Resumo: O artigo aborda a polícia administrativa estabelecida a partir da autonomia político-administrativa municipal estabelecida constitucionalmente para demonstrar que seu exercício pode ocorrer diretamente de lei de diferentes órbitas governamentais, mas que sempre depende de uma previsão legal. Aborda a forma como se estabelece o poder de polícia na legislação municipal, observando que em determinados momentos, a legislação municipal termina por se complexificar a ponto de inúmeros diplomas legais regularem parcialmente determinadas condutas. Finaliza demonstrando que tal exercício, por vezes, pode ser exercido diretamente da lei federal, mas que em outros casos, depende de lei da própria entidade político-administrativa.
Palavras-chave: Poder de polícia; polícia administrativa; administração municipal; cidadania; princípios constitucionais.
Sumário: Introdução; 1 Poder de polícia municipal; 2 Legislação municipal de polícia; 3 Legislação federal de polícia municipal; Conclusão; Referências.
Introdução
As atividades da Administração Pública Municipal têm sido constantemente exercidas de forma a limitar a liberdade, a atividade e a propriedade particulares, principalmente em razão de que as condutas devem se adequar ao interesse maior da coletividade. É a abordagem que diversos autores têm feito para declarar a “supremacia do interesse público sobre o privado”, princípio citado por Mello (2009), como fundamento do Direito Administrativo.
Uma visão social da atuação municipal demonstra, todavia, a necessidade de olharmos os princípios fundamentais da República (Título I – arts. 1° a 4°) e os direitos e garantias fundamentais do cidadão (Título II – arts. 5° a 17), como normas de respeito obrigatório pelo Poder Público e, especificamente, pela Administração.
Esses princípios fundamentais consistem, respectivamente, em uma limitação à atuação administrativa ao mesmo tempo em que estabelecem a obrigatoriedade de intervenção municipal. Com base na Constituição da República (CR), as leis (geralmente municipais) vão estabelecer a obrigatoriedade de respeito ao interesse da coletividade pelo cidadão e o dever legal de limitação de condutas, pela Administração.
Esse entendimento decorre da organização do Estado (Título III – artigos 18 a 43 da CR) onde encontramos as diretrizes de toda a estruturação estatal:
a) a organização político-administrativa (arts. 18 e 19), onde são estabelecidas as várias órbitas governamentais;
b) as competências comuns da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios (art. 23);
c) a organização político-administrativa dos municípios (art. 29 a 31);
d) normas referentes à administração pública e servidores (arts. 37 a 41).
Disso decorre que toda atividade municipal depende de lei que a autorize e esta lei deve se fundamentar na Constituição da República. Assim, da CR vai derivar toda a legislação que autorizará o desempenho das atividades municipais e que serão organizadas na forma que estabelecer a Lei Orgânica Municipal.
Para garantir a concretização da vontade da cidadania, o Município desempenha, em conjunto com a União e o Estado, um papel essencial estabelecido em lei, que é assegurado constitucionalmente como objetivo fundamental da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos, sem preconceitos”.
Bem, o Estado deve garantir a igualdade jurídica. Está estabelecido no art. 5° da Constituição da República, norma fundamental da república, que deve por todos ser respeitada. Mas além desta, o cidadão quer a igualdade social. Para isto, é necessário que o ordenamento jurídico como um todo, como conseqüência da vontade popular, da sociedade civil, estabeleça os mecanismos de eficiência social.
Ao estabelecer diferentes órbitas político-governamentais (art. 18 CR), a Constituição da República estabelece uma pluralidade de competências. Com isso o ordenamento jurídico-constitucional estabelece as diretrizes básicas que serão observadas por cada um dos entes políticos visando a satisfação dos interesses e necessidades de cada esfera político-administrativa, com o que se atenderia com maior eficácia as competências de cada ente.
Embora ocorra esta descentralização estabelecida na CR, é necessário ressaltar que o Município dispõe de autonomia para tratar dos assuntos de interesse local. Essa autonomia pressupõe a aptidão para se governar livremente e de legislar.
Isso significa que o município tem ampla gestão no plano político-administrativo, através da legislatura e da concretização dos interesses locais. É uma autonomia política, administrativa e financeira. A autonomia política consiste na eleição direta de seus dirigentes – agentes políticos; a autonomia administrativa corresponde ao exercício do poder de polícia municipal, à prestação de serviços públicos e à concretização de obras e ao atendimento de necessidades da coletividade; a autonomia financeira corresponde à capacidade de estabelecer e receber dos habitantes os tributos estabelecidos por competência constitucional.
