Aspectos relacionais entre segurança pública e direitos humanos

RESUMO: o autor procura, de forma singela e objetiva, discorrer sobre o aspecto relacional existente entre segurança pública e direitos humanos. Para tanto, em um primeiro momento, preleciona tópicos atinentes às características da segurança pública brasileira, mais especificamente no que é pertinente à Polícia Judiciária, seu campo de atuação profissional. Posteriormente, estabelece considerações pontuais acerca do que se deve compreender por Direitos Humanos. Afinal, tornar-se-á límpida, pois, a inseparabilidade  existente entre as duas matérias.

SUMÁRIO: introdução; segurança pública; Direitos Humanos; aspectos relacionais entre segurança pública e Direitos Humanos; conclusão; e bibliografia.

“Meu senhor, falou-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, tampouco amamos ou detestamos o que roemos: nós apenas roemos.” Machado de Assis

INTRODUÇÃO

A Segurança Pública é tema sempre palpitante no cenário político brasileiro.

Modernamente, e merecidamente, vem também ganhando espaço no mundo acadêmico.

Efetivamente, a segurança pública é o mecanismo estatal tendente a refrear, preventiva[1] ou repressivamente,[2] as práticas criminais.

Composta por instituições tais como a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Institutos Gerais de Perícias,[3] a Superintendência dos Serviços Penitenciários,[4] etc., a temática envolvendo a segurança pública jamais pode olvidar dos aspectos relativos aos Direitos Humanos.

Os órgãos de segurança pública atingem, diretamente, o direito de liberdade da pessoa humana, não se podendo olvidar, nesse campo, de todos aqueles princípios criados e tornados vívidos por meio da disciplina relativa aos Direitos Humanos.

Dessa arte, estampadamente, vê-se íntima relação entre os dois temas, o que se tornará ainda mais claro nos capítulos a seguir.

1. SEGURANÇA PÚBLICA

Polícia e repressão são duas palavras que impregnam uma semântica consideravelmente pejorativa no Brasil após a Ditadura Militar.

Repressão era um conceito conexo unicamente com a performance subterrânea dos órgãos de segurança pública, conexa com a tortura e o desaparecimento de opositores ao regime de governo ditatorial.

A Polícia não se consistia, na verdade, em um órgão de conservação e de garantia da paz e da tranqüilidade públicas. Era, na verdade, órgão de repressão, percebida no aspecto pejorativo.

Desvanecida a Ditadura e acomodado o Estado Democrático de Direito, referida impressão ainda permanece subconsciente coletivo.

No que tange à repressão especificamente, é ela uma das diversas formas de performance da segurança pública. Os órgãos de polícia, como se disse no intróito deste artigo, operam de maneira preventiva e repressiva. Em quaisquer dos casos, aspiram ao estrito cumprimento da lei.

Reprimir é, deste modo, nada mais nada menos que empregar a força estatal para forçar ou obrigar o implemento da lei. Embora a repressão não obre sobre todos, indistintamente, mas apenas sobre aqueles que extravasam os lindes traçados pela Lei, ela possui condão pedagógico que se aplica a todos.

Polícia Judiciária possui o papel precípuo de apurar as infrações penais e a sua autoria, por meio do inquérito policial, procedimento administrativo com particularidade inquisitiva, o qual serve, em regra, de sustentáculo à pretensão punitiva do Estado estabelecida pelo Ministério Público, Senhor da ação penal pública. [5]

A persecução penal, ordinariamente, inicia-se por meio da investigação criminal, com o Estado angariando subsídios para o exercício do jus puniendi[6] em juízo, razão pela qual, em sendo o inquérito policial peça procedimental de contumaz importância para o Estado, devidamente disciplinado pelo Código de Processo Penal, embora prescindível, não é ele mera peça de informação como a doutrina e a jurisprudência, praticamente pacífica, o cognominam[7]. Ele é, isto sim, peça de informação de alta relevância. Lida com o sagrado direito à liberdade e, em sendo propriamente conduzida, seguramente propiciará uma maior probabilidade de sucesso no estágio do direito de punir do Estado-Administração, bem como de justiça na fixação da pena pelo Estado-Juiz, quando da análise das circunstâncias judiciais.[8]

