Breve reflexão sobre os elementos essenciais da responsabilidade civil

Resumo: Por mais numerosos que sejam os trabalhos escritos atualmente acerca da responsabilidade civil, muito poucos são os estudos acerca dos seus elementos essenciais. Ocorre que, assim como um edifício não se sustenta sem a fundação, uma equação não tem o mesmo resultado sem um dos fatores, e uma receita não dá certo sem um dos ingredientes básicos, não há obrigação de indenizar sem ato, dano e nexo de causalidade. É preciso, então, refletir sobre esses elementos.

Palavras-chave: Responsabilidade civil. Obrigação de indenizar. Elementos essenciais. Ato. Dano. Nexo de causalidade.

Abstract: No matter how many works are written nowadays about tort law, the studies about its essential elements are few. As it happens, just as a building does not stand to ground without its foundations, as an equation does not lead to the same result without one of the factors, and as a recipe does not work without one of the basic ingredients, there is no compensation without act, injury and liability. It is necessary, therefore, to think these elements over.

Keywords: Tort law. Compensation. Essential elements. Act. Injury. Liability.  

Sumário: Introdução; 1. Os elementos essenciais da responsabilidade civil; 2. O ato; 3. O dano; 4. O nexo de causalidade; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Tanto se tem escrito recentemente sobre responsabilidade civil, tanto espaço há para monografias, dissertações e teses, que frequentemente se tem visto textos que se esquecem das bases sobre as quais se ergue o edifício da obrigação de indenizar, colunas que, tal como na engenharia, dão sustento à construção, a qual, sem elas, pode a qualquer instante ruir.

Toda a teoria da responsabilidade civil do Direito brasileiro se ergue sobre três pilares essenciais: o ato, o dano e o nexo de causalidade entre o ato e o dano. Assim como na matemática 1 + 1 + 1 = 3, no Direito ato + dano + nexo de causalidade = obrigação de indenizar. Se, na equação, a falta de algum dos fatores impede que o resultado seja 3, na configuração da responsabilidade civil a falta de qualquer dos elementos impede que o resultado seja obrigação de indenizar.

Não adianta ler o Direito francês e de lá importar la responsabilité pour la perte d’une chance, ou ler o Direito norte-americano e de lá trazer the punitive damages. Não há dúvida de que se trata de temperos irresistíveis para o estudo da reparação civil, e é mesmo da natureza do brasileiro recorrer ao Direito comparado para buscar inspiração. Ocorre que de nada vale temperar com a mais fina das ervas um prato se faltou a adição de um dos ingredientes básicos. Não vai dar certo. O gosto não há de ser bom.

Por essa razão, é preciso que se convidem todos aqueles que lidam com a responsabilidade civil para um momento de reflexão. Para que seja possível construir, inovar e avançar, mas sempre sobre bases firmes, sempre sobre a precisão técnica, sem o que pode haver muita injustiça.

1 OS ELEMENTOS ESSENCIAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

O que, por inspiração alemã, chama-se de responsabilidade civil no Brasil corresponde, na teoria jurídica nacional, à disciplina da obrigação de indenizar, ou obrigação de reparar o dano.

Em sede de obrigação, sabe-se que dois aspectos fundamentais da personalidade estão em jogo: a liberdade e a vontade. “A obrigação é limitação à liberdade; é direito contra uma pessoa”, já advertira Clóvis Beviláqua (1956, p. 6). Ora, se o campo é o da limitação da liberdade, há de ser também o campo do exercício da vontade, sem o que haverá largas para o arbítrio. O devedor deve necessariamente contrair a obrigação no exercício de vontade hígida e livre.

Há, porém, uma hipótese em que o devedor não contrai a obrigação, ou seja, não tem sua liberdade limitada no exercício de sua vontade, senão, na verdade, ao revés dela. Trata-se do agente do ato causador de dano, que, em razão do prejuízo causado, contrai por força de lei a obrigação de o reparar.

Ora, se o caso é de imposição legal de obrigação, ou seja, de constrangimento à liberdade, de comprometimento patrimonial, independentemente da vontade do sujeito e até contrariamente a ela, há de se delinear com clareza cristalina o percurso da incidência da norma, o que se deve fazer por meio da análise dos elementos que ensejam responsabilidade civil – em outras palavras, que geram obrigação de indenizar.

