Resumo: O texto traz comentários aos aspectos civis da nova Lei do Divórcio, Projeto de Lei nº. 5.432/13, que pretende regulamentar a Emenda Constitucional nº. 66/2010, que alterou a redação do § 6º. do art. 226 da Constituição Federal, suprimindo a separação judicial e os prazos para o divórcio. O texto comenta cada um dos artigos alterados pelo citado Projeto (limitado ao Direito Civil), com análise da doutrina e da jurisprudência que justificou a alteração pretendida.
Palavras-chave: Família. Divórcio. Separação. Projeto. Emenda.
Abstract: The text comments the civilian aspects of the new Divorce Law, Bill nº. 5.432/13, which intends to regulate the Constitutional Amendment nº. 66/2010, that altered the wording of § 6º. of art. 226 of the Federal Constitution, by abolishing the legal separation and the deadlines for the divorce. The text comments each one of the altered articles by cited Bill (limited to Civil Law), with analysis of doctrine and jurisprudence that justified the desired change.
Keywords: Family. Divorce. Separation. Project. Amendment.
Sumário: 1. Introito. 2. Dissolução do casamento. 3. Proteção da pessoa dos filhos e filiação. 4. Alimentos. 5. União estável. 6. Conclusão. Referências.
1. Intróito
Desde a promulgação da Emenda Constitucional nº. 66, em julho de 2010, a doutrina e a jurisprudência vêm se debatendo com questões básicas suscitadas por ela, dentre as quais a principal, sem dúvida, é esta: existe ainda a separação judicial no Brasil[1]?
Este e outros tantos questionamentos têm sido frequentemente colocados, e só por meio de uma regulamentação legal poderão ser definitivamente resolvidos, tendo em vista a extrema laconicidade da citada Emenda, que se limitou a alterar a redação do § 6º. do art. 226 da Constituição Federal, nestes termos simples: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
Urge, portanto, a edição de uma nova Lei do Divórcio[2], para adaptar o texto legal à nova ordem constitucional inaugurada pela Emenda 66/2010, regulando as diversas questões por ela suscitadas e respondendo aos questionamentos frequentes a respeito dessas novas questões.
Foi por isso que propusemos ao Excelentíssimo Deputado Federal pelo PSC/PR Hidekazu Takayama o texto adiante comentado, que foi por ele proposto na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei nº. 5.432/13.
Segue, adiante, uma análise do texto do Projeto de Lei que pretende se tornar a Nova Lei do Divórcio, regulamentando a disposição lacônica introduzida pela Emenda Constitucional nº. 66/2010, em substituição à Lei nº. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, Projeto dos então Senadores Nelson Carneiro e Accioly Filho, que foi aprovada logo após a Emenda nº. 9, de 28 de junho de 1977, que introduziu o divórcio no Brasil.
Ao contrário do que se fez naquela época, contudo, aqui não se pretende revogar o Código Civil para tratar do assunto em lei à parte, opção esta que foi bastante criticada pela doutrina da época. Entendemos mais correto e louvável a inserção da matéria dentro do próprio Código Civil, mantendo a higidez da obra de Miguel Reale, alterando apenas a redação dos artigos que precisam ser alterados para nele figurarem a matéria do novo divórcio, à luz do que determina a nova norma constitucional.
É neste sentido que se pretende alterar os arts. 1571 a 1577 e revogar o inciso III do art. 1.571, o § 3º. do art. 1.572, o parágrafo único do art. 1.573, o parágrafo único do art. 1.576, o parágrafo único do art. 1.577, e os arts. 1.578, 1.580, 1.581 e 1.582. Em suma, pretende-se dar nova estrutura a todo o capítulo do Código Civil que trata da dissolução do casamento (a começar pelo seu próprio título, agora impróprio), para adaptá-lo à nova norma constitucional do divórcio.
Também neste sentido, pretende-se alterar a redação dos arts. 1.120 a 1.124-A do Código de Processo Civil (também começando pelo seu próprio título), acrescentando-lhe o art. 1.102-D e o respectivo capítulo (inserto no âmbito dos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa), para regulamentar apropriadamente o processo do novo divórcio, permitindo-se então a revogação do que ainda havia restado em vigor da antiga Lei do Divórcio, que só havia sido revogada pelo Código Civil em sua parte material, permanecendo em vigor até o momento a sua parte processual. Esta parte processual do Projeto, contudo, não será comentada neste texto, merecendo um texto específico.
Faz-se necessário alterar, também, a redação do art. 1.584, inc. I, do Código Civil, que trata da guarda dos filhos incapazes, e dos arts. 1.695, 1.700, 1.701, 1.702, 1.703, 1.707 e 1.708, todos do Código Civil, que tratam dos alimentos, também com o objetivo de adaptá-los ao novo tratamento do divórcio.
Aproveita-se o ensejo para projetar a alteração do art. 1.601, para restaurar a boa doutrina do Código Civil de 1916 que estabelecia prazo decadencial para a ação de impugnação de paternidade e a exclusividade da ação pelo marido da mãe; e o art. 1.723, § 1º., do Código Civil, retirando dele a referência à separação de fato como permissivo para a caracterização da união estável, já que esse dispositivo, além de inconstitucional (por ferir o princípio constitucional de proteção à família monogâmica), cria uma grande disparidade entre a união estável e o casamento, conferindo àquela direitos não permitidos a este, o que também contraria a norma do art. 226, § 3º., in fine, da Constituição Federal.
No mesmo sentido, o art. 100, inc. I, do Código de Processo Civil, que confere à mulher privilégio de foro para as ações de separação, conversão em divórcio e anulação do casamento, não está mais em consonância com a igualdade constitucional entre homem e mulher, pelo que também deve ser revogado. Esta questão, por se tratar também de matéria processual, não será neste texto comentada.
E, por fim, também se pretende a revogação do art. 1.520 do Código Civil, que permite a dispensa da idade núbil para o casamento, a uma, porque este dispositivo já está em parte sem eficácia, ante a revogação dos incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal pela Lei nº. 11.106/05; e a duas, porque, mesmo na parte em que ele ainda tem eficácia, é absolutamente injustificável a autorização para casamento antes de 16 anos, ainda que haja gravidez.
Cada uma dessas alterações será minuciosamente comentada abaixo, devidamente justificada, inclusive com indicação da doutrina e/ou da jurisprudência que lhe serve de base.
2. Dissolução do casamento
No capítulo do Código Civil que trata da dissolução do casamento, pretende o Projeto alterar os artigos do Código Civil a seguir transcritos e comentados, comparando a redação atual com a redação do Projeto:
Neste dispositivo, pretende-se adaptar o rol de causas de dissolução à nova realidade constitucional, excluindo-se a hipótese do inciso III do art. 1.571 (separação judicial), que foi suprimida pela Emenda nº. 66/2010. Começa-se por alterar o próprio título do capítulo, que não deve mais fazer distinção entre sociedade e vínculo conjugal.
Ademais, pretende-se corrigir erro grave cometido pelo Código Civil de 2002 no tocante à presunção de morte. No art. 1.571, § 1º., o Código passou a admitir a presunção de morte como causa de dissolução do casamento[3]. Contraria, assim, o que dispunha o art. 315, parágrafo único, do Código de 1916, que expressamente excluía a morte presumida como causa de dissolução do matrimônio. Por mais duradoura que fosse a ausência, não tinha ela o condão de dissolver o casamento[4]. Com a revogação deste dispositivo pelo art. 54 da Lei do Divórcio, e não tratando esta expressamente do tema, entenderam alguns autores ser possível a dissolução do matrimônio pela morte presumida[5].
Não obstante, entendemos que a morte presumida não tinha este condão. Posto que não repetida expressamente a proibição do dispositivo revogado do Código Civil, não se podia requerer a declaração de dissolução do vínculo matrimonial por morte presumida de um dos cônjuges, já que o instituto da morte presumida se referia exclusivamente à sucessão dos bens deixados pelo ausente[6]. Necessário se fazia, portanto, que o cônjuge promovesse o divórcio, o que lhe seria, inclusive, mais fácil, já que o divórcio direto dependia apenas de dois anos de separação de fato (prazo este agora dispensado pela Emenda nº. 66/2010), ao passo que, para a configuração da morte presumida, ordinariamente, se faz necessária a ausência por dez anos (art. 1.167, inc. II, do Código de Processo Civil). Talvez por esta razão não tenha o legislador repetido a norma do revogado art. 315. Naquele, como não se aceitava o divórcio a vínculo, era necessário deixar expresso que também não se aplicaria a presunção de morte. A partir da Lei nº. 6.515/77, instituído o divórcio, dificilmente alguém se utilizaria desta presunção para dissolver o vínculo conjugal. Ademais, como lembrava Yussef CAHALI, “ausente qualquer provisão legal que o autorize, continua inexistindo qualquer ação direta para a declaração da ruptura do vínculo matrimonial devido à ausência declarada ou presumida do cônjuge; nem esta ausência, ainda que declarada judicialmente, tem o condão de produzir ipso jure a dissolução do matrimônio”[7].
Mas o Código Civil de 2002 alterou esta situação, decretando, no art. 1.571, § 1º., a dissolução do casamento pela ausência do outro cônjuge em decisão judicial transitada em julgado. Pode agora o cônjuge do ausente optar entre pedir o divórcio para se casar novamente ou esperar pela presunção de morte, que se dá com a conversão da sucessão provisória em definitiva. O divórcio, embora mais rápido, tem a desvantagem de fazer o cônjuge perder o direito à sucessão. Com efeito, sendo o cônjuge herdeiro ainda que haja descendentes ou ascendentes do de cujus (ou, no caso, do ausente), nos termos do art. 1.829, precisará, não obstante, conservar a posição de cônjuge até a conversão da sucessão provisória em definitiva, quando, só então, haverá realmente a vocação hereditária. Se se divorciar antes, embora tendo a vantagem de poder se casar novamente desde logo, terá a desvantagem de perder a legitimação sucessória na sucessão do ausente.
Mas a lei não resolve algumas questões que a norma suscita: em primeiro lugar, em que momento se considera presumida a morte do ausente, para o fim da dissolução do seu casamento? Interpretando isoladamente os arts. 22 e 23[8], poder-se-ia chegar à singela conclusão de que tal dissolução se daria tão logo se desse o desaparecimento do ausente. Mas tal interpretação contraria a sistemática do instituto, bem como a letra do art. 6º., que dispõe: “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”. Assim, é somente com a conversão da sucessão provisória em definitiva que se presume a morte do ausente, pelo que somente essa conversão é que dissolve o casamento do ausente.
Há quem defenda a ideia de que o cônjuge do ausente, para casar-se novamente, deve promover o divórcio. Mas tal entendimento não pode ser aceito. Que o divórcio dissolve o vínculo conjugal não se duvida. Entretanto, não se pode exigir o divórcio no caso em tela, pois a lei erigiu a morte presumida como causa independente de dissolução do vínculo. Vale dizer: a morte é, ao lado do divórcio, causa de dissolução do casamento; a conversão da sucessão provisória em definitiva, fazendo presumir a morte, dissolve também o vínculo, e por si só, pelo que nada mais se pode requerer para dissolvê-lo, pois já estará o casamento dissolvido com a sentença de conversão. Faltaria objeto à ação de divórcio promovida depois da declaração de ausência, pois o casamento já está extinto. Quisesse a lei que o cônjuge do ausente promovesse o divórcio, nada precisaria ter dito, pois assim já era no sistema da Lei do Divórcio sem qualquer texto legal.