Ao considerar-se o inquérito policial um procedimento inquisitivo, não há que se falar da aplicação, nesta fase, das garantias do contraditório e da ampla defesa, reservadas à instrução processual, pois que só aí há acusação e defesa. Com efeito, somente a partir da aceitação da denúncia, em se tratando de persecução oriunda de investigação criminal ou inquérito policial, pode-se falar em acusado. [9]

Por certo, o inquérito policial não abrange as consagradas garantias constitucionais. Ele evidencia-se, especificamente, por um conjugado de atos praticados por autoridade administrativa. [10]

O texto constitucional, ao afiançar ao preso a assistência de um advogado, não exige a sua presença aos atos procedimentais, nem que a autoridade policial deva obrigatoriamente constituir um para acompanhar o seu interrogatório,[11] mais sim, constitucionalmente lhe é assegurado ser assistido por um advogado de sua livre nomeação, caso deseje e o promova.[12] Isso, por certo, mostra-se coerente, haja vista, como acima já dito, que em inquérito policial não existe contraditório e ampla defesa, a serem exercidos somente em processo judicial ou administrativo.[13]

Por outro lado, a presença do advogado, ainda que prescindível no inquérito policial, é recomendável, mas apenas recomendável, diante da possibilidade de deficiência de justa causa para a sua instauração em desfavor do investigado, da possibilidade de pleitearem-se diligências, do pedido de liberdade provisória, de relaxamento de prisão em flagrante, bem como de inibir qualquer arritmia de conduta que possa advir por parte do agente policial do Estado, por meio de hábeas corpus ou representação à Corregedoria de Polícia.

De tal modo, permite-se discorrer em defesa no inquérito policial, em sentido amplo, mas não em ampla defesa, agindo o advogado para garantir a observância dos direitos e garantias individuais traçados na Constituição da República.

No que concerne ao segredo da investigação, é ele da essência do inquérito. Não o guardar é muitas vezes fornecer armas e recursos ao delinqüente, a fim de frustrar a atuação da autoridade, na apuração do crime e da autoria. [14]

No que pese, todavia, o disposto no art. 20 do CPP, observa-se que, com o advento do Estatuto da OAB,[15] lei federal de âmbito nacional, a aplicação do sigilo nos inquéritos policiais viu-se mitigada, atingindo a discricionariedade do Delegado de Polícia na direção do procedimento.

No entanto, não houve anulação desse poder discricionário da Autoridade Policial, de modo que, nas investigações em que o sigilo seja indispensável para a apuração da infração e da sua autoria, ou exigível no tocante ao interesse da sociedade, deve a autoridade policial representar, fundamentadamente, à autoridade judiciária competente, a fim de que o princípio da publicidade seja restringido, com vistas ao Ministério Público, por ser o destinatário final da informatio delicti[16].

Referido proceder é coeso com a propriedade inquisitiva do inquérito policial, em que não se desempenha defesa propriamente dita, vetando-se a possibilidade de ciência prévia da diligência a ser efetivada oportunamente,[17] a qual poderia ver-se frustrada, em virtude de uma possível performance precoce e ágil do advogado interessado.

Vale mencionar que o Estado possui poderes para a sua organização, conservação, determinação de suas diretivas e consecução de seus fins.

Todo poder estatal é poder político, mas convencionou-se denominar poder político unicamente aquele que se agrupa e é desempenhado prontamente pelos Poderes de Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário – como órgãos governamentais dos Estados Democrático Modernos. Ficou estabelecido que os demais poderes, desempenhados pelos órgãos da Administração Pública, constituem-se em poderes administrativos, dentre os quais se arraiga o Poder de polícia.

Poder é a capacidade de deliberar e cominar a decisão aos seus destinatários. Nessa acepção, o poder exprime-se em todos os grupos e comunidades, desde a família, que se apóia no pátrio poder, até o Estado, que se sustenta no poder político, emanado da aspiração popular, que é o suporte da Soberania Nacional. Poder, assim, é a própria emanação de soberania do Estado.[18]

Poder de polícia, por sua vez, é o engenho de frenagem de que dispõe a Administração Pública, para ater os abusos do direito individual. Por meio desse mecanismo, que é uma peça de toda Administração, o Estado (em significado amplo: União, Estados e Municípios) prende a atividade dos particulares que se desvendar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social.

