Resumo: O presente artigo objetiva clarificar alguns aspectos da hermenêutica no âmbito penal, em busca de um entendimento possível entre a racionalidade iluminista e a contemporaneidade em relação ao processo interpretativo dos tipos penais. Aponta a estrita vinculação do intérprete a sua realidade histórica e moldura valorativa. Faz referência a possibilidade de o intérprete, mediante um processo hermenêutico adequado, conferir aplicabilidade a tipos penais abertos. Faz especial alusão ao crime de gestão fraudulenta em instituição financeira no Brasil.
Palavras-chaves: Hermenêutica penal, pré-compreensão, racionalidade penal iluminista e Direito Penal Contemporâneo.
Resumen: En el presente estudio objetiva aclarar algunos aspectos hermenéuticos en el ámbito penal, en busca de un entendimiento posible entre la racionalidad de la ilustración y la contemporánea, en relación al proceso interpretativo de los tipos penales. Apunta la estricta vinculación del intérprete a su realidad histórica y moldura valorativa. Hace referencia a la posibilidad del intérprete, a través de un proceso hermenéutico adecuado, conferir aplicabilidad a tipos penales abiertos. Hace especial alusión a lo delito de gestión fraudulenta en institución financiera en Brasil.
Palabras-clave: Hermenéutica penal, precomprensión, racionalidad penal de la ilustración, e Derecho Penal Contemporáneo.
1. INTRODUÇÃO
O direito enquanto instância político-jurídica foi conceituado por Michel Miaille como “sistema de comunicação formulado em termos de normas para permitir a realização de um sistema determinado de produção e de trocas econômicas e sociais.”[1] Todos os relacionamentos exigem uma comunicação e isso não é diferente no âmbito do Direito Penal, ciência de aplicação e, portanto, saber eminentemente prático. Como instância de controle social de comportamento, por excelência, tal ramo do ordenamento jurídico é, também, grande veículo de comunicação.
A interpretação não está divorciada do horizonte hermenêutico do intérprete, que já não mais pode ser compreendido como sacerdote, mero revelador do sentido oculto subjacente aos termos científicos plasmados nos textos legais.
Para Gadamer “é só o reconhecimento do caráter essencialmente preconceituoso de toda compreensão que pode levar o problema hermenêutico à sua real agudeza.” [2] Ao explicitar o pensamento de Gadamer, Giovanni Reale e Dario Antiseri asseguram o porquê de a interpretação ser infinita, bem como a possibilidade, sempre presente, de melhores e renovadas interpretações:
“Infinita, pela razão de uma interpretação que parecia adequada pode ser demonstrada e correta e por que são sempre possíveis novas e melhores interpretações. Possíveis por que, a cada vez, conforme a época histórica em que vive o intérprete e com base no que ele sabe, não se excluem interpretações que, precisamente, para aquela época e para o que na época se sabe, são melhores ou mais adequadas do que outras.”[3]
Segundo Gadamer, o intérprete deve ter consciência dos próprios pré-juízos e pré-suposições:
“Preconceito não significa pois, de modo algum, falso juízo, uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente. […] É só a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa com tal), que confere ao juízo sua dignidade. Aos olhos do Aufklärung, a falta de fundamentação não deixa espaço a outros modos de validade, pois significa que o juízo não tem um fundamento na coisa em questão, que é um juízo ‘sem fundamento’. Essa é uma conclusão típica do espírito do racionalismo. Sobre ele funda-se o descrédito dos preconceitos em geral e a pretensão do conhecimento científico de excluí-los totalmente.”[4]
O intérprete dos tipos penais não faz morada no mundo das idéias. Como homem concreto, o intérprete tem necessidades, comprometimentos reais e função social, também. Alude o poeta americano Ezra Pound que: “A literatura não existe no vácuo. Os escritores como tais, têm uma função social definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é a sua principal utilidade.” [5]
Os tipos penais são feitos a partir de premissas gramaticais. Assim, também sucede com a descrição formal das figuras delitivas. A análise léxica é apenas o primeiro passo da atividade hermenêutica. O sentido da norma está em algum lugar escondido?
