade por quotas de responsabilidade limitada os pontos relativos ao montante da limitação e solidariedade entre os sócios pela integralização do capital social; a proibição de sócios de indústria; a adoção de firma ou denominação como nome empresarial; a indivisibilidade de quotas em relação à sociedade; a exclusão do sócio remisso; a responsabilização do administrador que excede poderes; a responsabilização dos sócios por deliberações contra legem ou com infração ao contrato.
A seguir, listam-se as principais disposições atinentes ao tipo societário em comento.
As disposições preliminares indicam o limite da responsabilidade dos sócios e sua solidariedade e a legislação de aplicação supletiva, além de se referir ao conteúdo do contrato social.
O capital será fracionado em quotas de valor igual ou desigual e poderá ser integralizado em bens, criando-se solidariedade entre os sócios pela estimativa de valor dos mesmos.
A cessão de quotas para sócio é livre, se de outro modo não dispuser o contrato; mas, para terceiros exige a aprovação de três quartos do capital social. Os efeitos da cessão dependem de averbação no Registro Público de Empresas, nos termos do artigo 1.003.
A não integralização de quota dá aos demais sócios a faculdade de exclusão do sócio remisso, com pagamento de haveres, cuja participação poderá ser absorvida pelos demais membros ou transferida a terceiro.
A distribuição de lucros ou a retirada de quantias pelos sócios com prejuízo do capital obriga à devolução.
A designação da administração pode recair sobre sócios e não sócios e pode ser feita no contrato social ou em instrumento apartado, que deverá ser averbado ao registro da sociedade na Junta Comercial. Os poderes conferidos a todos os sócios no contrato não se estendem àqueles que venham a integrar a sociedade posteriormente. Essa atribuição deverá ser expressa na alteração contratual. Há peculiaridades a serem observadas na nomeação de não sócio como administrador e na nomeação em instrumento separado.
A destituição do administrador pode se dar em decorrência do prazo estabelecido na nomeação ou por deliberação de sócios, o que exigirá quórum especial se se tratar de sócio administrador. A cessação do exercício do cargo deve ser averbada no Registro Público. A renúncia do administrador produz efeitos contra a sociedade a partir da comunicação escrita e contra terceiros, a partir da averbação.
Como em qualquer sociedade, o uso da firma ou denominação é privativo daqueles que detenham os poderes de administração.
Após encerrado o exercício anual, o administrador deve levantar os balanços e inventário da sociedade, para que a prestação de contas se faça em assembleia ordinária.
É prevista a faculdade dos sócios de instituírem, no contrato, um conselho fiscal a ser integrado por eles, bem como por terceiros estranhos à sociedade. A lei estabelece o número mínimo de três membros para tal órgão e os impedimentos para o cargo; prevê a representação especial de minoritários; remete a questão da remuneração à assembleia geral; elenca as atribuições; equipara a responsabilidade de seus membros à dos administradores e permite a eventual assistência de um perito contador.
Quanto à deliberação dos sócios, o Código enumera a matéria atinente, sem prejuízo do estabelecido no contrato social ou na lei, bem como quórum necessário à aprovação. Também se ocupa o Código de estabelecer os modos de deliberação e seus necessários detalhamentos: assembleia geral, reunião de sócios ou por escrito. O sócio dissidente terá direito de retirada, em trinta dias, nos casos de modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra. As deliberações que infrinjam a lei ou o contrato acarretam responsabilidade ilimitada para os que as aprovaram.
A lei se ocupa também do aumento ou diminuição do capital social. A elevação ou redução será possível desde que integralizado todo o capital constante do contrato e obriga à sua modificação. No aumento, a preferência será dos sócios, na proporção de suas participações. A redução se dará em caso de perdas irreparáveis ou excesso de capital e a ela poderá se opor o credor quirografário.
Quando um ou mais sócios minoritários estiverem pondo em risco a continuidade da empresa, por atos de inegável gravidade, os demais sócios, em maioria, poderão deliberar pela sua exclusão em assembleia especialmente convocada, dando-se ciência aos acusados, em tempo hábil para comparecimento e defesa. A exclusão se dará mediante alteração do contrato social e obrigará ao pagamento de haveres.