2 O ATO

Agora, veja. Seria possível conceber que o primeiro elemento a se investigar não fosse uma conduta, comissiva ou omissiva, do sujeito a quem se pretende impor a obrigação de reparação civil? Ou o caso seria o de escolher aleatoriamente alguém que pudesse arcar com o valor da indenização e buscá-la dele?

Nenhum exame atento e científico da configuração da responsabilidade civil pode prescindir da análise do ato do sujeito a quem se pretende imputar a obrigação de indenizar. Se o ato é lícito ou ilícito, culposo ou não, se consiste em uma ação ou omissão, nada disso interessa no primeiro momento, na primeira análise, porque se não houver conduta não se pode por óbvio examiná-la nem qualificá-la.

Não obstante, percebe-se uma incidência enorme de um entendimento torto, para dizer o mínimo, no sentido de que configuram a responsabilidade civil a culpa, o dano e o nexo de causalidade. A culpa nada mais é do que um caractere qualificador do ato, um atributo da conduta que representa violação de dever. Em se tratando de ato ilícito culposo, a hipótese – se for o caso – será de responsabilidade civil subjetiva ou responsabilidade delitual. No entanto, o que propulsiona o motor da responsabilidade civil não é a culpa tão somente, mas, antes, o ato do sujeito, sem o qual sequer se pode pensar na culpa.

E, em razão dessa falha técnica, quando se chega à responsabilidade objetiva, a qual dispensa a análise da culpa, acaba-se tendo a impressão de que basta analisar o dano e o nexo causal (entre o dano e o quê, por favor?).

Há casos bastante preocupantes acerca do ato, ou melhor, da falta de ato praticado pelo sujeito a quem se impõe o dever de indenizar.

Um deles é o da suposta responsabilidade objetiva da concessionária de manutenção de rodovia pela presença de animais na pista. Veja-se, por todos, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

“CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. ACIDENTE. RODOVIA. ANIMAIS NA PISTA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. SEGURANÇA. VEÍCULOS. DEVER DE CUIDAR E ZELAR. DENUNCIAÇÃO À LIDE. INCABIMENTO. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

I. Cabe às concessionárias de rodovia zelar pela segurança das pistas, respondendo civilmente, de conseqüência, por acidentes causados aos usuários em razão da presença de animais na pista.

II. Denunciação à lide corretamente negada, por importar em abertura de contencioso paralelo, estranho à relação jurídica entre o usuário e a concessionária.

III. Recurso especial não conhecido.”(STJ. REsp 573260/RS. 4ª Turma, relator: Min. Aldir Passarinho Junior, data do julgamento: 27/10/2009.)

A conduta geradora de responsabilidade civil seria, então, a omissão da concessionária na remoção do animal da pista da rodovia. Ocorre que, se a rodovia corre às margens de áreas rurais e de matas, campos, etc., seria realmente sensato esperar-se da concessionária que pudesse vigiar 24h os quilômetros e mais quilômetros de pista para impedir a presença de animais? Veja-se que, aqui, qualificativo “objetiva” dessa modalidade de responsabilidade civil não é interpretado como dispensa da prova da culpa do agente, mas, na verdade, como dispensa da prova do próprio ato, configurando-se a obrigação de indenizar tão somente em razão do dano sofrido. Que perigo.

3 O DANO

Verificada a ocorrência do ato praticado pelo sujeito, passa-se, então, à verificação da ocorrência de um dano sofrido pelo outro sujeito, aquele que pretende ser indenizado.

Não faz sentido nenhum, constitui heresia mesmo, pensar em responsabilidade civil sem levar em conta que se trata de obrigação de indenizar, ou seja, de reparar o dano, de restituir o estado anterior ao prejuízo. Logo, como se pode – como se tem visto, para grande espanto! – pretender indenizar o dano que não ocorreu, reparar o prejuízo que não foi causado nem sofrido, restituir o estado anterior que era o mesmo que o atual!

O perigo é grande e afeta a todos. Veja-se a redação da súmula nº 370 do Superior Tribunal de Justiça: “caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado”. Que estranho. É a própria norma – no caso, de natureza jurisprudencial – a qual impõe o dano (?!).