O poeta mineiro tem razão quando indica que as palavras têm mil faces secretas:
“[…] penetra surdamente no reino das palavras
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.[…]
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?”[6]
Nos últimos tempos, tem sido proclamada a idéia de que o pior do Direito Penal, possivelmente, esteja nas suas entrelinhas, que são imprescindíveis para conformação do seu discurso oficial, por vezes, distanciado. Para além do texto, sob tal ótica, influenciariam na conformação da interpretação normativa, os contextos econômicos, políticos e sociais. Aqui, ocorreria justamente o contrário do que diz Clarice Lispector […] “já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas, [pois] o melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.” [7]
Tércio Sampaio Ferraz ao tratar da função social da hermenêutica ensina que a hermenêutica faz a lei falar, sustentando que, enquanto forma de pensar o direito dogmaticamente, possibilita um controle das possíveis conseqüências de sua incidência sobre a realidade antes que elas ocorram. Nas palavras do autor, “o sentido das normas vem, assim, desde o seu aparecimento, ‘domesticado’.” [8]
Desde as idades primitivas da história do mundo, o ser humano pensa a sua própria condição, buscando, ainda que inconscientemente a faculdade da clarividência. A teoria alegórica explica que as lendas mitológicas veiculam alguma verdade moral, filosófica, religiosa ou, até mesmo, fatos históricos, de modo alegórico ou simbólico, que ao longo do tempo foram entendidas literalmente. “Assim, Saturno, que devora os próprios filhos é a mesma divindade que os gregos chamavam de Cronos (tempo), que, pode-se dizer, na verdade destrói tudo que ele próprio cria.” [9]
Em Metamorfoses, momento supremo do poeta Virgílio, há uma passagem com valor particular pela significação que deixa no ar:
“Assim eis terminada a minha obra
Que destruir não poderão jamais
A cólera de Jove, o ferro, o fogo
E a passagem do tempo. Quando o dia
Em que pareça a minha vida incerta
Chegar, o que em mim há de melhor
Não há de perecer. Subindo aos astros
Meu nome por si mesmo viverá.
Em toda parte onde o poder de Roma
Se estende sobre as terras submissas,
Os homens me lerão, e minha fama
Há de viver, por séculos e séculos,
Se valem dos poetas o presságio.”[10]
O vaticínio do poeta se consumou e sua obra lhe sobreviveu. Não só pela precisão e beleza dos versos, mas pelas leituras da narrativa o homem se eterniza. Proclamava: “Os homens me lerão, e minha fama há de viver, por séculos e séculos”. A eternidade tinha muita importância para Virgílio.
As indagações do futuro e as incessantes buscas de entendimento da condição humana sempre fora revelada pela necessidade de aconselhamento com as divindades. A vontade de oráculos ainda subsiste. Em Dadona, o mais antigo oráculo grego era o de Júpiter. As respostas eram encontradas nas árvores pelo ruído das folhas movidas pelo vento, reveladas pela interpretação dos sacerdotes. Em Delfos, assentava-se o celebérrimo oráculo grego de Apolo, onde a emanação sagrada de suas palavras eram, igualmente, interpretadas pelos sacerdotes. Dentre os inúmeros oráculos de Esculápio, notabilizou-se o de Epidauro, no qual os doentes procuram a cura dos males que afligiam corpo e alma, dormindo no templo, em busca de resposta. Em Mênfis, a recusa de alimento da mão do consultante ou o aceite pelo boi sagrado Ápis indicavam resposta favorável ou desfavorável.[11]
Aqueles buscam, unicamente, socorro no Direito Penal, como se fosse o grande oráculo da contemporaneidade, parecem esquecer a lenda de Trofônio, engolido pela própria terra. Quem busca nele solução primeira, refúgio e fortaleza, voltará abatido, desanimado, talvez triste, também, “caminhando de costas”, como nos narra Bulfinch:
“Cerimônias peculiares deveriam ser executadas pela pessoa que ia consultar o oráculo. Depois dessas preliminares, a pessoa penetrava na caverna por uma estreita passagem, somente podendo entrar à noite. Voltava pelo mesmo caminho, mas caminhando de costas. Mostrava-se melancólica e abatida e daí a expressão proverbial que se aplica a uma pessoa triste e desanimada: “Esteve consultando o oráculo de Trofônio?”[12]