Por derradeiro, a lei enumera as causas de dissolução da sociedade limitada, remetendo aos motivos de dissolução da sociedade simples.
5- REGULAÇÃO DA SOCIEDADE LIMITADA NO BRASIL ATUAL
De acordo com o que foi mencionado, a sociedade limitada encontra-se regulada nos artigos 1.052 a 1.087 do Código Civil. Supletivamente, em caso de omissão legal, o artigo 1.053 prevê a adoção facultativa das normas aplicáveis às sociedades simples ou às sociedades anônimas, o que fica a cargo dos sócios determinar em seu contrato social.
Desse modo, se o contrato social nada mencionar, as regras de aplicação complementar serão as aplicáveis às sociedades simples. Podem, também, os sócios, é claro, consignar no contrato social a expressa menção à aplicação subsidiária das normas da sociedade simples à sua sociedade limitada.
Com tal abertura, o legislador acabou por criar dois subtipos societários para a limitada, o que não contribui para a harmonização do regime do tipo societário; ao contrário, como segue nas cuidadosas observações de Marlon Tomazette[38]:
“Em primeiro lugar, o ideal seria que a sociedade limitada possuísse toda uma regulamentação própria, não necessitando do socorro de nenhuma legislação supletiva. Em segundo lugar, as normas sobre as sociedades simples nem sempre se adequam à velocidade das relações empresariais da atualidade, na medida em que não foram feitas para disciplinar as sociedades empresárias.
Ora, as sociedades simples não se destinam ao exercício de atividade empresarial, ao contrário das sociedades limitadas que exercem basicamente tal tipo de atividade. Assim sendo, é um contra-senso buscar nas sociedades simples soluções, para as sociedades limitadas. Melhor seria a inexistência de remissões ou ainda a remissão simplesmente à lei de sociedades anônimas, que melhor se coaduna com a natureza das atividades desenvolvidas na limitada.
Além disso, a dualidade de regimes legislativos da sociedade limitada é extremamente perigosa, pois pode gerar uma grande insegurança, sobretudo no que diz respeito às relações da sociedade com terceiros, matéria esta que não está sujeita a disciplina pelos sócios, nem é disciplinada especificamente em relação às limitadas, e possui tratamento diverso nas sociedades anônimas e nas sociedades simples.”
Fábio Ulhoa Coelho propõe diferenciar os tipos de sociedade limitada pelas designações de sociedade de vínculo instável e sociedade de vínculo estável[39].
É que no entendimento do autor citado se a legislação supletiva for a da sociedade simples, é possível que o sócio se utilize da faculdade de retirada imotivada, trazida no artigo 1.029 do Código Civil, daí a instabilidade do vínculo societário, que pode ser rompido a qualquer tempo por qualquer dos sócios, extrajudicialmente ou na justiça, se a sociedade for constituída a prazo certo. De modo diverso, se a legislação supletiva for a aplicável às sociedades anônimas, o sócio não tem a faculdade de se retirar da sociedade a não ser em caso de justo motivo, os quais vêm discriminados no artigo 1.077 do Código Civil (alteração contratual, fusão, incorporação), posto que a lei escolhida para a regência supletiva não prevê exercício de direito de retirada imotivada, daí ser esse vínculo societário mais estável[40].
Essa visão é bastante pragmática e útil e há que se reconhecer certa complexidade doutrinária à questão.
A opção pela legislação supletiva terá implicações diversas na vida societária, tais como as relacionadas abaixo:
Todavia, a rigor, na atualidade, como vimos sustentando, em harmonia com o teor do artigo 2.045 do Código Civil[41], temos, hoje, na verdade, três regimes distintos para a sociedade limitada no Brasil: os dois acima citados, dependo da legislação de aplicação supletiva e a do decreto-lei 3.708/1919.
Essa a proposta da presente tese.
