Resumo: O presente texto pretende discutir breves notas sobre a evolução dos sistemas jurídicos, principalmente na formação do Estado Moderno, e por consequência o surgimento de novos paradigmas do direito. Para tanto, discute-se a formação do Estado Moderno e Pós-Moderno, desde a estruturação do sistema feudal até a implementação do Estado tal qual o concebemos hoje. A crise do Estado de Direito, a insuficiência de recursos materiais, a crescente demanda judicial por direitos, o acesso à justiça, o ativismo judicial, a força normativa da constituição são temas inseridos na presente articulação. Serão abordados também os aspectos que permearam a Revolução Francesa e a nova concepção de sociedade, pós Revolução Industrial. A industrialização e a ciência de um modo geral alteraram o modo de vida das pessoas, prevalecendo a globalização de ideias e bens de consumo, massificando o pensamento social e impondo necessidades materiais aos cidadãos antes incogitáveis. No campo constitucional, a Constituição Federal de 1988 apresentou aos brasileiros uma imensa gama de direitos subjetivos, fundamentais, fatores que refletiram diretamente no advento de novos modelos interpretativos do direito, converge para uma outra crise estatal, desta vez em relação ao Poder Judiciário, que chega ao ponto de substituir-se na função de administrador para analisar direitos constitucionais dos cidadãos.
Palavras-chave: Estado Moderno. Revolução Francesa. Estado Social. Constituição. Direitos fundamentais.
Abstract: This paper discusses brief notes on the evolution of legal systems, especially in the formation of the modern state, and thus the emergence of new paradigms of law. To do so, we discuss the formation of the modern state and Post-Modern, since the structure of the feudal system to the implementation of such State which conceive today. The crisis of the rule of law, the lack of material resources, the growing demand for legal rights, access to justice, judicial activism, the normative force of the constitution are themes included in this joint. Are also addressed aspects that permeated the French Revolution and the new conception of society, post industrial revolution. The industrialization and science in general have changed the way of life, the prevailing ideas of globalization and consumer goods, massifying social thinking and imposing material needs citizens before unthinkable. In the constitutional field, the 1988 Constitution introduced the Brazilians a huge range of subjective rights, fundamental factors that directly reflected in the advent of new interpretative models of law converges to another state crisis, this time in relation to the judiciary, which goes so far as to replace the administrator role to analyze the constitutional rights of citizens.
Keywords: Modern State. French Revolution. Social State. Constitution. Fundamental rights.
Sumário: Introdução. 1 A formação do Estado Moderno. 1.1 Sistema Feudal. 1.2 A Revolução Francesa. 2. Do Estado Mínimo ao Estado Social: a Constituição como fonte de direitos. 2.1 A sociedade pós-moderna e a gestão de direitos. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Na atualidade, verifica-se em vários ramos do direito a tentativa teórica de mudanças de velhos paradigmas hermenêuticos, procurando, principalmente, afastar o dogma do positivismo jurídico em detrimento de novos modelos interpretativos, mais subjetivos, realistas, em superação do anterior sistema de subsunção do fato à norma, uma lógica que não tem – reconhecidamente – meios de englobar todos os fatos da vida da sociedade moderna. Os fatos, portanto, não cabem mais naquele direito estático, fechado e formal.
Tal repercussão introduz um embate entre norma, fatos e justiça. Dessa maneira, espraia efeitos para todo o sistema jurídico, nas mais diversas disciplinas, e é o que tem ocorrido, notadamente, no direito constitucional, civil, processual civil e administrativo, abalando as estruturas do princípio da legalidade.
O que se pretende na presente exposição é apenas introduzir o leitor, através de breves notas, aos vários sistemas políticos existentes na história, sem exaurir cada período, a fim de identificar alguns fundamentos que explicam os motivos destas novas tendências hermenêuticas do direito, tanto no Brasil como no resto do mundo ocidental, principalmente.
1 A formação do Estado Moderno
1.1 Do sistema feudal
Embora o sistema feudal tenha adquirido um status próprio dentro do estudo dos sistemas políticos da história política e econômica no cenário mundial, é importante inseri-lo no tópico da formação do estado moderno, notadamente porque esse foi o último regime político antes da eclosão do modelo que persiste até os dias atuais, obviamente com algumas adaptações sociais, e sem considerar os períodos de exceção (ditaduras e guerras, por exemplo).
Com a derrocada do regime escravagista, exsurge um novo modus de relação trabalhista na idade média. Milhares de desempregados e ex-escravos sem trabalho e segurança serão os futuros membros da classe denominada servos. A classe dominante era a concessionária das terras (detinham a posse), pois a propriedade ainda pertencia ao regime monárquico.