Etimologicamente, a palavra hermenêutica origina-se de Hermes, conhecido na mitologia grega como o mensageiro alado dos deuses do Olimpo (o deus Mercúrio dos romanos), figura mítica complexa que encerra uma multiplicidade de símbolos:
“Deus da eloqüência e da arte de bem falar, ele o era também dos viajantes, dos negociantes e dos ladrões. Embaixador plenipotenciário dos deuses, assistia aos tratados de aliança, sancionava-os, retificava-os, não era estranho às declarações de guerra entre os cidadãos e os povos […] Não somente contribuía para o desenvolvimento do comércio e das artes, como também se dizia que fora ele quem, em primeiro lugar formara uma língua exata e regular, quem inventara os primeiros caracteres da escritura, quem regulava a harmonia das frases, quem pusera o nome a uma infinidade de coisas, quem instituíra práticas religiosas, quem multiplicara e fortalecera as relações sociais, quem ensinara o dever aos esposos e aos membros da família […]”[13]
A figura de Hermes Trismegisto “indica o deus Toth, dos antigos egípcios, considerado o inventor das letras do alfabeto e da escrita, escrita dos deuses e, portanto, revelador, profeta e intérprete da sabedoria divina e do logos divino.”[14]
As traduções de Hermes trismegisto[15] (três vezes grande) e dos profetas magos, de Platão possibilitaram o alargamento dos horizontes humanistas uma nova atribuição de sentido ao homem e suas angústias e ansiedades, ensejadoras das construções dos teóricos da dignidade do ser humano, assim magnum miraculum est homo (o grande milagre é o homem).
2. BECCARIA E A RACIONALIDADE PENAL ILUMINISTA
É necessário fazer um breve retorno à modernidade, esclarecendo, particularmente, alguns aspectos da hermenêutica própria da racionalidade iluminista.
As vantagens da vida comunitária nunca chegaram a ser igualmente partilhadas no Brasil. Aquele que detém alguma parcela de poder foi sempre, percorrendo-se a experiência histórica, abençoado por um tratamento privilegiado. Como explica Beccaria, “eis porque tanta gente só vê na sociedade uma máquina complicada, na qual os mais hábeis ou mais poderosos governam as molas ao seu capricho.” [16]
As raízes de injustificados favorecimentos remontam, pois, aos primórdios da humanidade, e já existia desde a forma embrionária da Justiça Criminal. A intervenção penal nos séculos XVII e XVIII revelou o arbítrio ilimitado dos juízes na aplicação penal, suplícios desnecessários e castigos imoderados. O advento do Século das Luzes abriu as portas para a contestação das velhas estruturas de poder. Para os iluministas, só através da razão era possível o conhecimento humano.
A filosofia da ilustração estava assentada no racionalismo e no liberalismo. O pensamento moderno ecoou na aplicação da Justiça: à arbitrariedade punitiva contrapunha-se a luz da razão. As reivindicações humanas se fizeram presentes, sobretudo, em matéria penal, pois era necessário proteger o indivíduo contra o arbítrio punitivo estatal.
Conheceu-se aí, precisamente, os princípios de um modelo potencialmente democrático de jurisdição penal. Em 1764, o publicista Cesare Beccaria publicou a obra Dos delitos e das penas, no qual denunciava as graves injustiças dos processos criminais, até então, em voga. Na defesa de Marquês de Beccaria, vê-se, claramente, os reclamos de uma justiça completamente despida de privilégios, na qual haja a proteção legal de todas as classes sociais, de acordo com o princípio da igualdade.
No que toca, diretamente, à necessidade de igualdade perante a lei, Beccaria defendia que a segurança jurídica reclamava um silogismo perfeito na aplicação das leis penais, sendo proscrita sua interpretação pelos juízes dado o fato de não serem estes legisladores. As leis deveriam ser cumpridas literalmente porque, assim, cada cidadão poderia precisar exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável, livrando-se, assim, do arbítrio judicial.
Para Beccaria, justamente para evitar tratamentos discriminatórios, o juiz deveria estar aferrado às leis que fixam as penas de cada delito, cabendo ao soberano, representante da sociedade, estabelecer leis gerais, às quais, todos, indistintamente, deveriam estar submetidos. Ao juiz restava fazer um silogismo perfeito, no qual a premissa maior é a lei geral, a menor é a ação conforme ou não a lei, e a conseqüência, a liberdade ou a pena.
