O antigo ditado: em briga de marido e mulher, ninguém bota a colher deixa claro o
sentido de impunidade da violência doméstica, como se o que acontecesse dentro
da casa não interessasse a ninguém. Trata-se nada mais do que a busca da
preservação da família acima de tudo. A mulher sempre foi considerada
propriedade do marido, a quem foi assegurado o direito de dispor do corpo, da
saúde e até da vida da sua esposa. A autoridade sempre foi respeitada a tal
ponto que a Justiça parava na porta do lar
doce lar, e a polícia sequer podia prender o agressor em flagrante.
Tudo isso, porém, chegou ao fim. Em muito boa hora
acaba de ser sancionada a lei que recebeu o nome de Maria da Penha, que cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Os
avanços são muitos e significativos. Foi devolvida à autoridade policial a
prerrogativa investigatória, podendo ouvir a vítima e o agressor e instalar
inquérito policial. A vítima estará sempre assistida por defensor e será ouvida
sem a presença do agressor. Também será comunicada pessoalmente quando for ele
preso ou liberado da prisão.
Mais. A lei proíbe induzir o acordo bem como
aplicar como pena multa pecuniária ou a entrega de cesta básica. Serão criados
Juizados Especiais contra a Violência Doméstica e Familiar, com competência
cível e criminal. Assim, a queixa desencadeará tanto ação cível como penal,
devendo o juiz adotar de ofício medidas que façam cessar a violência: o
afastamento do agressor do lar; impedi-lo que de se aproxime da casa; vedar que se comunique com a família, ou
encaminhar a mulher e os filhos a abrigos seguros. Além disso, poderá o juiz
adotar medidas outras como revogar procuração outorgada ao agressor e anular a
venda de bens comuns.
Ainda que se esteja a falar em violência contra a
mulher, há um dado que parece de todos esquecido: a violência doméstica é o
germe da violência que está a assustar a todos. Quem vivencia a violência,
muitas vezes até antes de nascer e durante toda a infância, só pode achar
natural o uso da força física. Também a
constatação da impotência da vítima, que não consegue ver o agressor punido,
gera a consciência de que a violência é um fato normal.
A banalização da violência doméstica e familiar e a
falta de credibilidade à palavra da vítima, que se via forçada a desistir da
representação e fazer acordo, revelava a absoluta falta de consciência de que a
violência intrafamiliar merece um tratamento diferenciado. A vítima, ao
veicular a queixa, nem sempre quer separar-se do agressor. Também não quer que ele
seja preso; só quer que a agressão cesse. Assim, vai em busca de um aliado,
pois as tentativas que fez não lograram êxito. Aliás, este é o motivo de não
ser denunciada a primeira agressão. A mulher, quando procura socorro, já está
cansada de apanhar e se vê impotente. A esta realidade deve atentar a Justiça,
que não pode quedar-se omissa, achando que a mulher gosta de apanhar. Pelo
contrário, a submissão que lhe é imposta a e a falta de auto-estima é que a
deixam cheia de medo e vergonha.
Chegou o momento de resgatar a cidadania feminina.
Para isso, se fazia urgente a adoção de mecanismos de proteção que coloque a
mulher a salvo do agressor. Só assim ela terá coragem de denunciar sem temer
que sua palavra não seja levada a sério, que sua integridade física nada valha
e que o único interesse do juiz seja, como forma de reduzir o volume de
demandas em tramitação, não deixar que se instale o processo.
A Justiça deve, sim, botar mais do que a colher na
briga entre marido e mulher, deve assumir a posição de pacificadora, o que
significa muito mais do que forçar acordos e transações. Deve impor medidas de
proteção como a freqüência a grupos terapêuticos, única forma de conscientizar
o agressor de que o LAR é um Lugar de Afeto e Respeito.
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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