A partir desse contexto, verificamos que o Município detém a autonomia para legislar sobre o interesse local e concretizar suas disposições, respeitadas as disposições obrigatórias decorrentes do próprio ordenamento jurídico nacional.
Significa dizer que, para satisfazer o interesse maior da coletividade, o Município poderá dispor sobre normas de conduta a serem aplicadas ao cidadão, sem prejuízo da aplicação de leis de outras órbitas governamentais que sejam de observância obrigatória. Portanto, no que se refere ao poder de polícia administrativa, compete ao Município concretizá-lo mediante disposição em lei federal, estadual ou municipal, as quais estabelecerão o dispositivo legal para que o mesmo seja concretizado.
No presente artigo, analisaremos alguns aspectos que dispõem sobre o poder de polícia para que a Administração Pública Municipal possa exercê-lo.
A expressão poder de polícia talvez seja uma das mais importantes formas de atuação do Poder Público Municipal por expressar a “autoridade” da municipalidade. Sendo o Município o ente político-administrativo que mais próximo se encontra dos cidadãos, evidentemente que os maiores conflitos existentes deverão ser por ele solucionados.
Embora a expressão poder de polícia apresente contornos autoritários em razão de sua vinculação à idéia de manutenção da "boa ordem na sociedade", presente no Estado medieval, o ius politiae[1], sofreu transformações de conceitos com a evolução do Direito mudando de foco e passando a estender suas ações ao controle da ordem econômica e social.
Sistematicamente, o poder de polícia surgiu de forma organizada com o Estado de Direito, na França, após a Revolução de 1789, através de normas jurídicas de manutenção da salubridade, segurança e tranqüilidade pública.
Costa (2006, p. 193), cita o Decreto d’Allarde, de 17.03.1791, que em seu art. 7º, determinava que qualquer pessoa seria livre para realizar qualquer negócio ou exercer qualquer profissão, arte ou ofício, desde que pagasse taxas e impostos e se sujeitasse aos regulamentos aplicáveis, recebendo para isso uma patente. O autor menciona que questões relativas à salubridade, segurança ou tranqüilidade pública sempre dominaram o campo do poder de polícia, havendo nos dois últimos séculos expansão de seu campo de atuação, envolvendo hoje questões econômicas como a propriedade privada e o meio ambiente.
Portanto, o poder de polícia, atualmente não se limita a assegurar a ordem pública, pois está presente em praticamente todas as áreas de atuação administrativa, entendida como a limitação de atividade, da liberdade e da propriedade para adequá-los ao interesse e ao bem-estar público.
É uma disciplina de adequação das condutas individuais sempre que essas possam ser potencialmente contrárias ao interesse público. Assim, temos a atuação da polícia administrativa municipal nas seguintes áreas: construções, sanitária, logradouros públicos, pesos e medidas, meio ambiente, atividades urbanas, costumes, mortuária, entre outras.
Como exemplo mais presente do exercício do poder de polícia no município hoje, temos o chamado “Código de Posturas” que é uma lei que regula inúmeros aspectos da vida nas cidades. Não distoando da exposição feita por Costa (2006), o Código de Posturas existente na atualidade, é uma herança portuguesa cujo significado está vinculado ao comportamento do indivíduo em relação à sociedade. Diz respeito ao ordenamento estabelecido na Europa a partir do império napoleônico, em decorrência do crescimento das cidades e da necessidade de estabelecer normas para orientar a conduta dos cidadãos, o uso dos bens urbanos, sobre os padrões de higiene e salubridade das áreas públicas e das construções. Um conjunto de normas constantes, principalmente, de proibições e restrições, desde a forma de se vestir, ao consumo disciplinado de determinados alimentos. Decorrência dele, a conduta dos cidadãos era vigiada e policiada, estabelecendo-se como infrações modos de comportamento até então tidos como corriqueiros e usuais. Nascia assim o Código de Posturas, conjunto de normas nas quais inúmeros assuntos eram tratados, entre eles o controle de animais soltos, os vendedores de ruas, a licença de comerciar, o policiamento da cidade, o regulamento do trânsito e do tráfego, o horário de funcionamento do comércio e os horários especiais aos domingos e dias santificados, o controle de certas atividades profissionais (mascates, farmacêuticos e dentistas, por exemplo), assuntos ligados à saúde, como a vacinação, higiene pública e de certas atividades (matadouros, chiqueiros), organização dos cemitérios, proibição de despejos de restos nas ruas, licença para construir e tantos outros (Tauil, 2011, p. 1).