A sentença declaratória de ausência, nos termos do art. 9º., inc. IV, e do art. 94 da Lei de Registros Públicos, deve ser registrada no Registro Civil. Daí resultaria para o cônjuge do ausente a condição de viúvo? A lei não o diz, mas é de se supor que sim, pois seria esta a consequência principal do registro da sentença de conversão da sucessão provisória em definitiva. Mas: viúvo de cônjuge vivo? Sim, porque não se pode negar que o presumido morto é um possível vivo. E mais: uma “viuvez revogável”? Admitindo a lei o retorno do ausente até 10 anos depois da conversão da sucessão provisória em definitiva, podendo ele reassumir seus bens (art. 39), ou, mesmo depois dos 10 anos (embora sem reassumir seus bens), naturalmente poderá o ausente reabilitar-se civilmente, deixando de ser presumido morto, com o que estará revogado o estado de viúvo do seu cônjuge.
Pode o ex-cônjuge do ausente, pretendendo casar, habilitar-se matrimonialmente? Que documentos deve apresentar? Vejamos o que diz o art. 1.525: “O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos: … IV – declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; V – certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio”.
De princípio, já se vê que o ex-cônjuge terá que declarar seu estado civil para casar novamente. Declarará o estado de viúvo, com as implicações antes ditas? Ou, declarando o estado de casado, aceitará o Oficial do Registro Civil a sua habilitação? Como ficaria, neste caso, o impedimento do art. 1.521, inc. VI[9]? Mas o maior problema é que a lei não previu a juntada da certidão do registro da sentença de conversão para fins de habilitação matrimonial. No citado inc. V do art. 1.525 só se fala em certidão de óbito, de anulação ou de divórcio; esqueceu-se o legislador de que o nubente que foi casado pode não ter nenhum desses documentos, mas apenas a certidão de registro da sentença de conversão, documento que, nos termos do art. 1.571, § 1º., deve-lhe ser suficiente.
Observe-se, pois, que a lei não se refere, no inc. V, à sentença de conversão da sucessão provisória em definitiva, como prova da presunção de morte do cônjuge anterior de um dos nubentes. Entretanto, dada a regra do art. 1.571, § 1º., que admite a presunção de morte como fator de dissolução do casamento, deve ser admitida a certidão da sentença de ausência em lugar da certidão de óbito do cônjuge anterior.
Outra consequência não prevista pelo legislador, e esta a mais grave, é o fato do eventual retorno do ausente após o casamento de seu ex-cônjuge. Imagine-se que, após a sentença de conversão, o ex-cônjuge do ausente se case, aproveitando-se da disposição do art. 1.571, § 1º., vindo, depois do casamento, a reaparecer o ausente. Como fica o primeiro e o segundo casamento do cônjuge do ausente? Dir-se-á ser simples a solução, pois o citado parágrafo diz que o primeiro casamento se dissolve pela presunção de morte, equivalendo, portanto, ao divórcio, ou à morte real. Daí seguiria a consequência de que, estando dissolvido o primeiro casamento, válido ficaria o segundo[10]. Mas deve-se discutir: a presunção de morte é uma presunção absoluta (juris et de jure)? Não seria antes uma presunção relativa (juris tantum)? Não se pode negar o seu caráter de presunção relativa, já que o ausente pode retornar e, em consequência, provar que não está morto realmente, desfazendo-se os efeitos da presunção. Sendo presunção relativa, desfaz-se com a prova de que não houve morte real, ou seja, com o reaparecimento do ausente. Então, desfeita a presunção, seria lógico se entender desfeita também a dissolução do casamento. E a consequência disto seria desastrosa: o segundo casamento do cônjuge do ausente foi feito em bigamia, sendo, portanto, nulo[11]. Esta a solução adotada pelo direito italiano[12]. Seria razoável anular o casamento do ex-cônjuge do ausente pelo reaparecimento deste depois de tanto tempo? Melhor seria se a lei tivesse disposição semelhante ao § 1.348 do BGB (Código Civil alemão), que dizia expressamente ficar válido o segundo casamento nesse caso[13].
Por fim, ainda um questionamento: pode o próprio ausente se beneficiar da dissolução do casamento pela ausência? Ou em outros termos: pode o ausente, estando vivo em algum lugar, contrair validamente um novo matrimônio? A lei não o diz, mas, partindo-se do pressuposto que a dissolução se dá pela morte presumida, não estando o ausente morto realmente, não há dissolução do casamento, pelo que não poderá ele validamente casar novamente. Mas aí teremos outro problema: enquanto para o cônjuge do ausente o casamento estará dissolvido, para o ausente não, permanecendo ele casado. Mas, casado com quem? Casado com alguém que é viúvo ou que já se casou com outra pessoa?
De todo o exposto, concluímos que seria melhor que o legislador tivesse evitado a disposição em comento, mantendo a não dissolução do casamento pela presunção de morte, de modo que fosse necessário ao cônjuge do ausente promover o divórcio, evitando, assim, todas as complicações antes enunciadas. Esta, portanto, a razão da alteração aqui pretendida, para restaurar o velho e bom direito do art. 315, parágrafo único, do Código Civil de 1916, mantendo a presunção de morte com efeitos exclusivamente patrimoniais, retirando-lhe a eficácia matrimonial que lhe foi dada pelo Código de 2002.
Também se pretende, neste dispositivo, a alteração da disciplina relativa ao uso do nome de um dos cônjuges pelo outro após a dissolução do casamento, tema que também foi objeto de mal tratamento no Código de 2002.
O Código Civil de 2002 alterou a matéria profundamente em relação ao que havia estabelecido a Lei nº. 8.408/92. A uma, por ter permitido também ao marido o acréscimo do nome da mulher, sendo que, até então, só à mulher se permitia a alteração do nome por ocasião do casamento. A duas, porque trouxe para a separação a matéria de ordem pública introduzida, para o divórcio, pela Lei nº. 8.408/92. A três, porque retornou a matéria à ordem privada, exigindo requerimento do cônjuge para a perda do nome. A quatro, porque passou a permitir ao cônjuge divorciado, como regra, continuar com o nome do outro.
Com efeito, o § 2º do art. 1.571 passou a dispor que, dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.
Ou seja, na conversão da separação em divórcio, em regra, poderá o cônjuge continuar a usar o nome do outro. A única condição para tanto é que não tenha disposto em contrário a sentença de separação judicial. Isto quer dizer que, para que o cônjuge continue a usar o nome do outro após o divórcio, é preciso que já esteja usando, ou seja, que não tenha sido dele despojado por ocasião da separação[14].
A inovação é má, por permitir, como regra, que um cônjuge divorciado continue com o nome do outro. Ademais, conjugando a regra deste dispositivo com a alteração que o Código de 2002 fez em matéria de acréscimo do nome no casamento (art. 1.565, § 1º), pode-se chegar a uma esdrúxula situação: imagine-se uma mulher que, após o divórcio direto, permanece com o nome do ex-marido, nos termos do art. 1.572; casando ela de novo, pode o seu novo marido acrescer ao seu o sobrenome desta mulher, incluindo o nome do ex-marido. Teríamos, aí, um segundo marido com o nome do primeiro. Em tese, poderia este segundo marido, após um divórcio, passar este nome a outra mulher, que também poderia passá-lo a outro marido, e daí por diante. Veja-se o quanto é estranha a nova norma legal.
Não obstante, há entendimento no sentido de se aplicar a regra do art. 1.578, adiante comentada, também ao divórcio. Inclusive, na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, propôs-se alteração legislativa neste sentido, pretendendo alterar a redação do citado § 2º do art. 1.571, para fazer expressa remissão ao art. 1.578[15], alteração que nos parece de todo adequada, tendo em vista não ser razoável que um cônjuge divorciado permaneça com o nome do outro. Foi este o móvel do Projeto para a alteração do § 2º. deste artigo.
Um esclarecimento inicial se faz necessário para justificarmos a disposição deste artigo do Projeto: a discussão sobre culpa na dissolução do casamento foi de todo banida de nosso direito pela Emenda Constitucional nº. 66/2010? Cremos que não. É certo que a discussão sobre culpa só se fazia no âmbito da separação judicial, e que esta foi extinta pela Emenda Constitucional nº. 66/10. Entretanto, nada impede que a lei venha a transpor a discussão sobre culpa para o divórcio[16]. É o que pretende o Projeto em comento.
Nos termos do art. 5º da Lei 6.515/77, a separação judicial podia ser pedida por um só dos cônjuges quando imputasse ao outro[17] conduta desonrosa ou qualquer ato que importasse em grave violação dos deveres do casamento e tornasse insuportável a vida em comum[18].
Abandonou-se, assim, o antigo sistema que discriminava as causas legais que possibilitavam a separação judicial[19]. Neste aspecto foi louvada a atitude do legislador de 1977, já que o art. 317 do Código Civil de 1916, revogado pela Lei do Divórcio, não contemplava todas as hipóteses de violação dos deveres do casamento, tais como a do art. 231, inc. IV, daquele Código, repetido no art. 1.566, inc. IV, do Código Civil[20], bem como não tratava das condutas desonrosas. Fica evidente que as causas citadas no revogado art. 317 do Código Civil foram abrangidas pelas genéricas hipóteses do art. 5º da Lei do Divórcio[21], cabendo nestas, ainda, outras hipóteses que não aquelas, taxativas[22]. Ficou a questão, a partir daí, muito mais colocada ao prudente arbítrio do juiz[23].
Mesmo antes do advento da Lei do Divórcio a jurisprudência já vinha alargando as causas legais, para incluir no conceito de injúria grave hipóteses que, a rigor, ali não caberiam[24]. E Beudant chegou a afirmar que constituía injúria grave tudo quanto um hábil advogado conseguisse como tal inculcar[25]. Hoje, estas hipóteses, que antes se consideravam de injúria grave, estão abrangidas na expressão “conduta desonrosa”[26], naturalmente quando não configurem grave violação dos deveres do casamento.
O Código Civil de 2002, embora mantendo, no art. 1.572, as causas genéricas do art. 5º da Lei do Divórcio, ajuntou-lhe causas taxativas no artigo seguinte, com o defeito ainda de dizer caracterizarem elas a impossibilidade da comunhão de vida:
“Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:
I – adultério;
II – tentativa de morte;
III – sevícia ou injúria grave;
IV – abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;
V – condenação por crime infamante;
VI – conduta desonrosa”.
E, como se não bastasse o erro do caput, o parágrafo único ainda acrescenta a possibilidade de o juiz considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum. Ou seja, a relação do caput não é taxativa, o que a torna sem sentido.
Até então se conhecia dois sistemas possíveis para arrolar as causas culposas: o sistema de causas taxativas, do revogado art. 317 do Código Civil de 1916, usado ainda hoje na vizinha Argentina e na Espanha, e o sistema de causas genéricas, implantado no Brasil pela Lei do Divórcio, por cópia da lei francesa de 1975, também usado na Alemanha, Itália, Portugal, entre outros. Nosso Código implanta um sistema misto até então inédito: a par das causas taxativas, passa ele a admitir também “outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum”. Isto torna sem sentido toda a disposição do caput, pois, se é possível ao Juiz considerar “outros fatos”, não há razão para enumerar alguns deles. Nem mesmo para interpretação analógica servem estes fatos enumerados, já que estes “outros fatos” não precisam, necessariamente, ser semelhantes aos que foram arrolados expressamente.
Temos, portanto, no Código de 2002, um sistema absolutamente incongruente: o art. 1.572 arrola causas genéricas; o caput do art. 1.573 traz causas taxativas; já o seu parágrafo único retorna ao sistema de causas genéricas. Este sistema, que podemos chamar de “causas mistas”, torna a lei bastante incompreensível. Inclusive, na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, propôs-se a revogação do art. 1.573 e a alteração da redação do caput do art. 1.572, para corrigir este defeito do Código.
Observe-se, porém, que “outros fatos” devem ser entendidos como outras causas que configurem atos de grave violação de deveres do casamento. Não se pode, data venia, aceitar a tese recentemente esposada pelo Superior Tribunal de Justiça, que se utilizou deste dispositivo para decretar a separação sem culpa de ambos os cônjuges, que pediram, em ação e reconvenção, a separação por culpa do outro[27]. Se não há ato culposo de qualquer dos cônjuges, não se pode falar em separação ou divórcio culposos. Os cônjuges que quiserem se divorciar nestas condições deverão buscar a via do divórcio não culposo ou do divórcio consensual, como se verá adiante.