Convém distinguir-se, neste ponto, a polícia administrativa da polícia judiciária. A polícia administrativa é aquela que incide sobre bens, direitos ou atividades, ao passo que a polícia judiciária incide sobre as pessoas.  Desse modo, poder de polícia judiciária é privativa dos órgãos auxiliares da Justiça, [19] enquanto que o poder de polícia administrativa difunde-se por todos os órgãos administrativos, de todos os Poderes e entidades públicas. Explicando, quando a autoridade apreende uma carta de motorista por infração de trânsito, exercita ato de polícia administrativa. Agora, quando prende o motorista por infração penal, pratica, então, o ato de polícia judiciária.

Poder de polícia, em seu significado amplo, envolve um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado procura não só preservar a ordem pública, senão também instituir para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem imprescindíveis para serem evitados conflitos de direitos e para garantir-se a cada um o deleite ininterrupto de seu próprio direito, isso até onde for razoavelmente conjuminado com o direitos dos demais.

Administração Pública tem o poder de especificar e executar medidas restritivas do direito individual em beneficio do bem-estar da coletividade e da preservação do próprio Estado. Como salienta JOSÉ AFONSO DA SILVA,  a separação de poderes tem por fundamento a procura da especialização funcional e a independência orgânica no exercício de cada uma das atribuições típicas do Estado.[20]

A noção de Poder de Polícia, diga-se de passagem, encontra-se patente em nossa legislação, valendo fazer referência ao Código Tributário Nacional que assim dispõe:

“Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a ‘Prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.[21]

2. DIREITOS HUMANOS

A dignidade humana, em uma linguagem filosófica, pode-se definir como sendo“o princípio moral de que o ser humano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio”[22] .

Verdadeiramente, é longa a caminhada empreendida pela humanidade até chegar-se ao  reconhecimento e estabelecimento da dignidade da pessoa humana como direito essencial.

Consoante o Prof. Fábio Konder Comparato,

“todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza”.  Em razão desse reconhecimento universal, conclui: “ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais”[23].

Para o Prof. Fernando Sorondo, Direitos Humanos podem ser considerados sob dois aspectos:

“constituem-se em um ideal comum para todos os povos e para todas as nações; tratar-se-iam de um sistema de valores”; e

“referido sistema de valores, enquanto produto de ação da coletividade humana, acompanha e reflete sua constante evolução e acolhe o clamor de justiça dos povos. Por conseguinte, os Direitos Humanos possuem uma dimensão histórica[24].

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em resolução da III Seção Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, proclama:

“A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, em promover o respeito a esses direitos e liberdades e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, em assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios  Estados-membros quanto entre os povos dos territórios sob a sua jurisdição”[25].

Em um primeiro momento, indaga-se qual seria o fundamento dos direitos humanos. A respeito, os teóricos dividem-se em duas posições antagônicas, já muito trabalhadas pela Teoria Geral do Direito: o Positivismo e o Jusnaturalismo.

O positivismo, apresentado por Norberto Bobbio, afirma a inexistência de um direito absoluto para esses “direitos”, uma vez que a dogmática jurídica caracteriza-se pela historicidade.

Atualmente, há uma tendência à “positivação” dos direitos humanos, de forma a inseri-los nas Constituições Estatais, através da criação de novos mecanismos a fim de garanti-los.

Assim, já é possível falar-se em um conceito positivo acerca dos “direitos humanos, os quais seriam os “direitos fundamentais”, assegurados ao indivíduo por meio da regulamentação e aplicação desses direitos.

O Jusnaturalismo, por sua vez, amparado por doutrinadores como Dalmo de Abreu Dallari e Fábio Konder Comparato, ressalta que a Pessoa Humana como sendo o fundamento absoluto, atemporal e global desses direitos.

A pessoa é a mesma em qualquer lugar e, considerando-se as diversidades culturais, devem ser tratadas igualmente.

Os direitos humanos seriam, então, um conjunto de condições, de garantias e de comportamentos, tendentes a assegurar a característica essencial do homem (dignidade da pessoa humana).

Dessa arte, os Direitos Humanos não seriam criados pelos homens ou pelos Estados, mas seriam preexistentes ao próprio Direito, restando a este apenas o papel de declará-los.

Ressalta-se, nesse diapasão, que o artigo 1.º, inciso III, da Carta Magna, afirma ser fundamento da República Federativa do Brasil a “dignidade humana”.