Na verdade, o conteúdo do preceito não está bem expresso. A ideia deveria ser a de que caracteriza ato ilícito a apresentação antecipada de cheque pré-datado, o que poderá ensejar responsabilidade civil delitual desde que tal ato cause ao sacado um dano.

No entanto, o STJ tem julgado casos por aplicação da súmula nº 370 considerando que a apresentação antecipada de cheque pré-datado dispensa prova do dano, e que “gera o dever de indenizar por dano moral” (AgRg nos EDcl no AREsp 17440/SC, AgRg no REsp 1222180/AL, AgRg no Ag 1135190/RS).

Mas, se há obrigação “de indenizar” independentemente de dano, o caso então não é de responsabilidade civil, e sim de punição civil. A condenação a pagamento de quantia em dinheiro supostamente a título de reparação do prejuízo sofrido na hipótese de não ter havido prejuízo só pode ter a natureza de sanção civil a quem praticou um ilícito civil. E, ao que parece, talvez seja essa mesmo a filosofia da súmula. Considerando que a emissão de cheques com data futura consiste em costume profundamente arraigado na sociedade brasileira, a ideia parece ser a de punir aquele que viola o costume e trai a confiança de quem, de boa-fé, negociou com ele. Ocorre que esse entendimento não encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro.

O uso adequado da súmula nº 370 aparece, no entanto, em diversos julgados. A título de ilustração, seguem dois do TJMG:

“APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C REPARAÇÃO POR PERDAS E DANOS MORAIS E MATERIAIS. CHEQUE PRÉ-DATADO. APRESENTAÇÃO ANTECIPADA. INDENIZAÇÃO DEVIDA. QUANTUM INDENIZATÓRIO.

– A apresentação antecipada do cheque pré-datado configura descumprimento de contrato e configura o dever de indenizar quando, por tal motivo, causa prejuízo ao emitente.

– A fixação do valor devido a título de indenização por danos morais deve se dar com prudente arbítrio, para que não haja enriquecimento à custa do empobrecimento alheio, mas também para que o valor não seja irrisório.”(TJMG. Apelação Cível nº 1.0145.09.568125-3/002, 9ª Câmara Cível, relator: Des. Pedro Bernardes, data do julgamento: 26/6/2012. Grifos nossos.)

 “AÇÃO MONITÓRIA – CHEQUE PRÉ-DATADO – APRESENTAÇÃO ANTECIPADA – INCLUSÕES ANTERIORES DO NOME DO APELANTE EM ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO – DANOS MORAIS – NÃO CONFIGURAÇÃO.

I – ‘Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado’ (Súmula 370, STJ).

II – No caso dos autos, uma vez que o apelante possui inúmeras negativações de seu nome junto aos órgãos de proteção ao crédito, muitas delas anteriores à devolução do cheque objeto deste procedimento, não há que se falar com configuração de danos morais, aplicando-se analogicamente a Súmula 385 do STJ: ‘Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento’.”

(TJMG. Apelação Cível nº 1.0145.09.531547-2/001, 18ª Câmara Cível, relator: Des. Mota e Silva, data do julgamento: 07/8/2012. Grifos nossos.)

4 O NEXO DE CAUSALIDADE

Por fim, não se pode obrigar um sujeito a indenizar o outro se não se concluir que foi o ato praticado por ele que causou o dano ao outro sujeito. Esse elemento, que tão pomposamente se denomina entre nós nexo de causalidade, é também frequentemente negligenciado. A ansiedade típica do brasileiro, bem como seu impulso humanitário, os quais, no caso da responsabilidade civil, levam-no a logo querer identificar o sujeito a quem caberá reparar o dano, levam-no também à conclusão de que, constatada a prática do ato e a ocorrência do dano, resta demonstrado o nexo de causalidade.

Não é assim, e é claro que não pode ser assim.

Recentemente o TJRS reformou uma sentença para condenar um fabricante de cigarros a indenizar a família de um fumante que morreu de adenocarcinoma de esôfago:

“APELAÇÃO CÍVEL. REPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ÓBITO DO DE CUJUS PELO CONSUMO DE CIGARROS. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PROPAGANDA ENGANOSA. DEFEITO DO PRODUTO. AUSÊNCIA DE CONSUMO SEGURO. LIVRE-ARBÍTRIO DO ATO DE FUMAR. PODER VICIANTE DA NICOTINA. AUSÊNCIA DE INFORMAÇÕES QUANTO AOS COMPONENTES. CAUSA DO ÓBITO. ADENOCARCINOMA DE ESÔFAGO. NEXO DE CAUSALIDADE DEMONSTRADO. CONFIGURAÇÃO DO DEVER DE INDENIZAR.

