Atrás das grades: tortura, tratamento degradante e a dura realidade da ineficácia do sistema carcerário brasileiro

Resumo: O presente trabalho versará a respeito da ineficiência do sistema carcerário brasileiro no momento político social da atualidade como ideia de uma construção histórica. Abordando temas referentes às condições presente no mesmo, a lógica da tortura como elemento organizacional e como resultado, justificativa ou razão de ser a neutralização de classes. Verifica-se todo um modelo de expansão do sistema punitivo e a finalidade de uma neutralização na demonstração da dura realidade da ineficácia do sistema carcerário e todo o mal estabelecido para a sociedade brasileira.

Palavras Chave: Sistema Carcerário Brasileiro. Tortura. Tratamento Degradante.

Abstract: This paper will deal about the inefficiency of the Brazilian prison system at the time of current social political idea as a historical building. Addressing issues relating to the conditions present in it, the logic of torture as an organization and as a result, justification or rationale for the neutralization of classes. There is an entire model system expansion punitive and purpose of a demonstration in neutralizing the harsh reality of the ineffectiveness of the prison system and all evil for Brazilian society.

Keywords: Brazilian Prison System. Torture. Degrading Treatment.

Sumário: 1. Introdução. 2. A tortura como elemento organizacional. 3. Masmorras calabouços e enlatados. 4. A neutralização de classes. 5. Considerações finais. Referências

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo o estudo de uma questão persistente na sociedade brasileira, muito debatida e discutida, mas que, no entanto vem cada vez mais afetando um número maior de pessoas através de uma expansão de um sistema ineficaz, utilizando a máscara da ressocialização para punir e neutralizar indivíduos que se encontram em uma realidade e ambiente extremamente inóspito e que recebem mesmo com toda a evolução em relação à dignidade da pessoa humana e suas garantias individuais, tortura e tratamento degradante por parte de um Estado que deveria exercer o mínimo de proteção e seguir os princípios que se baseia.

Ao se falar em realidade do sistema carcerário é preciso fazer uma breve retrospectiva em relação à punição, esta que acompanha todo o desenvolvimento e construção da sociedade, tendo relatos na Bíblia que datam por volta de 1.700 a.C., de cativeiros para reclusão dos escravos obtidos em guerras, onde as sanções variavam em tortura e morte que se perpetuaram na Idade Antiga, motivadas com a finalidade de neutralização de pensamentos e forças de enfrentamento da situação que existira.

Não existiam códigos ou leis para regulamentar estas sanções, basicamente a responsabilidade era por parte de reis e posteriormente dos sacerdotes encarregados de fazer a “vontade divina” que se utilizavam de diversos locais como torres, masmorras entre outros, com o intuito de uma neutralização de pessoas que não se encaixavam no padrão estabelecido da sociedade. No decorrer da história o aspecto punitivo sempre esteve presente, o Código de Hamurabi com sua Lei de Talião, até hoje lembrado, traz exatamente essa ideia de caráter vingativo com a finalidade de estabelecer normas de conduta e relacionamento.

Com o passar do tempo, com a revolução industrial e a revolução francesa se começa uma possível evolução no que diz respeito à regulamentação, onde somente por volta de 1830 que ocorre a mesma em relação a prisão e individualização de penas, a partir de então cada vez mais vem se regulamentando, estabelecendo convenções e preocupando-se com a dignidade do apenado. No entanto, o interessante é perceber que toda essa possível evolução e preocupação não vêm surgindo efeito prático na situação atual, pelo contrário, a expansão de um sistema penal como ocorre hoje em dia e a atual situação caótica, drástica e deplorável que se encontra o sistema penitenciário se faz perceber que a palavra evolução, no que diz respeito ao sistema punitivo é nada mais que mera falácia, comprovada pela situação presente que diferente não é do passado, muito embora seja bem pior.