A tendência moderna tem sido o abandono do sistema de culpa, como o fez o BGB reformado em 1976. Mas esse abandono deixa a descoberto situações excepcionais que justificam ainda a invocação da culpa na dissolução do casamento, casos em que a culpa de um dos cônjuges é bastante evidente e justificam uma apenação do cônjuge culpado.
Por todo o exposto é que, mantendo ainda o sistema da culpa, procuramos corrigir os vários defeitos e inconvenientes da lei em vigor para, em primeiro lugar, deixar claro que a culpa é hipótese excepcional, só devendo ser aplicada quando ela ficar cabalmente demonstrada nos autos. E daí a enumeração taxativa, numerus clausus, das causas culposas, evitando o arbítrio judicial e a extensão de causas ad infinitum. Atende-se, assim, razoavelmente, o anseio daqueles que querem ver banida de nosso direito a discussão sobre culpa[28]; o Projeto, embora não banindo-a totalmente, torna-a excepcional, para ser usada apenas eventualmente, em hipóteses em que a culpa está bastante evidenciada.
Ademais, insere-se uma consequência útil à decretação da culpa, introduzindo distinção na partilha de bens em desfavor do único ou principal culpado pelo divórcio, já que, uma vez afastada a fixação da guarda dos filhos com base na culpa, praticamente não havia sobrado qualquer consequência à consideração da culpa por um dos cônjuges.
Por fim, adota o Projeto expressamente a doutrina[29] que entende possível a condenação do cônjuge culpado na obrigação de indenizar o outro pelos danos materiais e morais cometidos, afora a sua condenação em alimentos.
Trata este dispositivo do divórcio litigioso não culposo, também chamado de divórcio meramente unilateral, já que quase não se pode falar em litígio, pois dificilmente haverá contestação nesta hipótese, à míngua de motivo para contestar.
Em primeiro lugar, reitere-se o que já foi dito em comentários ao artigo anterior: pretende-se aqui excluir a referência às causas que podem “caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida” (em realidade, as supostas causas taxativas que configurariam atos culposos), pois as causas para o divórcio culposo já foram tratadas no artigo anterior.
Substitui-se, portanto, essa regulamentação inconveniente por nova disposição para regular o divórcio não culposo, que foi ignorado pelo Código Civil de 2002 (assim como já o tinha feito a Lei do Divórcio), justamente ele a hipótese mais comum na prática.
Inicia-se deixando claro que o divórcio pode ser pedido unilateralmente por qualquer dos cônjuges, com base na simples separação de fato do casal. Tendo em vista a alteração produzida pela Emenda nº. 66/2010, retirando da Constituição a exigência de qualquer prazo para o divórcio, resta como única exigência para o divórcio a separação de fato do casal, sem qualquer prazo.
Mas é necessário que haja efetiva separação de fato, efetivamente comprovada por qualquer meio, prova esta que será dispensada se o casal já estiver separado de corpos, por decisão judicial que esteja ainda em vigor (que não tenha caducado por qualquer motivo).
Acresce-se, ainda, a possível prejudicialidade do divórcio culposo em relação ao não culposo: havendo divórcio culposo pendente de julgamento, proposto antes ou depois do pedido unilateral referido neste artigo, será este pedido apensado àquele e só será julgado caso o divórcio culposo não seja julgado procedente. Em suma, o divórcio culposo (se houver) deve sempre ser julgado em primeiro lugar; somente se este não alcançar procedência é que poderá ser julgado o pedido de divórcio não culposo.
Substitui o Projeto aqui o tratamento da separação consensual pelo divórcio consensual, mas em termos semelhantes, acrescendo, no caput, a necessidade de que os cônjuges estejam separados de fato e a referência ao divórcio extrajudicial, introduzido pela Lei nº. 11.441/07. Quanto a este, inclusive, o § 1º. faz expressa menção à lei processual que o regula, repetindo a exigência lá constante de que não haja filhos incapazes, corrigindo, neste passo, o erro da lei processual de referir-se a filhos “menores ou incapazes”.
Repete-se no § 2º. a exigência de tentativa de conciliação, que já constava da antiga Lei do Divórcio, ouvidada na Lei nº. 11.441/07, tentando-se, assim, resgatar a importância de se evitar, sempre que possível e conveniente, o divórcio do casal.
A possibilidade de recusa do acordo é repetida no § 3º., estendida também ao divórcio extrajudicial, como já vinha entendendo a doutrina mesmo sem lei expressa. Convém notar, neste passo, que tal possibilidade não se confunde com a antiga “cláusula de dureza”, introduzida pela velha Lei do Divórcio (art. 6º.) e suprimida pelo Código Civil de 2002, pois esta se aplicava tão-somente à separação litigiosa não culposa, e por razões de ordem pessoal. Aqui a possibilidade de recusa, aplicável apenas à dissolução consensual, deve-se a razões de ordem patrimonial.
O Projeto reuniu no art. 1.575 as disposições dos anteriores arts. 1.575 e 1.576, caput, consertando erro já secular referente à extinção apenas de alguns deveres do casamento. Em que pese o art. 1.576 do Código Civil de 2002 só referir expressamente aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca, como já fazia a Lei do Divórcio, a verdade que aqui procuraremos demonstrar é que todos os deveres do casamento cessam com a dissolução da sociedade conjugal.
A omissão legal tem razão de ser em virtude do disposto no art. 26 da Lei do Divórcio (não repetido expressamente no Código de 2002), que, impropriamente mantinha o “dever de assistência” entre cônjuges divorciados.
Autores há que endossam a impropriedade legal. Assim Darcy Arruda Miranda[30] e Orlando Gomes, para quem, “enquanto perdurar a separação, o marido é obrigado a prestar alimentos à mulher, salvo em certas situações, porque subsiste esse efeito do casamento (dever de sustento)”[31]. Rainer Czajkowski entende subsistir, entre cônjuges separados judicialmente, o dever de mútua assistência[32], embora expresse (referindo-se ao concubinato) que, “com o rompimento da união, rompem-se também os deveres; daí se dizer que, a rigor, os alimentos substituem a assistência material, não são manifestação dela”[33]. E Márcio Pinheiro Dantas Motta afirma que “ainda há um vínculo unindo o casal capaz de conferir juridicidade à pretensão alimentícia por qualquer deles”[34].
Na verdade, o que existe entre eles é uma obrigação alimentar, mas não dever de assistência, que se encerra com o fim da sociedade conjugal. Ou seja, todos os deveres do casamento, justamente por se tratar de deveres do casamento, extinguem-se com a dissolução da sociedade conjugal. Neste sentido a doutrina mais abalizada:
“Objeta-se, no entanto, que a Lei do Divórcio, ao estatuir a dissolução da sociedade conjugal, apenas discrimina a cessação de dois deveres recíprocos, tais a fidelidade e a coabitação, não incluindo, em tal dispensa, a mútua assistência, que, destarte, ficaria em aberto, dela se valendo o cônjuge necessitado para obter, em ação de alimentos, provisão do outro.
Contra essa inteligência, cabe redargüir que o dever de socorro se entrelaça aos demais deveres recíprocos entre os cônjuges, cuja extinção acarreta, logicamente, também a da assistência após dissolvida a sociedade conjugal. Aquele dever é, na verdade, e por razões de imediata percepção, contextual e conatural em relação aos demais”[35].
“Em segundo lugar porque, homologado o acordo de desquite, desaparece o dever de mútua assistência entre os cônjuges, não havendo mais razão para impor-se ao homem o dever de sustentar sua ex-mulher”[36].
“Decretada ou homologada a separação, a sentença libera automaticamente os cônjuges do dever de se manterem fiéis, reciprocamente (CC, art. 231, I); de manterem vida em comum no domicílio conjugal (art. 231, II); de finalmente assistirem-se mutuamente, obrigação imposta pelo art. 231, III”[37].
Parece também ser neste sentido a lição de Eduardo de Oliveira Leite, entendida a contrario sensu, quando afirma que “enquanto perdura o processo judicial de separação, perduram as obrigações decorrentes do casamento”[38]. Neste sentido também a doutrina italiana:
“…as únicas obrigações que, depois da separação, ligam os cônjuges, são aquelas que surgem da própria separação, obrigações expressamente estabelecidas pela legislação sobre separação pessoal e que, não são absolutamente, como alguns deduzem, uma continuação dos deveres conjugais de que cuidam os arts. 143 c.c. e ss. De fato a legislação sobre separação pessoal é em tudo autônoma em relação àquela sobre obrigações derivadas do estado de casados”[39].
Note-se ainda outra impropriedade do citado art. 1.576: fala de dever de coabitação, querendo naturalmente se referir ao dever de vida em comum no domicílio conjugal. Ocorre que este não se limita apenas à coabitação, abrangendo também o débito conjugal, que não foi referido no mencionado dispositivo. Mas ninguém poderia admitir a permanência do débito conjugal após a dissolução da sociedade conjugal.
Há que se dizer, entretanto, que o dever de sustento (ou de mútua assistência) não se confunde com a obrigação alimentar, que pode provir de outras formas.
Em suma: todos os deveres do casamento, sejam os explicitados no art. 1.566 do Código Civil, sejam os deveres ditos implícitos, encerram-se com a dissolução da sociedade conjugal por qualquer forma, inclusive a extinta separação judicial. A partir desta, podem surgir outras obrigações, como a alimentar, que não se confundem com aqueles deveres e não são continuação deles. E é por isso que o Projeto pretende deixar isto explicitado, evitando a confusão hoje feita em torno da matéria.
Também deixa claro o Projeto, no § 1º., que a partilha não pode ser deixada para depois do divórcio, como erroneamente se supôs em razão da redação atual do art. 1.581 do Código Civil. A este propósito, estabelecia o art. 31 da Lei do Divórcio:
“Art. 31. Não se decretará o divórcio se ainda não houver sentença definitiva de separação judicial, ou se esta não tiver decidido sobre a partilha de bens”.
Este dispositivo, sobretudo em sua segunda parte, gerou grandes discussões na doutrina e na jurisprudência, principalmente em razão do que dispunha o art. 43 da mesma lei:
“Art. 43. Se, na sentença do desquite, não tiver sido homologada ou decidida a partilha dos bens, ou quando esta não tenha sido feita posteriormente, a decisão de conversão disporá sobre ela”.
A aparente contradição entre ambos os dispositivos era facilmente explicável: o art. 43, inserto corretamente no Capítulo IV (“Das disposições finais e transitórias”) se referia à sentença do desquite, enquanto o art. 31 falava de sentença de separação judicial, ou seja, aquele dispositivo tratava da dissolução da sociedade conjugal ocorrida antes da Lei do Divórcio, enquanto este (o art. 31), tratava das sentenças posteriores a 1977.
Assim, permitia o art. 43 que a decisão de conversão dispusesse sobre a partilha dos bens quando a sentença de desquite não a tivesse decidido, nem tivesse a partilha sido feita posteriormente, enquanto que o art. 31 proibia a decretação do divórcio se a sentença de separação judicial não tivesse decidido sobre a partilha dos bens.
E isto por razões óbvias: se o casal se desquitara antes do advento da Lei do Divórcio, não havia ainda a regra constante do art. 31 exigindo a partilha anterior[40]. Quis então o legislador resolver estas situações transitórias, permitindo que a decisão de conversão dispusesse sobre a partilha dos bens. E por se tratar de regra transitória, estava corretamente disposta no Capítulo IV da lei. Já quando o casal tivesse se separado na vigência da Lei do Divórcio, tinha conhecimento da necessidade de a sentença de separação dispor sobre a partilha de bens, ou, ainda que não o fizesse, de ser a partilha decidida antes do pedido de conversão da separação em divórcio, pelo que não poderia obter a conversão sem o cumprimento deste requisito.
