Resumo: o presente texto trata da nova redação do artigo 265 (caput) e parágrafos do Código de Processo Penal Brasileiro, imposta pela Lei nº 11.719/2008, através da análise do “abandono” no processo penal pelo defensor, bem como da inconstitucionalidade da multa ali constante, que ocasiona séria violação às prerrogativas constitucionais e estatutárias da Advocacia.
Palavras-chave: abandono, defensor, advocacia, multa e inconstitucionalidade.
Abstract: The present paper deals with the new version of article 265 (caput) e paragraphs of the Brazilian Code of Criminal Procedure imposed by the Law 11.719/2008, and analyses the “abandonment” of the procedures of the lawsuit by the defender, as well as the unconstitutionality regarding the fine there-of incurred, thus causing a serious violation of constitutional and statutory prerogatives of Attorneyship.
Keywords: abandonment; defender; attorneyship; fine; unconstitutionality.
Sumário: I – Apresentação, II – A conceituação do “abandono” do defensor no processo penal brasileiro, III – A inconstitucionalidade da multa prevista no artigo 265 do CPPB, IV – Conclusão.
I – Apresentação
É louvável que o legislador infraconstitucional esteja sempre atento à realidade social de seu tempo, modificando o ordenamento jurídico quando necessário ao seu aperfeiçoamento. Todavia, a bem de cumprir seu papel de revisor da legislação ordinária, o que não pode é atropelar garantias e prerrogativas da Advocacia em geral, bem como desconsiderar o sistema constitucional e legal como um todo. Neste sentido, a Lei nº 11.719/2008, dando nova redação ao artigo 265 do CPP, deixou de levar em conta princípios constitucionais e institucionais da Advocacia.
II – A conceituação do “abandono” do defensor no processo penal brasileiro
A redação do artigo 265 (caput) do CPP e de seu parágrafo único estava inalterada há décadas. De certa forma, era uma disposição em desuso,[1] principalmente em razão da indeterminação da expressão “abandonar o processo” e a previsão de uma multa fixada em mil-réis. É claro que a caducidade pela falta de aplicação da norma, por si só, não implica na sua revogação. Mas não podemos negar o fato de que o referido dispositivo foi contrastado por uma normatividade posterior, que colocou, sob reservas, a sua aplicação hodierna, máxime após a promulgação da Constituição da República de 1988 e do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (Lei nº 8.906/1994).
O artigo 265 do CPP não era, assim, comentado com profundidade em doutrina[2]–[3] e jurisprudência, certamente em razão da sua desatualização normativa e fática. Daí que, agora, com a sua nova redação – com uma relativa modificação do caput do artigo 265 acrescido da criação de dois parágrafos –, houve nosso despertar sobre as conseqüências jurídico-processuais da sua admissão legislativa.
Frise-se que o legislador processual perdeu uma ótima oportunidade de aprimorar a redação do mencionado dispositivo, porquanto, na redação anterior, usava-se da expressão imprecisa “abandonar o processo”. Na nova redação do artigo 265 do CPP, redesenhada pela lei nº 11.719/2008, o legislador processual deixou intacta a expressão imprecisa “abandonar o processo”, acrescentando ao seu caput dois parágrafos, que, também, não conseguem conceituar satisfatoriamente o fenômeno processual do “abandono” no processo penal pelo defensor.
Devido a essa imprecisão do artigo 265 e de seus parágrafos do CPP, em que pese a sua nova redação, quando se daria, na realidade, o fenômeno processual do “abandono” no processo penal pelo defensor? O Código de Processo Penal Brasileiro conceitua esta situação fática? Fazendo uma leitura de cabo a rabo do Código de Processo Penal Brasileiro, o leitor atento não encontrará uma só linha sobre a conceituação detalhada do “abandono” do processo pelo defensor, simplesmente porque o legislador originário não o fez e o legislador, presumivelmente mais atualizado da Lei nº 11.719/2008, também não se preocupou em fazê-lo.