Por outro lado, em seu artigo 1.º, a Declaração Universal dos Direitos do Homem declara:

“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

“A Declaração afirma que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade (art. 1.º) e garante a todos eles os mesmos direitos, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, nascimento ou qualquer outra condição (art. 2.º, I)”[26].

A doutrina, ainda, ressalta algumas características essenciais desses direitos,  quais sejam:

– Universalidade: todo ser humano é sujeito ativo desses direitos, independente de credo, raça, sexo, cor, nacionalidade, convicções;

– Inviolabilidade: referidos direitos não podem ser descumpridos por nenhuma pessoa ou autoridade;

– Indisponibilidade: não contemplam renunciabilidade.;

– Imprescribilidade: não sofrem alterações com o decurso do tempo, ou seja,  possuem caráter eterno;

– Complementaridade: devem ser interpretados em conjunto, não havendo critério hierárquico.

Oportunamente, SORONDO preleciona:

“Os Direitos Humanos julgam a ordem vigente, são um formador de opinião pública nos mais diversos confins do planeta, e põem a descoberto os condicionamentos econômicos, sociais e políticos que impedem sua completa realização”[27].

No que tange à evolução histórica dos Direitos Humanos, pode-se destacar que a sua noção foi construída ao longo dos últimos três milênios.

Especialmente entre 600 e 480 a.C., coexistiram, sem se comunicarem entre si, alguns dos maiores doutrinadores de todos os tempos.

Podem ser citados Buda, na Índia; Confúcio, na China; Pitágoras, na Grécia e o profeta Isaías, em Israel. A partir daí, o curso da História passou a constituir o desdobramento das idéias e princípios estabelecidos nesse período.

Aliás, foi em referido período que surgiu a filosofia, tanto na Ásia como na Grécia, quando então se substituiu, “pela primeira vez na História, o saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão”[28] .

Em síntese,

“é a partir do período axial que o ser humano passa a ser considerado, pela primeira vez na História, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais. Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e  para a afirmação de direitos universais, porque a ela inerentes”[29].

No Iluminismo, o princípio da igualdade essencial dos seres humanos foi estabelecido sob o enfoque de que todo homem tem direitos resultantes de sua própria natureza, ou seja,

“firmou-se a noção de que o homem possui certos direitos inalienáveis e imprescritíveis, decorrentes da própria natureza humana e existentes independentemente do Estado”[30].

Não se pode olvidar, ainda, a contribuição de Kant, muito valiosa para a construção do princípio dos direitos universais da pessoa humana.

Consoante a sua doutrina,

“só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser racional tem vontade, que é uma espécie de razão denominada razão prática”[31]

A Revolução Francesa, ainda, deu origem aos ideais representativos dos direitos humanos, a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Com a barbárie da Segunda Grande Guerra, os homens também se conscientizaram da necessidade de não se permitir que aquelas monstruosidades ocorressem novamente. Isso culminou na criação da Organização das Nações Unidas e na declaração de inúmeros Tratados Internacionais de Direitos Humanos, como “A Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

A partir do século XX, a regulação dos direitos econômicos e sociais passaram a incorporar as Constituições Nacionais.

A primeira Carta Magna, a revolucionar a positivação de tais direitos, foi a Constituição Mexicana de 1917, a qual versava, inclusive, sobre a função social da propriedade.

A partir da segunda metade do século XX, iniciou-se a real positivação dos direitos humanos, que cresceram em importância e em número, devido, principalmente, aos inúmeros acordos internacionais.

Hoje em dia, não se pode discutir a existência desses direitos, já que, além de amplamente consagrados pela doutrina, estão presentes também na lei fundamental brasileira: A Constituição Federal.

3. ASPECTOS RELACIONAIS ENTRE SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS

Por meio dos órgãos de segurança pública, o Estado procura impor a ordem expendida no sistema legal.

Referido proceder estatal atinge diretamente o direito de liberdade da pessoa humana, daí o cuidado que se deve observar pelo Poder Público no sentido de não serem violados os direitos mínimos inerentes à pessoa.

Não se pode mais conceber uma estrutura policial similar à época da ditadura militar, onde se via o cidadão como um inimigo do Estado.

