Aspectos relevantes do processo administrativo de regularização fundiária de territórios quilombolas

Resumo: O artigo trata do conceito de remanescentes de quilombos e destaca os aspectos mais relevantes do processo administrativo de regularização fundiária dos territórios quilombolas, bem como as soluções jurídicas encontradas pelo Estado para tornar viável a titulação das comunidades, em respeito ao art. 68 do ADCT.


Palavras-chave: Comunidades de remanescentes de quilombos. Art. 68 do ADCT. Processo administrativo de regularização fundiária. Aspectos relevantes. Desapropriação.


Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito de remanescentes de quilombos – do critério de auto-identificação das comunidades quilombolas. 2.1. Convenção 169 da OIT e legislação federal. 3. Aspectos relevantes do processo administrativo de regularização fundiária de territórios quilombolas – Decreto nº 4.887/2003 e Atos Normativos Internos do Incra. 3.1. Das propriedades particulares inseridas em territórios reconhecidos e delimitados – desapropriação por interesse social genérico fundado na Lei nº 4.132/62. 3.2. Desapropriação e necessidade de estudo da cadeia dominial até a origem antes do pagamento de indenização. Razões e providências ante a impossibilidade de alcance do destaque do patrimônio público. 4. Considerações finais. 5. Referências Bibliográficas.


1. Introdução


O presente trabalho tem o objetivo de permitir algumas reflexões sobre o conceito de remanescentes de quilombos, identificado pela resistência negra à opressão e à escravidão em busca da liberdade e a proteção jurídica inovada pelo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que lhes confere a propriedade definitiva de suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos[1].


Será analisada a legitimidade do critério de auto-atribuição, bem como os aspectos mais relevantes do processo administrativo de regularização fundiária e as soluções jurídicas que o Estado lança mão para tornar efetiva esta regularização e a expedição dos títulos às comunidades.


Um dos aspectos realçados é o do procedimento de desapropriação por interesse social genérico regido pela Lei nº 4.132/62 – eleito pela Administração Pública como o mais adequado para a finalidade almejada, que é a preservação do patrimônio cultural brasileiro, conforme arts. 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 – e todas as exigências a serem observadas antes do pagamento de indenizações pelo Poder Público, com destaque para as competências administrativas de titulação do território pelos entes federados.


2. Conceito de remanescentes de quilombos – do critério de auto-identificação das comunidades quilombolas


O regime jurídico das denominadas comunidades quilombolas tem disciplina direta no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, o qual assegura que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Ainda em âmbito constitucional, tem disciplina reflexa nos arts. 215, §1º, e 216 da Constituição Federal, a conferir:


Art. 215, §1 – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”


Art.216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (…)”


§  Em a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”


No âmbito infraconstitucional federal, é o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.


A norma federal considera como remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, sendo que esta caracterização será atestada mediante autodefinição da própria comunidade (art. 2º e seu §1º do Decreto nº 4.887/2003).


Portanto, à luz da norma federal, a autodefinição é critério fundamental para o reconhecimento da comunidade interessada como remanescente de quilombos, prescrevendo que esta autodefinição será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento (art. 3º, §4º, do Decreto nº 4.887/2003)[2].


A autodefinição ou autorreconhecimento é de crucial importância na compreensão da finalidade da norma constitucional, pois “quando o constituinte definiu que a titulação se deve aos remanescentes de quilombos, não definiu que a titulação seja aos remanescentes dos quilombos, ou seja, não é preciso, para que as áreas sejam tituladas, que ali tenha sido um quilombo, até porque já se passaram mais de 100 anos do fim da escravidão”[3].


Assim, o constituinte não quis exigir que as comunidades permanecessem imóveis no mesmo lugar por mais de 100 anos, sendo natural a sua mobilidade, o que não tem o condão de apagar a sua história, pois continuam sendo remanescentes de quilombos. O fundamental é atentar-se para o significado unitário da luta do povo negro pela liberdade, tendo os quilombos sido uma forma de expressão aguda, mas que a ela não se resume.