O feudalismo, muito embora estivesse focado na relação de trabalho entre servo, terra e senhor, identifica também um novo modo de produção e aplicação do direito. Na visão de Monteiro (1987, p. 6), a classe dominante era hierarquizada, isso quer dizer que existiam vassalos com grandes extensões de terras e senhores com pequenas propriedades, e isso se dava através da subenfeudação, sendo que o poder central real, ao destinar terras aos nobres feudais, para que estes administrassem a ordem do reino, seja por si ou por outra relação de vassalagem, também adquiriam com a posse das terras parte do poder público do rei:
“O senhor feudal, por seu lado, muitas vezes seria vassalo de um outro senhor feudal superior, e a cadeia de tais posses dependentes se estenderia até o cume do sistema – na maioria dos casos, um monarca – de quem a princípio toda a terra, em última instância, seria o eminente domínio. Típicas ligações intermediárias de tal hierarquia feudal no início dessa época, entre o simples senhorio e o monarca, suserano, eram a castelania, o baronato, o condado ou o principado. A conseqüência deste sistema era que a soberania política nunca estava enfocada num único centro. As funções do Estado desagregavam-se em concessões verticais sucessivas, e a cada nível estavam integradas as relações econômicas e políticas. Esta parcelarização da soberania seria constitutiva de todo o modo de produção feudal”. (ANDERSON, 2000, p. 144)
Esse pluralismo jurídico possibilitou a formação de vários “direitos”, conforme a posição geográfica, destacando-se o direito francês, inglês, germânico, romano, cujos princípios e características pode-se perceber até nos dias atuais.
Alguns fatores alteraram as relações sociais entre senhor e vassalo. É importante para o presente estudo pontuar as formas de aplicação do direito em determinada época, e como esses paradigmas se alteram e porque se alteram. Não se pode, destarte, entender o modus de jurisdição sem conhecer o sistema social. O desenvolvimento das cidades ocorreu de forma paralela ao sistema feudal, mantendo essa forma de produção econômica. Todavia, transformou as relações sociais, como já dito, notadamente pelo fluxo financeiro e acumulação de valores. Esse fator é decisivo para formação de uma nova classe social, que mais adiante será analisada: a burguesia.
Ainda assim havia uma miscigenação de “direitos”, o que causava insegurança jurídica, pois um fato praticado pelo vassalo poderia ser julgado de forma diferente se praticado por um morador da cidade, sendo que “o caso mais grave para resolver era o referente às leis de aplicação pessoal, em que o indivíduo só poderia responder pelas acusações que violassem as leis do seu próprio grupo” (SANTOS, 2010, p. 241-242).
Essa diversidade social era unificada quanto ao aspecto religioso. No ponto ingressa na história a Igreja Católica como fator de organização e manutenção do poder, pois sua doutrina unia povos romanos e germânicos, pregava o fim da escravidão, mas o valor do trabalho, enfim, agradava aos nobres e reis, pois legitimava teoricamente a prática das relações sociais então vigentes; persuadia os menos favorecidos com a ideia de salvação e vida eterna:
“Também será a razão a trabalhar na construção de um instrumento teórico e prático que será utilizado na manutenção e expansão do poderio terreno da Igreja Católica. Uma razão que funciona através da diferença, tão etnocêntrica quanto a política romana. O direito derivado da Igreja servirá, desse modo, para a sedimentação do poder institucional através de fundamentações 'racionais' na interpretação da verdade. A razão será o instrumento total que permitirá à prática jurídica subjugar tanto os direitos paralelos, existentes na diferença – porque espontâneos e fragmentados –, como qualquer tipo de contestação expressa em interpretações 'incompetentes' porque contra-hegemônicas e descentralizadoras do poder político-jurídico.” (SANTOS, 2010, p. 236)
A introdução da Igreja no sistema político não tardaria. Sendo o fator unificador de diferentes povos, através da fé cristã, era conveniente ao poder central que mantivesse unido a esta força pacificadora. A imersão da Igreja no sistema orgânico da realeza foi facilitada tendo em vista que já possuía experiência administrativa, com membros letrados e acostumados a lidar com a organização das complexas funções da Igreja Católica, que, além de ter amealhado vasto patrimônio imobiliário, executava seu plano de expansão doutrinário por todo o continente.
O direito canônico, escrito, organizado e compilado, tornou-se de fundamental importância para o poder central, na medida em que pacificava os conflitos sociais e unificava a orientação jurídica da pluriforme sociedade que se apresentava. A plenitude do poder e o conforto da situação econômica pela qual passava a Igreja Católica foram os fatores que propiciaram diversas formas de abusos e contradições da doutrina cristã. Se, por um lado, a base filosófica do discurso católico era o primado do trabalho, da pacificação, o desapego material e a fiel obediência aos ditames da bíblia, as atitudes daqueles que desempenhavam os altos cargos do clero eram totalmente incompatíveis com o que se pregava.
Não bastasse essa contradição entre teoria e prática, a crise moral da Igreja chegou ao cume quando propagou a venda de indulgências, que nada mais era senão a contraprestação financeira do pecador pelo perdão desse pecado. A Igreja, portanto, foi aos poucos se afastando das questões religiosas, dedicando-se mais aos assuntos econômicos e políticos, ao lucro e à promoção patrimonial individual dos nobres do clero. Tal como nos sistemas políticos anteriores, à medida em que o povo subordinado detecta o abuso do poder ou o descaso governamental, passa a questionar o regime político. Mesmo em se tratando de pessoas leigas, o clamor social por melhores condições de vida é sensível, independe de teorias acadêmicas.