Admitindo-se a hipótese defendida, recapitulando, há três regimes da sociedade limitada no Brasil, atualmente. O da sociedade limitada regida pelo Livro II, Título II, Subtítulo II, Capítulo IV, do Código Civil e, supletivamente, pelo Capítulo I do mesmo Subtítulo (sociedade simples); o da sociedade limitada regida pelo mesmo Capítulo IV, do Subtítulo II, do Título II do Livro II do Código Civil, mas supletivamente regido pela lei 6.404/76 (sociedade anônima) e a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, regida pelo decreto-lei nº 3.708/1919.
6- INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA DE REVOGAÇÃO DO ARTIGO 2.045 DO CÓDIGO CIVIL
No artigo 2.045 do Código Civil, que data de 2002, o legislador, para obedecer ao comando da Lei Complementar nº 95, fez expressa menção à revogação do Código Civil anterior, lei nº 3.071/1916, e da Parte Primeira do Código Comercial, lei nº 556/1850. Contudo, silenciou a respeito da revogação do decreto-lei nº 3.708/1919, o que leva ao entendimento de que ele está vigente e, portanto, convivendo com os outros dois regimes da sociedade limitada, como citado.
À primeira vista, pode parecer uma afirmação esdrúxula ou uma excrescência jurídica, tendo em vista que o Código Civil, além de sua magnitude, é lei posterior que, por haver tratado de sociedades empresárias, teria revogado a anterior.
Todavia, não é despropositado sustentar em sentido contrário. E é a própria legislação que nos leva a concluir nesse sentido, bem como a motivação do Código para a nova sociedade limitada. Vejamos.
6.1- A Lei Complementar nº 95/1998
A pouco conhecida Lei Complementar nº 95 de 26 de fevereiro de 1998, com alterações determinadas pela Lei Complementar nº 107 de 26 de abril de 2001, dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do artigo 59 da Constituição da República, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona[42].
A partir de sua entrada em vigor, o que se deu em 28 de maio de 1998, com alterações que passaram a viger em 27 de abril de 2001, todas as iniciativas legislativas no país a ela devem se submeter. Não se trata de mera indicação legal: seu conteúdo tem caráter regulamentador, de acordo com seu artigo 1º, que textualmente prescreve que “a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto [naquela] Lei Complementar.”
Muito bem.
O inciso III do seu artigo 3º [43], menciona que a parte final de toda lei deverá ser destinada a conter, entre outras disposições, a cláusula de revogação, quando couber.
Em seu artigo 9º a lei traz o comando que nos interessa diretamente nesta reflexão: “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.”
Perceba-se que, mesmo quando da consolidação de leis, na qual se integrem todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal, as leis incorporadas à consolidação devem ser revogadas formalmente, ainda que sua matéria e, até, redação se mantenham no texto incorporado. Essa é a determinação expressa do parágrafo primeiro do artigo 13[44].
Ainda que se preserve o conteúdo normativo original dos dispositivos consolidados, é necessária declaração expressa de revogação de dispositivos implicitamente revogados por leis posteriores (art. 13, § 2º, XI). E mais: As providências a que se referem os incisos IX, X e XI do § 2o do artigo em comento deverão ser expressa e fundadamente justificadas, com indicação precisa das fontes de informação que lhes serviram de base.
Isto posto, constatado que o artigo 2.045 do Código Civil não menciona expressamente o decreto-lei nº 3.708/1919, embora mencione a lei nº 3.071/1916 e a Parte Primeira da lei nº 556/1850, em consonância com a Lei Complementar n º 95, depara-se com a situação de vigência, portanto, do decreto-lei.
Note-se que não se trata de um dispositivo isolado e inserido de modo obscuro em alguma das milhares de manifestações legislativas do país, de difícil localização. Ao contrário: o decreto-lei nº 3.708/1919 é conhecidíssimo e estava sozinho a regular o tipo societário maciçamente utilizado no país. Por certo, o legislador não o desconhecia, do que decorre que se não foi revogado expressamente, de acordo com os comandos da Lei Complementar nº 95, está em vigor.
A isso se adicione o teor do artigo 2.037[45].
6.2- A Eventual Aplicação do Mecanismo da Revogação Tácita
Em razão do diploma complementar citado, destinado a regular a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, abre-se campo para sustentar que a revogação tácita perdeu sua força entre nós: a partir da Lei Complementar nº 95, apenas se admite a revogação expressa de lei ou dispositivo.