Este entendimento, que nos parece suficientemente claro, foi utilizado na jurisprudência quando da promulgação da Lei do Divórcio[41]. Não obstante, mais recentemente, vinham os tribunais mudando de orientação e negando aplicação ao art. 31 da Lei 6.515/77 para permitir que a decisão de conversão dispusesse sobre a partilha de bens mesmo quando o casal tenha se separado (e não desquitado) após 1977[42], em aplicação distorcida do disposto no art. 43 da Lei do Divórcio[43]. Não é o caso de repetir aqui toda a polêmica da época, pois ela tem agora interesse meramente histórico[44].
O Código Civil de 2002, acolhendo essa jurisprudência, dispôs em sentido contrário ao disposto no art. 31 citado: “Art. 1.581. O divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens”. Ou seja, acolhendo a doutrina então minoritária que aplicava o art. 43 em lugar do art. 31, permite agora a lei que a conversão da separação em divórcio disponha sobre a partilha, não mais se exigindo prévia partilha de bens.
De imediato já se colocou uma questão que suscita dúvida na interpretação do dispositivo: não exigindo prévia partilha, e não repetindo também a regra do art. 43 da Lei do Divórcio, o Código de 2002 permite o divórcio sem a realização da partilha de bens? Parece-nos que não. Só se dispensou a prévia partilha, sendo que esta deverá ser feita no processo de divórcio. Mas este entendimento, que a nosso ver se deve impor, para evitar a confusão patrimonial decorrente de um segundo casamento sem partilha do primeiro, foi questionado em face do que dispõe o art. 1.523, inc. III, do Código[45], que dá a entender ser possível o divórcio sem a partilha. Tratando-se de um impedimento meramente proibitivo[46], que só pode ser oposto pelos parentes designados no art. 1.524[47], certamente o casamento acabará por se realizar sem a observância do impedimento, pelo que a solução da lei é inconveniente. Deve, portanto, a nosso ver, prevalecer o entendimento de que não é possível deixar-se a partilha para depois do divórcio[48].
Esta é, portanto, a causa da alteração promovida pelo Projeto, procurando deixar claro que a partilha, embora não necessite ser prévia, não pode ser deixada para depois do divórcio.
Acresce o § 2º. uma novidade: a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da propositura da ação, ou à data da medida cautelar que não tenha caducado. Esta última já constava do art. 8º. da Lei do Divórcio, no tocante à separação judicial. Mas a Lei do Divórcio falhava ao não prever a primeira retroação referida agora no Projeto, pois, não havendo medida cautelar, nenhuma retroação haveria, produzindo a sentença seus efeitos apenas a partir de seu trânsito em julgado, o que poderia gerar consequências patrimoniais desagradáveis a um dos cônjuges.
O caput do dispositivo projetado repete a disposição do parágrafo único do atual art. 1.576, com a mudança de separação para divórcio.
Introduziu-se um parágrafo ao dispositivo para deixar claro que o divórcio de incapaz só pode ser realizado em Juízo, vedando-se para tanto o procedimento extrajudicial, o que se justifica pela necessidade de maior segurança jurídica neste caso. Naturalmente, recorde-se, ao falar-se em incapacidade, não se inclui a hipótese da menoridade, pois o casamento emancipa o menor.
O tema do atual caput do art. 1.576 já foi tratado em comentários ao artigo anterior, pelo que se evita aqui a repetição, remetendo-se o leitor aos comentários já proferidos.
Reafirma a redação projetada do art. 1.577 a impossibilidade de reconciliação após o divórcio. Trata-se de princípio que foi sempre adotado no Brasil, embora nem sempre em outros países.
Borda, comentando o direito argentino, entendia que seria possível a reconciliação após o divórcio[49]. E Lagomarsino e Uriarte dão conta da controvérsia que reinou a respeito naquele país, até o advento da Lei 23.515/87:
“A opinião contrária, desenvolvida em nossa doutrina por Días de Guijarro, interpretou que a reconciliação posterior à sentença de divórcio vincular não fazia renascer o vínculo dissolvido e que era mister a celebração de outro ato matrimonial.
O último parágrafo do art. 234 do Cód. Civil vem a aclarar normativamente o tema, ao assinalar expressamente dito preceito que ‘a reconciliação posterior à sentença firme de divórcio vincular só terá efeitos mediante a celebração de um novo matrimônio’. Em consequência, a sentença firme de divórcio absoluto priva das possibilidades que apresenta a reconciliação posterior à resolução judicial que decreta a separação pessoal, e, dado que o vínculo matrimonial está já dissolvido, faz-se necessária a celebração de novas núpcias para que os ex-cônjuges acedam novamente ao estado de família de casados”[50].
Diferente da opinião de Borda é a situação em nosso sistema, que não permite sequer esta discussão, posto que assim se tenha pretendido regular nos Projetos 3.843 e 3.952[51].
O limite da possibilidade de reconciliação entre os cônjuges é o divórcio. Estando os ex-cônjuges já divorciados, não caberá mais a reconciliação, o que, ademais, já se inferia da lei mosaica[52]. Não importa se o divórcio foi alcançado mediante conversão da separação ou diretamente; tendo o divórcio sido decretado, não poderão os ex-cônjuges mais se reconciliarem.
A propósito, já era claro o art. 33 da velha Lei do Divórcio: “Art. 33. Se os cônjuges divorciados quiserem restabelecer a união conjugal só poderão fazê-lo mediante novo casamento”. Embora o Código de 2002 não tenha repetido expressamente a regra, pode-se afirmar com certeza prevalecer o princípio. Dissolvendo o divórcio o próprio vínculo conjugal, é natural que não possam mais os ex-cônjuges reatá-lo, a não ser por novo casamento. Ainda que a sentença de divórcio não tenha sido registrada, necessária será a realização de novo matrimônio pelos ex-cônjuges[53], ao contrário do que pretendeu Antônio Macedo de Campos[54].
É claro que, não tendo a sentença de divórcio ainda transitado em julgado, poderão os cônjuges desistir da dissolução do vínculo[55]. Em consequência, se a ação fosse a de conversão da separação em divórcio, poderiam os cônjuges dela desistir e até mesmo se reconciliarem. Caso a ação seja de divórcio direto, não necessitarão sequer da reconciliação, bastando que voltem a viver juntos, interrompendo a anterior separação de fato[56].
Portanto, como dito, a disposição deste artigo é no sentido de simplesmente reafirmar esta doutrina, amplamente majoritária na doutrina brasileira, de que não é possível a reconciliação depois do divórcio transitado em julgado[57].
Casando-se novamente os cônjuges, o tempo do casamento anterior não é contado para nenhum efeito. É, no dizer de Orlando Gomes, “como se fosse casamento com terceiro”[58]. Já era assim no direito brasileiro desde a velha Lei do Divórcio; se os cônjuges quisessem, v.g., separar-se consensualmente, teriam que aguardar o decurso de um ano do novo casamento[59].
Mas o Projeto cuidou de tratar também da possibilidade de cônjuges ainda separados judicialmente se reconciliarem. O art. 7º. do Projeto, acima transcrito, reproduz a antiga possibilidade de reconciliação a qualquer tempo para casais ainda separados judicial ou extrajudicialmente, nos termos em que a constituíram, desde que não convertida a separação em divórcio. A reconciliação, neste caso, será feita no juízo do domicílio de qualquer dos cônjuges, mediante simples pedido consensual, extinguindo a obrigação alimentar porventura existente entre eles. Ademais, a reconciliação restabelecerá o nome de casado dos cônjuges e o regime de bens, salvo se houver pedido expresso de alteração do regime.
Trata-se, evidentemente, de disposição transitória, e por isso não foi inserida no próprio Código Civil. Ela se aplicará apenas enquanto ainda houver pessoas separadas judicialmente, que não tenham convertido essa separação em divórcio.
O art. 9º. do Projeto pretende, pura e simplesmente, revogar o art. 1.580 do Código Civil, que trata do divórcio por conversão, já que, extinta a separação judicial, não há mais que se falar em conversão da separação em divórcio.
No entanto, tendo em vista que ainda existem casais separados judicialmente, é mister facultar a esses casais que convertam essa separação em divórcio, razão pela qual o Projeto regula, em seu art. 8º., o procedimento da conversão, que naturalmente só se aplicará aos casais que estejam na situação de separados judicial ou extrajudicialmente.
Trata-se, obviamente, de disposição transitória, pois só se aplicará a determinado número de casais que estão na condição de separados atualmente. Daí o acerto de se tratar disso em dispositivo à parte, não colocando a matéria no Código Civil.
A regulação transitória é semelhante à atualmente existente para a conversão, com alguns pontos dissidentes apenas: deixa-se evidente, em primeiro plano, a independência da causa e da forma da separação para a obtenção do divórcio, o que a doutrina sempre deixou claro. Tanto faz se a separação foi obtida judicial ou extrajudicialmente, consensual ou litigiosamente, com ou sem causa culposa; de toda forma, sempre será possível a sua conversão em divórcio, seja por pedido consensual de ambos, seja por pedido unilateral de qualquer deles.
Também se pretende deixar clara a possibilidade de a conversão ser feita extrajudicialmente, se o casal não tiver filhos incapazes, ou, mesmo os tendo, se a guarda e os alimentos em favor dos filhos já tiverem sido definidos na separação ou em outro processo judicial. A Lei nº. 11.441/07 não foi explícita quanto ao divórcio por conversão, falando apenas em divórcio (naturalmente referindo-se apenas ao divórcio direto), sendo que a doutrina majoritária foi no sentido de que também a conversão poderia se operar extrajudicialmente; o Projeto pretende acolher este entendimento expressamente. E acresce que, mesmo tendo o casal filhos incapazes, poderá a conversão ser extrajudicial, contanto que a guarda e os alimentos já estejam judicialmente determinados; novidade importante para expandir o uso do meio extrajudicial de dissolução, sem prejuízo à salvaguarda dos direitos dos incapazes.
A conversão consensual obedecerá ao procedimento dos arts. 1.120 a 1.124-A do Código de Processo Civil), que é o mesmo procedimento determinado para o divórcio consensual, dispensada, contudo, a realização de audiências, já que estas não são necessárias para a conversão, que tem um único requisito objetivo, a sentença de separação judicial ou a escritura de separação extrajudicial, que se prova documentalmente.
Já a conversão litigiosa obedecerá ao rito ordinário, também dispensada a realização de audiências. Trata-se, portanto, de um rito ordinário simplificado, já que a questão é meramente de direito.
Se a partilha de bens ainda não tiver sido feita, ela necessariamente será definida consensualmente na escritura extrajudicial ou na petição judicial, ou decidida em juízo, não sendo possível em hipótese alguma decretar-se ou homologar-se o divórcio sem decisão quanto à partilha. Explicita-se, assim, a regra antes dúbia do art. 1.581, que foi tão mal interpretada na doutrina, ao afirmar que a partilha poderia ser deixada para depois do divórcio, o que o dispositivo nunca pretendeu (a pretensão era tão-somente permitir a partilha no próprio processo do divórcio, nos termos da jurisprudência que foi se consolidando durante a vigência do art. 31 da velha Lei do Divórcio).
Por fim, havendo alimentos já fixados entre os cônjuges, eles não serão alterados pela conversão da separação em divórcio, só podendo ser extintos se ocorrer qualquer das causas do art. 1.708 do Código Civil; não havendo alimentos fixados entre os cônjuges, só poderão eles ser estipulados se houver acordo entre as partes. Trata-se, portanto, de acolher a boa doutrina no sentido de que o divórcio não altera a situação alimentar das partes, mantendo-se o status quo ante.
3. Proteção da pessoa dos filhos e filiação
No capítulo da proteção da pessoa dos filhos, pretende o Projeto apenas alterar o art. 1.584 do Código Civil. E, no capítulo da filiação, apenas o art. 1.601, ambos abaixo transcritos e comentados:
Neste dispositivo, pretende-se apenas suprimir a referência à separação judicial do inciso I, mantendo-se a regulação atual a respeito da guarda que foi dada pela Lei nº. 11.698/08, que regulamentou a guarda compartilhada no Brasil.