Nesse terreno, por volta dos séculos XV e XVI, germinou o movimento que abalaria as estruturas da Igreja Católica, denominado de Reforma Protestante ou Religiosa (que abrange a Reforma Luterana e o Calvinismo):
“[…] 'Porque o papa não deixa vazio o purgatório num ato de santíssima caridade […], se com o funesto dinheiro destinado à construção da Basílica de Roma […] redime infinitas almas?'
O violento ataque de Martinho Lutero consta das suas 95 Teses, que afixou à porta da igreja da cidade alemã de Wittenberg, em 1517. O alvo da crítica é basicamente a venda de indulgências – que livrariam os fiéis das penas do purgatório – para arrecadar os fundos da construção da Basílica de São Pedro.
Embora o ponto de partida da Reforma seja a denúncia desses abusos da Igreja, a divergência é mais profunda, como atestas as palavras de Lutero: 'Que crimes, que escândalos, que fornicações, estas bebedeiras, esta paixão pelo jogo, todos estes vícios do clero! […] São escândalos muito graves […]. […] Mas, ai!, há outro mal, outra peste, incomparavelmente mais malfazeja e mais cruel: o silêncio organizado quanto à Palavra da Verdade, ou a sua adulteração […]'”. (ABRÃO, 1999, p. 173).
Essencialmente de cunho religioso, a Reforma Protestante adquiriu contornos de reforma política. A Igreja Católica, por seu turno, pregava como pecado a ideia do lucro, do comércio, da atividade bancária, notadamente a usura. Enfim, a doutrina católica era absolutamente contrária aos ideais da classe burguesa, em franca expansão econômica. As novas ideias religiosas eram confluentes com as práticas burguesas: acumulação de capital, restrição ao consumo, dignidade do trabalho, teoria da predestinação: Max Weber identificou a relação da ética protestante com o germe do capitalismo:
“Combinando a restrição do consumo com essa liberação da procura de riqueza, é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação de capital através da compulsão ascética à poupança. As restrições ao uso da riqueza adquirida só poderiam levar ao seu uso produtivo como investimento de capital. […]
Uma ética profissional especificamente burguesa surgiu em seu lugar. Consciente de estar na plena graça de Deus, e sob a sua visível bênção, o empreendedor burguês, enquanto permanecesse dentro dos limites da correção formal, enquanto sua conduta moral fosse sem manchas e não fosse objetável o uso de sua riqueza, pode agir segundo os seus interesses pecuniários, e assim devia proceder. O poder da ascese religiosa, além disso, colocava à sua disposição trabalhadores sóbrios, conscientes e incomparavelmente esforçados, que se aferraram ao trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus”. (WEBER, 2001, p. 94; 96-97).
O apoio burguês em relação à Reforma proporcionou, além da legitimação da ética burguesa de acúmulo do capital, o fortalecimento das monarquias, que se aproveitaram do enfraquecimento da Igreja para retomar territórios, com a pilhagem de bens de nobres clero, agora afastados do poder central, substituídos por profissionais burgueses.
Com essa redefinição de atribuições políticas, um novo modelo social estava se desenvolvendo. O que importa para o presente trabalho é constatar que novamente houve uma mudança na sociedade, que alterou suas condições econômicas e religiosas. Esses fatores são fundamentais para analisar o sistema de produção e aplicação da Justiça em determinada época e região. A questão econômica interferia sobremaneira na condução política.
Ocorre que, devido à inovações tecnológicas concernentes ao comércio marítimo e agricultura, a estruturação do estado econômico demandou altos investimentos financeiros. A par destes gastos, a Coroa teria ainda que manter seu exército e sua estrutura administrativa, além dos luxos da monarquia e dos altos cargos reais:
“A dinamização da economia, portanto, deveria necessariamente integrar a política de fortalecimento do poder monárquico, pois permitiria que se extraísse, pela tributação, os recursos necessários ao fortalecimento tanto da burocracia quanto do exército real. Essa dinamização econômica seria feita com o estímulo à produção e ao comércio interno, favorecendo deste modo justamente os setores produtores emergentes, sufocados pelas estruturas feudais e corporativas”. (DAL RI JR.; CASTRO, 2008, p. 269/270).
O desenho político da época estava assim definido: monarquia fortalecida pela separação do poder da Igreja; economia forte, porque terras da Igreja foram confiscadas e retornadas aos monarcas; sistema feudal nas mãos de poucos (Estado feudal e nobres feudais); comércio expansivo, notadamente através de corporações e monopólios. Essas eram as classes sociais hegemônicas.
O Iluminismo pregou o combate à tradição religiosa (alienação do ser humano pela fé), à exploração do ser humano (humanismo), bem como o predomínio da ciência. As explicações do mundo dão-se pela razão do homem, que é um ser racional, “o discurso iluminista do século XVIII tem como marca principal a defesa da emancipação humana pelo uso da razão” (DAL RI JR.; CASTRO, 2008, p. 265).
Com o crescimento do interesse europeu pela ciência, após a queda do poder católico, que monopolizava o conhecimento e por essa razão tinha interesses outros, notadamente pela perseguição daqueles que ousavam questionar cientificamente os dogmas da Igreja (hereges), a retomada científica contribuiu para o aparecimento de inúmeros escritores que teorizavam sobre diversos assuntos: artes, física, química, direito, sociedade, etc…, procurando esclarecer principalmente aqueles menos letrados sobre as explicações das coisas da vida.