Na redação antiga do artigo 265 do CPP e do seu parágrafo único, havia apenas a menção à “falta de comparecimento do defensor”, indicando que “o abandono” do processo penal pelo defensor dar-se-ia mediante a ausência deste a um determinado ato processual. Mas, de toda sorte, era uma redação insuficiente e imprecisa na descrição desse fenômeno processual. O entendimento do que fosse “abandono” no processo penal pelo defensor ficava relegado à discricionariedade judicial.[4] O julgador poderia entender, assim, que apenas uma ausência a um determinado ato pelo defensor constituído ou dativo fosse tachada de “abandono” do processo ou que fossem necessários reiterados comportamentos do defensor caracterizadores de alguma modalidade de desídia na condução defensiva do processo em face de seu cliente, chegando às raias de torná-lo indefeso.
Já na nova redação do artigo 265 do CPP, foi realizada uma modificação do seu caput acrescido de parágrafos, indicando, principalmente por intermédio do seu parágrafo 1º, que a idéia, agora, é considerar o “abandono” do processo quando o defensor não comparecer à audiência determinada pelo juízo e, sem que houvesse por parte daquele de prévia comunicação, qualitativamente considerada pelo magistrado como sendo justificável.
Destarte, a nova redação do artigo 265, com os seus novos parágrafos, parece tentar apontar no sentido de que o conceito de “abandono” no processo penal esteja estritamente vinculado com a ausência injustificada do defensor à audiência agendada pelo órgão jurisdicional.
De imediato, denota-se que – especialmente através da leitura dos dois parágrafos – de verdadeiro “abandono” não se trata, mas, sim, de ausência injustificada do defensor a uma audiência determinada pelo juízo. Em primeiro lugar, porque o fenômeno processual do “abandono” tem uma dimensão jurídica significativamente muito mais grave do que a ausência a um ato processual como, por exemplo, no caso de defensor constituído ou dativo deixar de comparecer a diversos atos do processo, bem como deixar de apresentar todas as manifestações necessárias à caracterização de uma efetiva defesa técnica. O defensor que deixa de comparecer a uma audiência, posto que de forma injustificada, não abandona tecnicamente o processo, mesmo porque não fica impedido de permanecer zelando pelos futuros atos e manifestações processuais pertinentes ao seu mister.
Enfatize-se que, no caso de advogado constituído, ainda que haja algum dado caracterizador aparente de estar o réu indefeso, como na situação de verdadeiro “abandono”, o magistrado precisa ser altamente prudente e cauteloso no “possível” afastamento do advogado constituído, sobretudo porque, neste caso, há um vínculo contratual entre cliente/réu e advogado/defensor, o qual exige a imperativa manifestação do réu que constituiu diretamente seu defensor sobre a possibilidade de seu afastamento, sob pena de violação ao devido processo legal e, quiçá, responsabilização do magistrado que, indevidamente, afastou o defensor constituído à revelia do acusado.
É claro que, no caso de defesa dativa, naturalmente nomeada pelo magistrado, não há que se falar em vínculo contratual, e aí, por força desse munus público, conferido através da indicação judicial, o julgador terá uma maior liberdade no afastamento da defesa dativa. Todavia, a bem de afastar eventuais nulidades, especialmente aquelas fundamentadas em violação à Constituição, é bom que o juiz intime o réu para que este se manifeste sobre a destituição mesmo em se tratando de defensor dativo.[5]
III – A inconstitucionalidade da multa prevista no artigo 265 do CPP
No que concerne à multa ao defensor (advogado), que “abandonar” o processo (rectius, ausência à audiência), o legislador da Lei nº 11.719/2008, a título de atualizar os valores da multa prevista no antigo artigo 265 do CPP, estabeleceu um desproporcional e excessivo novo valor ao defensor que deixar de comparecer (e não “abandonar” o processo, como enfatizamos linhas atrás) sem justificativa reconhecida pelo juiz.
Agora, o defensor ausente, sem justificativa, estará sujeito à aplicação de uma pena de multa que variará entre 10 (dez) até o limite de 100 (cem) salários mínimos. Hoje, por exemplo, um advogado que fosse penalizado com a mencionada multa no seu limite máximo, poderia sofrer uma multa de R$ 41.500,00 (quarenta e um mil e quinhentos reais).