Vale lembrar, por exemplo, que a Polícia Militar, em nosso país, foi criada por meio da união da Força Pública Estadual com a Guarda Civil, na oportunidade do Golpe de 64. Constituiu-se, assim, em numa milícia auxiliar do Exército, a fim de conter as manifestações populares e o movimento de guerrilha estimulado pelos ideais comunistas.

A realidade imposta pela ditadura militar no Brasil, onde eram públicos e notórios atos de abuso para com a dignidade da pessoa humana, deve ser relegada ao passado, servindo como paradigma de um modelo vencido e não mais desejado por uma sociedade evoluída.

Percebendo-se que a atuação da segurança pública deve ser norteada pelos princípios atinentes aos Direitos Humanos, justamente, porque a atuação referida atinge os seres humanos, conclui-se, sem gris algum, que há patente relação entre segurança pública e Direitos Humanos. Em verdade, estes disciplinam a conduta daquela.

Quanto mais afastada desses referidos princípios, mais próxima estará a atuação estatal do chamado abuso de poder.

O Brasil, nessa linha de raciocínio, procurando esquecer o seu passado ostentado, mormente, pela ditadura militar, demonstra patente vontade em erradicar a tortura praticada por agentes do Estado. Com efeito, a Constituição Federal considera a tortura crime grave, imprescritível e insuscetível de graça ou anistia.

Por outro lado, ainda, as Convenções da ONU[32] e da OEA[33] pela abolição da tortura foram ratificadas. Além disso, em abril de 1997, foi sancionada a Lei 9.455[34] a qual tipificou o crime de tortura.

O aspecto relacional existente entre segurança pública e Direitos humanos encontra suporte, ainda, no fato de que, separando-se referidos institutos, ver-se-ia uma manifesta e nefasta crise no Estado moderno, ocasião em que se retornaria às características de um Estado Monárquico e Absolutista dos séculos XVII e XVIII, no qual o rei era o soberano e exercia a plenitude do poder sem nenhuma limitação de ordem constitucional.[35]

Com a teoria da vontade geral, voltada para os Direitos humanos, o exercício da soberania sai das mãos do monarca e passa para as mãos da nação.[36]

A soberania, então, deixa de ter o seu caráter de “absolutismo” contra a pessoa humana do país, passando a caracterizar-se como sendo,

“um poder que é juridicamente inconstratável, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e da aplicação das normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espaço geográfico, bem como fazer frente a eventuais injunções externas”.

CONCLUSÃO

Consoante se viu, a inseparabilidade relacional que há entre os institutos da segurança pública e dos Direitos Humanos é manifesta e irrefutável.

Já não mais se concebe o barbarismo similar àquele ocorrido nos tempos de outrora da ditadura militar.

No que tange aos atos de abusos ocorridos nos dias de hoje, além do fato de que as polícias em geral contam com ouvidorias e corregedorias atuantes, a legislação nacional ostenta penas pesadas a respeito.

A preocupação governamental, aliás, para com o assunto, mostra-se ainda mais patente, quando o Ministério da Justiça, por meio da SENASP,[37] incentiva os integrantes dos órgãos de segurança pública a especializarem-se, junto a instituições de ensino superior, em “Segurança Pública e Direitos Humanos”, por meio da concessão bolsas de estudos integrais.

Dessa arte, vê-se que, doravante, a segurança pública não mais poderá ser proferida sem que sejam também sugeridas, como integrantes do seu conteúdo, noções cristalinas a respeito dos principais tópicos atinentes à matéria dos Direitos Humanos.

 

Bibliografia

BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, ed. Saraiva, 4ª ed., 1999.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 4ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1984.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. Vol. 2,

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, ed. RT, 1999,.

LIMONGI, Ruben (Coordenador). Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 22. São Paulo: Saraiva, 1977.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, ed. Atlas, 3ª ed. 1994.

NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, ed. Saraiva, 17ª ed., 1986.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 1, ed. Saraiva, 12ª ed., 1990.

PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal – O Direito de Defesa: Repercussão, Amplitude e Limites, ed. Forense, 1ª ed., 1986.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., 4ª tiragem, Malheiros, SP, 1994.

SORONDO, Fernando. Os Direitos Humanos através da História.