O enfraquecimento do poder do senhor feudal e da Igreja Católica, que levaram ao extremo absolutismo monárquico, combinado com a instauração de novos ideais políticos, acarretará um novo modelo de sociedade, que exsurgirá após um marco histórico denominado Revolução Francesa.
1.2 A Revolução Francesa
A França absolutista, e não só lá, também na Prússia e Inglaterra, mantinham uma estrutura de governo extremamente irracional. Inúmeros cargos públicos eram destinados aos “amigos do Rei” e também para aqueles que se interessavam em adquirir tais títulos, entre eles os aristocratas burgueses de maior poder econômico, que, ao lado da influência comercial, também queriam participar da estrutura do poder. A concessão de títulos de nobreza, além de sufocar a balança de pagamentos da monarquia, causava enorme desconforto em face da classe burguesa e campesina. E mais, embora os membros da Igreja Católica estivessem um tanto fora do poder, mantinham para si o privilégio de isenção de impostos.
Nenhum sistema financeiro de governo sustentaria tamanha despesa. E, realmente, as finanças eram sempre um problema para a realeza. Todavia, a resolução desse empecilho era transferida aos súditos, mediante aumento da carga tributária e dos serviços estatais. A Justiça, por sinal, era um deles, desempenhada mediante o pagamento de custas ao magistrado.
A fase científica pela qual passava o mundo do século XVIII era propícia à propagação da ideia de que os homens nasciam e permaneciam iguais. Ora, nada mais contraditório do que até então era defendido pela Igreja e pela monarquia, que sustentavam seus direitos imobiliários e de nobreza pela linhagem e casamentos. Ninguém nascia igual, pois desde a concepção do homem já havia uma distinção de direitos que permanecia por toda a vida. Quem nasceu no campo, de certo não será alçado à nobreza.
Como garantir que a propriedade privada do comerciante estaria protegida, se não há leis isentas para tanto? O Rei não poderia confiscá-la mediante um simples ato? Enfim, os críticos do sistema absolutista produziram argumentos que traduziam fielmente as aspirações da burguesia por melhores condições políticas. A explicação racional das condições da sociedade era uma das intenções do movimento das Luzes:
“Concluindo, acreditamos haver conseguido chamar a atenção do leitor para o fato de que, para os iluministas, a despeito das múltiplas significações e até mesmo das ambiguidades então existentes com relação às noções que então tentavam dar conta da ideia de 'Luzes', havia um denominador comum: a consciência de que não se tratava de um acontecimento, nem apenas de um movimento intelectual, espécie de modismo de uma certa época, mas, sim, de um processo que apenas estava começando – o processo de esclarecimento do homem”. (FALCON, 2002, p. 19)
Na realidade, o discurso iluminista pretendia no fundo impor limites aos privilégios da monarquia, reconhecimento de direitos aos demais cidadãos, participação política e fiscal igualitária, normas que garantissem a segurança da propriedade e do comércio, bem como que eliminassem qualquer tipo de maus-tratos aos trabalhadores. Evidentemente, o que eles queriam era a própria queda da monarquia e a instituição de uma república.
Ora, como então conjugar fatores para viabilizar o intento político do pensamento iluminista? A chave para da abertura política para o capitalismo burguês era a despatrimonialização do poder, na medida em que se fizesse prevalecer no senso comum que a participação social no espaço político não deveria ser aferida pela quantidade de terras adquiridas, em evidente ataque ao sistema feudal. Registre-se, outrossim, que a exploração racional e lucrativa das terras feudais também era uma aspiração burguesa. De outra banda, a despersonalização do poder era crucial para o êxito da concretização das Luzes. A célebre expressão (ou mito) atribuída a Luis XIV "L'État c'est moi", o Estado sou eu, evidencia como era obscura e confusa a relação pública e privada, e a realidade demonstrava que havia poucas pessoas que usufruíam das rendas estatais, em detrimento de toda uma sociedade serviente.
A personalização do poder político é um dos temas criticados pelo iluminismo e objeto da Revolução Francesa. Intencionavam os teóricos um poder despersonalizado, impessoal e geral. Essa tendência fica evidente nos escritos de Rousseau (1996, p. 47):
“Quando afirmo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca um homem como indivíduo nem uma ação particular. Assim, a lei pode perfeitamente estatuir que haverá privilégios, mas não pode concedê-los nomeadamente a ninguém. Pode criar diversas classes de cidadãos, e até especificar as qualidades que darão direito a essas classes, porém não pode nomear os que nela serão admitidos. Pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei nem nomear uma família real; numa palavra, toda função que se refere a um objeto individual não está no âmbito do poder legislativo”.