No direito atual, o poder de polícia vem disciplinado no art. 78 do Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172/1966, onde prescreve:
“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
“Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”.
Diante dessa conceituação legal, é importante fazer a distinção, tal como explicitada por Mello (2009), para dizer que o poder de polícia pode ser entendido em dois sentidos: um amplo e outro estrito. No sentido amplo, consiste em todas as formas de limitação, as estabelecidas na lei e sua concretização, no primeiro caso implicando na participação do Legislativo e do Executivo em sua formação; no sentido estrito, é a própria polícia administrativa, simples concretização do poder estabelecido na lei.
Decorrência disso podemos afirmar que o poder de polícia tem seu fundamento na Constituição da República e será reproduzido na Lei Orgânica Municipal, sendo regulamentado nas leis infraconstitucionais, possibilitando que o Poder Público o exerça sob a forma de “polícia administrativa”.
A partir da exposição de Mello (2009) sobre a existência de um “dever-poder” na Administração Pública, é possível afirmar que o poder de polícia deve ser visto como verdadeiro “dever” de concretizar o interesse público local, em razão de que o “poder” somente é outorgado pelo ordenamento jurídico para tornar possível sua concretização.
Partindo deste contexto, embora a Administração Pública possa limitar a fruição dos direitos, deve-se entender que toda e qualquer intervenção do Poder Público submete-se ao princípio da legalidade, de modo que suas ações estão restritas aos limites da lei, sendo vedada qualquer agressão aos direitos de cidadania e à dignidade da pessoa humana. Qualquer limitação à liberdade, à atividade e à propriedade somente é justificada quando o interesse público o exigir.
Sob outro aspecto, normalmente ao falarmos em poder de polícia vem à mente a idéia de órgão policial. É preciso esclarecer seu conteúdo já que existe uma clara distinção entre o poder de polícia administrativa e o poder de polícia judiciária.
Embora a doutrina costume afirmar que a diferença entre ambos seja a de que o primeiro tenha caráter essencialmente preventivo, enquanto o segundo, repressivo, não é essa a distinção que se deve levar em conta em razão de que ambas poderão ser preventivas ou repressivas. Como afirmamos acima, a característica do primeiro é justamente limitar a liberdade, a atividade e a propriedade quando esta puder ocasionar algum dano ao bem-estar coletivo, enquanto a segunda visa reprimir infrações penais.
Não significa que a polícia administrativa não possa punir o infrator; entretanto, a ação pretende evitar ou fazer cessar uma ação danosa à sociedade, como é o caso da apreensão de mercadoria imprópria para o consumo humano, a interdição de um estabelecimento e o embargo de uma obra. É importante considerar que tais medidas, se podem ser entendidas como punição, ocorrem em razão de serem consideradas ilícito administrativo pela legislação administrativa.
Somente estarão na competência do Município os ilícitos administrativos; a polícia judiciária, que acima mencionamos, não compete ao Município e terá por objeto a apuração das ações ilícitas de natureza penal.
É importante salientar que a polícia administrativa é uma função administrativa e, no Município, se encontra no seio da Administração Pública Municipal. Claro que existem situações em que a ação ilícita poderá afrontar tanto a legislação administrativa quanto a penal, cabendo nestes casos, a apuração por cada um dos entes ou órgãos competentes.
Para compreender o poder de polícia em seus sentidos amplo e estrito, devemos iniciar a análise a partir da Constituição da República, que estabelece um sistema de competências reservadas para os Municípios ao prever a possibilidade de legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, CR). A competência para fixar leis que estabeleçam o poder de polícia decorre do art. 30, da CR. Já o exercício da polícia administrativa (sentido estrito) é a própria atuação em decorrência da previsão dos artigos 30 e 23 da CR. A Constituição da República apresenta as situações e limites em que a Administração Municipal poderá agir.
O inciso I do art. 30 da Constituição da República estabelece a competência de legislar sobre assuntos de interesse local; o inciso II possibilita a suplementação da legislação federal e estadual. Em decorrência destas competências o Município pode regular aspectos locais visando estabelecer a forma como vai ordenar os assuntos estabelecidos como competência concorrente com outros entes político-administrativos.