 

Notas:
[1] Faz-se isso por meio da Polícia Militar, fardada e ostensiva.
[2] A Polícia repressiva constitui-se na Polícia Judiciária, a quem compete apurar a autoria e a materialidade das ilicitudes penais.
[3] A existência do Instituto-Geral de Perícias (IGP) como órgão autônoma de segurança pública do Estado do Rio Grande do Sul  foi prevista na Constituição Estadual, promulgada em 1989, pelo artigo 124, então como o nome de Coordenadoria-Geral de Perícias. Em 1997, no dia 17 de julho, com a Emenda Constitucional 19, o IGP assumiu a atual nomenclatura, sendo então, considerada essa data a de aniversário deste órgão de segurança. O IGP é um dos órgãos vinculados a Secretaria da Justiça e da Segurança, ao lado da Brigada Militar, Polícia Civil, Susepe e Detran, ao qual compete, além de outras atribuições, especialmente: as perícias médico-legais e criminalísticas; os serviços de identificação; e o desenvolvimento de estudos e pesquisas em sua área de atuação.
[4] A Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) é o órgão estadual responsável pela execução administrativa das penas privativas de liberdade e das medidas de segurança
[5] CF, art. 129,I.
[6] Direito de Punir.
[7] STF-2ª Turma, HC-74198/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 06.12.1996, PP-48711 EMENT VOL – 01853-03 PP-00561; STF-1ª Turma, HC-73730/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 14.06.1996, PP-21076 EMENT VOL – 01832-02 PP-00561; STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Pedro Acioli, DJU de 18.04.1994, pg. 8525; JTACrimSP, 70/319; CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, ed. Saraiva, 4ª ed., 1999, p. 71; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 1, ed. Saraiva, 12ª ed., 1990, p. 181; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, ed. Atlas, 3ª ed., 1994, p. 79
[8] CP, art. 59.
[9] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. idem, ob. cit., p. 184; Pedroso, Fernando de Almeida. Processo Penal – O Direito de Defesa: Repercussão, Amplitude e Limites, ed. Forense, 1ª ed., 1986, p. 43 e 44.
[10] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, ed. RT, 1999, p. 59.
[11] CPP, art. 6º, V, c/c o art. 185 e ss.
[12] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, ed. Saraiva, 4ª ed., 1999, p. 81
[13] CF, art. 5º, LV.
[14] NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, ed. Saraiva, 17ª ed., 1986, p. 22.
[15] Lei nº4.215/63, art. 89, XV. Atualmente art. 7º, XIV, da Lei nº8.906/94.
[16] Informação do delito.
[17] Mandados de busca e apreensão, prisões temporárias, preventivas, etc.
[18] DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 4ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1984, página 84.
[19] Ministério Público e Polícia em geral.
[20] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., 4ª tiragem, Malheiros, SP, 1994, p. 99.
[21] Código Tributário Nacional, art. 78.
[22] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. Vol. 2,
[23] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva. p.1
[24] SORONDO, Fernando. Os Direitos Humanos através da História.
[25] LIMONGI, Ruben (Coordenador). Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 22. São Paulo: Saraiva, 1977. p.470
[26] LIMONGI, Ruben (Coordenador). op. cit. p.472
[27] SORONDO, Fernando. op. cit.
[28] COMPARATO, Fábio Konder. op. cit. p.8
[29] Ib. op. cit. p.1
[30] Ib. op. cit. p.20
[31] COMPARATO, Fábio Konder. op. cit. p.20
[32] A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada oficialmente a 24 de Outubro de 1945 em São Francisco, Califórnia por 51 países, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A primeira Assembléia Geral celebrou-se a 10 de Janeiro de 1946 (em Westminster Central Hall, localizada em Londres). A sua sede atual é na cidade de Nova York.
[33] A Organização dos Estados Americanos (OAS em inglês, OEA nas três restantes línguas oficiais da organização) é uma organização internacional criada em 1948, com sede em Washington, DC (EUA), cujos membros são as 35 nações independentes e “democráticas” das Américas.
[34] LEI Nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências.
[35] BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. Pág. 24.
[36] BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. Pág. 25.
[37] A Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP , criada pelo Decreto nº 2.315, de 4 de setembro de 1997, foi decorrente de transformação da antiga Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública – SEPLANSEG. A SEPLANSEG foi criada no Governo Fernando Henrique Cardoso através da MP 813, de 1º de janeiro de 1995 – mais tarde Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Roger Spode Brutti

 

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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