Claramente se nota que os filósofos alimentavam outras intenções por detrás dos discursos libertários. Importante verificar que Rousseau não luta pela extinção de privilégios, mas sim pela sua concessão impessoal; embora defendendo a igualdade, não prega o fim da estratificação social por classes (já evidenciada pelas diferenças econômicas); e mais, admite a figura do poder real, mas desde que qualquer cidadão possa alcançar essa posição. Os ideais burgueses estão evidentemente refletidos nos discursos dos filósofos iluministas. A ascensão dessa nova forma de pensar o governo e o cidadão foi criticada por Marx, cujo pensamento sobre a Revolução Francesa está explicitado por Furet (1986, p. 25):
“[…] O político é a nova forma da alienação na época moderna e, ao mesmo tempo, o pensamento imaginário da sociedade burguesa, dela inseparável. Esta sociedade, em perpétua dissolução pelo dinheiro e composta de aglomerados encerrados em suas particularidades, é incapaz, obviamente, de se pensar como tal; atribui-se um espaço imaginário a fim de poder instituir o Estado, lugar de sua unidade fictícia e necessária. Esta unidade é a cidadania, a igualdade democrática. O sentido da Revolução Francesa consiste em ter inventado a forma política da sociedade moderna”.
O discurso iluminista está baseado no governo pela lei. Sai o monarca e entra a norma. A norma é perfeita, regulamenta a vida social e resolve os conflitos interpessoais. A lei é geral e impessoal, válida para todos, que nessa situação estão iguais: desta forma, todos seriam iguais perante a lei.
A Revolução Francesa, apoiada nas ideias dos filósofos iluministas, no fundo, em nada se diferencia do discurso do poder monárquico. Embora com argumentos humanistas e democráticos, procurava legitimar outra forma de poder, através da dominação do povo pela lei, e não mais pelo rei. Fica fácil constatar que o controle da produção legislativa acarretaria a dominação social. O direito positivo, através do legislador soberano e impessoal, garantiria a vida em sociedade. O dogma da lei estaria então plantado como meio para resolução de todos os conflitos sociais, de forma perfeita e universal, assim carregando as mesmas características de onipresença e onipotência que a divindade representava no período arcaico, romano e medieval.
A produção normativa do Estado ficaria longe das influências pessoais do governante. Essa atribuição caberia ao povo, detentor da vontade geral, segundo Rousseau (1996, p. 48/52), que idealizou o legislador nos moldes da democracia:
“As leis não são, em verdade, senão as condições da associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor delas; somente aos que se associam compete regulamentar as condições da sociedade. Mas como regulamentarão? De comum acordo ou por súbita inspiração? […] Eis de onde nasce a necessidade de um legislador. […]
Aquele que redige as leis não tem, portanto, ou não deve ter nenhum direito legislativo, e nem o próprio povo pode, quando o quiser, despojar-se desse direito intransferível porque, segundo o pacto fundamental, somente a vontade geral obriga os particulares, e só se pode assegurar que uma vontade particular está de acordo com a vontade geral depois de submetê-la aos sufrágios livres do povo. Já disse isso, mas não é inútil repeti-lo.”
A formação ideal do Estado Moderno constituía o pilar revolucionário do século XVIII. Com o governo das leis, os homens estavam aprisionados na vontade do legislador, aquele ente composto pela vontade geral, eleito pelo sufrágio. “O direito positivo, segundo as correntes formalistas, seria auto-suficiente, preciso, claro, neutro e, portanto, essencialmente justo” (WARAT, 1979, p. 46).
O controle sobre os abusos da monarquia e da nobreza seria realizado através da obediência às leis produzidas pelo legislador. A igualdade, liberdade e fraternidade, fundamentos teóricos da Revolução Francesa, passaram a influenciar diretamente a produção legislativa da época. Além da própria Declaração Universal dos Direitos do Homem (1789), o momento também foi de edição de Constituições Federais para sedimentação da filosofia iluminista.
Os pensamentos centrais da Revolução Francesa, voltados para impedir a opressão estatal em face do cidadão, não eram suficientes para concretizar a nova forma de desenvolvimento jurídico. As limitações ao poder do Estado conferiam aos cidadãos liberdades negativas, na medida em que garantiam o afastamento do poder público em relação a inúmeros direitos, entre eles, principalmente, a liberdade e a propriedade privada.
As prestações jurídicas positivas, isto é, inerentes à aquisição de direitos ou mesmo de proteção na esfera privada, antes regulamentadas pelas ordenanças do monarca, nesta nova etapa política estavam sob dependência exclusiva da produção legislativa. Todo o direito individual e suas limitações deveriam estar fundamentados na lei.
Nesse período, pois, verifica-se historicamente a edição das grandes codificações do direito, tendo como ponto de partida o Código Napoleônico, regulamentando inúmeras situações de direito privado. O código francês pós-revolução foi seguido por várias nações, representando um novo padrão de comportamento social, estabelecendo condutas permitidas e outras proibidas pelos padrões jurídicos e morais da época. Nesse sentido, Azevedo (1999, p. 21) expõe:
“[…] a burguesia, cristalizando sua visão de mundo, no Código de Napoleão, perde o ímpeto revolucionário. Inverte-se sua posição no processo social, passando a querer preservar suas conquistas sedimentadas na lei positiva. Daí a necessidade de atentar, antes de tudo, à intenção do legislador, afirmando-se ser o Estado a fonte única e o fundamento único do direito, sendo o método exclusivo o dedutivo/dogmático. Ao sistema fechado do direito positivo, em que se cristalizaram a visão de mundo e as prerrogativas de uma classe social interessada em manter sua vitória, haveria de corresponder o sistema hermenêutico cerrado, sem brechas, em que nada ficava ao arbítrio do juiz, não lhe restando, por conseguinte, nada a criar”.