No entanto, não é demais ensaiar sobre a hipótese da revogação tácita do decreto-lei nº 3.708/1919 em razão do advento do Código Civil. Ao contrário, esse exercício se mostra salutar à construção da presente tese.
A Lei de Introdução ao Código Civil, decreto-lei nº 4.657/1942, consagra o princípio da continuidade das leis[46], se não se tratar de lei temporária ou se não houver revogação.
A matéria vem tratada no artigo 2º da LICC, que estabelece, em seu parágrafo primeiro, os critérios de revogação: “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” Assim, a revogação se dá sempre por lei posterior, em três hipóteses distintas. A primeira trata da revogação expressa e não oferece, no mais das vezes, dificuldades ao intérprete. É o que fez o legislador, p.e., do Código Civil no artigo 2.045.
As duas hipóteses seguintes cuidam da revogação tácita, que ocorreria em caso da lei posterior ser incompatível com a lei anterior ou no caso de regular inteiramente a matéria da lei anterior.
São essas as hipóteses que agora nos importam, vez que, pelo primeiro critério, conclui-se pela vigência do decreto-lei nº 3.708/1919, já que não existe declaração de revogação.
Na percuciência de Caio Mário da Silva Pereira[47], a revogação tácita ou indireta é a mais delicada, pois sujeita a sutilezas. Recomenda o autor que, nesse caso, é preciso averiguar, “em face da nova manifestação da vontade da lei, se houve o propósito de abolir disposição legal anterior, ou se existe a intenção de conservá-las coexistentes” [48], remetendo a Roberto de Ruggiero, segundo o qual, é fundamental a investigação da vontade do legislador, como forma de se alcançar a vontade da lei[49].
A interpretação da norma é a busca de seu sentido e valor, que fica a cargo da doutrina e da jurisprudência – embora se fale da interpretação autêntica. Daí a importância de perquirir-se a vontade da lei, por meio da vontade do legislador, para se chegar aos motivos que determinaram o preceito, os fins a que ele tende e a ocasião em que se emanou. [50] “O motivo da norma (…) reside na necessidade humana que a norma protege e no fim que esta se propõe: motivo e fim que estão intimamente ligados e entre os quais deve haver, pois, uma correspondência harmônica.” [51]
Examinemos a hipótese da incompatibilidade entre lei anterior e lei posterior.
Não é logicamente aceitável sustentar disposições contraditórias acerca de um mesmo assunto, o que acarretaria incerteza. Não é admissível que o legislador, sufragando uma contradição material de seus próprios comandos, adote uma atitude insustentável. Quando o legislador tenha manifestado vontade contraditória, o melhor ensinamento está em que deva prevalecer a mais recente. Portanto, nem toda lei posterior derroga a anterior, senão quando uma incompatibilidade se erige dos seus dispositivos[52].
“As disposições não podem coexistir, porque se contradizem, e, então, a incompatibilidade nascida dos preceitos que disciplinam diferentemente um mesmo assunto, impõe a revogação do mais antigo. Aqui é que o esforço exegético é exigido ao máximo, na pesquisa do objetivo a que o legislador visou, da intenção que o animou, da finalidade que teve em mira, para apurar se efetivamente as normas são incompatíveis, se o legislador contrariou os ditames da anterior, e, em conseqüência, se a lei nova não pode coexistir com a velha, pois, na falta de uma incompatibilidade entre ambas, viverão lado a lado, cada uma regulando o que especialmente lhe pertence.” [53]
No caso enfocado, normas de mesma hierarquia, não há incompatibilidade entre o disposto no Código Civil e no decreto-lei.