É o caso do trânsito, regulado pelo Código Nacional de Trânsito, que prevê competência aos Municípios para concretizarem os serviços locais, como por exemplo, o estacionamento, a circulação, a sinalização, entre outros. Por outro lado, podemos citar a proteção ao meio ambiente, que tem no Município seu mais próximo guardião, já que a Constituição da República atribuiu expressamente ao Município, concorrentemente com os outros entes político-administrativos, a competência para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas e de preservar as florestas, a fauna e a flora (art. 23, incisos VI e VII da CR).
Fica evidente que qualquer dos entes político-administrativos tem competência para aplicar a legislação ambiental, ainda que essa legislação não tenha sido estabelecida pelo ente público que a aplica, já que a competência administrativa não decorre necessariamente da legislativa. É importante mencionar ainda, que atualmente está ocorrendo a municipalização ambiental, através da qual, cada vez mais, transfere-se o encargo de atuação na esfera do licenciamento e da fiscalização ambiental ao Município. Portanto, realmente não resta dúvida de que tais competências estão em consonância com a previsão constitucional e que tal poder é exercido no âmbito municipal.
É conveniente lembrar que a doutrina tem evitado enumerar as competências municipais, como o fez a própria Constituição da República, pois o interesse local previsto no inciso I do art. 30, basicamente as outorga em todas as atividades no âmbito municipal, exceto sobre as reservadas expressamente a outro ente, razão pela qual deixaria de ser de interesse local. Portanto, pode-se até mesmo dizer que muitas das relações que serão objeto da polícia administrativa são relativas a aspectos cotidianos da vida no Município.
É o que se depreende das palavras de Meirelles (1991, p. 135) quando afirma que as “atividades que, embora tuteladas ou combatidas pela União e pelos Estados-membros, deixam remanescer aspectos da competência local, e sobre os quais o Município não só pode como deve intervir, atento a que a ação do Poder Público é sempre um poder-dever. Se o Município tem o poder de agir em determinado setor para amparar, regulamentar ou impedir uma atividade útil ou nociva à coletividade, tem, correlatamente, o dever de agir, como pessoa administrativa que é, armada de autoridade pública e de poderes próprios para a realização de seus fins”.
Seguindo as premissas levantadas, compete ao Município prover tudo que diga respeito ao interesse público local e ao bem-estar da população, especialmente:
a) legislar sobre ordenação territorial, parcelamento, uso e ocupação do solo, zoneamento urbano-ambiental e obras e edificações;
b) regular o funcionamento de estabelecimentos comerciais, obedecendo às limitações urbanísticas convenientes à ordenação do seu território, serviços de carga e descarga de mercadorias e controlar a capacidade de peso dos veículos que circulam na área pública municipal;
c) regular a utilização dos logradouros, trânsito e transporte público,
d) sinalizar as vias urbanas e as estradas municipais;
e) ordenar as atividades urbanas, fixando condições e horários de funcionamento;
f) regular os serviços funerários e de cemitérios;
g) regular o uso de propagandas, cartazes e anúncios;
h) regular o comércio e depósito de animais, inclusive a circulação destes nas vias públicas;
i) regular os serviços de mercados públicos, feiras e abatedouros e o uso e comércio de produtos comestíveis e de higiene;
j) regular a proteção do meio ambiente (inclusos florestas, praias, rios e lagos) e o controle da poluição em geral, de depósito de lixo domiciliar e industrial;
k) regular os meios de proteção e de defesa da saúde pública e o uso, o comércio e deposição de produtos perigosos ou nocivos à saúde.
Essas e outras atividades de competência municipal podem ser entendidas como vinculadas ao poder de polícia do Município quando competir a ele legislar sobre as matérias expostas acima. Por outro lado, a concretização do poder de polícia (em sentido estrito) vai ocorrer mediante o exercício da polícia administrativa e pode ser apoiada na própria legislação municipal ou na legislação federal ou estadual.
Assim, a regra é que o Município, de forma exclusiva ou suplementar, legisle sobre assuntos de interesse local, regulando as competências e condutas de seus agentes fiscais para o exercício legal de suas funções. Em outras palavras, sem dispositivo legal do próprio Município, torna-se inválida a atuação de seus agentes, mesmo que exista norma legal emanada de outro ente político, salvo ocorrendo delegação expressa em convênio que permita o exercício da função. Além disso, o Município deve atribuir competência por lei ao agente público encarregado de atuar o poder de polícia.