Começa-se a cultivar a ideia de ordenamento jurídico, complexo de normas que traduzem preceitos declarativos, proibitivos e permitidos aos cidadãos (BOBBIO, 1994, p. 23). A codificação traduzia em leis escritas as opções estatais em relação às situações da vida cotidiana do povo, de modo que as transações comerciais, os problemas familiares, a questão sucessória, a propriedade privada, enfim, toda a gama de fenômenos jurídico-sociais deveria estar contido no ordenamento jurídico, que, sob este prisma, era cerrado, completo.
O direito ditava as condutas sociais, e foi sob essa premissa – que cada vez mais se tornava um dogma – que a classe burguesa ascendeu definitivamente na condução política e jurídica do Estado. A única verdade, principalmente em aspectos relacionados à justiça, ao direito e à moral, era desvelada pela norma, e somente por ela.
A lei portanto era o paradigma da sociedade, e controlava, com a necessária segurança, os atos do comércio, a instituição de tributos, a penalização de crimes e as relações civis. Quanto menos subjetividade do soberano, melhor, pois a lei, geral, impessoal e abstrata haveria de ser observada por todos, realeza, nobreza, comerciantes e pelas classes menos favorecidas economicamente. A ideia de igualdade absoluta (formal) era uma das aspirações da revolução burguesa.
A função judiciária na monarquia absoluta era, primitivamente, atribuição do monarca. Todavia, comum na época era a delegação dessa função, mediante a venda do cargo a nobres ou aristocratas ávidos pela sua inserção no seio régio, cabendo ao soberano somente funções revisoras. O exercício da judicatura, outrossim, era realizado de forma privada, mediante o pagamento de custas ao próprio magistrado, o que era fator de potencial corrupção do julgamento, a favor do mais poderoso. Eis a origem da vedação constitucional da participação do juiz em custas judiciais (Constituição Federal de 1988, parágrafo único, inciso II).
Sendo um braço do Estado Absolutista, os juízes representavam uma aristocracia vinculada ao poder político monárquico, e dessa forma mantinha viva a herança da pessoalidade e discricionariedade, provocando profunda desconfiança da classe burguesa, sendo necessária para implementação dos ideais revolucionários a limitação e controle dos poderes do juiz. Montesquieu (2005, p. 116) em relação aos juízes, registra que “nos governos republicanos é da natureza da constituição que os juízes observem literalmente a lei. Não existe um cidadão contra o qual se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida”. A lei, mais uma vez, seria o instrumento apto para tanto:
“Antes da Revolução francesa, os postos judiciários eram considerados como propriedades que podiam ser compradas, vendidas e herdadas. O próprio Montesquieu herdou tal cargo, o conservou durante dez anos e o vendeu. Os juizes constituíam um grupo aristocrático que apoiava a aristocracia contra os campesinos e as classes medias e trabalhadores urbanos, e contra a centralização do poder governamental em Paris. Com a chegada da Revolução caiu a aristocracia e com ela caiu a aristocracia de togas”. (MERRYMAN, apud. SOUZA; OLIVEIRA, 2004, p. 2).
Em síntese:
“Como reação a concepção monárquica do Estado, as revoluções burguesas, por meio da teoria da soberania popular, instalaram o princípio da legalidade como forma de limite à soberania do poder, pois só através da lei poderiam existir restrições à liberdade. […]
No iluminismo racionalista que influenciou o Estado liberal, a norma estava desconectada de uma indagação de sua justiça intrínseca. O dogma da completude da lei não admitia a existência de lacunas, como forma de evitar a distorção do espírito legal.
A interpretação era vedada, sendo a tarefa da jurisdição voltada unicamente para resgatar o direito violado através da aplicação mecânica das normas, sob a lógica da subsunção e do silogismo”. (SOUZA NETTO; IOCOHAMA, 2012, p. 10488).
O controle pelos juízes através da norma influenciou a formação de todo o pensamento jurídico dos últimos séculos. No âmbito político, foi determinante em relação ao Poder Legislativo na produção de normas fechadas, precisas, lógicas, fato também reconhecido no Poder Executivo, que além da lei positiva, utiliza-se de inúmeros outros expedientes normativos para disciplinar as condutas no âmbito interno, através de decretos, portarias, regulamentos, instrução normativa, pareceres normativos, memorandos entre outros. No ensino jurídico, o formalismo positivista influencia inúmeros acadêmicos com esse modo de pensar, o que também é reflexo da postura do próprio Poder Judiciário, que se socorre de expedientes formais e abstratos para disciplinar internamente as condutas judiciárias, fato que ocorre com a adoção das súmulas vinculantes.
Especificamente no âmbito do direito processual, verificou-se primeiro: o juiz ao aplicar o direito no caso concreto, somente poderia utilizar as leis previamente estabelecidas, através do critério de subsunção. Fora disso, não poderia julgar adequadamente, sendo certa a improcedência do pedido. O julgamento por equidade, autorizado por lei, era previsto em poucas hipóteses.