É exatamente dessa realidade e finalidade do sistema punitivo que trata este trabalho, se debruçando na tortura persistente, no tratamento degradante através de dados do sistema carcerário brasileiro e em uma análise sobre a punição, neutralização e uma ressocialização inexistente.

2. A TORTURA COMO ELEMENTO ORGANIZACIONAL

Ao se falar em tortura no sistema carcerário brasileiro, interessante são as palavras do psicanalista Hélio Pellegrino no que diz respeito à prática:

“ A tortura é o contrário do discurso livre. Ela só pode existir na medida que não é, nem falada, nem exposta. A tortura se alimenta do sudário de silêncio que envolve o sujeito humano destruído. ”

Este breve estudo acerca da tortura consiste exatamente em romper com o silêncio e analisar todo o seu modelo organizacional, fazendo uma prescrição dos elementos existentes, formas e estruturação de uma prática condenada e rechaçada, porém presente e silenciosa. Desse silêncio resulta a maior dificuldade, principalmente por ser o tipo de situação que não se consegue mensurar o seu alcance, essa prática se baseia e se encontra na chamada cifra negra ou oculta, dessa forma, não se tem como saber exatamente a sua proporção.

O crime de tortura é estabelecido e regulamentado em diferentes codificações e tratado por várias convenções internacionais que o nosso país é signatário, o Código Penal, a Constituição Federal e a Convenção Internacional de Combate a Tortura e Tratamento Degradante procuram banir esta prática antiga e persistente na sociedade.

A lei 9455/1997, chamada lei de tortura, tipifica e estipula o que constitui a prática, como segue a diante:

“Art. 1° Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando- lhe sofrimento físico ou mental:

a) Com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) Para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) Em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de 2 a 8 anos.

§ 1° Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2° Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evita-las ou apura-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§ 3° Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.”

Ainda no ordenamento jurídico interno a Constituição Federal também protege e trata dessa questão, o interessante é perceber logo abaixo que apesar da vedação aos tipos especificados o que ocorre no Brasil é diferente, pessoas morrem frequentemente por balas oficiais, de uma maneira disfarçada e justificada pela política pública. Os números de assassinatos por parte da Polícia, encarregados de manter a “ordem pública” são extremos, mesmo não sendo os números reais, que são ainda, escondidos e alterados e no caso da tortura, nada difere, também se estabelece da mesma forma.

“Art. 5º

XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”

Mesma falácia é encontrada no Código Penal em seu artigo 38 quando diz: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. ” Essa realidade divergente do código se torna mais aberrante ao se pensar que a finalidade e dever do estado de proteção e garantia de direitos é desrespeitada em diferentes aspectos, se questiona assim todos os princípios que se baseiam o mesmo e principalmente a dignidade da pessoa humana que é afrontado pela prática e pelo tratamento degradante, presente no sistema carcerário, melhor analisado adiante. Dessa forma percebe-se todo o desrespeito ao ordenamento jurídico interno, mas que também vai de encontro em relação ao âmbito internacional, levando-se em conta a Convenção Internacional para o Combate a Tortura e ao Tratamento Degradante.

Com relação à tortura o que se consegue perceber devido a todo o histórico é uma ínfima mudança em relação aos sujeitos, fatores e agentes, caracteriza-se como uma extensão da tortura antiga brasileira da qual manchou com sangue nossa história em dois momentos mais explícitos, a sociedade escravocrata e a ditadura militar, no primeiro caso, sábias palavras se tiram de MAIA, (2006, p.97), ao tratar dessa questão:

“A abolição da escravidão eliminou apenas um dos fatores de seleção dos torturáveis. Os demais, que acompanharam os negros libertos daquele cativeiro, aprisionariam suas gerações futuras, agrupando cor, classe, e cultura para serem estigmatizadas, marginalizadas, desrespeitadas, desumanizadas. ”

