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Biotecnologia: Cultivares – aspectos jurídicos. Os Transgênicos e os conflitos judiciais no Brasil

O debate a respeito dos avanços da Biotecnologia é relativamente recente. Mas já na Constituição Federal de 1988 se cuida da preservação e manipulação do patrimônio genético, ao tratar da preocupação com o Meio Ambiente.

O artigo 225 da Carta assegura a todos o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, considerado um “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Em seguida, se delega ao Poder Público a incumbência de “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”.

O mesmo artigo (no inciso V) cuida também do controle da produção, comercialização e “emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”“.

Cercado de emoção, o debate público, por vezes, despreza o aspecto técnico que, por se tratar de matéria científica, pede certo rigor na conceituação dos elementos envolvidos na discussão. Afinal, é da conjugação desses componentes que deverá emergir o entendimento do Judiciário a respeito do que será ou não permitido nessa atividade, no país.

A Engenharia Genética, por exemplo, compreende as técnicas que permitem o transplante de genes de uma espécie para outra criando-se, assim, molécula de DNA que não existia na natureza (atividade de manipulação de molécula DNA/RNA recombinante).

A Biossegurança, por sua vez, envolve as normas de controle, fiscalização e segurança que visam permitir o desenvolvimento sustentado da biotecnologia e ao mesmo tempo evitar acidentes, contaminações e danos ao homem ao meio ambiente.

Ainda nessa linha, é importante conceituar cada expressão em jogo para que a discussão não se perca. Assim, a BIOTECNOLOGIA é o estudo para a utilização de organismos, sistemas e processos biológicos à indústria e à prestação de serviços.

O GENE é um “pedaço” do DNA que contém informação hereditária, ou seja, determina ou específica um caráter único, o fenótipo, como a cor dos olhos, etc.

O PATRIMÔNIO GENÉTICO é a informação de origem genética, contida em amostras do todo ou parte de espécime vegetal, fúngico, animal ou microbiano. Finalmente, o OGM é o Organismo Geneticamente Modificado (TRANSGÊNICO), ser vivo cuja estrutura genética foi modificada por meio da inserção de genes de outro organismo, de modo a atribuir ao receptor características não programadas pela natureza.

A primeira investida, ou “onda”, nesse universo é o desenvolvimento de resistência nas sementes, tornando-as imunes a insetos e pragas com a utilização de agrotóxicos.

O segundo passo é o enriquecimento do alimento produzido, com a aplicação de vitaminas, maior qualidade de micro-nutrientes e redimensionamento de qualidades fisiológicas.

A terceira onda programada consiste na modificação das funções da planta para maior adaptação ao meio ambiente ou mesmo para alterar características, inclusive com finalidades medicinais, como, por exemplo, fazer com que o consumo de uma fruta sirva como suporte para vacina contra diarréia e cólera.

A legislação brasileira impõe limites para a manipulação genética. Em relação à fauna, a vedação à crueldade está no artigo 225 (§ 1º, inciso VII). Quanto à flora, a margem para experimentos é mais elástica. Em relação ao ser humano, é vedada a chamada “clonagem” (artigo 8º, inc. II, da Lei nº 8.974/95 e IN CTNBio nº 08/97).

Através da Instrução Normativa 9/97, contudo, permite-se, para fins terapêuticos, a correção de defeitos genéticos herdados ou adquiridos durante a vida que causam problemas à saúde humana.

A Lei de Propriedade Industrial, por sua vez, permite o registro e proteção dos microorganismos transgênicos (artigo 18, caput e inciso III, da Lei 9.279/96). Embora vete patente a seres vivos, o dispositivo excetua os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade — novidade, atividade inventiva e aplicação industrial — previstos no art. 8º, desde que os mesmos não decorram de mera descoberta, mas do trabalho científico.

A Lei, no caso, conceitua os microorganismos transgênicos como organismos “que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.”

Os marcos regulatórios da matéria no Brasil estão nos instrumentos seguintes: Lei nº 8.974/95 e Decreto nº 1.720/95; MP nº 2.137, de 20.12.2000, atual MP 2191-9, de 23.08.01; a Instrução Normativa CTNBIO – IN nº 20/01; Decreto nº 3871, de 18.07.2001 e a Lei nº 8.974, de 05.01.95.

A Lei de Biossegurança (8.974/95) regulamenta os incisos II e V do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ali se estabelecem as normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados. E autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.

Em seu artigo 1º, a lei “estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente”.

O artigo 2º estabelece que “as atividades e projetos, inclusive os de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico e de produção industrial que envolvam OGM no território brasileiro, ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão tidas como responsáveis pela obediência aos preceitos desta lei e de sua regulamentação, bem como pelos eventuais efeitos ou conseqüências advindas de seu descumprimento.”

Para a boa compreensão da intenção do legislador, é oportuno resgatar os argumentos da Justificação que acompanhou o então Projeto de Lei nº 114/91, apresentado pelo senador Marco Maciel:

“Acredita-se, destarte, que a grande revolução do final do milênio se realizará através do turbilhão de possibilidades que a incipiente engenharia genética está a nos trazer.

