Resumo: Após as transformações sociais do século XX advindas da industrialização, os direitos sociais ficaram latentes em uma sociedade voraz por uma vida digna e um bem-estar social sem qualquer discriminação decorrente de raça, cor, credo ou origem. Com a promulgação, em 5 de outubro de 1988, da Constituição da República Federativa do Brasil, os aludidos direitos surgem como garantias fundamentais inerentes a todos os cidadãos. É certo que, a globalização trouxe a área científica a possibilidade de novas descobertas, principalmente em questões que envolvem a origem humana. Todavia, ao mesmo tempo, faz-se necessário em observância ao princípio vetor do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa humana como limite de atuação do cientista
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana; Bioética; Biodireito.
Abstract: After the social transformations of the twentieth century from industrialization, social rights were latent in a voracious society for a dignified life and social well-being without any discrimination due to race, color, creed or origin. With the promulgation, on October 5, 1988, of the Constitution of the Federative Republic of Brazil, the aforementioned rights appear as fundamental guarantees inherent in all citizens. It is true that globalization has brought the scientific area to the possibility of new discoveries, especially in matters involving human origin. However, at the same time, it is necessary in observance of the principle vector of the Democratic State of Law, which is the dignity of the human person as the limit of action of the scientist
key-words: dignity of human person; bioethics; bi-rule
1. INTRODUÇÃO
Com objetivo de promoção dos direitos humanos fundamentais de forma mais realista em meio a uma trágica conjuntura mundial da época das grandes guerras mundiais, a Organização das Nações Unidas (ONU), composta por 192 países, originou uma real revolução ao dispor os direitos humanos como uma preocupação da sociedade contemporânea e propor sua positivação, reconhecendo-o como um direito essencial a todo e qualquer cidadão.
Em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217-A da Assembleia das Nações Unidas, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, disposta em 30 artigos que garantia aos cidadãos direitos essenciais independentemente destes possuírem ou não atributos especiais, apesar de inúmeras diferenças biológicas e culturais, de raça ou credo que os distinguem, além de ser consagrada como norma fundamental e referencial para os direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos produziu efeito erga omnes aos Estados signatários. Considerado o documento mais traduzido no mundo (mais de 360 idiomas), afirmou a dignidade da pessoa humana como um ideal a ser atingido por todos os povos e nações.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrou como pilar do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, além de ser alicerce para demais diplomas constitucionais criados a partir de então, garantindo, desta forma, o pleno desenvolvimento da personalidade humana, item imprescindível para estruturação de uma autêntica democracia.
Por intermédio da positivação dos direitos humanos fundamentais como direito à vida, à liberdade e à propriedade de forma igualitária entre os homens, tornou-se possível a intervenção do Poder Judiciário para o efetivo cumprimento dos direitos humanos fundamentais em casos de direitos transgredidos.
No âmbito internacional, por intermédio da referida Declaração, os Estados foram impelidos à preservação de valores que ultrapassam suas próprias razões, levando o ser humano a um patamar de um ser constituído de direitos universais e que se sobrepõe às razões puramente políticas do Estado. Professor Dr. Paulo Bonavides[1] preceitua que:
“Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.
O artigo 5º da Constituição Federal que inaugura o capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos assegura que:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”
A primeira garantia fundamental prevista no artigo 5º é o direito à vida, que é acobertado pelo manto da inalienabilidade, uma vez que, por seu conteúdo não ser econômico-patrimonial, é inegociável, indisponível e intransferível.
A vida é a primeira garantia fundamental exposta exatamente porque é dela que refletem todos os outros direitos, em especial o direito a personalidade que começa pelo próprio corpo, que, nas lições do excelso Professor Miguel Reale[2] é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos. Porém, como conceituar a vida e ao que está atrelado este conceito?
É certo que, faz parte da natureza humana a busca pelo conhecimento, bem como, a necessidade do saber da origem de todas as coisas, principalmente, a origem da vida.
Com uma leitura cautelosa do Texto Sagrado (Bíblia) no livro de Gênesis 2:7, o início da vida é uma combinação de elementos: a ação do Senhor Deus na formação do homem através do pó da terra e o fôlego da vida em suas narinas para se tornar uma alma vivente.
Para a mitologia grega o início da vida começou com dois titãs: Epitemeu e Prometeu. A eles foram atribuídos à criação de todas as criaturas da terra e do homem. Epitemeu, da argila formou o homem e não sabendo como atribuir características peculiares ao homem, de tal forma que o diferenciasse das demais criaturas da terra, seu irmão Prometeu roubou de Hélio, o deus do Sol, o sopro da inteligência, que permitiu ao homem o comando sobre todos os demais seres da Terra.