Essa realidade é bem latente mesmo nos dias hodiernos ao se analisar dados do sistema carcerário brasileiro e consequentemente, no mesmo estudo as situações fáticas dos casos de tortura atualmente no Brasil, o perfil do torturado denota exatamente à sua árvore genealógica. A percepção de uma igualdade em relação aos casos de torturas é simples de se notar, como quadro comparativo é interessante se debruçar com os casos ou uma prescrição da tortura na ditadura militar brasileira, ao comparar a lógica do fato se depreendem as mesmas razões imbuídas daquele período, no atual. Dessa forma, válida é a demonstração da estruturação a cerca da lógica da tortura que MAIA, (2006, p. 97), também nos traz:

“a) a tortura sempre foi instrumental, estando presente nas relações de poder, com supremacia de forças do torturador e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado;

b) a tortura era praticada por se fazerem presentes oportunidades favoráveis, e ausência de vigilância sobre as condutas dos torturadores;

c) a ambiência e as situações em que agressor e vítima se encontravam eram propensas às fricções e atritos;

d) relações pessoais existentes entre agressor e vítima eram propensas às fricções e atritos;

e) as vítimas da tortura – os “torturáveis” – nunca foram consideradas iguais aos seus carrascos, mas inferiores, menores que humanos, e merecedores do sofrimento ou castigo;

f) as vítimas eram tornadas invisíveis no processo de aplicação dos tormentos:

– ou os processos eram secretos até para a vítima;

– ou as vítimas eram mantidas em segredo;

– ou as vítimas não tinham acesso a recursos jurídicos;

– ou todos os fatores em conjunto;

g) as vítimas eram destituídas de poder, sendo presas fáceis nas mãos de seus algozes;

h) a “racionalidade” da aplicação da tortura incluía processo de desumanização da vítima e colocava-a como ameaça concreta aos valores ou fundamentos da ordem da sociedade que os algozes representavam, sendo legítimo livrar-se da ameaça que representavam; ou eram vistas como portando algo de valor para o agressor (informação, confissão etc);

i) o medo da ameaça das vítimas e a retaliação pseudo-justiceira agiam como motores para a aplicação dos suplícios;

j) o racismo e a ideologia que informam/permeiam o sistema político e normativo influenciará o modo como os órgãos de justiça e segurança atuam para a identificação, prevenção, punição e reparação da tortura.”

Se retira desse quadro a sensação de não mudança e entendimento da estruturação que se estabelece na conduta, podendo considera-la insindicável; pela falta de apuração dos casos, invisível; pelo modus operandi e seus casos serem escondidos e se encontrarem em uma cifra oculta, inexistente; pela falta de informação e por fim, mas de relevante valia, impune, como consequência dos fatores anteriores. Essa lógica motivadora e estruturante ainda se mantém, na verdade, sempre foi a mesma, utilizando- se apenas de sujeitos diferentes e razões, ou melhor, justificativas diversas para ocorrência do fato, dessa forma se consegue perceber o elemento organizacional e não disfuncional de um determinado indivíduo.

Caracteriza-se como organizacional, exatamente por se notar toda uma estrutura propícia ao fato e que vem se mantendo por séculos, em todo o decorrer da história, utilizando apenas fatores e sujeitos diferentes, mas baseando-se principalmente no que diz respeito as relações de poder, esta talvez, seja a base estruturante para a presença da tortura.

Verifica-se alguns elementos e aspectos presentes na tortura parecidos entre si, em casos diversos pelo mundo, desde a ditadura militar passando pela guerra ao terror, difundida pelos Estados Unidos e que encontra semelhança na atual realidade do sistema carcerário brasileiro.