Ora, a possibilidade de o juiz aplicar uma multa, pela ausência injustificada do defensor, em valor que pode implicar em sério risco à sua integridade patrimonial, haja vista que tal valor será futuramente executado pelo ente fazendário, cerceará o próprio exercício livre da advocacia, além de violar diretamente as normas decorrentes dos incisos LIII, LIV e LV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, porquanto não haverá advogado que vá exercer sua defesa técnica com serenidade na esfera criminal sabedor que, eventualmente, poderá ser penalizado por uma multa, cujo valor colocará em risco a própria integridade de seu patrimônio privado, mormente porque o juiz pode, face à ausência do defensor, entender que a justificativa do profissional não procede, ainda que as suas razões tenham ares de plausibilidade.
Esta multa poderia ter algum sentido quando da promulgação original do Código de Processo Penal. À época, a multa aplicada parecia ter um nítido caráter disciplinar,[6] isto é, o magistrado aplicava a multa ao advogado pelo suposto “abandono” do processo. Ocorre, entretanto, que com a nova promulgação da Constituição de 1988 e da vigência do novo Estatuto da Advocacia (lei de natureza especial) houve uma nova leitura de todo o sistema legal. A normatividade infraconstitucional, por exemplo, ou era compatível com a nova Carta Política ou, ao revés, não era recepcionada.[7]–[8] Já em relação à legislação ordinária posterior à Constituição de 1988, dando efetividade à recém inaugurada normatividade constitucional, poderia haver revogação[9][10] da legislação infraconstitucional desde que a nova lei assim o dissesse de forma expressa ou regulasse a matéria de forma inteiramente nova. Nesse sentido, a multa prevista no artigo 265 do CPP – e mesmo a sua nova redação originada da Lei nº 11.719/2008 – é incompatível com a Constituição de 1988, já que vincula, em vero, o exercício da advocacia criminal à possibilidade injurídica do pagamento de multa determinada por quem não é o juiz natural do processo administrativo de ética e disciplina do advogado, criando, assim, uma sujeição disciplinar do advogado a uma ilegítima censura do juiz criminal. Sobre a não sujeição disciplinar do advogado em relação ao juiz, calha lembrar o conteúdo normativo do artigo 6º, caput, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), na realidade, um complemento infraconstitucional ao artigo 133 da Carta Política de 1988, in verbis:
“Art. 6º – Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.”
Lembremos, assim, que atualmente o único órgão possível de censurar o advogado é o Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, conforme normas decorrentes do artigo 68 e seguintes da lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB). Ora, levando-se em consideração que a aplicação de multa prevista no artigo 265 do CPP exige lógica e antecedentemente um juízo avaliativo sobre ser o suposto “abandono” do defensor (advogado) classificável ou não como desídia, teremos a usurpação do juízo deontológico (natural) da conduta ético-comportamental do advogado, produzindo uma superposição indevida de juízos.
A não se visualizar essa superposição de juízos sobre a conduta ética do advogado, qual seria então a natureza jurídica da multa prevista no artigo 265 do CPP? Teria natureza penal? Teria natureza administrativa? Para quem enveredar sobre o significado dessas naturezas jurídicas, temos também os seguintes questionamentos: como aplicar uma pena de multa ao defensor (advogado) sem que o mesmo dispositivo estabeleça uma fase de defesa e instrução probatória para tanto? E mesmo que fosse admissível a aplicação dessa multa pelo juiz criminal (apenas em tese!), dita fase seria feita dentro do mesmo processo penal onde o defensor exerce a defesa de outrem? E ainda dentro dessas perplexidades, qual o recurso cabível da decisão que impõe a multa ao advogado que “abandona” o processo? Sim, qual o recurso? Pois, admitindo que seja necessária uma fase de defesa, há necessidade da previsão do recurso contra a aplicação de multa constante da nova redação do artigo 265 do CPP.