O Projeto pretende, neste dispositivo, restaurar a velha e boa doutrina do Código Civil de 1916, que fixava prazo decadencial para a ação de impugnação de paternidade. O Código de 2002 tornou a ação imprescritível, no que foi profundamente criticado pela doutrina[60]. E, de fato, a crítica procede, pois a impugnação da paternidade não deve ser permitida a qualquer tempo, devendo, ao contrário, ser limitada no tempo, para preservação dos bons laços familiares, que não devem ser baseados exclusivamente no parentesco consanguíneo. Ao contrário, deve-se prestigiar também o parentesco afetivo.
Também se pretende corrigir a expressão usada no parágrafo único do artigo em comento, pois não se trata propriamente de contestar a filiação, mas de impugná-la, o que se faz em ação própria. Recorde-se que contestação é o ato do réu em processo já instaurado, o que não é o caso aqui.
Reafirma-se também, no Projeto, a boa e velha doutrina, que tem sido afastada por alguns autores dito modernos, de que a impugnação da paternidade é ato privativo do marido da mãe. Não o fazendo ele, a filiação se consolida, ainda que contrariamente à realidade consanguínea, não podendo nenhuma pessoa, nem mesmo o próprio filho ou a sua mãe, impugnar a paternidade.
4. Alimentos
No capítulo dos alimentos, são os seguintes os artigos que o Projeto pretende alterar:
O Projeto pretende, neste dispositivo, apenas acrescentar o parágrafo único, para deixar claro o que já é relativamente pacífico na doutrina, ou seja, que os alimentos devidos aos filhos menores, em razão do dever de assistência decorrente do poder familiar, não se submete aos requisitos do caput deste artigo (possibilidade do devedor e necessidade do credor).
De fato, não faz sentido que um pai se esquive de pagar alimentos para seu filho menor alegando falta de possibilidade, embora tenha ele condições mínimas de sustento próprio. Deverá ele, naturalmente, repartir essas condições mínimas com seu filho, ainda que isto implique diminuição do seu próprio sustento. Mesmo estando o pai desempregado, por exemplo, mas angariando ele de qualquer forma o mínimo razoável para o seu sustento pessoal, deverá ele estender esse sustento ao seu filho menor, mesmo que com prejuízo do seu próprio sustento.
Diferente é a situação, obviamente, em que o alimentando é um outro parente qualquer, ou mesmo um ex-cônjuge ou ex-companheiro, caso em que deve prevalecer a regra do caput, em que o alimentante só será obrigado a pagar pensão se isso não lhe causar desfalque do necessário ao seu sustento.
Pretende o Projeto aqui restaurar a boa e milenar doutrina da intransmissibilidade da obrigação alimentar, que já era consagrada no velho Código e foi indevidamente afastada, inicialmente, pela Lei do Divórcio, e depois, pelo Código Civil de 2002.
O art. 402 do Código Civil de 1916 estabelecia que “a obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros do devedor”[61], isto em razão do caráter personalíssimo da obrigação alimentar[62]. É, ademais, o que determinava o art. 928 do Código, que afirmava que a obrigação, não sendo personalíssima, opera assim entre as partes, como entre seus herdeiros.
Assim, como exemplifica Sílvio Rodrigues[63], se uma pessoa obrigada a alimentar o pai morre, deixando descendentes, estes não herdam o dever de prosseguir fornecendo aqueles alimentos, que ordinariamente caberá a seus tios paternos. Não havendo parentes mais próximos, os descendentes do de cujus podem ser chamados a alimentar o avô, mas por nova obrigação, não por sucessão da obrigação de seu pai[64].
A Lei do Divórcio, inovando a matéria, dispôs, no art. 23: “Art. 23. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.796 do Código Civil”[65]. Não cabe mais repetir toda a divergência doutrinária que este dispositivo criou na doutrina e na jurisprudência[66]. Isto porque o art. 1.700 do Código, repetindo a regra do citado art. 23, revogou expressamente o art. 402 do velho estatuto civil. Agora se pode afirmar com segurança: a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor.
Mas as consequências desta revogação são, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira, imprevisíveis[67], sendo tal disposição duramente criticada por Manoel Messias Veiga:
“O mais hilariante do absurdo é o fato traduzido em mulher vivendo às custas de outra mulher, quando esta se confunde como herdeira. Até certo ponto compreensível já que queriam macular a perfeição jurídica antevista no Código Civil (art. 402), deveriam ressalvar a jocosidade. O marido que se divorcia da mulher e com outra casa, morrendo esta outra, entendível que o marido continue a prestar alimentos à primeira, porque a obrigação é pessoal. Ao revés, se morrendo o marido, os filhos deste ou segunda mulher, se herdeira, vai sustentar a primeira. Maior teratologia jurídica é que a dívida pessoal do defunto transmite-se aos herdeiros. Aí, a pena civil é em maior dose do que a penal, que é individual e com uma conotação ímpar contra defunto. A obrigação alimentícia é personalíssima, diga-se era: Atualmente, é familiaríssima. Pasme-se!”[68].
Para José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, não se trata, em rigor, de uma obrigação alimentar transmitida por morte. Neste caso, o credor de alimentos vê assegurado o direito de ser alimentado à custa dos rendimentos dos bens deixados pelo devedor, como sucede, por exemplo, com o apanágio do cônjuge sobrevivente no Direito português. O cônjuge separado judicialmente ou divorciado que tinha direito a alimentos, em vida, conserva-o sobre os rendimentos da herança. Os herdeiros não são obrigados pessoalmente pela dívida de alimentos do autor da sucessão. Fala-se de encargo que atinge os bens da herança em termos reais (ônus real)[69].
Aceita a transmissibilidade da obrigação alimentar, pode ocorrer, v.g., que a segunda esposa de um divorciado seja obrigada a alimentar sua esposa anterior. Basta, para tanto, se considerar que, com o divórcio, tenha ele ficado com a obrigação de alimentar sua ex-esposa. Casando-se novamente e, em seguida, morrendo sem deixar descendentes ou ascendentes, esta obrigação se transmitirá, nos limites das forças da herança, ao seu cônjuge atual.
Vamos além: se esta segunda mulher que herdou a obrigação alimentar casa-se novamente e, em seguida, morre sem descendentes e ascendentes, seu novo marido herdará também esta obrigação de alimentar a ex-esposa do ex-marido de sua ex-esposa[70], sempre nos limites das forças da herança do referido ex-marido (art. 1.997). Isto, em tese, poderia ter sequências infindas[71].
Nota-se claramente que o legislador não atentou para as consequências de seu ato. E é esta a razão de o Projeto pretender corrigir o erro do Código Civil e restaurar a velha e boa doutrina da intransmissibilidade.
O Projeto apenas pretende transpor para o Código Civil as normas que já constam dos arts. 21 e 22 da atual Lei do Divórcio (Lei nº. 6.015/77), que o Projeto pretende substituir.
Trata-se de assegurar o cumprimento da prestação alimentícia, mediante o desconto em folha de pagamento ou a constituição de garantia real ou fidejussória.
Garantia real é a constituição de um bem específico do patrimônio do devedor, e pode se dar em penhor, hipoteca ou anticrese. Garantia fidejussória diz respeito à fiança[72].
A caução assim fixada se fará nos termos dos arts. 826 a 838 do Código de Processo Civil[73]. Bem observa José da Silva Pacheco que, “havendo garantia real, o bem está vinculado ao cumprimento da obrigação ainda após a morte do devedor”[74].
Outras garantias estão estabelecidas no art. 17 da Lei de Alimentos: “Art. 17. Quando não for possível a efetivação executiva da sentença ou do acordo mediante desconto em folha, poderão ser as prestações cobradas de alugueres de prédios ou de quaisquer outros rendimentos do devedor, que serão recebidos diretamente pelo alimentado ou por depositário nomeado pelo juiz”.
Estabelece ainda o Código de 2002 que as prestações alimentícias, de qualquer natureza, serão atualizadas segundo índice oficial regularmente estabelecido (art. 1.710).
A ORTN, que era referida na Lei do Divórcio, foi substituída pela Obrigação do Tesouro Nacional – OTN pelo Dec.-lei 2.284/86[75]. Esta, por sua vez, foi extinta pela Lei 7.730/89[76], tendo sido substituída pelo Bônus do Tesouro Nacional – BTN, adotado pela Lei 7.777/89[77] (oriunda da Medida Provisória 57/89[78]), e extinto pela Lei 8.177/91[79].
A Taxa Referencial de Juros – TR, criada em lugar do BTN, não é índice da economia[80], não servindo, portanto, para a correção monetária das prestações alimentícias[81]. Bem por isso o Código não mais fala de qualquer índice, mas acabou por deixar a questão muito aberta.
Ainda que não exista mais um índice específico para servir de base à correção monetária das prestações alimentícias, não perderam elas esta garantia, já que a regra é a correção; o índice anteriormente citado era apenas uma forma de cumpri-la[82]. Ademais, a própria lei ressalva, como já dissemos, a decisão judicial que estipule a correção por outra forma, que não a nela fixada.
No caso de atraso no pagamento, devem as prestações ser corrigidas monetariamente, desde a data de seu vencimento até o efetivo pagamento.
Tem-se tornado praxe judiciária a estipulação de pensão alimentícia em quantidade de salários mínimos ou em percentual deste. Argumenta-se que este expediente seria inconstitucional, em face da regra proibitiva da vinculação contida no art. 7º, inc. IV, da Constituição Federal[83].
Não entendemos assim. Cremos que a proibição constitucional não atinge a fixação de alimentos, que se confunde com o próprio objetivo do salário mínimo, no que estamos de acordo com a maioria da doutrina[84] e da jurisprudência[85]. Aliás, há de se observar que a proibição constitucional não é novidade. A Lei 6.205/75 já havia disposto desta forma: “Art. 1º. Os valores monetários fixados com base no salário mínimo não serão considerados para quaisquer fins de direito”. E sobre ela o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já tinha se manifestado pela negativa de aplicação às pensões alimentícias:
“Abro um parêntesis para examinar se a Lei 6.205, que descaracterizou o salário mínimo como critério de correção monetária, se aplica obrigatoriamente às pensões alimentares, como entendeu a decisão agravada, ou não.
Inclino-me pela resposta negativa. A razão é simples. Aquele diploma, como é notório visou favorecer os inquilinos, como parte mais fraca, nas locações residenciais, de modo a minorar o impacto econômico e social das majorações de aluguéis com base no SM, sobre as classes menos favorecidas. Acontece que, na relação jurídica alimentar, a situação econômica das partes se inverte: o credor é a parte fraca e o devedor a forte, exatamente ao contrário do que acontece entre locador e locatário. Esta simples análise demonstra como as relações resultantes do direito de família situam-se totalmente fora, senão da letra, ao menos do espírito e da finalidade da Lei 6.205. E a interpretação teológica como é notório, deverá sempre prevalecer sobre a literal. Por este argumento singelo, entendo que o referido diploma não se aplica às dívidas alimentares”[86].
E já se admitiu também a fixação em moeda estrangeira[87].
Mas a fixação de alimentos em salários mínimos deve ser vista sob ângulo diverso; não em razão da proibição constitucional, que, como já afirmamos, não abrange a prestação alimentar, mas em razão de que, como é fato notório, o salário mínimo aumenta em proporções maiores do que os salários em geral, o que pode levar o devedor de alimentos, em algum tempo, à impossibilidade de pagá-los.
Assim, se o devedor ganha apenas um salário mínimo, não há qualquer inconveniente na fixação da pensão em percentual deste. Mas se a renda do devedor é superior ao salário mínimo, não é conveniente a fixação da pensão em número de salários mínimos ou em fração deste, já que os seus ganhos, provavelmente, não alcançarão o aumento do salário mínimo.