Primeiramente a expressão tortura não é utilizada por parte do torturador e do sistema, utiliza-se sinônimos, nesse caso há uma espécie de saneamento do termo para evitar as denotações que a palavra resulta. Da mesma forma se mostra a questão da ideologia, a guerra ao inimigo, trata-se de uma questão de segurança nacional ou manter a ordem pública, são justificativas presentes e relacionadas no que diz respeito aos casos explícitos. Nesse ponto tem se uma ligação direta a suspensão da legalidade, como exemplo a expressão: “os fins justificam os meios” consagrada por Maquiavel, que por determinadas circunstancias ou situação as leis e princípios basilares seriam suspensas com o intuito maior de uma preservação da ordem.

 É preciso contestar a ideia de que a tortura seja uma ideia de patologia institucional, nesse caso, o entendimento é que ela seria sistêmica, não só por alguns, protegida pelo silêncio e por ações oficiais, o que acaba criando uma cultura institucional de apoio. Ocorre assim uma divisão de trabalhos e difusão, alguns dizem que não torturam, mas confirmam que outros o fazem, uma espécie de divisão de trabalho entre agentes mais agressivos que levam para uma determinada instituição ou local e outros que silenciam mesmo sabendo da ocorrência por parte daqueles.

Vale salientar que a concorrência entre determinadas instituições e seus serviços para se sobrepor e mostrar resultados, influencia nos casos de tortura, baseando-se na prestação de resultados relativos a violência para a sociedade e as políticas públicas implantadas por parte do governo, que cada vez mais querem trazer e demonstrar para a sociedade um combate a situação atual de barbárie, terminando assim por justificar e muitas vezes receber o apoio em casos da referida conduta.

Também se faz presente a segregação e segredo das ações, como exemplo: O torturador no Brasil na época da ditadura militar dizia que gostava quando aparecia uma foto de uma pessoa sendo torturada, porque focava naquela foto, passando uma ideia de existência de tortura, mas não de uma sequência nos fatos, enquanto um caso repercutia, outros estavam escondidos. Nesse sentido, também é preciso entender que o próprio torturador muitas vezes não se dá conta de suas atitudes, por além de fazer parte da estrutura e sistema em que o mesmo se encontra, passa a ideia com o tempo de sua atitude ser confundida com sua função, alguns relatavam o uso do capuz na vítima, com a finalidade de desumanização, para acharem que estavam lidando com qualquer coisa não humano.

Por todo o exposto, verifica-se que a situação não se enquadra em uma questão disfuncional por parte de alguns indivíduos, mas sim de uma situação sistémica e organizacional, é necessário sair da ideia de natureza humana e racionalização social, dessa forma sua aplicabilidade em um combate seria muito difícil, não deve focar só nos atores, mas nos últimos e no sistema, que engloba os perpetuadores, facilitadores, simpatizantes e toda uma organização sistémica e principalmente combater a ideia de impunidade.

A tortura é só mais um elemento presente em um vasto e rico sistema de punir que assola o mundo e no caso do trabalho em questão, especificamente no Brasil, onde diversos outros problemas equiparadamente tão graves se encontram e convergem entre si na realidade de muitos que fazem parte do criticado, mas no auge da sua expansão, o sistema carcerário.

3. MASMORRAS, CALABOUÇOS E “ENLATADOS”

A realidade do sistema carcerário no Brasil e toda sua estrutura estabelecida pelo sistema punitivo se mostra muito similar a toda construção histórica em que o último foi estabelecido, se configura natural que seja relacionada ao atual colapso que se encontra as prisões e cárceres brasileiros. No entanto, o que pode se perceber é uma não mudança de realidade no que diz respeito ao sofrimento e dor presente nesse setor, nesse sentido se encontra as palavras de Foucault quando diz: “a dor era constitutivo da pena. ” As atuais circunstâncias demonstram uma equiparação a toda uma história que se tenta esquecer. No quesito dor não existe diferença, a punição vem exercendo a sua finalidade inicial de vingança e sofrimento, com uma extensão do significado da palavra, mas que hoje caracteriza-se como a continuação do sistema punitivo presente em toda a história.