A decisão judicial era fruto, pois, de um silogismo, aplicando-se a premissa maior (lei) ao caso concreto, sem qualquer margem interpretativa, figurando o juiz como um autêntico aplicador de leis, de certa forma em atuação mecânica. Warat (1994, p. 55-56), em aguçada síntese, explica os postulados básicos do positivismo formal:
“1º A única fonte do direito é a lei. […]
4º Os códigos não deixam nenhum arbítrio ao intérprete. Esse não faz o direito porque já o encontra realizado.
5º As determinações metajurídicas não têm valor, devendo-se encontrar todas as soluções dentro do próprio sistema jurídico. […]
7º A linguagem jurídica é formal e, portanto, precisa; possui um unívoco sentido dispositivo. […]
10 As normas jurídicas são esquemas conceituais abstratos e inflexíveis, ficando descartado como irrelevante tudo aquilo que as mesmas não prescrevem.”
Não só a decisão do juiz era suspeita ou no mínimo perigosa para os revolucionários. A formação do processo judicial também sofreu influência positivista. Inúmeros institutos processuais foram dominados pela lógica formal e pela inflexibilidade. Não foi diferente no processo civil brasileiro.
Desde à propositura da ação, com a formação do pedido inicial, nota-se uma forte carga de controle sobre a atividade judicante. O princípio da correlação entre pedido e sentença exprime a exata compreensão de que o processo estava a serviço apenas das partes, limitado aos exatos termos da postulação judicial e da respectiva resposta da parte adversa. Não poderia o juiz de maneira alguma tomar iniciativas processuais, até mesmo nas questões probatórias. Destarte, evidenciava a ideia de igualdade absoluta entre as partes, fruto de um individualismo exacerbado.
A classificação das sentenças entre declaratória, condenatória e constitutiva se configura em outro meio para engessar a atividade jurisdicional, de modo que ao magistrado somente estes três caminhos poderiam ser seguidos na função judicante. Não havia aplicação do direito, mas sim concretização da norma jurídica. A possibilidade de emissão de sentenças mandamentais, decisões liminares, enfim, dessa gama de situações nas quais o juiz garante o direito da parte, independentemente da sentença transitada em julgado, somente existia com a autorização legal. Nesse ponto o legislador demonstrava seu pensamento patrimonialista e individual, pois as hipóteses autorizadoras das decisões com base em verossimilhança eram, na sua maioria, justamente aquelas protetoras da propriedade privada (cf. procedimentos especiais, reintegração de posse, busca e apreensão, entre outros). Destarte,
“Essa visão da ciência do Direito, baseada na razão iluminista, todavia, limita a pretensão de veracidade às amarras da verificabilidade. O silogismo, mecanismo da verificabilidade por excelência, passa a ser considerado a forma lógica de aplicação do Direito. O Iluminismo visava, com isso, proteger sua noção de democracia, pois, através do mecanismo lógico do silogismo, poder-se-ia garantir o princípio da separação dos poderes, separando rigidamente as funções do juiz das funções do legislador (e, com isso, despolitizando as atribuições jurisdicionais), "racionalizar o poder", eliminando qualquer influência subjetiva do juiz na decisão, além de assegurar a certeza dos direitos, pela aplicação mecânica da lei, vez que a lei representava, simbolicamente, a maior garantia à liberdade pessoal. No entanto, a verdade, no contexto deste silogismo judicial, fica sujeita à boa vontade do legislador, isto é, à falibilidade das leis, ficando a razão dogmatizada na aplicação formal e acrítica da premissa maior, descuidando-se dos aspectos substanciais e concretos e, por isso, gerando o sério risco de consagração da injustiça: dura lex sed lex”. (CAMBI, 1999, p. 237).
A influência do iluminismo no processo civil, professando o racionalismo científico em detrimento das ideias fundadas na fé cristã, é demonstrada por Ovídio A. Baptista da Silva (1997, p. 106) em prático exemplo:
“O princípio que prescreve a neutralidade do juiz, no curso da demanda, é o mesmo que impede a existência simultânea de conhecimento e execução, pois o eventual conteúdo executório, numa ação que, pela doutrina, haveria de ser exclusivamente de conhecimento, permitiria a concessão de tutela executiva antecipada, sob forma de liminar, como ainda hoje se dá com nossas ações possessórias de tipo interdital. E isto seria atribuir ao juiz uma faculdade incompatível com a exigência de sua neutralidade. Seria conceder-lhe poder para ordenar, antes de estar em condições de aplicar a lei. Em última análise, seria outorgar-lhe uma dose de discricionariedade inconciliável com a função que o Estado lhe reserva. A concessão de uma medida executiva liminar, numa demanda que somente haveria de conter conhecimento, e que depois, no momento da sentença final, resultasse revogada, pelo julgamento de improcedência da ação, corresponderia, para a exigência de neutralidade do juiz, ao exercício de um poder arbitrário, a proteção, ainda que provisória, de alguém a quem a ordem jurídica estatal não atribuíra o direito de que o juiz fizera derivar conseqüências, ao conceder tutela liminar.”