Os filósofos pré-socráticos como Tales de Mileto, Anaximenes e Heráclito, cada qual explica a origem da vida a um elemento, respectivamente, água, ar e fogo. Platão séculos traria uma nova suposição ao falar do cosmos, um ser vivente provido de Alma e Intelecto, gerado pela ação da providência de um Deus, tem-se o nascimento do mundo, tornando possível a existência do homem.
A ciência, repetindo os ensinamentos dos filósofos numa espécie de fórmula comum explica a origem das coisas com o início do universo
“No principio, toda a energia e matéria se encontrava comprimida em uma bola de fogo primordial inimaginavelmente pequena e quente, de pequeníssima extensão, como também de enorme densidade e temperatura. Uma mistura de radiação e matéria, tão densa e quente que nela não podiam, existir galáxias nem estrelas. (…) há 13,7 bilhões de anos (este o cálculo mais recente dos astrofísicos), com um estouro inicial; uma gigantesca explosão cósmica, nosso universo teve início.”[3]
Com o avanço acelerado da tecnologia e da ciência nas últimas décadas permitiu novos questionamentos quanto à vida e lançou conflitos quanto à extensão da atuação médica e o progresso científico. Animais, alimentos e o próprio homem participam de pesquisas, os materiais genéticos são alterados em benefício do desenvolvimento científico e então, o homem passa a ser não mais tão somente possuidor de direitos e deveres, mas também de objeto de estudo e manipulação.
O biodireito surge na ceara dos direitos fundamentais com conteúdo puramente moral relacionado à vida e indissociável à dignidade da pessoa humana e com o escopo de positivar juridicamente os comportamentos médico-científicos que tem por fundamento a bioética.
A doutrina bem define o biodireito:
“O Biodireito surge na esteira dos direitos fundamentais e, nesse sentido, inseparável deles. O Biodireito contém os direitos morais relacionados à vida, à dignidade e à privacidade dos indivíduos, representando a passagem do discurso ético para a ordem jurídica, não podendo, no entanto, representar “uma simples formalização jurídica de princípios estabelecidos por um grupo de sábios, ou mesmo proclamados por um legislador religioso ou moral. O Biodireito pressupõe a elaboração de uma categoria intermediária, que se materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos racionais e legitimadores””. [4]
O biodireito vem para regular a bioética no campo do jurídico, uma vez que esta lida com questões filosóficas, científicas e jurídicas, criando parâmetros legais de atuação.
Não se pode olvidar que há de se ter sempre um elo entre as diversas áreas do conhecimento com o direito, como forma de legitimar e regular a atuação de profissionais e cientistas, além de coibir abusos, evitando desta forma que o homem seja reduzido a um simples objeto de estudo na ânsia da descoberta daquilo que ainda é desconhecido pela ciência, vez que, o alicerce do direito é a dignidade humana e por reflexo a vida. No mesmo sentido, a ilustra Professora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos[5]
“interferir rapidamente, se ajustar às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de largo debate parlamentar (…), vem imantada da legitimidade capaz de garantir a validade de sua inserção no meio social concretizando o escopo último de qualquer empreendimento do sujeito de Direito: o resgate da dignidade humana”.
Não se pode olvidar que a dignidade da pessoa humana é um dos princípios norteadores do biodireito, afora dos princípios da autonomia, do consentimento informado, da beneficência, da não maleficência, da justiça e da sacralidade da vida humana.
A Dignidade da Pessoa Humana é definida pelo Professor Alexandre de Morais como
“um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil”.[6]
Em síntese, o princípio da autonomia é a capacidade do homem de tomar decisões, de poder definir o melhor método para determinada pesquisa a fim de se atingir o resultado esperado, sempre observando os valores morais aceitos e principalmente a vontade do paciente em fazer parte da investigação além de sua pela consciência para que participe da pesquisa ''voluntariamente e com informação adequada''[7].
Segundo o Relatório Belmont publicado em 1978 que estabelece os princípios éticos que devem conduzir a experimentação humana, o princípio da autonomia “[…] abrange ao menos duas convicções éticas: os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e as pessoas com autonomia diminuída têm direito à proteção.” E que pessoa autônoma é aquela ''capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação dessa deliberação''
O princípio da beneficência esta intimamente ligado ao fazer o bem ao próximo, fazer a beneficência na literalidade da palavra, preceitos estes disseminados inclusive pela Igreja como na encíclica Mater et Magistra de João XXIII em sua primeira parte que propaga o amor a Deus e amor ao próximo. Uma vez praticado o princípio da beneficência, não se pratica o maleficio ao paciente.