Imaginava Beccaria que nada havia de mais perigoso do que consultar “o espírito das leis”, pois cada homem enxerga à sua maneira o texto legal, não podendo a sorte de o cidadão ficar à mercê do arbítrio do magistrado ou tribunal que o julga, eis que um mesmo homem, em diferentes épocas, vê, diversamente, os mesmos objetos.[17]
Note-se, todavia, que a defesa propugnada por Beccaria justificava-se, em seu contexto histórico, como medida de contenção ao arbítrio punitivo estatal. Ou seja, a amarração do juiz ao texto da lei e a necessidade de que ele realizasse um silogismo perfeito quando da sua aplicação, visavam coibir métodos nada democráticos de aplicação do Direito, apartadas de quaisquer garantias individuais para os cidadãos perante a Justiça Penal.
No sentir de Montesquieu, os juízes não poderiam ser “senão a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força nem o rigor” (Les juges de la nation ne sont que la bouche qui prononce les peroles de la loi) . Ou seja, a magistratura tinha o dever de mera conservação, negando o seu papel na criação do direito quando do processo interpretativo. Bastaria que sua sentença fosse um texto exato de leis. Nas palavras de Montesquieu:
“Quanto mais o governo se aproxima da república, mas a forma de julgar se torna fixa; e era um vício da república da Lacedemônia que os éforos julgassem arbitrariamente, sem que houvesse lei para dirigi-los. Em Roma, os primeiros cônsules julgaram como os éforos: sentiram os inconvenientes disso e criaram leis precisas”.[18]
Conclui o autor:
“Nos Estados despóticos, não há lei: o juiz é ele mesmo sua própria regra. Nos Estados monárquicos, existe uma lei: e onde ela é precisa o juiz segue-a; onde ela não o é, ele procura seu espírito. No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida.”
A extremada vinculação do judiciário francês à lei, na busca de uma segurança jurídica absoluta, culminou com o sistema de penas fixas do Código Penal francês de 1971, proibindo-se interpretações legais e reduzindo o juiz à condição de autômato, mecânico aplicador da lei. Tal concepção era plasmada pela moldura histórica: o medo de os magistrados perpetuarem um Antigo Regime – o absolutismo – em suas decisões, alheando-se aos valores da burguesia em ascensão, veiculadas pelo parlamento na lei. Seria natural que se cultivasse o fetiche de que a lei era espelho da justiça e a sua aplicação seria igualitária.
Na segunda metade do século XVIII, a Revolução Francesa de 1789 hasteou a bandeira da Liberté, égalité, fraternité e as demais revoluções burguesas completaram o processo de transição do regime feudal para o capitalismo. A rejeição, em tese, do arbítrio e dos privilégios resta demonstrada com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no seu artigo 4º quando assevera que “O exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão estes que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites não podem ser determinados senão pela lei”.
Em nome do princípio da separação dos poderes, o campo hermenêutico do juiz era reduzido à subsunção, quase matemática, dos ditames da lei ao fato criminoso. A racionalidade era atributo dos legisladores, ao juiz restava aplicá-la mecanicamente, evitando-se que se criasse em desfavor da burguesia, que queria preservar suas riquezas e protegê-las das ingerências absolutistas precedentes.
O desenvolvimento das idéias humanas abria espaço à reivindicação da igualdade de todos perante a lei. Por muitos, desejada e proclamada, a igualdade, não foi, satisfatoriamente, conquistada, mormente no âmbito penal.
Muitas promessas da modernidade estão, ainda, irrealizadas, notadamente a concretização material do princípio da igualdade. Por vezes, o cotidiano da prática forense penal da atualidade dá uma sensação do obscurantismo medieval, embora tanto se proclame a tal pós-modernidade.
3 O PAPEL DO INTÉRPRETE E O EXEMPLO PARADIGMÁTICO DO CRIME DE GESTÃO FRAUDULENTA
Carlos Maximiliano aponta como o objetivo da Hermenêutica “descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsias, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como susceptíveis de interpretação.” [19]
Consoante se demonstrou mais do que em qualquer outro ramo do ordenamento jurídico, a hermenêutica penal está atrelada a construção de sentido da descrição formal do comportamento criminoso que o legislador penal quer proibir.