Infelizmente, a nova redação do artigo 265 do CPP não prevê nem a via de defesa do advogado contra a multa e nem o recurso próprio contra aquela anômala sanção processual, bem como torna possível a aplicação de multa disciplinar por órgão incompetente para conhecê-la. Nesse sentido, a não previsão do órgão natural, do contraditório, de ampla defesa, com os recursos e meios a ela inerentes, faz da multa desproporcional prevista no artigo 265 do CPP, segundo a modificação da Lei nº 11.719/2008, violadora das normas decorrentes dos incisos LIII, LIV e LV do artigo 5º da Constituição da República de 1988, e, portanto, inconstitucional sua disposição ordinária.
Tais questionamentos se impõem na medida em que, sob o pálio da normatividade constitucional de 1988, o órgão competente, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, são exigíveis tanto nos processos judiciais como nos processos administrativos.[11] Dessa forma, em uma ou outra natureza, haverá sempre a exigibilidade de preservação da ampla defesa do defensor (advogado), quando lhe aplicada disciplinar, especialmente quando da sua aplicação decorra a privação da sua liberdade ou de seus bens. E não se diga que a justificação prevista no artigo 265, caput, e seus parágrafos do CPP, supriria ou seria manifestação da ampla defesa na aplicação da mencionada multa, pois verdadeira ampla defesa – ainda que administrativa – exige, quando necessária, instrução probatória, inclusive com oitiva de testemunhas a referendar a justificativa de ausência ao ato processual do defensor (advogado).
Interessante observar que o artigo 264 do CPP, regulador da aplicação de multa ao advogado que não cumpre com a “obrigação” de patrocinar defesa após a nomeação do juiz, não sofreu atualização alguma dos valores também estabelecidos em mil-réis. Qual seria, então, a razão para a omissão do legislador processual penal da Lei nº 11.719/2008 ter se omitido em se valer do mesmo ímpeto atualizador monetário na nova redação do artigo 265 do CPP? Antes desta resposta, é preciso salientar que o artigo 264 do CPP tinha como escopo garantir aos acusados, notadamente aqueles hipossuficientes, o direito a um profissional responsável pela defesa técnica. O juiz nomeava o advogado ou o solicitador, e estes eram obrigados de forma autoritária a aceitar o encargo, sob pena de multa, caso se negassem a cumpri-lo. Ou seja, o artigo 264 do CPP, assim como precedente artigo 265, caput, previam a aplicação de multa ao defensor (advogado).
Contudo, retornando ao questionamento há pouco suscitado: por que o artigo 264 do CPP não sofreu o mesmo ímpeto atualizador monetário do legislador processual penal da lei 11.719/2008? Arriscaríamos a apresentar duas razões para tanto. A primeira é que o artigo 264 do CPP não foi recepcionado pela Constituição da República de 1988, porquanto, ao se prever que a organização da Defensoria Pública é encargo da União e dos Estados, a responsabilidade do cumprimento da defesa criminal dos hipossuficientes passou a ser dos órgãos criados por aqueles entes federativos. Não cabe mais o patrocínio obrigatório e irrestrito – decorrente de nomeação judicial – em processos criminais aos advogados, ainda mais sob o crivo de uma autoritária pena de multa. E se o advogado não aceitar a nomeação, a eventual aplicação de multa é inconstitucional. A segunda seria como que um complemento das normas decorrentes do artigo 134 e seus parágrafos da nossa Lei Fundamental de 1988, constante do inciso XII do artigo 34 (Das Infrações e Sanções Disciplinares) do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), quer dizer, só haverá em tese violação disciplinar do advogado caso este deixe de patrocinar assistência jurídica, quando da absoluta impossibilidade da Defensoria Pública.