Nesse sentido, evidencia-se que a noção de quilombo não se alcança por simples interpretação jurídica, pois depende de investigações, estudos e pesquisas na área de antropologia, sociologia e história, sem as quais não se pode afirmar o exato sentido do preceito estudado. Contudo, o que parece indiscutível é que quilombo é mais do que a simples expressão de um certo território no qual em uma época remota alguns escravos ou ex-escravos, fugidos ou não, reuniam-se para viver e resistir à recaptura ou à escravidão.


Segundo Paul E. Little, “o fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado.”[4]


Com efeito, a noção de quilombo do art. 68 do ADCT tem de ser compreendida com certa largueza metodológica, de forma a não se limitar apenas à ocupação efetiva, mas também ao universo das características culturais, ideológicas e axiológicas em que os remanescentes de quilombos (no sentido lato) se reproduziram e se apresentam modernamente.[5]


Reconhecer o direito à titulação das comunidades quilombolas é antes de tudo uma forma tardia de recuperar o respeito pela resistência negra e a sua luta pela liberdade, considerado que ainda hoje a comunidade negra constitui-se da maioria excluída pela sociedade.


2.1. Convenção 169 da OIT e legislação federal


O critério da auto-atribuição e a definição de território decorrem diretamente da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n. 143, de 20 de junho de 2002[6]. O art. 1º prevê que a consciência da identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam os seus dispositivos.


A Convenção 169 da OIT é expressa sobre a necessidade de se aplicar à legislação nacional o dever de ser levados na devida consideração os costumes ou direito consuetudinário dos povos (art. 8º).


Define o artigo 13 da Convenção 169-OIT que, ao aplicarem as disposições daquela parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos possui a sua relação com as terras ou territórios, ou ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.


Assim, conclui-se que a norma federal consubstanciada pelo Decreto nº 4.887/03, que trata do reconhecimento e titulação das comunidades remanescentes de quilombos, está em pleno acordo com os compromissos internacionais que a Convenção 169 da OIT implica para o Brasil, e especialmente com o significado que da autodefinição surge para a unidade da luta do povo negro.


3. Aspectos relevantes do processo administrativo de regularização fundiária de territórios quilombolas – Decreto nº 4.887/2003 e Atos Normativos Internos do Incra


3.1. Das propriedades particulares inseridas em territórios reconhecidos e delimitados – desapropriação por interesse social genérico fundado na Lei nº 4.132/62


Primeiramente, destaca-se a redação dos arts. 10 e 12 do Decreto nº 4.887/2003[7], ao estabelecerem a competência para titulação das comunidades quilombolas, a depender se se trata de terra pública federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal:


“Art. 10.  Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título.


Art. 12.  Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação.”


Assim sendo, a responsabilidade pela titulação depende da respectiva competência administrativa sobre as terras ocupadas quando públicas federais, estaduais, municipais ou do Distrito Federal.


Com efeito, excluídas as hipóteses de se tratar de imóvel pertencente a algum dos entes federados, remanescem as propriedades particulares decorrentes de títulos não invalidados, não prescritos, não caducos ou ineficazes, que estarão sujeitas a desapropriação por interesse social. Eis a redação do art. 13 do Decreto 4.887/2003:


“Art. 13.  Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.”


Como dito acima, as comunidades remanescentes de quilombos fazem parte do patrimônio cultural brasileiro (art. 216, CF/88). Elas retratam e preservam a cultura afro-brasileira, remanescente do povo africano que colonizou este País, e, portanto, devem ser protegidas pelo Estado, de acordo com o art. 215, § 1º, da CF/88.


O art. 216, § 1º, da CF, estabelece que o Poder Público deverá promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro por meio de todas as formas de acautelamento e preservação existentes.


Nessa perspectiva, uma das formas de acautelamento e preservação é a desapropriação de imóveis particulares inseridos no perímetro do território. O fundamento da desapropriação com vistas à regularização fundiária das comunidades de remanescentes de quilombos é a preservação do patrimônio cultural brasileiro, diferentemente da finalidade de reforma agrária. Quer-se com isso dizer que a desapropriação não depende do estado de produtividade ou improdutividade do imóvel, ou seja, do cumprimento da função social plena da propriedade rural, como sói acontecer quando se trata da desapropriação-sanção regida pelo art. 184 e seguintes da Constituição Federal[8] e Lei nº 8.629/93, para fins de reforma agrária.