A exigência de que esta formulação seja precisa- evitando-se a utilização excessiva de elementos normativos, cláusulas gerais, conceitos indeterminados e casuísmos- é um dos cânones da justiça penal garantista. Para além da construção do sentido da norma ser levada a efeito pelo próprio intérprete, a má técnica na elaboração da lei, as imprecisões normativas na estruturação dos tipos penais incriminadores poderiam comprometer o princípio do nullum crimen sine lege scripta et stricta, se não se levasse em consideração o papel do intérprete na construção do tipo penal.
O Direito Penal existe para proteger os bens jurídicos. Há a necessidade de uma determinação mínima e objetiva do tipo penal para o comando veiculado pela norma poder ser aplicado. É justamente para que os cidadãos possam, com facilidade, compreender a extensão e o alcance das normas de proibição, que o princípio da taxatividade preside a formulação técnica da lei penal. Sobre a determinabilidade do tipo penal preleciona Figueiredo Dias:
“Importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos”.[20]
Um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito é o princípio da taxatividade que orienta a elaboração das normas penais. Este princípio indica que as normas penais devem ser meridianamente precisas. Enquanto decorrência lógica do princípio da legalidade, o princípio da taxatividade reclama que o preceito primário do tipo penal incriminador veicule uma definição precisa da conduta proibida ou imposta, sendo certo que deverá ser evitada a criação de tipos que contenham conceitos vagos ou imprecisos, salvo quando se tratar de interesses, que por sua própria natureza, demandam o recurso a uma técnica legislativa diferenciada, como é o caso da ordem econômica ou do sistema financeiro.
Certa imprecisão conceitual é uma das características das descrições contidas nos tipos penais que tratam da criminalidade financeira, precisamente, em razão do bem jurídico tutelado, que não se coaduna com a rigidez da exigência contida, tradicionalmente, no princípio da taxatividade das condutas.
Os elementos normativos constantes do tipo penal, por exemplo, valorizam a atuação do intérprete, perdendo o tipo em delimitação e crescendo o papel do intérprete, como se vê nos crimes de gestão fraudulenta (art. 4º, caput da Lei nº 7.492/86) e gestão temerária (art. 4º, parágrafo único da Lei nº 7.492/86 (Art. 4º. Gerir fraudulentamente Instituição Financeira: Parágrafo único – Se a gestão é temerária)
Todavia, apesar da aparente indeterminação dos tipos penais em comento não se lhes pode negar aplicabilidade à norma ao argumento de sua falta de operacionalidade por ser o tipo penal demasiadamente vago, genérico ou impreciso. Conhecendo-se o bem jurídico protegido pela norma penal que trata do crime de gestão fraudulenta em instituição financeira, por exemplo, o intérprete tem condições de fixar o sentido do comportamento humano proibido nesse texto normativo.
Negar aplicabilidade a tal norma ao argumento da sua inconstitucionalidade, por violação ao princípio da legalidade estrita, por exemplo, seria ignorar o papel do intérprete na construção dos tipos penais. Demais disso, o elemento normativo do tipo “fraudulentamente” é bastante conhecido dos aplicadores do Direito, tanto no âmbito cível, quanto na seara penal. Não é possível, pois, arguir a sua indeterminabilidade para de afastar a incidência normativa. É possível, que se reconheça alguma margem de subjetividade acerca da matéria. Esta, por sua vez, é inafastável da condição mesma do processo de interpretação, como já antes dito. Não haverá nenhum problema se a hermenêutica penal estiver comprometida com os valores inerentes ao Estado Democrático de Direito, notadamente no âmbito processual.
A crítica diz que faltam elementos no referido tipo penal suficientes à delimitação da conduta proibida, o que encerra uma afronta à segurança jurídica, uma negação do princípio da legalidade, bem como uma violação ao princípio da taxatividade penal[21]. Ademais, alega-se, sem razão, que o legislador penal não teria elencado quaisquer parâmetros objetivos para se precisar uma delimitação conceitual concreta sobre o que se poderia entender por “fraudulentamente”; deixando-se larga margem ao arbítrio judicial na determinação do conteúdo do tipo penal.