É por esta ordem de razões que o Projeto pretende melhor regular a questão da correção da pensão, como já o fazia a velha Lei do Divórcio, deixando ao prudente arbítrio do Juiz a fixação do índice de correção monetária da pensão e, na falta de fixação pelo Juiz, estipulando o INPC como índice oficial.
Pretende o Projeto, neste dispositivo, reestruturar a obrigação alimentar entre cônjuges divorciados, tema que sempre foi muito mal tratado na lei, mas também na jurisprudência e até mesmo na doutrina.
No divórcio consensual não há maiores dificuldades para a disciplina dos alimentos entre cônjuges: observar-se-á o que os cônjuges estabelecerem.
Note-se que não há obrigatoriedade de fixação de pensão, como parecia sugerir o art. 40, § 2º, inc. II, da Lei do Divórcio. Assim como na extinta separação consensual, no divórcio direto consensual a questão já estava colocada na liberdade dos cônjuges.
A regra do art. 1.121, inc. IV, do Código de Processo Civil não deve ser entendida com o rigor que aparenta. Com efeito, tem-se entendido que a não fixação, no acordo da separação, do valor da pensão do marido à mulher faz presumir que esta fica com bens ou rendimentos suficientes para se manter[88].
E nada impede que, ao reverso do que dispõe o referido dispositivo, seja no acordo fixado o valor da pensão da mulher ao marido. Quando o dispositivo processual fala da pensão do marido à mulher, deve-se entender agora como dizendo de um cônjuge ao outro, já que é perfeitamente possível a fixação para ser paga pela mulher ao marido.
O valor da pensão também não é razão de discórdia. Se podem os cônjuges não fixar qualquer pensão, por óbvio, podem também fixar o valor que lhes convier, ainda que seja ele ínfimo. Sendo esta questão de total disponibilidade das partes, não compete ao Juiz intervir. Ressalve-se, no entanto, a possibilidade de o Juiz recusar homologação ao acordo na hipótese do art. 1.574, parágrafo único, do Código Civil, sobre a qual já discorremos[89].
Mas, não criada a obrigação alimentar, não pode um dos cônjuges pretender posteriormente pensão alimentícia do outro, havendo, até mesmo, carência de ação[90]. Observe-se não se aplicar aqui a regra do art. 1.704 do Código de 2002 (que o Projeto pretende revogar), que cria obrigação excepcional depois da separação. A regra, que é de natureza excepcional, tem aplicação restrita a cônjuges separados judicialmente, não podendo ser estendida aos divorciados.
Trata-se, como diz Margareth Zanardini, de regra “de conteúdo demasiadamente assistencial, retrógrado, paternalista e injusto, pois como se sentirá alguém traído, vítima de lesões ou de tentativa de morte, e ainda tiver que pagar pensionamento para seu algoz?”[91].
Portanto, o Projeto pretende apenas esclarecer o que já está relativamente assentado na doutrina: no divórcio consensual só haverá alimentos entre os cônjuges se expressamente acordado por eles, vedada a fixação judicial posterior, sem acordo que tenha estabelecido o pensionamento.
Já no tocante ao divórcio direto litigioso, alguma dificuldade se coloca. Até 1989, a Lei do Divórcio (art. 40, § 1º) estabelecia que o divórcio direto só poderia ser fundado nas mesmas causas previstas nos arts. 4º e 5º e seus parágrafos. Concluir-se-ia, portanto, que a matéria relativa aos alimentos seria tratada da mesma forma como o era para a separação.
Com a revogação expressa deste dispositivo pela Lei 7.841/89, restou o divórcio direto pela simples separação de fato por mais de dois anos (CF, art. 226, § 6º., e Lei do Divórcio, art. 40), sem qualquer alusão à causa que a determinou. A partir daí, já não se poderia aplicar o disposto no art. 19 da Lei do Divórcio, por não se poder falar em cônjuge responsável pelo divórcio. E nem mesmo se poderia aplicar aqui o art. 26 da Lei do Divórcio, como pretendeu Arnaldo Rizzardo[92], já que este só tem aplicação ao divórcio resultante de separação não culposa.
O Código Civil de 2002 também não tratou da questão dos alimentos no divórcio. E, no direito atualmente em vigor, não tem cabimento, no divórcio direto, a perquirição de culpa de qualquer dos cônjuges, nem mesmo para os fins de estabelecimento da pensão alimentícia, como pretenderam João Francisco Moreira Viegas[93] e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[94]. E Yussef Said Cahali parece concordar com este entendimento[95].
Desta feita, se um dos cônjuges pretendesse provar a culpa do outro para se beneficiar de seus efeitos, entre os quais releva o relativo à obrigação alimentar, deveria primeiramente utilizar-se da ação de separação culposa, para depois converter esta em divórcio[96]. Não havendo outro dispositivo legal a criar obrigação alimentar entre os cônjuges neste caso, parece-nos não ser cabível qualquer fixação alimentar no processo de divórcio direto litigioso (sempre ressalvada a hipótese de acordo entre os cônjuges), posto que já se tenha decidido de forma contrária[97].
Pareceu-nos insustentável, portanto, data venia, o entendimento de Yussef Said Cahali, para quem “o cônjuge que teve a iniciativa da ação de divórcio direto, independentemente da causa da separação de fato, fica responsável pela prestação de alimentos em favor do cônjuge demandado; sem que se lhe reconheça o direito de pedi-los”[98]. Está o autor, sem fazê-lo expressamente, aplicando por analogia as disposições referentes à separação não culposa, analogia esta que não é possível em matéria de obrigação alimentar. No sentido que sempre defendemos, é precisa a lição de José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz. Posto que longa, vale a transcrição, por sua precisão:
“Como se sabe, a lei do divórcio admite a separação de fato como causa da separação judicial (art. 5º, § 1º, modalidade do desquite-ruptura). Considerou válida a solução que impõe, ao cônjuge que tomou iniciativa da dissolução da sociedade conjugal, o dever de prestar alimentos (art. 26).
Esta separação judicial pode vir a converter-se em divórcio. Portanto, o divórcio substitui a separação judicial e o cônjuge responsável continua obrigado a prestar alimentos.
Na modalidade de divórcio direto com fundamento na separação de fato (divórcio por ruptura da vida em comum), temos providência análoga à conversão da separação judicial em divórcio, ‘com diferença apenas de que aqui a separação não é juridicamente reconhecida, não é de direito, mas de facto’.
Partindo desses pressupostos, a primeira idéia que ocorre é a seguinte: a integração da lacuna deve ser feita com recurso à norma aplicável ao caso análogo: a mesma solução que o legislador adotou para o desquite-ruptura (art. 5º, § 1º, e art. 26) seria aplicável a (sic) separação fundada na separação de fato entre os cônjuges (art. 40).
A prestação de alimentos seria devida pelo cônjuge que tomou a iniciativa da ação de divórcio.
Como se alcança sem grande dificuldade, é possível outra solução para que não se equipare o autor da ação de divórcio ao cônjuge responsável. No pensamento da Lei 7.841, de 17.10.1989, a expressa revogação do § 1º do art. 40 da Lei do Divórcio buscaria afastar não só as causas suplementares, descritas nos §§ 1º e 2º do art. 5º da mesma lei, como fundamento do pedido direto do divórcio, mas também as particulares conseqüências de sujeitar o autor da ação de divórcio às sanções previstas no § 3º do art. 5º e art. 26 da mesma lei.
Não se pode, portanto, negar ao cônjuge demandado o direito de reconvir, para alegar que o autor é culpado pela separação. Se falhar na prova de que a separação se deve a fato imputável ao autor, o réu não colhe o benefício de concessão de alimentos.
É a solução que julgamos razoável, em face duma lei extremamente defeituosa e lacunosa”[99].
Concluiu-se, portanto, não ser possível condenação em alimentos na ação direta de divórcio. Com o fim da separação judicial pela Emenda 66/10, a questão ganhou novos contornos, que deverão ser solucionados em nova regulamentação do divórcio. Pareceu-nos conveniente se readmitir a discussão sobre culpa no divórcio, não apenas para solução da questão dos alimentos, mas, de forma excepcional, também para outros fins, sem prejuízo da possibilidade de permanência do divórcio litigioso não culposo (ou meramente unilateral), caso em que continuará não havendo fixação de alimentos entre os ex-cônjuges.
A fixação da pensão alimentícia em favor de um dos cônjuges, no divórcio culposo, dependerá, assim, de dois requisitos: que necessite da pensão e que seja considerado inocente[100]; este ligado à própria existência da obrigação alimentar; aquele, pressupondo este, só diz respeito à própria fixação da pensão. Faltante um deles, não poderá ser fixada a pensão.
Por fim, quanto ao divórcio litigioso não culposo, optou o Projeto por permitir os alimentos neste caso apenas de forma consensual, ou seja, se houver acordo entre os cônjuges, à semelhança do que ocorre no divórcio consensual, já que, na ausência de acordo, não há parâmetros para a fixação judicial dos alimentos, já que não há cônjuge culpado, não sendo recomendável a fixação em favor do que apenas necessite.
A pretensão do Projeto aqui é simplesmente substituir a referência à separação judicial pelo divórcio, explicitando também que se trata de filhos incapazes (menores ou maiores incapazes por outros motivos).
Mantém-se, assim, a disciplina dos alimentos em favor dos filhos incapazes, devendo ambos os cônjuges contribuir para eles na proporção de seus recursos, doutrina introduzida pela velha Lei do Divórcio e mantida no Código Civil de 2002.
Pretende o Projeto aqui, tão-somente, deixar expressa a possibilidade de renúncia aos alimentos por parte do ex-cônjuge que ficou com direito a alimentos no divórcio, entendimento este pacífico na doutrina.
A jurisprudência, contudo, divergiu desse entendimento. Estabelecia a Súmula 379 do Supremo Tribunal Federal que “no acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais”. A tese é a aplicação, aos alimentos fixados entre ex-cônjuges, do disposto no art. 404 do Código Civil de 1916, que foi repetido com uma redação um pouco diversa, no art. 1.707 do Código de 2002. A jurisprudência, em regra, sufragou a tese do Supremo Tribunal Federal esposada na Súmula[101].
Posteriormente à edição da Súmula, em julgamento de Recurso Extraordinário em que a questão foi longamente debatida, inclusive tendo sido proposta a revogação da Súmula[102] (o que não chegou a ser acatado), o Supremo Tribunal Federal explicitou-a, afirmando que a mesma só se aplica se a mulher não ficou com bens suficientes para sua subsistência. Em caso contrário, possível seria a renúncia[103]; este entendimento foi recentemente adotado pelo Superior Tribunal de Justiça[104].
Neste aspecto estamos com a doutrina amplamente majoritária, que afirma não se justificar a disposição sumular[105], nem mesmo com a explicitação posterior.
É preciso, primeiramente, ter-se em mente que o dever de mútua assistência, assim como todos os deveres do casamento, cessam com a dissolução da sociedade conjugal. Com efeito, durante o casamento, estabelece o art. 1.566, inc. III, do Código Civil que é dever dos cônjuges a mútua assistência. Cessado, no entanto, o casamento, cessa tal dever, não havendo, assim, disposição legal a manter tal obrigação[106].
Os alimentos, como obrigação que são, só podem se constituir em virtude de lei, vontade das partes (por contrato ou testamento) ou ato ilícito. Descartada a última hipótese (ato ilícito), que não tem aplicação aqui, deve-se observar que ex-cônjuges não são parentes[107], não tendo aplicação o art. 1.694 e seguintes do Código Civil, não havendo, assim, disposição legal (ressalvados os arts. 1.702 e 1.704) que determine que um dos cônjuges preste alimentos ao outro após a separação judicial[108].