Essa conclusão está fundamentada em dois fatos: primeiro, a vontade do Código Civil não foi revogar o decreto-lei e extirpar a sociedade por quotas de responsabilidade limitada. A uma, porque não o fez expressamente quando deveria tê-lo feito no artigo 2.045, no capítulo destinado à regular a sociedade limitada ou no artigo 2.037. A duas, porque sua exposição de motivos deixa claro que a intenção da inserção desse tipo societário era voltar-se para os empreendimentos de maior porte, apresentando alternativa ao modelo da sociedade anônima – tanto que desta se aproxima -, silenciando por completo em relação à sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
O outro fato importante é a compatibilidade das legislações e dos tipos societários. A sociedade limitada se volta para empresas de maior porte; a sociedade por quotas de responsabilidade limitada melhor se ajusta às pequenas iniciativas empresariais. Ademais, o confronto dos dispositivos constantes de ambas as regulações mostra não haver incompatibilidade. Há dispositivos que se equivalem, mas que correspondem ao estabelecido na teoria geral das sociedades. Há dispositivos distintos, que são os diferenciadores da destinação dos tipos societários, ou seja, apresentando maior ou menor proximidade com a sociedade anônima. Mas não se constata dispositivos incompossíveis.
Para facilitar a constatação, segue quadro demonstrativo:
Do cotejo dos dispositivos de ambas as regulações, não só se evidencia a coexistência dos tipos societários em razão da compatibilidade, como também é perceptível a não ocorrência da última figura do parágrafo primeiro do artigo 2º da LICC: matéria inteiramente regulada pela lei nova.
O que se constata, na verdade, é a diversidade de regulação, embora ambas tratem de regular tipo societário que prevê limitação da responsabilidade dos sócios, cada qual tem sua peculiaridade. A matéria societária não foi esgotada no Código. E nem mesmo o assunto sociedade limitada.
O caso se subsume inteiramente ao que estabelece o parágrafo segundo do mesmo artigo da LICC: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”
É justamente esse o caso do decreto-lei nº 3.708/1919 e dos artigos 1.052 a 1.087 do Código Civil.
Essa certeza se reforça no contido no artigo 2.037 do Código, já mencionado: “salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis.” E não há disposição em contrário no caso, ou seja, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada soma-se aos tipos societários enumerados no Código Civil e na legislação em vigor.
Atente-se para o fato de que já no decreto-lei nº 3.708/1919 a sociedade por quotas de responsabilidade limitada foi considerada em paralelo aos tipos societários do Código Comercial[54]. Por isso, também não se lhe aplica a regra da revogação tácita por dependência. O decreto-lei não decorreu do Código: é legislação autônoma.
Relembre-se que toda norma existe para atender a uma necessidade humana e tem uma finalidade. A disciplina da sociedade limitada não atende necessidade humana coincidente à atendida pela sociedade por quotas, tendo cada qual a sua finalidade.
Demais disto, com o disciplinamento da sociedade limitada no Código não é feito de maneira abrangente e completa, não só em virtude da previsão de supletividade de regulação – o que seria desnecessário, já que se trata de um diploma novo e geral, que, se fosse sua intenção, poderia regular o assunto de modo completo – como também pelas expressas remissões que faz a artigos de outro Capítulo do Título [55], além de silenciar sobre diversos aspectos do decreto-lei nº 3.708/1919, como exposto.
Assim, coexistem as sociedades limitadas – de vínculo instável e vínculo estável – e as sociedades por quotas de responsabilidade limitada.
As peculiaridades dessa última em relação à sociedade do Código se encontram, basicamente, nos seguintes aspectos: ausência de regulação da cessão de quotas; possibilidade de aquisição de quotas pela própria sociedade; responsabilidade solidária dos gerentes em caso de excessos ou infrações à lei e imputação de perdas e danos e responsabilidade criminal em caso de mau uso no nome empresarial; nomeação do gerente no contrato social; possibilidade de exigência de caução aos gerentes; a extensão dos poderes de gestão aos sócios ingressantes, quando a administração é comum a todos; matéria, quóruns e formas de deliberação podem ser livremente estabelecidos pelos sócios no contrato; vigência da teoria da aparência para obrigações assumidas em nome da sociedade; liberdade para aumento e diminuição de capital; não exoneração dos sócios em caso de nulidade contratual em face de obrigações assumidas pela sociedade.
7- VIGÊNCIA DO DECRETO-LEI Nº 3.708/1919
Dos argumentos expostos, é forçoso constatar a vigência do decreto-lei nº 3.708/1919, já que o legislador não o revogou expressamente, não é aplicável ao caso a revogação tácita e existe a necessidade humana a justificar sua manutenção. Não há força contrária a derruir seu vigor.