O elemento normativo do tipo “fraudulentamente” não é estranho aos aplicadores do Direito Penal. É possível aferir a fraude na gestão, casuisticamente, pela presença da dissimulação, do ludibrio, do ardil na conduta dos gestores da instituição financeira, isto é, a fraude opera-se através do “engano, manobra ardilosa ou engenhosa, maliciosa ou dolosa, com o fito de prejudicar alguém ou de obter indevida vantagem para o agente ou para outrem”.[22]
Como esclarece Paulo José da Costa Júnior, para compreensão do enunciado do tipo “indispensável seja a fraude apurada no exame dos livros, balanços e demais elementos da empresa, que revelem, de modo irrefutável, a manobra criminosa.” [23]
Na jurisprudência, merece referência o seguinte acórdão paradigmático, da lavra do Desembargador José Delgado: “não há inconstitucionalidade do tipo previsto no parágrafo único do artigo 4° da Lei 7.492/86. Embora criticável a técnica seguida pelo legislador, há clareza na definição do delito, não dando margem a dúvidas, nem se constata abuso de conceitos gerais e vazios” [24].
Outro acórdão, igualmente, emblemático é o da lavra da desembargadora federal Maria Helena Cisne, para quem: “A exigência de descrição detalhada de condutas, nestes casos, não se sustenta. Tanto a gestão temerária como a fraudulenta podem assumir um número praticamente infinito de comportamentos, e a exigência da descrição de cada um deles em tipos penais fechados é a forma mais certa de tornar impunes tais crimes.” [25]
A efetividade de muita das normas penais pode ser alcançada a partir de um processo hermenêutico adequado, conhecendo-se, obviamente, os elementos do próprio sistema jurídico, e a partir da análise dos elementos fornecidos pelo caso concreto.
4 O DISCURSO DISTANCIADO.
Existe um discurso oficial, do qual a legislação penal extravagante constitui apenas uma parte, que acredita ser o Direito Penal o remédio adequado para todas as mazelas sociais. Malgrado existam inúmeras normas penais em âmbito societário brasileiro, notadamente, quanto à criminalidade econômica, estas, sozinhas, não são inibidoras da prática desses comportamentos delituosos.
Há um choque, por vezes, entre a intenção e o discurso, porque faltaria um dos elementos nucleares na análise dos atos de fala: a condição de sinceridade “o discurso inserto, portanto, é amplamente reconhecido, comumente diagnosticado, como falta de correspondência entre a intenção e a elocução: como em dizer obrigado sem sentir-se grato ou, mais geralmente na dissimulação.” [26]
O Direito Penal serve, por exemplo, para informar à sociedade que, através dele, os bens jurídicos estão tutelados. Todavia, na prática, a simples existência de normas penais disciplinadoras da matéria não garante a proteção efetiva dos bens jurídicos. Há um déficit na execução dessas normas protetivas.
O discurso distanciado de que nos dá conta Meir Dan é uma das chaves para clarificar o discurso oficial e o papel das intenções dos diversos atores sociais ao interpretá-la – juiz, promotor, advogado. Cada um com seus papéis e estados mentais correlatos. Como ensina Meir Adan:
“Um dos aspectos mais importantes da interpretação é disposição e capacidade do intérprete de ligar vários papéis e intenções, e a sua decisão, a luz desse esquema interpretativo geral, quanto a quais papéis ou intenções se inter-relacionam de maneira suficiente para formar um todo integral e quais são distantes ou exteriores.”[27]
É possível que, em um caso concreto, ninguém possua as intenções que o discurso oficial tem o objetivo de comunicar. Lamentavelmente, para além de a realização da justiça não ocorrer, por vezes, por conta do desconhecimento do Direito penal, há os malabarismos interpretativos dos hermeneutas de ocasião, descomprometidos com a res publica. Mas isto é doença, a partir da qual não pode ser julgada a dogmática do Direito Penal.
É certo que, na prática processual penal, as partes trazem aos autos versões dos fatos mediatizadas por linguagens topologicamente determinadas. Os diferentes papéis e intenções nem sempre formam um arranjo harmônico, interagentes que se possa crer dotado de toda a densidade constitucional garantista.
Finalmente, o discurso distanciado do legislador – pretensamente racional – aumenta a sua versatilidade e reduz a vulnerabilidade.[28] Isto por que, assim como o ator teatral, eles podem assumir e deixar diversos papéis e formar cenas à vontade, sem maiores repercussões pois estes não compõem, verdadeiramente, parte integrante do seu eu. É só uma representação pública.