“O Brasil não pode ficar alheio a este tempo de progresso e aperfeiçoamento tecnológico, oferecidos pelas até então inimagináveis perspectivas de construção, manipulação, circulação e liberação de moléculas de DNA – recombinante  de organismos e vírus que os contenham incidentes nos setores vitais de produção agropecuária, controle e prevenção de doenças, produção de medicamentos, controle ambiental, dentre muitos outros (…)

“O presente projeto, na convicção do caráter indissociável do binômio progresso/tecnologia, visa oferecer um referencial legal para o desenvolvimento da engenharia genética nacional, dentro de rígidos princípios de biossegurança, diante dos consideráveis riscos que a atividade encerra”.

A respeito, o relator do projeto, senador Ronan Tito, manifestou-se:

“Se, por um lado, os benefícios que poderão advir dessas novas técnicas são aproximadamente previsíveis, pois que geralmente são balizados pelo funcionamento basal dos seres vivos em questão, o potencial maléfico é absolutamente ilimitado. Considerando-se aí não só os possíveis acidentes, mas a manipulação espúria, com objetivos militares, eugênicos ou dominação sociológica ou, principalmente, econômica. Em verdade, nunca a Humanidade contou com uma força tão extrema e ambivalente. E, como sempre, concentrada nas mãos de pouquíssimos. Razão pela qual todo o esforço deve ser feito no sentido de coibição de abusos que possam ser perpetrados atualmente e, principalmente, no futuro. Segurança é primordial”.

Depois de sancionada, a Lei 8.974/95, que criou a CTNBio ganhou novos dispositivos, ditados pela MP 2.137, de 20.12.00 (atual MP 2191-9, de 23.08.2001).

Determinou-se a obrigação de a CTNBio verificar, em todo e qualquer caso, a identificação da necessidade de se elaborar o EIA, devendo tal verificação ser fundamentada tecnicamente.

No período compreendido entre 1997 e 2001, a CTNBio avaliou mais de 900 solicitações para liberações de OGM’s. A maior parte das liberações foram para o desenvolvimento de milho (780), seguido da soja (57) e algodão (35).

Em 2002 já se registra 968.9 de hectares plantados com OGM’s, no Brasil. A avaliação da segurança alimentar de plantas geneticamente modificadas ou de suas partes é rigorosa e regulada pela IN 20, de 11.12.2001.

As regras alcançam também a rotulagem de alimentos que contêm OGM, conforme estabelece o Decreto 3.871/01:

“Art. 1º – Os alimentos embalados, destinados ao consumo humano, que contenham ou sejam produzidos com organismos geneticamente modificado, com presença acima do limite de quatro por cento do produto, deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, sem prejuízo do cumprimento da legislação de biossegurança e da legislação aplicável aos alimentos em geral ou de outras normas complementares dos respectivos órgãos reguladores e fiscalizadores competentes”.

Como é de se imaginar, muitas questões ainda se encontram em aberto. Ou seja, ficam a critério, por enquanto, da interpretação da Justiça.

Algumas questões vêm sendo discutidas na Ação Civil Pública envolvendo a Round Up Ready, interposta pelo MPF juntamente com o Idec contra a União e a NTNBio.

Os propositores da ação defendem a obrigatoriedade do EIA/RIMA, com fundamento na CF (art. 225, par. 1º, inc. V), na Lei nº 6.938/81, art. 8º e Resoluções CONAMA 02/86 e 237.

A obrigatoriedade da Rotulagem é invocada com base no Código de Defesa do Consumidor (arts. 6º, I e III, 31 e 91), mas este ponto está relativamente superado com a edição do Decreto 3.871/01.

A empresa repele a obrigatoriedade do EIA/RIMA. Para isso, invoca a discricionariedade do órgão da administração prevista no artigo 8º, II, da Lei 8.078/90:

“II – determinar, quando julgar necessário, a realização de estudos e alternativas e das possíveis consequências ambientais de projetos públicos e privados, requisitando aos órgãos federais, estaduais e municipais, bem assim a atividades privadas, as informações indispensáveis para apreciação dos estudos de impacto ambiental, e respectivos relatórios, no caso de obras ou atividades de significativa degradação ambiental, especialmente nas áreas consideradas de patrimônio nacional.”

E reforça o raciocínio com os ditames da Resolução Conama nº 237/97 (que alterou a Resolução Conama 001/86), artigo 3º:

“Art. 3º – A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA),

Par. Único – O órgão ambiental competente, verificando que a atividade ou empreendimento não é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente, definirá estudos ambientais pertinentes ao respectivo processo de licenciamento”.

A redação imprimida pela Medida Provisória 2191-9 reforçou a competência da CTNBio para fazer avaliação quanto à existência ou não de potencial impacto ambiental, adicionalmente, argumenta-se que as características da soja em questão, nativa da China, não possui parente silvestre no Brasil, o que afastaria riscos de cruzamento; a não evidência de danos; a equivalência substancial e a inviabilidade econômica de segregação do produto.

A ação foi julgada procedente pelo Juiz da 6ª Vara Federal de Brasília. Em fevereiro deste ano, a relatora do Recurso de Apelação, Selene de Almeida, votou favoravelmente à União/Monsanto. Um pedido de vista suspendeu o julgamento.

A questão ainda está longe de se esgotar. Contudo, será necessário um período de maturação para que o debate seja desbastado do clima passional que cerca o assunto.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Celso Umberto Luchesi

 

Sócio do escritório Zaclis e Luchesi Advogados
Graduado pela Universidade Braz Cubas em 1983;
Mestre em Gestão Financeira e Risco – MBA – FEA – USP / 2000. Membro da Comissão de Meio Ambiente da Câmara Americana. Associado da ANBIO – Associação Nacional de Biotecnologia.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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