Há responsabilidade objetiva pelos danos causados à saúde do fumante da empresa produtora de cigarros, quando, como no caso em tela, resta demonstrada, a relação de causa e efeito entre o defeito do produto e a doença do consumidor (adenocarcinoma de esôfago). Aplicação do CDC. Provas concludentes de que o de cujus adquiriu o hábito de fumar a partir de poderoso condutor do comportamento humano consistente em milionária e iterativa propaganda da ré que, ocultando do público os componentes maléficos à saúde humana existentes no cigarro, por décadas associava o sucesso pessoal ao tabagismo. Tese da ré consistente na ínsita periculosidade do produto-cigarro e do livre-arbítrio no ato de fumar que, no caso concreto, se esboroa ante o comprovado poder viciante da nicotina, a ausência de informações precisas quanto aos componentes da fórmula do cigarro e de qual a quantidade supostamente segura para o seu consumo, bem ainda ante a enorme subjetividade que caracteriza a tese, particularmente incompatível com as normas consumeristas que regem a espécie. DANOS MORAIS. Vinculam-se aos direitos da personalidade e se traduzem num sentimento de pesar íntimo da pessoa ofendida, causando-lhe alterações psíquicas, prejuízos afetivos e/ou sociais, prescindindo de comprovação, pela natureza in re ipsa, decorrentes do próprio fato, no caso, o óbito do pai e esposo das autoras. QUANTUM INDENIZATÓRIO. Valor da condenação fixado em R$ 100.000,00 para cada uma das autoras, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, bem como observada a natureza jurídica da condenação e os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. APELO PROVIDO, POR MAIORIA.”

(TJRS. Apelação Cível nº 70042043091, 9ª Câmara Cível, relator: Des. Tasso Caubi Soares Delabary, data do julgamento: 12/09/2012. Grifos nossos.)

Ora, o Tribunal vislumbrou nexo de causalidade entre o problema de saúde do fumante, que veio a causar seu óbito, e o defeito do produto, como se as substâncias tóxicas do cigarro não fossem intrínsecas e por todos conhecidas. Não se trata de defeito, e sim da natureza do produto. Sem, aqui, entrar na análise das teorias propostas para o exame do nexo de causalidade, pode-se, com razoável segurança científica afirmar que a causa do problema de saúde foi o ato de fumar, do próprio fumante, e não o ato do fabricante, de fabricar o produto. Não é à toa que as próprias embalagens de cigarros contêm advertências sobre os riscos do consumo do produto.

Impor ao fabricante a obrigação de indenizar a família da vítima parece, mais uma vez, uma tentativa de punir civilmente uma indústria que aufere lucros estrondosos com a fabricação de produtos potencialmente lesivos à saúde humana. Ocorre, mais uma vez, que não há amparo no ordenamento pátrio para essa punição civil. Os fins não justificam os meios. Pensar em políticas públicas antitabagistas, pensar na orientação das pessoas e em uma série quase infinita de outras medidas são possibilidades em geral albergadas pela ordem jurídica. Punir civilmente, não. Que, então, se proíba a fabricação e o comércio de cigarros no país.

CONCLUSÃO

Como se espera ter brevemente demonstrado, o campo da responsabilidade civil está aberto não apenas para os estudos dos temas de ponta do cenário do Direito comparado, mas também para os estudos fundamentais que, por meio da análise dos elementos essenciais da responsabilidade civil, gerem maior segurança jurídica em um país em que, provavelmente, as ações de indenização por danos morais já representam metade do volume de trabalho do Judiciário.

 

Referências
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Vol. IV. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1956.

Informações Sobre o Autor

Felipe Quintella Machado de Carvalho

Coautor do Curso Didático de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Professor titular de Direito Civil dos cursos de pós-graduação do IUNIB professor convidado de Direito Civil do curso de pós-graduação da Anhanguera e professor voluntário de Direito Civil da FD UFMG. Mestrando em Direito e Justiça na UFMG. Consultor jurídico e advogado.


Equipe Âmbito Jurídico

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