Por ser distante, aumenta-se a liberdade do discurso. Assiste-se, por vezes, uma práxis penal que não cumpre a condição de sinceridade do discurso. Para além de representativo ou “distanciado” é enganoso como a exclamação de dor da atriz no palco quando, sob as luzes da ribalta, faz chorar a platéia com uma emoção inexcedível sentida na alma dos ouvintes, mas, somente experimentada na mente da atriz. A dor é vivida no palco do teatro, porém não é real e experimentada na arena da própria existência da atriz.
O legislador penal, por sua grave missão, não pode ser um fingidor, tampouco se pode comparar a sua atividade àquela da atriz em cena; de alguns políticos brasileiros no palanque, com suas promessas eleitorais não cumpridas ou à engenhosidade do amante vagabundo e suas promessas eleitorais do coração inconclusas, equivale a dizer, o legislador penal não pode ser um fingidor, como é o poeta para Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”.
Não há mundo humano fora da linguagem. Ela é a condição de possibilidade de existência do ser humano. O sujeito cognoscente vivifica a norma dando-lhe um sopro de vida. Com inteira cabida a este entendimento merece referência a lição de Juarez Tavares quando informa:
“Aplicável ao injusto, o uso do recurso da linguagem implica que a constituição do ato ilícito ou antijurídico depende de como se interpretam os signos que determinam o que é proibido, imposto ou autorizado a conduta injusta, assim, não será entendida como produto de uma pessoa, mas simplesmente um acontecimento simbolicamente reproduzido por meio da linguagem. Quem faz o injusto, no fundo, é o intérprete, com base na norma ou com base na compreensão de seus sentidos. […] O injusto é um produto do sujeito situado em seu contexto social, e sua fixação só terá validade se efetuada de tal forma que não torne duvidosa orientação que esse mesmo sujeito possa receber do quadro de valores sobre os quais atua”.[29]
O desejo de Beccaria do “silogismo perfeito” é algo difícil de alcançar. Beccaria, esse seu sonho é uma ilusão, assim como cantou Gilberto Gil sobre o sonho de José, em Domingo no Parque.
Alertando a comunidade acadêmica sobre a nova compreensão hermenêutica do Direito, Andrei Zenkner Schmidt indica a impossibilidade de reconstrução do texto a partir de significante-primordial-fundante:
“Ao intérprete incumbe, pois, a percepção de que as interpretações já efetivadas sobre textos legais, e que se repetem dia após dia nos tribunais, não passam de dogmas lingüísticos passados de sujeito a sujeito, e não uma realidade passada do objeto para o sujeito.”[30]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assiste-se, assim, a uma reviravolta na hermenêutica, quer como ciência, quer como arte de interpretar textos.
Nem mesmo em matéria penal em que há uma exigência óbvia de precisão na descrição das condutas delitivas, por se tratar da mais drástica e traumática forma de intervenção jurídica na vida do cidadão, é possível falar em fatos que dispensem uma hermenêutica adequada. O processo interpretativo desenvolve-se a partir da moldura axiológica e da memória cultural do intérprete, que, por sua vez, tem parâmetros sistêmicos para realização do direito. É possível, por exemplo, conferir ao dispositivo penal relativo ao crime de “gestão fraudulenta”, previsto na Lei 7.492/1986, correta aplicação. Não se pode negar-lhes vigência ao argumento da falta de operacionalidade. A presença de um tipo fechado para descrição do referido comportamento proibido não seria correta orientação de política criminal para devida proteção do bem jurídico tutelado nos crimes financeiros.
Mestra em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal da Bahia-UFBA. Pós-graduada em Ciências Criminais e em Direito do Estado (bolsista) pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Graduada em Direito, com láurea acadêmica, pela Universidade Federal da Bahia. Professora substituta de Direito Penal da graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador e professora convidada da Pós-graduação em Ciências Criminais do JusPodivm. Autora do livro \”Limites constitucionais à iniciativa do juiz no processo penal democrático\”. Autora de diversos capítulos de livros jurídicos e de artigos científicos publicados em periódicos especializados, inclusive com trabalho apresentado em reunião científica, com publicação em anais, além de ser palestrante em eventos jurídicos. Advogada criminalista.
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