Denota-se que o advogado só seria em tese “obrigado” a prestar assistência jurídica (dativa ou ad hoc) quando demonstrado, em decisão judicial fundamentada, que a Defensoria Pública não pode fazê-lo. Ou seja, atualmente o advogado não é mais obrigado a prestar patrocínio criminal obrigatório sem que o juízo apresente a inviabilidade da Defensoria Pública. Sem dúvida, nessa situação haverá a seguinte pergunta: e se no Estado nunca for organizada a Defensoria Pública? Serão os advogados eternamente obrigados a aceitar nomeações de natureza dativa ou ad hoc, sob a pena de multa inconstitucional? Cremos que, neste caso, a falta de organização da Defensoria Pública pelo Estado não pode implicar na responsabilidade do advogado, pois, do contrário, haveria um incentivo à produção da omissão inconstitucional do ente federativo, inclusive com a conivência do próprio advogado que não rejeitasse a nomeação. Cremos que aqui cabe até a notificação judicial ao governador do Estado omisso no sentido de este determinar, em certo prazo, a indicação de defensor que patrocine a defesa do réu na comarca na qual não se tem estruturada e organizada defensoria pública, sob pena do crime de desobediência do chefe do executivo, ou eventualmente, do secretário de Estado responsável e também notificado. Neste diapasão, seria de bom alvitre que, toda vez que o juiz se valesse de defesa dativa por falta de defensoria pública organizada na comarca, o órgão jurisdicional notificasse ao governador do Estado dessa omissão constitucional, a título do próprio aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, que exige obrigatoriamente o zelo judicial pela paridade de armas no processo penal.
A menção do artigo 264 do CPP tem por objetivo mostrar que o referido dispositivo ordinário sofreu um profundo influxo da força normativa da Constituição de 1988, tornando a sua aplicação incompatível com esta nova ordem constitucional, bem como revogado pelo atual Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994). Neste sentido, o mesmo influxo normativo constitucional e infraconstitucional imposto ao artigo 264 do CPP, produzido pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994) aplica-se inteiramente ao artigo 265 do mesmo codex, fazendo com que a aplicação de multa ao advogado (defensor), em razão do suposto “abandono” (rectius, ausência à audiência judicial designada), por quem não seja o juiz natural do processo ético e disciplinar seja inconstitucional e ilegal.
Ou seja, o legislador processual da Lei nº 8.906/1994, ao se debruçar sobre o artigo 265 do CPP, não levou em consideração o influxo normativo da Constituição da República de 1988 e do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil de 1988, que estabeleceram um desenho próprio para o processamento e aplicação de sanções aos advogados quando eventualmente violarem disposições de nítido caráter ético, como é o caso do denominado “abandono” no processo penal pelo defensor.
Por derradeiro, olvidou o legislador da Lei nº 11.719/2008, ao dar nova redação ao artigo 265 do CPP, que já havia, no ordenamento brasileiro, através do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), a previsão de multa disciplinar, bem como de outras sanções ali previstas, ao advogado que houvesse provada contra a sua pessoa alguma forma de violação de ética na condução dos interesses do seu cliente. Só que a aplicação das mencionadas sanções dar-se-á mediante o devido processo administrativo perante o Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil e dosada proporcionalmente segundo a gravidade da violação.[12]
IV – Conclusão
A bem de finalizar nosso texto elaboramos a seguinte suma sobre a nova redação do artigo 265 e seus parágrafos do CPP:
1 – O conceito de “abandono” no processo penal pelo defensor, previsto no artigo 265 (caput) antes da nº 11.719/2008 já era insatisfatório, porquanto não retratava a realidade desse fenômeno processual.
2 – O legislador processual da Lei nº 11.719/2008 perdeu uma grande oportunidade de aprimorar o significado jurídico do conceito de “abandono” do processo penal pelo defensor, pois deixou intacta a referida expressão.
3 – Na realidade, a expressão “abandono” do processo penal, constante do artigo 265 do CPP, retrata a situação de falta ou ausência do defensor à audiência designada judicialmente.
4 – O significado normativo do conceito de “abandono” no processo penal envolve o comportamento do defensor que deixa de praticar um conjunto de atos necessários à efetividade da defesa técnica. E a sua constatação depende do conhecimento do juiz e da indispensável intimação do réu para que este se manifeste sobre tal situação processual.
5 – A ausência ou falta a uma audiência ou a outras audiências pelo defensor (advogado) não implica necessariamente na constatação do fenômeno processual do abandono no processo penal.