Quanto à referência à lei, contudo, é preciso esclarecer: a rigor, a lei é fonte mediata[109] de todas as obrigações, pois sem que a lei dissesse (ainda que implicitamente[110]) que as convenções devem ser cumpridas, não se teria verdadeira obrigação. Mas quando se arrola a lei como fonte da obrigação, está-se lhe emprestando um significado especial, arrolando-a como se fosse uma fonte imediata da obrigação, eis que estará ela diretamente, e não mais mediatamente, criando a obrigação. Em verdade, não se dispensa a ocorrência de um fato jurídico que se ponha entre a lei e a obrigação. Assim, v.g., a obrigação alimentar fundada no parentesco, que tem por “fonte imediata” a lei, depende da ocorrência do parentesco (fato jurídico)[111]. Ou seja, em verdade é impróprio dizer-se que a lei é fonte imediata de obrigações. Nos casos em que assim se afirma, de fato, teremos determinados fatos jurídicos atuando como fonte imediata, fatos esses que não conseguimos enquadrar em uma determinada categoria (e daí ter Gaio acrescido a expressão “qualquer outra coisa” às fontes das obrigações), como ocorre na manifestação de vontade e no ato ilícito.
Restaria, assim, o acordo das partes. Se fica fixado no acordo de divórcio consensual, legítimo contrato entre partes capazes[112], que um dos cônjuges dará determinada importância ao outro, mensalmente, a título de alimentos, cria-se, assim, a obrigação[113]. Até mesmo por acordo posterior à homologação do divórcio podem os ex-cônjuges estabelecer pensão alimentícia entre si, embora seja esta hipótese mais rara.
Mas, se os cônjuges renunciaram, no acordo de divórcio consensual, aos alimentos, e não havendo novo acordo entre eles, a que título poderia ser um dos ex-cônjuges (normalmente o varão) obrigado a prestar alimentos ao outro[114]?
Não havendo disposição legal a criar a obrigação, como se poderia invalidar a renúncia validamente homologada quando da dissolução do casamento para se fazer ressurgir a um dos cônjuges o direito a alimentos? Esta tese foi sufragada pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu indevidos alimentos pleiteados por ex-cônjuge que a eles renunciou na separação consensual[115], e depois assim novamente decidiu a 4ª. Turma: “Sendo o acordo celebrado na separação judicial consensual devidamente homologado, não pode o cônjuge posteriormente pretender receber alimentos do outro, quando a tanto renunciara, por dispor de meios próprios para seu sustento”[116].
E, diga-se mais, se se admitisse o desfazimento da renúncia aos alimentos, ter-se-ia que admitir também o desfazimento de outras cláusulas do acordo, já que, normalmente, a renúncia vem acompanhada de outras cláusulas compensatórias. Assim, v.g., a mulher renuncia aos alimentos e fica com determinado bem na partilha. Naturalmente, se o marido soubesse que poderia vir a ser compelido a alimentar a mulher posteriormente, não concordaria com a partilha daquela forma. Portanto, se se admite desfazer a renúncia validamente concedida no acordo, tem-se que admitir desfazer todo o acordo[117].
Convém lembrar, a propósito, a regra do caput do art. 848: “Sendo nula qualquer das cláusulas da transação, nula será esta”. Não se pode negar que o acordo de divórcio consensual tem características muito assemelhadas à transação, não se lhe podendo recusar também o caráter indivisível que tem esta. Portanto, invalidada uma de suas cláusulas, força é concluir pela invalidação de todo o contrato. João Claudino de Oliveira e Cruz alinha outro argumento de peso:
“Ora, suponhamos que o marido possua fundamento para a ação de desquite contra a mulher, inclusive por adultério; querendo poupá-la e evitar a repercussão dos fatos, inclusive por causa dos filhos, concorda em solucionar a questão por via de desquite amigável, contanto que a mulher renuncie aos alimentos. Seria justo não admitir-se tal renúncia? Seria justo forçar o marido a prosseguir na ação acusatória contra a mulher, com os escândalos e a repercussão própria, porque, só assim, estaria livre da obrigação de alimentar?
A resposta só poderia ser no sentido da admissão da renúncia. Daí por que, em alguns casos, a renúncia aos alimentos esconde a culpa, não interessando à Justiça que esta venha, de qualquer forma, à (sic) lume”[118].
Com razão, pois, a doutrina critica a criação jurisprudencial esposada na Súmula 379 do Supremo Tribunal Federal[119], que pode, inclusive, levar a um “parasitismo social e à existência de ‘ex-cônjuges profissionais’, que muitas vezes deixam de se casar com outras pessoas para não perderem o conveniente ‘salário mensal’”[120].
Neste sentido é a escorreita lição de Domingos Sávio Brandão Lima:
“Desde a primeira edição de nosso Desquite Amigável em 1971 que vimos combatendo uma nova casta que se formou – as parasitas do vínculo conjugal, sob a proteção do STF.
O Divórcio não pode nem deve transformar-se em processo de viver à custa do ex-marido. O trabalho é obrigação social e o desenvolvimento nacional se assenta na valorização do trabalho como condição da dignidade humana (CF, art. 160, II). É indispensável incentivar a cada um diligenciar para que viva independente e com o seu próprio esforço, contribuindo com o seu trabalho para a grandeza do País”[121].
No mesmo sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal: “Penso que alimentos não se podem erigir em fonte de inércia e nociva desocupação. Os autos demonstram que a autora pode trabalhar. Conta, no mínimo, com seus pais para sobreviver. Não é justo sobrecarregar ainda mais o ex-marido”[122]. Parece-nos, assim, desacertada a solução da Súmula 379 do Supremo Tribunal Federal. Os alimentos entre ex-cônjuges são, em nosso entender, renunciáveis.
Argumentar-se-ia com o fato de que a solução legal poderia levar pessoas a situações de penúria, por terem renunciado aos alimentos por ocasião da dissolução do casamento (ou, mais corretamente, não criando a obrigação alimentar), ficando depois sem condições de se manter. A tais considerações (nada jurídicas, por sinal) respondemos com dois argumentos: primeiramente, o art. 1.574, parágrafo único, dá ao Juiz a faculdade de recusar a homologação do acordo quando verificar que este é prejudicial a uma das partes[123]. Assim, se o Juiz constatar que essa situação de penúria irá se configurar após a dissolução, deverá recusar homologação ao acordo, instando a que os cônjuges o refaçam, em melhores condições para o cônjuge que certamente padecerá de necessidades.
Em segundo lugar, em penúria está considerável parte da população brasileira, abaixo da linha de pobreza, vivendo nas ruas das grandes cidades mendigando o pão. Nunca se imaginou uma solução para instituir um crédito alimentar para estas pessoas, obrigando outras mais afortunadas que com elas não têm qualquer vínculo jurídico. Pois bem; ex-cônjuges divorciados também não têm qualquer vínculo jurídico, pelo que não há qualquer razão para esta solução absolutamente à margem da lei. Expressiva, a propósito, a lição de Pontes de Miranda:
“Tem-se procurado estabelecer confusão entre o dever de alimentos, que se regula nos arts. 396-405, e o dever de alimentos entre cônjuges. O marido e a mulher não foram incluídos nos arts. 396-398. O direito matrimonial é que rege os alimentos entre cônjuges. Não, o direito parental. O 2º Grupo de Câmaras Civis do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 08.09.1949 (R. dos T., 182, 691), advertiu no que expuséramos desde 1917. A sua interpretação dos arts. 397 e 398 está certa: ‘Podem os parentes – são as palavras da lei. Os artigos imediatos apontam quais são esses parentes, ascendentes e descendentes, art. 397, e irmãos, assim germanos como colaterais – art. 398. Além de tais pessoas, não subsiste a obrigação alimentar. A regra é cada qual viver à sua custa. Por exceção, em casos especiais, comete-se aos parentes o encargo. Não permite a matéria, entretanto, por ser de direito estrito, interpretações analógicas ou extensivas. Cônjuge não é parente. É companheiro, sócio, enquanto perdura a sociedade conjugal. Dissolvida que seja, torna-se um estranho, apenas impedido de casar, por motivos de ordem pública. Não seria justo, aliás, constranger um deles, após o desquite por mútua vontade, a sustentar o outro. Terminando o desquite a sociedade conjugal, extinguem-se esses deveres, salvo quanto ao último, ‘sustento, guarda e educação dos filhos’, que persiste por especial determinação da lei (art. 381). Ora, se por força do desquite desaparecem as vantagens do casamento, tais como a assistência mútua, a vida em comum, lógico é que se ponha fim também aos ônus, entre os quais sobreleva o de manutenção da esposa’”[124].
A criação pretoriana já se justificou em tempos passados, pela hipossuficiência econômica da mulher. Nos dias atuais, em que a mulher conquistou a igualdade de direitos com o homem, não só formalmente, como decorrência dos arts. 5º, inc. I, e 226, § 5º, ambos da Constituição Federal, mas também de fato, com sua independência financeira e laboral[125], não mais se justifica defender tal posição ao arrepio da lei. Afinal, não mais se pode falar em alimentos entre cônjuges como officium pietatis, como ocorria no direito romano[126].
E já se prega não ter a disposição da Súmula 379 do Supremo Tribunal Federal sido recepcionada pela Constituição Federal[127], embora, a rigor, nem se possa falar de recepção de súmula pela Constituição.
E, de qualquer forma, ainda que aceitando-se a Súmula para a separação judicial, em hipótese alguma se poderia aplicar a disposição sumular a ex-cônjuges divorciados, como pretendeu Pedro Sampaio[128] e como decidiu certa feita o Supremo Tribunal Federal[129]. Isto porque o divórcio põe fim a todos os liames entre os cônjuges que ainda poderiam se admitir coexistirem após a separação, restando os ex-cônjuges como verdadeiros estranhos[130]. Neste sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“O casamento válido se dissolve com o divórcio, bem como as obrigações dele decorrentes, inclusive a de prestação de alimentos se houver renúncia expressa da parte interessada. Recurso especial conhecido e provido para julgar a recorrida carecedora de ação e extinguir as ações ordinária de modificação de cláusula de alimentos e cautelar de alimentos provisórios”[131].
Convém notar, por fim, que o entendimento que estamos a defender foi acolhido na III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, onde se deixou enunciado: “o art. 1.707 do Código Civil não impede seja reconhecida válida e eficaz a renúncia manifestada por ocasião do divórcio (direto ou indireto) ou da dissolução da ‘união estável’. A irrenunciabilidade do direito a alimentos somente é admitida enquanto subsista vínculo de Direito de Família”[132].
Temos, portanto, por não aplicável o disposto no art. 1.707 do Código Civil à obrigação alimentar entre ex-cônjuges, sendo perfeitamente renunciáveis tais alimentos. Daí a razão de o Projeto pretender explicitar esta não aplicação.
Ressalve-se, entretanto, a hipótese de incapacidade do cônjuge credor, que o impede de renunciar aos alimentos (embora o fundamento não seja o art. 1.707 do Código Civil), hipótese esta que era mais frequente no caso de decretação da então separação fundada no art. 1.572, § 2º, do Código Civil (separação por doença mental).
Ademais, pretende-se também deixar expresso que a renúncia é irrevogável. Renunciando aos alimentos, não poderá o ex-cônjuge pretendê-los novamente em momento posterior.
Pretende o Projeto, neste dispositivo, substituir a controvertida causa de extinção da obrigação alimentar referente ao “procedimento indigno” por parte do credor pela expressa menção das demais causas que sempre foram reconhecidas na doutrina, embora não estivessem expostas de forma expressa na lei.
A doutrina sempre enunciou que o direito a pensão se extingue se o beneficiário se casa novamente (art. 1.708), se passa a viver em concubinato[133] (seja a união estável – art. 1.723 –, seja o chamado concubinato impuro – art. 1.727), ainda que não sob o mesmo teto[134], ou se tiver procedimento indigno em relação ao devedor[135], o que, no entanto, não é motivo para exigir do cônjuge credor uma conduta absolutamente casta[136]. Não se impede, portanto, simples namoro do cônjuge credor, ainda que com relações sexuais eventuais, como tem decidido o Superior Tribunal de Justiça:
“…A separação judicial põe termo ao dever de fidelidade recíproca. As relações sexuais eventualmente mantidas com terceiros após a dissolução da sociedade conjugal, desde que não se comprove desregramento de conduta, não têm o condão de ensejar a exoneração da obrigação alimentar, dado que não estão os ex-cônjuges impedidos de estabelecer novas relações e buscar, em novos parceiros, afinidades e sentimentos capazes de possibilitar-lhes um futuro convívio afetivo e feliz”[137].