Como anteriormente falado, o sistema punitivo tem sua origem desde a antiguidade e se perdura até hoje, no decorrer da história alguns fatos ou períodos marcantes explicitam a lógica de punir, a origem brasileira vem da colonização europeia que vivenciou pouco antes todo um período em que as relações de poder eram fundamentadas em nome da religião, as práticas de tortura e punições nesse período foram aprofundadas com destreza, a idade das trevas marcou a história da humanidade pela perseguição e punição.

Com o papado de Inocêncio III a base legal para perseguição aos hereges foi estabelecida, com a Igreja processando, julgando e aplicando a sanção contra os infiéis, afirmando que os mesmos deveriam ser presos e entregues às autoridades para punição, nesse momento surge a figura dos inquisidores e o aperfeiçoamento das técnicas e atos para torturar e punir. As masmorras e calabouços a partir desse momento foram cada vez mais difundidas e preenchidas com os que não se encaixavam nos padrões da época.

Essa influência é bem marcante no Brasil, copia, da Europa e desenvolve-se aqui uma sociedade escravocrata que utilizava-se de diversos meios para punir negros como objetos, as senzalas lotadas mostravam o real sentido da palavra dor. Nesse sentido, vale demonstrar um pouco da realidade daquele momento pelas palavras de MAIA, (2006, p.44):

“O dado histórico, portanto, é que os detentores do poder econômico e também os do poder político utilizavam-se da violência contra os despossuídos – índios, negros, pobres em geral – como modo de garantir controle social, como intimidação, castigo ou mero capricho. Aprisionavam pelas correntes e pelo medo. Dominavam o corpo, com isso pretendendo também subjugar o espírito. ”

Essa realidade se perpetuo por séculos no Brasil, trazendo suas consequências até nossos dias, o período das masmorras e calabouços não foi superado, mas qual seria o significado real de tais palavras? Para saber a resposta é só verificar o atual estado das prisões brasileiras que se percebe a semelhança com palavras tão estigmatizadas e que para a sociedade atual diz respeito a uma história que pretendem esquecer, como os alemães procuram esquecer o holocausto.

É fácil verificar os dados que são passados em relação à situação atual carcerária brasileira, os números são cada vez maiores, os apenados se sustentam em uma situação de vida que vai de encontro a toda a lógica de princípios e garantias do ser humano, onde todo esse desrespeito é um dado crescente como o número de presos que a cada dia lotam as instituições.

Dados relativos a população carcerária, fornecidos pelo CNJ são impressionantes, se verifica o aumento exorbitante, número que se mostra gritante e demonstra a política atual de cada vez mais neutralizar com a justificativa de uma possível contenção de ondas de violência. Os números ainda são mais preocupantes em relação a equação população-vagas, o déficit de vagas é quase que a metade dos apenados, propiciando assim a superlotação e a situação caótica atual, nada diferente das antigas senzalas ou campos de concentração em pleno século XXI.

Outra questão preocupante se baseia no número de presos provisórios, presos que nesse caso não chegaram a ser condenados ainda, essas pessoas vivem essa realidade mesmo sem ter ocorrido seus julgamentos. Deve-se levar em conta que esses presos se encontram em um estado de maior falta de respeito por parte do estado e da sociedade que incentiva essa política criminal de neutralização e encarceramento, cada vez mais de encontro aos princípios e garantias individuais da pessoa humana.

O custo que a sociedade brasileira paga por esse sistema ineficaz é bastante alto, que pelos dados apresentados pela CPI do Sistema Carcerário p.71 demonstram a disparidade em relação a outras áreas e a divergência dos valores com a realidade do sistema prisional:

“De acordo com relatório do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, o gasto mensal com o sistema penitenciário totaliza R$ 3.604.335.392,00 (três bilhões, seiscentos e quatro milhões, trezentos e trinta e cinco mil, trezentos e noventa e dois reais), assim direcionados: R$ 2.642.579.873,00 (dois bilhões, seiscentos e quarenta e dois milhões, quinhentos e setenta e nove mil, oitocentos e setenta e três reais) gastos com a folha de pagamento dos servidores ativos (73,32%); R$ 27.701.964,00 (vinte e sete milhões, setecentos e um mil, novecentos e sessenta e quatro reais) gastos com a folha de pagamento dos servidores inativos (0,76%); R$ 799.481.100,00 (setecentos e noventa e nove milhões, quatrocentos e oitenta e um mil e cem reais) aplicados em despesas de custeio (22,18%) e R$ 134.572.455,00 (cento e trinta e quatro milhões, quinhentos e setenta e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e cinco reais) destinados a despesas de investimento (3,74%).”

Com todo esse valor a situação prática, no entanto, é deplorável e através de uma análise em relação ao tipo penal enquadrado cada preso, verifica-se o número total de apenados em que a grande expressividade se configura em relação aos crimes patrimoniais, com um número em torno de 15% para o tráfico de entorpecentes. Dessa forma é notória a preocupação em tirar da sociedade indivíduos, alojando-os, ou melhor, utilizando a expressão real, “jogando-os” em prisões precárias ou estabelecimentos prisionais como uma masmorra ou calabouço, nessa situação cada vez mais cresce a população carcerária brasileira transformando esta na quarta maior do mundo, perdendo apenas para Rússia, China e Estados Unidos. Essa realidade de desrespeito crescente no Brasil cresce a cada ano, junto com o aumento vem à superlotação e o déficit de vagas que terminam por transformar um modelo velho, falho e ineficaz em uma política pública criminal.

São diversos os casos de desrespeito e de uma situação de vida crítica que ao se deparar com a realidade prisional brasileira se verifica, nessa mesma CPI foram relatados casos de proliferação de doenças das mais diversas, que pela proximidade condicionada através da superlotação termina por propiciar, falta de assistência médica básica, celas que comportariam 10% da quantidade presente, comidas da pior qualidade misturadas dentro de sacos plásticos onde os presos tinham que comer com as mãos, nesse caso, assemelhando-se animais, falta de controle e preservação da integridade física do apenado, higiene inexistente, falta de estrutura física, tratamento desumano e degradante, tortura, agressões, desrespeito à dignidade da pessoa humana entre diversos outros problemas de níveis diferentes em relação a gravidade da conduta, ou falta dela, por parte do estado, que demonstram exatamente o descaso e a manutenção com expansão do sistema punitivo.

Nesse sentido, FERRAJOLI, (2002, p.35), se refere ao cárcere e demonstra essa estrutura em que se baseia o sistema punitivo:

“ É preciso reconhecer, por outro lado, que o cárcere sempre foi, ao contrário do seu modelo teórico e normativo, muito mais do que “a privação de um tempo abstrato de liberdade”. Inevitavelmente, ele conservou múltiplos elementos de sofrimento corporal, que se manifestam na forma de vida e tratamento que só se diferenciam das antigas penas corporais por não serem concentradas no tempo, mas dilatadas por todo o período de duração da pena.

Além disso, ao sofrimento corporal a pena carcerária acrescenta o sofrimento psicológico: a solidão, a sujeição disciplinar, a perda da sociabilidade e da afetividade e, também , da identidade, além daquele sofrimento específico – o “castigo da alma” do qual falará Mannuzzu – conexo à pretensa reeducação voltada à transformação da personalidade do detento. Em suma, a reclusão tem um conteúdo aflitivo que vai bem além da privação da liberdade pessoal, resultando na privação da maior parte dos direitos vitais da pessoa”.