O princípio da sacralidade humana, a vida é respeitada e protegida contra agressões indevidas decorrentes do avanço tecnológico. A vida é tratada como inviolável, não se justificando o sofrimento e dor além do que o homem pode suportar conforme ensinamentos dos juristas Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha
“são os principais norteadores da bioética, na medida em que consideram a vida como sagrada e inviolável. Neste sentido, não se justifica a causa do sofrimento e da dor desnecessária, a imputação de um ônus superior ao que a pessoa possa suportar, ainda que, por decisão sua, mesmo para a realização de pesquisas ou qualquer atividade científica. Combate-se assim, a consideração do homem como objeto, como uma ‘coisa’, a favor da compreensão da vida humana como algo sagrado, intangível. Ainda que fora dos aspectos teológicos que a questão envolve, a expressão ‘sagrado’ não necessariamente estará ligada a Deus, mas sim ao caráter inviolável de seu objeto […] a vida humana não pode ser sacrificada em prol da ciência, e da experimentação” […]”[8]
Estes mesmos princípios são os que dirigem à bioética cujo desígnio é estabelecer critérios morais e éticos ao progresso científico para que o homem tenha seu valor protegido, resvalando na premissa moralista kantiana de oposição da pessoa e coisa, de que o homem “não pode ser utilizado por nenhum outro homem como simples meio” [9], mas como fim em si mesmo.
Com o avanço tecnológico e o aperfeiçoamento das técnicas capazes de modificar e manipular o código genético humano, o interesse no estudo desta área cresceu verticalmente, isto porque, a busca pelo desconhecido sempre foi do âmago humano. Não há como dissociar o biodireito com a bioética, vez que aquela é extensão desta. A palavra ética é definida pela Professora Tereza Rodrigues Vieira como “uma tentativa para se determinar os valores fundamentais pelos quais vivemos. Quando vista num contexto social, é uma tentativa de avaliar as ações pessoais e as ações dos outros de acordo com uma determinada metodologia ou certos valores básicos”[10].
Em 1971, o médico oncologista, biólogo e professor americano da Universidade de Wisconsin, Van Rens Selaer Potter pela primeira vez escreve sobre a bioética e atribui como finalidade de ser uma ciência capaz de auxiliar no processo de evolução biológica do ser humano. Seria então nos dizeres da Professora Maria Helena Diniz[11] a bioética uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas com o intuito de melhorar a qualidade de vida do ser humano em contraposição ao uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora.
A Enciclopédia da Bioética definiu em 1978 o sentido da palavra como:
“o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de valores e princípios morais” [12], que em 1995 não mais baseados em valores e princípio morais, mas em dimensões morais das ciências da vida e do cuidado com a saúde.”
No contexto moderno, a bioética busca um novo sentido sobre o conceito de vida, através de um novo significado da ética. Nesta nova perspectiva, a intenção é o amoldamento das novas tecnologias e da ciência aos novos descobrimentos, de tal forma que a interdisciplinaridade é necessária para que a bioética e o biodireito possam dar um sentido humanista às pesquisas científicas.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu preâmbulo considera a necessidade constante da busca de melhores condições de vida ao homem como forma de progresso social. Frente às epidemias que alastram os países, as doenças desconhecidas na atualidade e as bactérias e vírus que matam milhares, a melhoria e o prolongamento da vida tem por meio o desenvolvimento da ciência e tecnologia, para novas descobertas da biologia molecular e da tecnociência. Entretanto, há de se atentar que todo progresso é em favor do homem, de tal forma que os profissionais devem conciliar os potenciais riscos, que ora são imprevisíveis, a vida, integridade e dignidade do paciente que esta inserida em valores éticos e morais.
Professor Reinaldo Pereira Silva[13] observa que “o direito à vida é o fundamento de todos os direitos. A ética da vida se insere por essa via na universalidade dos valores. Quem diz dignidade humana diz justiça”
Desta forma, o atual ordenamento jurídico brasileiro deve ser estudado pelo intérprete como um verdadeiro sistema cujo protagonista é o indivíduo atribuído de valores inerentes a sua natureza.
Notas
Advogada Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
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