Portanto, note-se não se tratar de desapropriação nos moldes do art. 184 da CF/88, de competência exclusiva da União. Assim, qualquer dos entes federados poderá promovê-la, pois o que se exclui é a possibilidade de Estado-Membro, Município e Distrito Federal desapropriarem para fins de reforma agrária, uma vez que tal competência, nos termos do art. 184, é privativa da União. Entretanto, Estados, Municípios e Distrito Federal podem desapropriar com base em uma das hipóteses de interesse social previstas nos incisos do art. 2º da Lei nº 4.132/62.[9]


Assim, a conclusão a que se chega, considerando que o art. 13 do Decreto nº 4.887/2003 não tratou do procedimento de intervenção na propriedade privada pela expropriação é que o interesse do Estado em preservar as crenças, o patrimônio, as tradições e o modo de viver dos remanescentes de quilombos como forma de preservação do patrimônio cultural brasileiro é um interesse social, de forma que a desapropriação de propriedades particulares para esse fim é aquela regida pela Lei nº 4.132/62, batizada como desapropriação por interesse social genérico.


É imperioso destacar a conclusão da Equipe da Sociedade Brasileira de Direito Público, em trabalho coordenado pelo Professor Doutor Carlos Ari Sundfeld, intitulado “Comunidades Quilombolas Direito à Terra”:


“Nossa conclusão, portanto, é que o Poder Público, para garantir às comunidades quilombolas a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando, no caso delas pertencerem a particulares, deve lançar mão do processo de desapropriação, com fundamento no art. 216, § 1º da Constituição Federal.


O referido processo de desapropriação é nítido interesse social, com fundamento constitucional no art. 216, § 1º, e será feito em benefício de comunidades quilombolas. Tais desapropriações, quando for o caso, devem ser feitas pelos Estados e também pela União, pois ambos têm o dever constitucional de dar cumprimento aos arts. 215 e 216 da CF e ao art. 68 do ADCT, não demandando, por isso, a edição de lei específica. (grifamos)


O Poder Público já dispõe de instrumentos jurídicos e materiais necessários para iniciar e conduzir os processos de desapropriação, sendo perfeitamente possível, na esfera federal, a coordenação de tarefas entre FCP e o INCRA…” (p. 118)[10].


Ainda segundo Edilson Pereira Nobre Junior, “a competência da União, prevista no art. 184 da CRFB, não representa estorvo a que Estados e Municípios, com base no art. 5º, XXIV, do mesmo diploma, exarem declarações de interesse social incidentes sobre glebas suscetíveis de exploração rurícola nos termos da Lei 4.132/62.”[11]


Assim, o art. 2º da Lei nº 4.132/62 deve ser interpretado em consonância com a Constituição Federal de 1988. Vejamos o que estabelece a Lei:


“Art. 2º Considera-se de interesse social: (…)


III – o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola:”


Nessa perspectiva, há de se compatibilizar a Lei nº 4.132 com Art. 68 do ADCT, de modo que as comunidades quilombolas (as quais se adéquam ao conceito de colônias de povoamento e trabalho agrícola, uma vez que pelo seu histórico são em regra comunidades rurais[12]) possam ter viabilizada a titulação do seu território.


3.2. Desapropriação e necessidade de estudo da cadeia dominial até a origem antes do pagamento de indenização. Razões e providências ante a impossibilidade de alcance do destaque do patrimônio público.


Os títulos particulares, uma vez apurada área de ocupação de remanescentes de comunidades de quilombos, ficam prejudicados e devem ceder ao reconhecimento da propriedade dos quilombolas, em decorrência da supremacia do interesse público, que submete a propriedade privada aos interesses nacionais e constitucionais[13]. Nesse sentido, encontra-se consolidada a orientação de que as desapropriações de terras particulares inseridas em territórios quilombolas deve ter como fundamento o interesse social genérico, explicitado na Lei nº 4.132/62, compatibilizada com o art. 68 do ADCT. Por expressa disposição legal contida no § 2º do art. 13 do Decreto nº 4.887/2003, o levantamento da cadeia dominial até origem antes do pagamento da indenização é medida que se impõe, a fim de aferir a autenticidade e legitimidade do título de domínio. Eis o teor do dispositivo citado:


“Art. 13. (…)


§ 1º (…)


§ 2o  O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.” (grifamos)


Realça-se que a necessidade do estudo da cadeia dominial até a origem deriva não somente do texto legal, como também da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consubstanciada no julgamento da RCL/PR 2.020, quando restou consolidado que “Em nosso sistema jurídico-processual a desapropriação rege-se pelo princípio segundo o qual a indenização não será paga senão a quem demonstre ser o titular do domínio do imóvel que lhe serve de objeto (cf. art. 34 do DL n.º 3.365/41; art. 13 do DL n.º 554/69; e § 2.º do art. 6.º da LC n.º 76/93)” (RCL 2020/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 22/11/2002).


A atenção na análise da legitimidade da cadeia dominial é medida de extrema importância no combate à grilagem de terras públicas no País. O crime de grilagem não é um fenômeno denunciado recentemente. Cite-se que “desde o começo de nossa história a apropriação indevida de terras públicas, fenômeno popularmente denominado de ‘grilagem’, caracteriza o processo de ocupação do Brasil e, de maneira especial, da Amazônia”.[14]


Portanto, é imprescindível o estudo prévio que assegure a legitimidade do destaque dominial do patrimônio público e o seu posterior encadeamento, de forma a evitar o desperdício de recursos públicos em favor daqueles que não se afiguram como legítimos donos do imóvel. Com efeito, aceitar que um simples registro imobiliário irregular possa gerar uma presunção de direito de propriedade seria violar os princípios básicos da legislação brasileira. Em casos tais, é possível a utilização do procedimento de declaração de nulidade de registro de imóveis, que pode inclusive ser feito administrativamente, a teor do art. 1º da Lei nº 6.739/79, cuja constitucionalidade já foi referendada pelo Supremo Tribunal Federal. Segue a íntegra do dispositivo:


“Art. 1º – A requerimento de pessoa jurídica de direito público ao corregedor-geral da justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com os artigos 221 e segs. da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975.”


No mesmo sentido, em se tratando de autarquia federal, no caso de títulos nulos de pleno direito, o órgão da Procuradoria deverá adotar as medidas previstas no art. 8ºB da Lei nº 6.739/76, com a redação dada pela Lei nº 10.267/2001, visando ao cancelamento da matrícula do mesmo ou então a propositura de ação anulatória do registro com pedido de tutela antecipada de imissão na posse perante o Juiz Federal da Seção Judiciária competente. Confira-se o teor do citado dispositivo:


“Art. 8oB Verificado que terras públicas foram objeto de apropriação indevida por quaisquer meios, inclusive decisões judiciais, a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município prejudicado, bem como seus respectivos órgãos ou entidades competentes, poderão, à vista de prova da nulidade identificada, requerer o cancelamento da matrícula e do registro na forma prevista nesta Lei, caso não aplicável o procedimento estabelecido no art. 8oA.


§ 1o Nos casos de interesse da União e de suas autarquias e fundações, o requerimento será dirigido ao Juiz Federal da Seção Judiciária competente, ao qual incumbirão os atos e procedimentos cometidos ao Corregedor Geral de Justiça.


§ 2o Caso o Corregedor Geral de Justiça ou o Juiz Federal não considere suficientes os elementos apresentados com o requerimento, poderá, antes de exarar a decisão, promover as notificações previstas nos parágrafos do art. 1o desta Lei, observados os procedimentos neles estabelecidos, dos quais dará ciência ao requerente e ao Ministério Público competente.”


Saliente-se que a constitucionalidade da Lei foi reconhecida pela Suprema Corte no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade nº 1.070-8-DF, realizado em 23.03.1983, cujo relator foi o Ministro Moreira Alves, que entendeu pela adequação da Lei à Constituição então em vigor, tendo enaltecido no seu relatório o seguinte trecho da exposição de motivos da referida lei:


“Em contrapartida, levada a registro documento que não configure a transferência de propriedade imóvel, ou, ainda, título não tido como registrável pela lei nacional, o registro dele não consubstanciará a aquisição do domínio nem dará lugar à presunção desta (…) A proteção constitucional diz respeito à pessoa que detém legitimamente a titularidade, e não àquela que invoca o domínio com fundamento em título nulo de pleno direito.”