2 Legislação municipal de polícia
Basicamente, quando falamos em polícia administrativa, estamos abordando a questão da fiscalização desempenhada pela Administração Pública. Acima, vimos que no âmbito municipal, em regra, a polícia administrativa é desempenhada voltada a algumas áreas de atuação que, resumidamente, estará prevista em algumas leis: o Código de Posturas, o Código de Obras e Edificações, a Legislação Sanitária, o Código Ambiental, a Legislação de Trânsito e o Plano Diretor Municipal, este último, previsto no Estatuto da Cidade, a Lei federal nº 10.257/2001.
Atualmente embora ainda seja uma prática a existência do Código de Posturas no Município, poderíamos questionar sua necessidade já que diversas outras leis trazem normas que estabelecem o poder de polícia municipal. Com o surgimento de leis sobre matérias específicas, em tese, o Código de Posturas vem sofrendo um esvaziamento em sua abrangência original, limitando apenas alguns aspectos da disciplina administrativa municipal. Por outro lado, verifica-se que ocorre uma ampliação surpreendente do número de leis, muitas vezes contraditórias, o que torna cada vez mais complexo o ordenamento jurídico, embora sempre se diga que deve haver uma consolidação normativa.
No Município de Porto Alegre, verifica-se que a Lei Complementar nº 12, de 07 de janeiro de 1975 estabelece seu Código de Posturas. No Município de Ijuí é a Lei nº 1.729, de 19 de Dezembro de 1978, onde verificamos “medidas de polícia administrativa a cargo do Município, estatuindo as necessárias relações entre este e a população, no que se refere à higiene, ordem pública e funcionamento de estabelecimentos comerciais, industriais, profissionais e de divertimentos públicos” (art. 1º), praticamente reproduzindo a lei portoalegrense.
Embora estejam sendo criados vários outros códigos específicos para cada área, o Código de Posturas permanece vigente em muitos municípios. É o caso, por exemplo, do Código de Posturas de Caçapava do Sul, Lei nº 1.616, de 15 de Janeiro de 2004, que institui “medidas de polícia administrativa, a cargo da municipalidade, relativas à higiene, à ordem, e à segurança públicas, aos bens de domínio público e ao funcionamento de estabelecimentos em geral, regulamentando as obrigações do poder público municipal e dos habitantes do Município” e em seu art. 4º estabelece:
“Art. 4° De acordo com as determinações desta Lei e observadas as normas estabelecidas, pela União e pelo Estado, a fiscalização sanitária no território municipal compreende:
“I – a higiene de vias, de logradouros e de equipamentos de uso público;
“II – a higiene das habitações e dos terrenos;
“III – a higiene da alimentação e dos estabelecimentos onde são fabricados alimentos;
“IV – a higiene dos estabelecimentos em geral;
“V – a higiene de estábulos, pocilgas, galinheiros e similares;
“VI – a limpeza e a desobstrução de vias, cursos d'água e canais;
“VII – o controle da qualidade da água destinada ao consumo humano e dos sistemas de eliminações de resíduos e dejetos;
“VIII – o controle dos sistemas de eliminação e dos depósitos de dejetos líquidos, sólidos e gasosos; e
“IX – outras ocorrências concernentes à higiene pública que vierem a ser verificadas”.
O Código de Posturas estabelece regras sobre os seguintes assuntos: higiene pública (vias e dos logradouros públicos, habitações e terrenos, gêneros alimentícios, higiene dos estabelecimentos, higiene das casas de saúde, capelas mortuárias e necrotérios, cemitérios, inumações e exumações, higiene das piscinas, dos cuidados com animais), ordem e segurança pública (sossego público, trânsito públicos, invasão e depredação de áreas públicas, obstrução de vias e logradouros públicos, estradas e caminhos municipais, meios de publicidade), diversões públicas, funcionamento dos estabelecimentos comerciais, de prestação de serviços e indústrias (estabelecimentos localizados, comércio ambulante, das bancas de jornais e revistas, depósitos de sucata e desmonte de veículos, oficinas de conserto de automóveis e similares, dos postos de serviço e depósitos de materiais inflamáveis).