Mesmo com todo o avanço conquistado no decorrer da história, nessa área, o mesmo é inverso, o sistema de punir terminou por trazer condições e práticas bem piores que as antigas, além de toda a estrutura errónea questionável doutrinariamente em relação a punição, as formas da mesma se “aperfeiçoaram” no sentido de tornar bem pior a condição de vida dessas pessoas, um caso em específico é o que se chama de “latas de sardinha”, o material de diversas celas em algumas prisões é o aço, nos fundos do presídio há contêineres, ao invés de construir prédios para abrigar os presos são instalados esses módulos de aço com a explicação que estes custam mais barato. Os contêineres são uma espécie de caixote, são minúsculas celas para quatro homens feitas de aço, até mesmo as camas, e mesmo assim são superlotados onde caberiam no máximo quatro, ficam oito. Enferrujados e no momento que os agentes trancam as portas o calor é insuportável caracterizando assim uma situação crítica para aqueles presos enjaulados, apertados e sem condição alguma de permanência nesse local.

Por todo o exposto, nota-se que a situação é crítica e mesmo assim é crescente, a realidade do sistema prisional é dura para essas pessoas que a sociedade através do estado retira, afasta e pune de forma tão degradante, que os verbos anteriores não são os da prática, na verdade, elas são retiradas, excluídas, humilhadas e castigadas, mesmo com todo o avanço doutrinário, a situação cada vez mais mostra a ineficácia do sistema prisional.

4. A NEUTRALIZAÇÃO DE CLASSES

Concluindo o presente trabalho, verifica-se a finalidade principal da prática do sistema punitivo, tal seja, a neutralização de classes ou dos marginalizados, essa afirmação deriva das condutas empregadas e todo o contexto prático aplicado ao direito penal. É fato que a corrente abolicionista se faz presente para o setor favorecido econômico e socialmente, a população carcerária é predominantemente a extensão dos marginalizados, a sua esmagadora maioria são de negros, pobres, ou seja, os vulneráveis.

Nesse sentido, vale destacar o exemplo dos Estados Unidos que transformou a divisão de anos de história em relação ao apartheid social em uma extensão dos guetos para a prisão, com um controle e vigilância extrema em relação aos excluídos e diferentes. Categoricamente pode-se notar toda a lógica estruturante em relação ao sistema punitivo, tendo como sua finalidade a neutralização de indivíduos. Em relação a esse aspecto interessante o que diz FERRAJOLI, (2002, p.33):

“O cárcere – além da espetacularidade dos grandes processos, e também pela enorme quantidade de sujeitos atingidos pela justiça penal – é, em suma, e cada vez mais, um instrumento de controle e de repressão social reservado aos marginalizados. Dependentes químicos, imigrantes e jovens subproletários são, em número crescente, os destinatários principais da reclusão, por causa do aumento da desocupação, de pobreza, da simultânea crise do Estado do bem-estar e de suas prestações assistenciais e, por outro lado, da crescente onda repressiva que anima a opinião pública mobilizada contra os fracos e diferentes. Contra esses a justiça penal é extraordinariamente rápida e “eficiente”.

Toda essa busca por uma expansão do sistema penal parte do Estado com o apoio da sociedade que pressiona por ser atormentada por ondas de violência e por diversos fatores de uma possível evolução social que traz consigo desigualdade, injustiça e diversidade, sendo assim o caminho tido como o mais fácil e mais eficaz transforma a prevenção em uma conduta de punir e expandir o direito penal. Pela lógica da punição o sistema penal vem se demonstrando o meio ineficaz para a resolução de conflitos, no entanto os investimentos nessa área aumentam não proporcionalmente, aos investimentos dos outros e basilares setores como a educação. O uso dessa equação errônea termina por trazer o efeito inverso do esperado, no sistema carcerário o indivíduo ao adentrar só vai ter a chance, de sair um problema ainda maior para a sociedade.

A questão da ressocialização que figura como finalidade do sistema punitivo e como princípio do direito penal se torna impossível pelos diversos fatores apresentados em relação a vida que um habitante de uma prisão leva, pelos meios existenciais e por toda a sua estrutura, ressocializar é o verbo inexistente no sistema carcerário.