Impende ainda ressaltar o seguinte excerto extraído do voto do Min. Moreira Alves:


“Em nosso sistema jurídico, ao contrário do que ocorre no direito alemão, o registro do título de aquisição de imóvel é causal e gera, apenas, a presunção juris tantum de propriedade. O que importa dizer que, inválido o título, inválido será o registro, desfeita, assim, a aparência de transferência da propriedade.”


Assim, a matrícula de título inexistente é ato jurídico nulo, e como tal não pode jamais ser convalidado, conforme determina o novo Código Civil, inclusive sem correspondente no antigo de 1916, o que reforça a teoria das nulidades em nosso sistema: “Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.”


Portanto, os atos de registro que se formarem sem a observância de seus requisitos legais são nulos de pleno direito, ou seja, não existem, porque a própria lei declara a nulidade ou inexistência e obriga o juiz, quando o ato lhe for exibido com imprestabilidade visível no próprio instrumento ou decorrente de prova literal, a não aceitá-lo para qualquer efeito e declará-lo nulo.


Nesse sentido é a lição de Martinho Garcez:


“Os contratos feridos por nulidade dependente de ação consideram-se anuláveis e produzem todo o seu efeito enquanto não são anulados por ação de rescisão. (…) Quando a nulidade é de pleno direito o juiz exerce um ministério passivo, na frase de TROPLONG, porque a lei se encarrega de reconhecer e declarar a nulidade, deixando ao juiz o papel ou a missão de constatá-la e de impedi-la de continuar produzindo qualquer efeito. O juiz não tem que entrar na apreciação das provas e circunstâncias; esse trabalho tirou-lhe a lei, declarando o ato nulo de pleno direito.”[15]


Daí se mostra inarredável a necessidade de estudo da cadeia dominial até a origem como regra, a fim de evitar que Administração Pública pague indenizações a pessoas detentoras de títulos nulos de pleno direito e que devem ser desconstituídos com fundamento no art. 1º e 8º-B da Lei nº 6.739/79, e art. 169 do Código Civil.


Já é sabido que a desapropriação para regularização de território quilombola difere da desapropriação sancionatória para fins de reforma agrária, conforme elucidado linhas atrás, quando se rememorou a consolidação do entendimento de que a primeira rege-se com fulcro na Lei nº 4.132/62, que trata do interesse social genérico. A segunda, por sua vez, regida pela Lei nº 8.629/93, decorre do descumprimento pelo proprietário da função social da propriedade rural, razão pela qual o Estado intervém por meio de sua medida mais drástica para submeter o imóvel ao atendimento do interesse público, distribuindo-o de forma igualitária àqueles que comprovadamente necessitam de fração da terra para a própria subsistência.


Dessa forma, frustrada a tentativa de alcance da cadeia dominial até a origem, deverá a ação de desapropriação ser ajuizada, devendo a petição inicial ser instruída com toda a documentação que comprove as tentativas de se elaborar estudo da cadeia dominial até a origem, com fundamento no art. 283[16] do CPC, de forma que um dos pedidos deverá ser o de bloqueio da indenização, até que se obtenha certeza quanto a quem pertence o domínio, com fundamento no art. 2º, § 1º, da Lei nº 9.871/99, art. 6º, § 4º, alínea “d”, da NE/Incra/DT/nº 95/2010, bem como deverá ser requerida a citação do Estado, com fulcro no art. 3º da Lei nº 9.871/99. Eis o teor dos dispositivos da Lei citada:


“Art. 2o Sempre que o imóvel abrangido por título de que trata o art. 1o for objeto de ação de desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária, o Incra, de imediato, impugnará o domínio do imóvel.


§ 1o Na hipótese prevista no caput, o preço do imóvel, depositado em juízo, ficará retido.


Art. 3o Caso a desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária, recaia sobre imóvel rural, objeto de registro, no Registro de Imóveis, em nome de particular, que não tenha sido destacado, validamente, do domínio público por título formal ou por força de legislação específica, o Estado, no qual situada a área, será citado para integrar a ação de desapropriação. (grifamos)”


§ 1o Nas ações judiciais em andamento, o Incra requererá a citação do Estado.