O Código de Posturas de Ijuí, típica legislação de períodos autoritários, é dividido em três títulos: o primeiro, que trata dos procedimentos e das penas aplicáveis; o segundo, dos seguintes assuntos: logradouros públicos, higiene e habitações, estabelecimentos comerciais, industriais e profissionais, divertimentos públicos e casas e locais de espetáculos, construções, edificações, muros, cercas e passeios, edificações, demolições, tapumes, andaimes, proteção para execução de obras, feiras livres, trânsito público, medidas referentes aos animais, pedreiras, cascalheiras, olarias, depósitos de areia e saibro, extração de areia, anúncios de propaganda; o terceiro, da poluição sonora e dos elevadores.
Em muito se assemelha ao de Porto Alegre, que estabelece regras para os seguintes assuntos, distribuídos em três títulos: no primeiro, procedimentos e das penas; no segundo, regras sobre: logradouros públicos, divertimentos públicos e das casas e locais de espetáculos, veículos de transporte coletivo ou de carga, construções, edificações, muros, cercas e passeios, estabelecimentos comerciais, industriais e profissionais, anúncios de propaganda, elevadores, pedreiras, cascalheiras e depósitos de areia e saibro e medidas referentes a animais; no terceiro, sobre poluição do meio ambiente, poluição do ar, poluição sonora, poluição das águas e poluição contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.
Mas é necessário levantar algumas questões sobre a efetividade do exercício da polícia administrativa no Município: será necessário regulamentar de forma tão ampla os limites a serem obedecidos pelo cidadão visando proteger o “interesse público” ou basta o estabelecimento de regras mais gerais e efetiva fiscalização de seu cumprimento?
Afirma-se isso em razão de que, como citado acima, o Poder Público, aparentemente, preocupa-se em estabelecer leis que regulem as situações passíveis de fiscalização, mas não se preocupa com sua efetividade. É o que se verifica, por exemplo, quando afirma-se que existem leis com cerca de 35 anos que não são respeitadas e o Poder Público cria novas leis para regular aquilo que, aparentemente, já estava regulado. É o caso da “Lei do Silêncio”, Lei nº 4.543, de 12 de maio de 2006, do município de Ijuí, que estabelece condutas passíveis de notificação pela imposição da polícia administrativa municipal.
Dito isso, talvez seja o caso de verificar se a polícia administrativa está sendo desempenhada no âmbito municipal e se há realmente necessidade de novas leis a cada instante para que se estabeleçam novas possibilidades de exercício do poder de polícia no âmbito municipal. De certa forma, aparentemente, a partir da previsão constitucional e na Lei Orgânica Municipal já existe possibilidade concreta de exercício da polícia administrativa, desde que observados os limites estabelecidos, sem necessidade de estabelecer todas as condutas, uma a uma, nas quais incidirão o poder de polícia.
3 Legislação federal de polícia municipal
A polícia ambiental é atividade da Administração Pública que limita ou disciplina a liberdade, atividade ou a propriedade em razão do interesse público específico: a saúde da população, a conservação dos ecossistemas, a disciplina da produção e do mercado, o exercício de atividades que dependam da prévia manifestação do Poder Público em decorrência de atividades que possa decorrer potencial ou efetiva poluição ou agressão à natureza (Machado, 2000, p. 303).
Nessa concepção encontram-se vários instrumentos de polícia ambiental municipal, como o licenciamento, a atividade de fiscalização, monitoramento e realização de audiências públicas ambientais.
Fazendo alusão novamente ao art. 23 da Constituição da República, é necessário citar dois diplomas legais que estabelecem a competência para o exercício da polícia administrativa municipal referente ao meio ambiente: a Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, estabelece o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA); a Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 trata das sanções penais e administrativas aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
“Art. 6º Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, assim estruturado:
“I – órgão superior: o Conselho de Governo, com a função de assessorar o Presidente da República na formulação da política nacional e nas diretrizes governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990)
“II – órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990)
“III – órgão central: a Secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República, com a finalidade de planejar, coordenar, supervisionar e controlar, como órgão federal, a política nacional e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990)
“IV – órgão executor: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, com a finalidade de executar e fazer executar, como órgão federal, a política e diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990)
“V – Órgãos Seccionais: os órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental; (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989)
“VI – Órgãos Locais: os órgãos ou entidades municipais, responsáveis pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas respectivas jurisdições; (Incluído pela Lei nº 7.804, de 1989) (grifo aposto)
“§ 1º Os Estados, na esfera de suas competências e nas áreas de sua jurisdição, elaboração normas supletivas e complementares e padrões relacionados com o meio ambiente, observados os que forem estabelecidos pelo CONAMA.