Longe de representar prejuízos, a tese levantada representa ganhos, tanto do ponto de vista da lei do progresso social como em relação ao princípio da estabilidade social[56]. A utilização da sociedade por quotas de responsabilidade limitada responde às necessidades das micro e das pequenas empresas, que contribuem, significativamente, para o aquecimento da economia nacional, ocupando importante espaço na busca do pleno emprego (art. 170, VIII, CR) e demais vetores sociais. Além disso, também concorre para a segurança e estabilidade social, vez que, além de manter o tipo societário mais testado e difundido no país, ainda permite a racionalização de custos.
Pela comparação feita, é sensível a aproximação da limitada à anônima, devido aos fins a que se destina, evidenciando-se a coexistência pacífica da sociedade limitada e da sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
Essa proposta se mostra atual, tendo em vista que, após o advento do Código Civil de 2002, foi suspensa a utilização do tipo sem nenhuma reflexão mais acurada sobre o assunto e urge restabelecer-lhe o uso. Os prejuízos dessa interrupção só serão, talvez, mensuráveis em longo prazo, podendo traduzir-se no desincentivo para pequenos investidores ou no incremento dos números da economia informal.
A sociedade limitada do Código, bem se constatou, destina-se a empreendimentos de maior parte. Além disso, não se presta a diminuir a incidência de conflitos entre sócios e não previne o uso da justiça. Ao contrário: os artigos 1.030, 1.035, 1.036, parágrafo único, entre outros, aplicáveis à limitada, remetem as soluções ao Judiciário. Além do mais, a previsão de que as deliberações sociais devem ser tomadas por assembleia ou reunião de sócios aumenta o potencial de conflitos a respeito das formalidades a serem seguidas nesses casos, abrindo campo para o ajuizamento de demandas judiciais[57].
A asserção que ora se faz está em harmonia com os postulados mais básicos do direito de empresa, respeitando suas características, seus princípios e seu método. Ajusta-se ao seu caráter instrumental, dinâmico, ágil, simples e fragmentário; honra a autonomia da vontade, o livre estabelecimento, a propriedade, a observância de usos e a legitimidade do lucro; está perfeitamente adequada à forma indutiva de sua organização.
Se pareceu, num primeiro momento, que a sociedade limitada do Código veio para substituir a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, após as reflexões feitas, cumpre o intérprete a sua missão, demonstrado a viabilidade da proposição.
“Não se julgue, porém, que com isso se quer dizer que esta investigação positiva e teleológica autorize o intérprete a não aplicar e modificar a seu arbítrio a norma, quando ela se lhe afigure não correspondente à novas necessidades ou às tendências mudadas da sociedade. Significa tão-somente até onde, sem hipocrisias ou artifícios, as palavras do preceito – considerado no complexo da legislação vigente – podem ser suavizadas na sua aplicação, de modo a que o mesmo preceito esteja mais de acordo com o sentimento geral da época e com a nova orientação da consciência social. E tanto mais o intérprete está autorizado a ter em conta o que se disse, quanto mais se constate a penetração desses sentimentos novos na legislação (…).” [58]
Os sentimentos gerais a que se refere o doutrinador, no caso em estudo, são o da simplificação de atos, o da racionalização de custos, o da preservação e estímulo à atividade empresarial, que tem permeado a legislação nacional[59], em especial, de incentivo à microempresa e à empresa de pequeno porte.
O único entrave legal que poderia ser oposto seria o teor do artigo 983 do Código Civil, que enumera os tipos societários. Mas, ao que tudo indica, a legislação exprimiu menos do que se quis. E, então, o trabalho científico está autorizado a aconselhar reforma ao legislador.