§ 2o Em qualquer hipótese, feita a citação, se o Estado reivindicar o domínio do imóvel aplicar-se-á ao caso o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 2o.


§ 3o Nas situações de que trata este artigo, caso venha a ser reconhecido o domínio do Estado sobre a área, fica a União previamente autorizada a desapropriar o imóvel rural de domínio do Estado, prosseguindo a ação de desapropriação em relação a este.”


Ainda que os dispositivos se refiram a discussão de domínio entre Estado e União relativa a imóveis situados em faixa de fronteira, bem como que se trate de desapropriação para fins de reforma agrária, deve ser estendida a sua aplicação a todas aquelas situações em que não há certeza sobre a que ente pertence o domínio, em razão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de que a indenização só deve ser paga a quem seja o legítimo dono do imóvel (RCL/PR nº 2.020), bem como pelo fundamento de que não se deve indenizar àquele que detém título de domínio nulo de pleno direito, seja por vício ocorrido na origem da cadeia ou que tenha sobrevindo posteriormente, pois de atos nulos não se originam direitos.


Contudo, quando se trata de desapropriação por interesse social para fins de regularização fundiária de comunidade quilombola, em que a responsabilidade pela titulação depende da respectiva competência administrativa sobre as terras ocupadas quando públicas federais ou estaduais, conforme elucidado linhas atrás, com fundamento nos arts. 10 e 12 do Decreto nº 4.887/2003 e arts. 18 e 20 da Instrução Normativa/Incra/DT/nº 57/2009, caso o Estado reconheça como seu o domínio sobre a área e a conseqüente invalidade do título privado, deverá ser requerido ao Juízo a suspensão da ação de desapropriação, para oportunizar a discussão do domínio entre o Estado e o particular em separado. Nesse caso, duas situações poderão surgir: a) ao sobrevir decisão judicial com trânsito em julgado no sentido de que o título particular é válido e regular, peticiona-se pelo prosseguimento da ação de desapropriação; b) do contrário, em sendo reconhecido judicialmente que a terra é pública estadual, deverão os autos administrativos ser remetidos ao Estado para promover a titulação em prol da comunidade, devendo ser requerida a desistência da ação de desapropriação e a reversão da indenização então bloqueada aos cofres públicos.


Portanto, no caso de desapropriação com fulcro na Lei nº 4.132/62 para fins de regularização de territórios quilombolas, é inadequada a utilização do parágrafo 3º da Lei nº 9.871/99, uma vez que, em sendo reconhecido o domínio estadual da terra, não será caso de desapropriá-la do Estado, haja vista que tal ocorrência criará para o respectivo ente estatal a obrigatoriedade de titulação da respectiva área em favor da comunidade, nos termos da legislação pertinente.


Já no caso de se tratar de posse particular sobre áreas de domínio da União, a Superintendência Regional do Incra deverá adotar as medidas cabíveis visando à retomada da área, conforme determina o art. 19 da Instrução Normativa/Incra/nº 57/2009[17], haja vista não ser cabível a indenização de terras públicas.


4. Considerações Finais


A introdução do art. 68 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias elevou a status constitucional o direito das comunidades de remanescentes de quilombos de obter a titulação dos seus respectivos territórios pelo Estado.


A regulamentação do referido dispositivo constitucional em âmbito federal veio com a edição do Decreto nº 4.887/2003, o qual, dentre outras providências, estabeleceu em seu art. 13 que os imóveis particulares com título de domínio válido incidentes no território delimitado serão objeto de desapropriação.


Dessa forma, a Administração Pública Federal, ao entender que a finalidade da desapropriação em foco é a regularização fundiária das comunidades, como forma de preservação do patrimônio cultural brasileiro (arts. 215 e 216 da CF/88), elegeu o procedimento expropriatório regido pela Lei nº 4.132/62 como o mais adequado para o fim social em debate.


Contudo, impende que algumas medidas sejam adotadas com vistas a proteger os cofres públicos contra indenizações indevidas, o que se faz com respaldo na jurisprudência do STF, em legislação federal, e na normatização interna do Incra, autarquia responsável pela condução do processo de regularização, apresentando o Estado soluções alternativas que tragam equilíbrio entre a cautela contra pagamentos indevidos e a continuidade do processo com vistas à efetivação do direito à titulação do território por estas comunidades.