“§ 2º Os Municípios, observadas as normas e os padrões federais e estaduais, também poderão elaborar as normas mencionadas no parágrafo anterior”.
A partir de 1989, os municípios passaram a integrar o SISNAMA e detém competência para exercer o poder de polícia ambiental concorrentemente aos outros entes integrantes, nos termos da Constituição da República. Na realidade, verificamos que o município passou a integrar o SISNAMA em razão de que a Constituição da República, posterior à Lei n° 6.938/81, estendeu a competência ambiental a eles, o que não poderia ter sido negligenciado em razão do interesse local previsto no art. 30.
A partir do contexto apresentado, aparentemente a Administração Municipal pode estabelecer a estrutura administrativa necessária para exercer o respectivo poder de polícia, desde que tenha órgão ou entidade com as atribuições de controle e fiscalização ambiental.
A Lei nº 9.605/1998 regula as infrações penais e as infrações administrativas ao meio ambiente. Para a Administração Municipal interessa o art. 70 da referida lei, onde está prescrito:
“Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.
“§ 1º São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha.
“§ 2º Qualquer pessoa, constatando infração ambiental, poderá dirigir representação às autoridades relacionadas no parágrafo anterior, para efeito do exercício do seu poder de polícia.
“§ 3º A autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de co-responsabilidade.
“§ 4º As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta Lei”.
Finalmente, é possível afirmar que, considerando o teor do § 3º do art. 70, trata-se de um dever imposto a cada um dos entes competentes de exercer efetivamente o poder de polícia previsto na lei citada. Isso significa que no rol das competências estabelecidas constitucionalmente, existe um espaço de atuação que deverá ser concretizado, embora hoje verifiquemos que a complexa prática existente na atuação ambiental tenha dependido de diversos instrumentos legais para sua efetivação.
Considerando que o Município, enquanto ente político-administrativo integrante da federação, é dotado de autonomia nos termos constitucionais, cumpre a ele, em regra, competência para exercer o poder de polícia no âmbito local.
Esse exercício de polícia administrativa sempre deverá, de acordo com os princípios do Estado de Direito, respeitar o princípio da legalidade, de modo que a atuação da Administração Pública pressupõe autorização legal, e a conduta do cidadão deverá ser vedada por lei.
Entretanto, a questão que mais chama a atenção no que se refere ao exercício da polícia administrativa é que o município, de uma forma geral, tem uma necessidade de estabelecer legalmente as diversas condutas que deverão ser reprimidas, e não tem obtido êxito na concretização das medidas, em regra.
A abordagem feita neste artigo termina por ser uma reflexão sem que se apresente alguma conclusão específica, simplesmente porque se verifica que o complexo sistema jurídico brasileiro termina por exigir que no âmbito local sejam estabelecidas as vedações para o exercício da polícia administrativa municipal diferentemente de outros âmbitos. Vejamos: quando se trata de questões relacionadas às “posturas municipais”, cada ente municipal deverá estabelecer o que é vedado. Por outro lado, quando se trata de uma questão ambiental, embora tenha influência direta ao local, as vedações serão estabelecidas por lei federal e estadual, podendo ser suplementadas por lei municipal.
Essa complexa distribuição de competências faz com que as condutas que sejam proibidas em uma localidade possam não ser proibidas em outra. Por outro lado, complexifica o controle dessas atividades pelo ente municipal na medida em que ele deve primeiro legislar a respeito da atuação para depois implementar as políticas públicas.
Isso possibilita o entendimento de que, ao estabelecer a autonomia político-administrativa dos municípios, especialmente no caso do poder de polícia, a Constituição da República pode ter criado um sistema demasiadamente complexo de regulamentação o que dificulta sua concretização.
Referências
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1991.
MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo : Malheiros, 2009.
TAUIL, Roberto. O Poder de Polícia e a Fiscalização Municipal. Disponível em: <http://www.consultormunicipal.adv.br/novo/admmun/0030.pdf>. Acesso: 20 abr. 2011.
Doutorando e Mestre em Educação nas Ciências Unijuí; Especialista em Direito Tributário Unisul; Graduado em Direito e Administração Unijuí; Professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.
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