Enquanto a modificação do dispositivo não ocorre, é lícito aos interessados, ante recusa do Registro Público de Empresas em arquivar atos constitutivos de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, invocar o acatamento de seu direito via mandado de segurança. Diante da antinomia real existente entre o artigo 983 e os artigos 2.037 e 2.045 do Código, é admissível que o Judiciário, como Poder de Estado, corrija tal distorção, com fundamento no artigo 5º da LICC: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
Sendo assim, sem trauma, devem ser aplicadas à constituição e dissolução das sociedades reguladas pelo decreto-lei 3.708/1919 as regras do Código Civil, já que, anteriormente à revogação da Parte Primeira do Código Comercial eram suas as regras aplicadas às sociedades por quotas e estão na esfera de interesse da teoria geral das sociedades.
Na prática, desde a introdução desse tipo societário entre nós, as partes se encarregam de esgotar as normas diretivas no próprio contrato social. Em havendo lacunas, aplicam-se as normas da sociedade anônima compatíveis e, na incompatibilidade, as regras gerais do direito societário, como sempre se fez.
Deve ser faculdade dos interessados a escolha do diploma que melhor se amolde ao caso concreto, quando da constituição da sociedade.
CONCLUSÃO
Retomando as constatações do presente estudo, chega-se à conclusão de que o advento do Código Civil de 2002 não autoriza o entendimento de revogação do decreto-lei nº 3.708/1919: não há cláusula expressa de revogação, não há contrariedade entre tais regulações e não há esgotamento da matéria no capítulo do Código em que se regula a nova limitada. Há, antes, a declaração da exposição de motivos da lei civil de que a limitada do Código se destina a empreendimentos de maior porte e a ressalva do artigo 2.037 de aplicação de lei não revogada referente a sociedades empresárias. A hipótese inicial, portanto, se confirma, bem como corrobora nosso sentir inicial de que a sociedade por quotas de responsabilidade limitada melhor atende às pequenas iniciativas empresariais, administradas de maneira mais simplificada e, em geral, com poucos recursos. É preciso não olvidar o contexto empresarial do país, na atualidade, que revela a existência de mais de noventa por cento de micro e pequenas empresas[60]. Ademais, esse posicionamento está em sintonia com o comando constitucional de incentivo às pequenas iniciativas empresariais, contidas no artigo 170, IX, que lhes confere direito a tratamento favorecido.
Neste contexto, a impressão de revogação do decreto-lei se origina no teor do artigo 983 do Código que não arrolou a sociedade por quotas de responsabilidade limitada como um dos tipos da sociedade empresária, o que se identifica como antinomia jurídica, devendo ser corrigida, senão legislativamente, pelo Judiciário, se chamado a agir. O artigo 983 é o único empecilho jurídico que se vislumbra em contrário à proposta deste estudo. Contudo, não é suficiente para esvaziar a validade do decreto-lei. A relevância da sociedade por quotas no cenário brasileiro exigiria comando direto de revogação, não sendo o teor do artigo 983 suficiente para invalidá-la.
Existe simetria entre a tese elaborada nesse estudo e a teoria geral do direito de empresa, do direito societário e seus históricos.
Embora passados oito anos de vigência do Código, é certo que a situação não se acomodou a contento na sociedade. Há uma enormidade de pequenos empreendimentos e iniciativas para os quais a posição ora sustentada representa vantagem necessária à viabilidade da empresa.
Medidas que não representem incentivos ao investimento em produção precisam ser avaliadas com muita parcimônia, devendo ser aplicadas em situações extremas em que é lícita a intervenção estatal para corrigir rumos da economia nacional, o que não é o caso.
O desestímulo ao empreendedorismo – aqui nos referimos, em especial, às pequenas iniciativas – traz prejuízo social, na medida em que abate fonte de diversos agregados sociais, empurrando os empreendedores ao informalismo, conforme foi dito, tornando mais distante a consecução dos objetivos nacionais.
É tendência mundial incentivar as pequenas iniciativas. Não é prudente andarmos na contramão.
Por derradeiro, registre-se que a tese defendida não destoa do objetivo de “assegurar o pleno desenvolvimento de nossa vida empresarial”, como consta da exposição de motivos do próprio Código Civil. Ao contrário.
Doutora em Direito pela PUC-SP, Mestra em Direito pela UNIMEP, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUCCAMP, Professora Adjunta da PUC-MINAS, Coordenadora dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual e Direito Público da PUC-MINAS, campus Poços de Caldas, Advogada
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