6 – O legislador processual da Lei nº 11.719/2008, que deu nova redação ao artigo 265 e parágrafos do CPP, esqueceu-se de que, desde a promulgação da Constituição de 1988 e do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), houve uma nova leitura das normas decorrentes do artigo 265 e seu parágrafo único do CPP (constitucionalização do seu significado normativo), o que implica em duas conseqüências normativas indispensáveis, quais sejam: primeira, não é possível a aplicação de multa ao defensor (advogado) sem o correspondente exercício do contraditório e da ampla defesa, conforme exigência constitucional do devido processo legal (incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição da República de 1988); segunda, tendo em vista o caráter nitidamente disciplinar da multa prevista no artigo 265 do CPP, após a promulgação do novo Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/1994), o censor natural de eventual desídia do advogado (defensor) só pode recair no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB (inciso LIII do artigo do artigo 5º da CFRB/88 e § 1º do artigo 70 da Lei nº 8.906/1994). Ou seja, atualmente o órgão jurisdicional natural para o processamento e aplicação de sanção ao advogado é o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB. Dessa forma, incompetente é o juiz criminal para aplicar multa de nítido caráter disciplinar, o que torna a nova redação do artigo 265 do CPP inconstitucional e ilegal pelas razões susodescritas.
7 – O denominado “abandono” (rectius, ausência ou falta à audiência designada judicialmente) do processo pelo defensor exige um juízo deontológico do comportamento do advogado (defensor), só possível legalmente de ser aferido pelo Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, sob pena da produção da superposição de juízos éticos. Imagine-se a situação paradoxal na qual o advogado é multado porque o juiz entendeu ser desidiosa sua conduta e posteriormente o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB afirme em sentido contrário, julgando improcedente a ação disciplinar por estar a conduta do profissional em conforme com os ditames éticos.
8 – Ocorrendo a aplicação da multa do artigo 265 do CPP pelo juiz criminal, será possível ao advogado (defensor) o manejo do mandado de segurança, inclusive com a prejudicial (controle difuso) de inconstitucionalidade, máxime porque naquela disposição ordinária não há a previsão do recurso cabível contra aquele ato jurisdicional de natureza sancionatória de privação de bens.
9 – De lege ferenda, respeitadas as prerrogativas da advocacia, pensamos que a redação do artigo 265 e parágrafos do CPP deveria se pautar segundo a prática pretoriana já desenvolvida com sucesso no processo penal brasileiro, a saber, o juiz se deparando com o comportamento desidioso do advogado na condução da defesa técnica, deveria oficiar à Ordem dos Advogados do Brasil a fim de que fosse apurada a violação ético-disciplinar do profissional. Mas aí quem determinará legalmente a desídia do advogado será o seu órgão censor, com o franqueamento ao advogado do contraditório e da ampla defesa (o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB) e não o juiz criminal, que é órgão incompetente para aplicar qualquer modalidade de sanção disciplinar ao advogado.[13]–[14]
Pensamos que a nova redação do artigo 265 e seus parágrafos do CPP, por intermédio da Lei nº 11.719/2008, põe em xeque as prerrogativas da Advocacia, haja vista que submetem o advogado, na condição de defensor no processo penal, à aplicação de uma multa de nítido caráter disciplinar, usurpando, dessa forma, a legitimidade censora do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, sem falar nas violações às disposições constitucionais garantidoras do devido processual legal (incisos LIII, LIV e LV do artigo 5º da CRFB/88). Em tal panorama, aguardamos que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados se valha da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), consoante as normas decorrentes do inciso VII do artigo 103 da Constituição da República de 1988, a fim de debelar as sérias violações às prerrogativas constitucionais e estatutárias da Advocacia materializadas na nova redação do artigo 265, caput, e seus parágrafos do CPP.
Bacharel em Direito pela UFRJ, Mestre em Direito Público pela UGF-RJ, Pós-Graduado pela PUC-PR, pesquisador, advogado nas cidades de Curitiba e do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Co-autor de obras jurídicas, dentre outras, Teoria da Mudança Constitucional: sua trajetória nos Estados Unidos e na Europa ( Renovar, 2005) e Os direitos à honra e à imagem pelo Supremo Tribunal Federal (Renovar, 2006).
Bacharel em Direito pela PUC-RJ e advogado militante na cidade do Rio de Janeiro
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