O fato de ter o credor (especialmente a mulher) filhos com terceiros não é suficiente, por si só, para extinguir a obrigação alimentar de seu ex-consorte, como decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“Não autoriza exoneração da obrigação de prestar alimentos à ex-mulher o só fato desta (sic) namorar terceiro após a separação.
Pensão alimentar. Pretensão à exoneração que se contém na faculdade revisional à sua redução. Ajustada na separação consensual, o vínculo obrigacional subsiste quanto ao futuro, desinfluente o rumo tomado pelas partes na recomposição de suas vidas privadas e, também, as situações conscientemente criadas. É humanamente compreensível a concepção de um filho pela mulher pensionada, fruto de discreto relacionamento com outrem, sem vida concubinária ostensiva, superando talvez a frustração matrimonial”[138].
E o Superior Tribunal de Justiça também assim decidiu, por sua Quarta Turma. O Ministro Aldir Passarinho, Relator do Recurso Especial, concordou que a separação judicial põe termo ao dever de fidelidade recíproca, não sendo possível a exoneração da obrigação de prestar alimentos à ex-mulher pelo simples fato de ela namorar terceiro após a separação. “Não fosse assim, aduza-se, a mulher divorciada/separada, uma vez pensionada por necessidade, ficaria desestimulada, ou quase impossibilitada, de buscar a sua felicidade pessoal em novo relacionamento”. O Ministro lembrou que não houve alteração na situação da ré, mesmo após a gravidez, não havendo no processo provas de que houve vida em comum entre os dois, tendo sido necessária, inclusive, ação judicial para o reconhecimento do filho. Segundo o relator, não há voto de castidade, de qualquer forma. “Desaparecidos os deveres de coabitação e fidelidade com a separação, os ex-cônjuges podem dar novos rumos em suas vidas”, concluiu o Ministro, ao manter a pensão alimentícia[139].
Para tanto, é necessário que não esteja evidenciada a existência de concubinato com o pai[140], embora se possa afirmar que o nascimento de filhos é presunção veemente do concubinato ou da vida irregular do credor[141]. Naturalmente, não será o ex-marido compelido a alimentar estes filhos tidos com terceiros, nem mesmo indiretamente, por meio da pensão fornecida à mãe. O que não é possível é que ela se utilize da pensão recebida do outro para sustentar seus amantes.
Há também quem entenda que se deve levar em conta o disposto no art. 1.814 do Código Civil[142], que trata das causas de indignidade para suceder. Este entendimento, inclusive, foi adotado na III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal[143].
Uma vez evidenciada a existência de concubinato, cessa a obrigação alimentar, independentemente da suficiência econômica dos concubinos, eis que o concubinato, por si só, é causa de extinção da obrigação, não havendo que se falar em desnecessidade neste caso e não se exigindo prova da contribuição financeira do concubino ao credor dos alimentos, como indevidamente se entendeu na citada III Jornada de Direito Civil[144].
Associando a regra do art. 1.708, parágrafo único, com a do art. 1.704, parágrafo único, ambos do Código Civil de 2002, entendeu-se na IV Jornada que o procedimento indigno do credor em relação ao devedor pode ensejar apenas a redução do valor da pensão alimentícia para quantia indispensável à sobrevivência do credor[145]. Temos dúvida em acatar esse entendimento. É que a regra do parágrafo único do art. 1.704, que permite a criação de obrigação alimentar em favor do cônjuge culpado pela separação, pressupõe que o ato culposo tenha se dado em momento anterior à separação. Já o parágrafo único do art. 1.708 estabelece o ato culposo como causa de cessação da obrigação alimentar. Cometido tal procedimento indigno depois da separação, extingue-se a obrigação alimentar até então existente. Não vemos como seria possível criar nova obrigação com base no parágrafo único do art. 1.704. E, se não é possível a criação de nova obrigação, também não será possível converter a primeira obrigação na segunda[146].
Tendo em vista, portanto, a polêmica que gira em torno da expressão “procedimento indigno”, como se viu acima, entendemos por bem suprimir esta causa do rol de situações que causam a extinção da obrigação alimentar.
Afora estas hipóteses, normalmente apontadas na doutrina, existem outros casos em que se dá a extinção da obrigação alimentar: a reconciliação, a renúncia, os limites da força da herança, a morte do credor e o fim do prazo da obrigação temporária.
Quanto à primeira, reitere-se aqui o que já se disse: terá ela agora aplicação excepcional para os casais que já estavam separados antes da Emenda 66/2010, sendo de se acrescentar aqui que, embora voltem os cônjuges, com a reconciliação, ao dever de mútua assistência, a obrigação alimentar criada na separação se extinguirá.
A renúncia feita posteriormente ao estabelecimento da obrigação (sobre a qual também já falamos anteriormente) também dá causa à sua extinção, sendo de se ressaltar que só é possível a renúncia entre partes capazes.
Quanto à terceira hipótese também falamos, quando cuidamos da transmissibilidade da obrigação alimentar (art. 1.700).
A quarta hipótese é por demais clara, dispensando maiores comentários. A morte do credor, tendo em vista a natureza personalíssima da obrigação, também dá causa à extinção da obrigação. Note-se que tal fato em nada foi infirmado pela revogação do art. 402 do Código Civil de 1916 (neste Projeto restaurado), já que a obrigação, pelo menos no que diz respeito ao credor, indubitavelmente permaneceu personalíssima, não se operando, portanto, entre os seus herdeiros (art. 928 do Código Civil de 1916, não repetido expressamente no Código de 2002).
Pode ainda haver extinção da obrigação alimentar nas hipóteses criadas pelas partes no contrato. Assim, podem as partes estipular que um dos cônjuges pensionará o outro até que se cumpra determinado prazo (v.g., pensão por cinco anos), ou se implemente determinada condição (v.g., pensão até que o ex-cônjuge arrume um emprego ou acabe de pagar as prestações da casa própria).
Neste caso, é bom que se diga, a estipulação de causa contratual de extinção da obrigação não impede a ocorrência de causa legal (v.g., casando-se o cônjuge credor antes de completado o prazo contratual da obrigação, cessa seu direito aos alimentos), salvo se houver expressa previsão legal de que não operem as causas da lei (v.g., podem os cônjuges estipular que a pensão continuará mesmo após o casamento do credor), previsão esta que é possível, por ser a lei nesta parte meramente dispositiva.
Esta última situação foi então acrescida no parágrafo único pelo Projeto, em substituição à causa excluída (“procedimento indigno”), não se tendo feito o mesmo com as causas anteriormente citadas por desnecessidade, dada a obviedade delas.
Pode haver alteração, também, se se alterarem as condições de fortuna dos ex-cônjuges. Neste caso, porém, não haverá extinção da obrigação alimentar, que permanecerá incólume, podendo ser novamente fixada pensão posteriormente, embora já se tenha decidido, a nosso ver com grande equívoco, data venia, que pode haver exoneração temporária da obrigação alimentar[147].
A extinção não é, de regra, automática, dependendo de declaração judicial[148]. Será, no entanto, automática a extinção na hipótese de novo casamento do credor[149] ou quando vencer o prazo da obrigação alimentar temporária (v.g., cláusula que determina o pagamento de pensão por um cônjuge ao outro por cinco anos). Se, entretanto, ficar estabelecido que os alimentos serão prestados enquanto o credor necessitar, ou mesmo se ficar acordado que serão os alimentos devidos durante determinado tempo e, após, enquanto o credor necessitar, a exoneração não será automática[150].
Uma vez extinta a obrigação alimentar, não mais se restaura[151], não havendo, assim, que se falar em suspensão da obrigação, como pretendeu o Tribunal de Montpellier[152], e como pretendem também alguns Tribunais brasileiros[153] (já tendo o Supremo Tribunal Federal, em tempos longínquos, assim decidido[154]) e alguns doutrinadores[155]. A aceitação desta tese implicaria constituir o ex-cônjuge em “reserva” para eventual necessidade. Cessado, portanto, o concubinato, que extinguiu a obrigação alimentar, só terá o ex-credor da pensão condições de exigir alimentos, se for o caso, do ex-concubino, não do ex-cônjuge.
Da mesma forma haverá extinção e não simples suspensão, da obrigação alimentar com o novo casamento do credor. Não haverá renascimento daquela obrigação nem mesmo se o novo casamento for anulado, ainda que sendo declarada a putatividade do ex-credor[156].
5. União estável
No capítulo da união estável, o Projeto pretende alterar apenas este artigo:
Pretende-se aqui retirar a separação de fato como circunstância autorizadora da constituição de união estável, o que, além de todos os inconvenientes já bastante conhecidos na doutrina, tem o condão de criar confusão em eventual concorrência de sucessão com cônjuge e companheiro.
A separação de fato não deveria ser erigida à condição de autorizadora da união estável, tendo em vista que ela não extingue os vínculos do casamento, não dissolvendo nem mesmo a sociedade conjugal. Permanecem intactos os deveres do casamento (art. 1.566), inclusive os deveres de vida em comum no domicílio conjugal e fidelidade recíproca, bem como o próprio regime de bens.
Isso significa que o enlace sexual de um dos cônjuges separado de fato com terceiro configura infração ao dever de fidelidade; a coabitação estabelecida com o “companheiro”, que certamente implica ausência de coabitação com seu cônjuge, infringe o dever de coabitação do casamento; o regime de comunhão parcial da união estável (art. 1.725) é incompatível com eventual comunhão estabelecida no casamento anterior. Poderia o “companheiro” casado cumprir, ao mesmo tempo, o dever de fidelidade (ou lealdade, nos termos do art. 1.724) da união e o dever de fidelidade do casamento (art. 1.566, inciso I)? Pode a lei proteger uma união que é contrária a um casamento, que tem proteção constitucional (art. 226, caput)?
Ademais, como dissemos, tal disposição pode criar problemas sucessórios, por não ser possível a conjugação da regra do art. 1.790 com a regra do art. 1.830. Por tudo isto, parece-nos inconstitucional a disposição do § 1º. do art. 1.723, na parte em que permite a caracterização da união estável sendo um dos “companheiros” apenas separado de fato[157], razão pela qual foi proposta a sua supressão.
6. Conclusão
Pretende-se, com este Projeto, adaptar a legislação infraconstitucional à nova ordem constitucional instaurada pela Emenda Constitucional nº. 66/2010, regulamentando todas as lacunas deixadas pela lacônica Emenda, que se limitou a alterar o § 6º. do art. 226 da Constituição Federal, sem dar mínimos detalhes do novo instituto do divórcio. Assim, compete à lei ordinária regulamentar a nova ordem constitucional, dando os detalhes e procedimentos do novo instituto, o que se pretende com o Projeto em questão.
Especialista em Direito pela Universidade Paranaense–Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá–UEM. Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo–USP. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Lisboa–Portugal. Professor de Direito Civil na Escola do Ministério Público, na Escola da Magistratura do Paraná e na FAPI. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros (entre outros): Novo divórcio brasileiro: teoria e prática, pela ed. Juruá, em 12ª. edição; Abuso do direito, pela ed. Juruá, em 5ª. edição; Responsabilidade civil no direito de família, pela ed. Juruá, em 5ª. edição; Curso de direito civil: teoria geral do direito civil, v. 1 (em 3ª. edição) e 2, pela ed. Juruá; Direito sucessório do cônjuge e do companheiro, pela ed. Método; Direito civil: direito das sucessões, v. 8, pela ed. Revista dos Tribunais; e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas
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