No caso de o Estado vir a Juízo e afirmar que a propriedade lhe pertence, em razão da existência de nulidade no ato que transfere o domínio do patrimônio público para o particular, não caberá indenização ao respectivo ente estatal, mas deverá este assumir a responsabilidade de titulação da área em favor da comunidade de remanescente de quilombos, conforme preconiza o art. 12 do Decreto nº 4.887/2003 e ato normativo interno do Incra (IN nº 57/2009)[18].


 


Referências:

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Jus Podium, 2008.

COSTA, Paulo Sérgio Weyl A. Direitos humanos em concreto. Curitiba: Juruá, 2008.

GARCEZ, Martinho. Das nulidades dos atos jurídicos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

LITTLE, Paul E. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. In: Série Antropologia. UnB – Brasília, 2002, pp. 2-32

NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. Curitiba: Juruá, 2008.

ROCHA, Ibraim et al. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010. 502 p


Notas:

[1] Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, distintas modalidades territoriais foram fortalecidas ou formalizadas. São os casos das terras indígenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos.

[2] O processo administrativo para emissão desta certidão está previsto na Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007, da Fundação Cultural Palmares. No cadastro poderão ser registradas também as autodenominações Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres.

[3] ROCHA, Ibraim et al. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010. 502 p.,  pp. 105-106.

[4] Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. In: Série Antropologia. Brasília, 2002, pp. 2-32. Destaca ainda o autor que “a historicidade desses territórios é complementada pela historicidade dos conceitos que são utilizados para entendê-los e enquadrá-los. O processo de criação de conceitos territoriais é, por um lado, uma atividade acadêmica centrada na descrição das territorialidades existentes e, por outro, uma atividade política utilizada para o reconhecimento legal do que existe socialmente.” (p. 15).

[5] Parecer nº AGU/MC-1/2006 aprovado por Despacho do Advogado-Geral da União, para fins de efeito vinculante à Administração Pública Direta e Indireta (incisos X e XI do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993).

[6] A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989) foi ratificada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, e promulgada pelo Presidente da República, por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. O Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho de 2002. A Convenção entrou em vigor no âmbito internacional, em 5 de setembro de 1991, e, no Brasil, em 25 de julho de 2003. Foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro como lei ordinária, de acordo com o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988.

[7] Repisados nos arts. 18 e 20 da Instrução Normativa/Incra/nº 57/2009.

[8] Art. 184 – Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Art. 186 – A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

[9] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Jus Podium, 2008, pp. 1051/1052.

[10] Trecho extraído de ato normativo interno do Incra consubstanciado na NOTA TÉCNICA/AGU/PGF/PFE-INCRA/G/Nº03/2008 (ACRH)

[11] Desapropriação para fins de reforma agrária. Curitiba: Juruá, 2008, p. 104.

[12] Destaque-se que existem algumas comunidades quilombolas situadas em meio urbano. Contudo, conforme dados históricos e antropológicos, isso em geral se deve ao avanço de famílias aristocráticas e com influência junto ao poder político local sobre os territórios dessas comunidades, provocando a sua expulsão e descaracterização de seu meio de vida rural.

[13] Parecer nº AGU/MC – 1/2006, aprovado para os fins dos incisos X e XI do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.

[14] TRECANNI, Girolamo Domenico. Combate à grilagem: instrumento de promoção dos direitos agroambientais na Amazônia. In: COSTA, Paulo Sérgio Weyl A. Direitos humanos em concreto. Curitiba: Juruá, 2008, p. 259.

[15] GARCEZ, Martinho. Das nulidades dos atos jurídicos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 61/62.

[16] Art. 283. A petição inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação.

[17] Art. 19. Constatada a incidência nas terras reconhecidas e declaradas de posse particular sobre áreas de domínio da União, a Superintendência Regional deverá adotar as medidas cabíveis visando à retomada da área.

Informações Sobre o Autor

Juliana Fernandes Chacpe

Procuradora Federal. Especialista em Direito Processual Civil.


Equipe Âmbito Jurídico

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