Dessa forma ANDRADE, (1995, p.25), traz uma questão envolvendo a falta de ressocialização e demonstra a finalidade da prática do sistema punitivo, tal seja, a neutralização:

“É este potencial de periculosidade social, que os positivistas identificaram com anormalidade e situaram no coração do Direito Penal que justifica a pena como meio de defesa social e seus fins socialmente úteis: a prevenção especial positiva (recuperação do criminoso mediante a execução penal) assentada na ideologia do tratamento que impõe, por sua vez, o princípio da individualização da pena como meio hábil para a elaboração dos juízos de prognose no ato de sentenciar. Logo, trata-se de defender a sociedade desses seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal (prognóstico científico de periculosidade) havendo que ressocializá-los ou neutralizá-los”.

 A estrutura da Justiça Penal se configura seletiva, a delinquência é representada pela classe dos marginalizados, pobres ou excluídos. Essa tendência crescente em neutralizar indivíduos se configura como uma fuga dos reais deveres do Estado, ensejando a validação do discurso de pensadores como Louk Husman, Claus Roxin ou as ideias de Barata que trazem um grande aporte no sentido de repensar as bases e modelos existentes, além de sua estrutura, contexto e funcionamento do sistema penal.

Nesse campo, a importância da criminologia crítica se demonstra como algo imprescindível na tentativa de buscar caminhos e alternativas para melhoria de uma área que se configura como problemática e mesmo assim crescente, que afeta mais e mais a sociedade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, o trabalho teve como finalidade uma demonstração e estudo de como se estabelece a realidade do sistema carcerário brasileiro, trazendo um pouco da sua estrutura, sua finalidade e se configura como um mínimo retrato de uma paisagem obscura e inóspita que cerca o sistema punitivo.

Primeiramente estabeleceu aspectos referentes a questão da tortura como um elemento organizacional e não disfuncional, para demonstrar uma conduta presente no sistema e retirar a ideia de algo excepcional e conduta de alguns, mas sim verificar toda uma lógica de uma estrutura organizacional que enseja a referida. Logo após, trouxe a crescente expansão de um sistema ineficaz e sua realidade prática, na tentativa de demonstrar a não alteração do modelo punitivo arcaico, no entanto, foi percebida uma mudança, não para melhor, mas para cada vez mais tornar a punição árdua e sem nenhum respeito aos princípios que norteiam o ordenamento jurídico, como exemplo, a dignidade da pessoa humana. Ao se verificar essa dura realidade do sistema carcerário brasileiro se chega a conclusão que a finalidade não é a prometida ressocialização, mas sim, a neutralização de determinados indivíduos pertencentes a determinadas classes.

Por fim, se averigua que o sistema punitivo se encontra em ascensão e sua expansão é uma constante, precisando assim cada vez mais críticas, estudos e aprofundamentos em um campo que interfere em toda a sociedade, esta que muitas vezes apoia essa expansão pelo fato de se sentir presa a uma violência crescente. Por essa razão é de grande importância a figura da criminologia crítica com o intuito de se repensar esse modelo que mancha de sangue, fere e tem como razão de ser punir e neutralizar indivíduos, demonstrando assim sua ineficácia e todo o mal para a sociedade.

 

Referências
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FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. In INSTITUTO
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
MAIA, Luciano Mariz DO CONTROLE JUDICIAL DA TORTURA INSTITUCIONAL NO BRASIL À luz do direito internacional dos direitos humanos/ Luciano Mariz Maia – Recife, 2006. Disponível em: http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2012/06/DO-CONTROLE-JUDICIAL-DA-TORTURAINSTITUCIONAL-NO-BRASIL-HOJE.pdf Acesso em:10 jul de 2013
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Informações Sobre o Autor

Ronaldo José de Sousa Paulino Filho

Mestre em Direito Especialista em Direito Processo Civil Pós Graduação em Direito Constitucional, Professor e Advogado


Equipe Âmbito Jurídico

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