A formação do processo civil moderno, seja no Brasil ou na Europa, foi realizada nas bases do pensamento da Revolução Francesa. Destarte, a apreciação dos conflitos sociais estava igualmente restrita às possibilidades determinadas pela lei, seja no âmbito do direito material (previsão do “direito” pelo legislador), ou mesmo na seara processual, que exigiria uma previsão processual para proteção do alegado direito (a todo direito corresponde a uma ação, que o assegura). O juiz, desta forma, era um aplicador de leis, sem poder criador do direito. Sua missão era “encaixar” o caso concreto na hipótese normativa abstrata, em atuação inanimada, na expressão de Arruda Alvim (2011, p. 77) “sublinha-se, nesse tempo, o papel inanimado do juiz, diante da desconfiança em relação ao papel dos juízes no Ancien Régime, de tal forma que haveria de prevalecer a letra da lei”.
Tanto a lei civil como a lei processual legitimavam a (des)igualdade dos cidadãos, como observa Pereira Filho (2013, p. 9):
“A estrutura do código de processo civil denuncia bem essa situação. Senão, qual a lógica de se submeter o cidadão a um procedimento comum (ordinário e sumário), de cognição plena/exauriente; sob o manto da neutralidade/imparcialidade; com intenção de se revelar a verdade para, após certeza, declarar o direito ao caso concreto e, ao fim, conceder segurança jurídica se, para o procedimento especial a cognição é sumária/superficial, intervencionista, baseada em verossimilhança e lastreada em rapidez/efetividade?
Explicado, portanto, pelo menos por esse viés, o porquê do juiz proibido de emitir ordens às partes, já que apenas pronunciador das palavras da lei, desobedecia ao comando liberal para intervir na autonomia da vontade e ordenar sob pena de severa sanção, inclusive prisão, àquele que, porventura, ousasse a desobedecê-lo, como nos clássicos casos da ação de interdito proibitório e alienação fiduciária etc.”
Nessa sorte de ideias se edificou a doutrina da separação de poderes preconizada pela Revolução Francesa, notadamente nas obras de Montesquieu e Locke, muito embora Paulo Bonavides aponte também outros precursores teóricos como Aristóteles, Grotius, Wolf, Puffendorf, Bodin, Swift e Bolingbroke (1997, p. 136). O Estado Moderno se desenvolveria através do exercício de três funções políticas, através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A organização política da revolução estava centrada na norma jurídica, na lei. Desta forma, a alienação social estava submetida à seguinte regra: haveria um legislador cuja função era elaborar normas de conduta abstratas, que regulassem abundantemente os fatos sociais de natureza civil, comercial, tributário e penal. De outro giro, não apenas a fonte do direito era estatal e normativa, o instrumento para a resolução de conflitos jurídicos também estava impregnado pelo normativismo, notadamente em relação aos poderes do juiz. A separação dos poderes permitia à sociedade política controlá-lo de forma mais eficaz, de modo suas manifestações não poderiam transbordar dos estritos limites estabelecidos pela lei civil ou processual. Ovídio Araújo Baptista da Silva (1997, p. 104), apoiado em obra de Karl Engisch, anota:
“Como se sabe, o esforço da ilustração para obter um direito perfeitamente determinável e previsível não teve limites. Com o objetivo de impedir o arbítrio judicial e garantir a segurança da liberdade civil, as leis haveriam de determinar-se de tal modo que a função judicial reduzir-se-ia à pura aplicação do texto legal. Uma indeterminação do sentido da lei, que permitisse ao juiz converter-se em criador do direito, em última análise em legislador, afigurava-se contraditória com a doutrina da separação de poderes.”
Como se pode notar da doutrina legalista proposta pela Revolução Francesa, muito embora o escopo fundamental da revolta fosse o ataque às bases absolutistas da monarquia governante, no fundo, foi instituído um novo modelo de poder dedicado aos grupos sociais dominantes no período, representado pela classe comerciante, industrial e dos banqueiros.
Nessa ordem de ideias, o processo civil foi edificado sobre bases excessivamente individualistas e patrimonialistas, atribuindo predominância ao valor segurança em detrimento do valor justiça. Vários dogmas foram sendo criados para a manutenção desse pensamento, os quais até hoje são repetidamente defendidos nos foros judiciais, entre eles os brocardos: o que não está nos autos não está no mundo; dura lex, sed lex; o direito não socorre aos que dormem, etc. Ora, não é difícil perceber que o processo era utilizado como instrumento manutenção do status quo do poder político da classe burguesa, mais forte economicamente, em detrimento dos trabalhadores e camponeses da época.
O acesso à Justiça era prerrogativa de poucos, situação que perdura até os dias modernos, porém, amenizada com algumas iniciativas políticas de inclusão judiciária, entre elas a assistência judiciária gratuita, os juizados especiais, a Defensoria Pública, a expansão de órgãos judiciais e administrativos, a legitimidade coletiva, etc.
A doutrina que se dedicou ao estudo da teoria da ação também legitimava a classe dominante. Chiovenda, em suma, pregava a jurisdição como atuação da vontade concreta da lei. Não se perseguia o valor da justiça, mas sim a concretização do que estava escrito na legislação, pois “não pode haver sujeição à jurisdição senão onde pode haver sujeição à lei” (1969, p. 55). Marinoni (2008, p. 36) reforça essa preferência chiovendiana na adoção dos ideais revolucionários do século XVIII. O processo não era entendido como instrumento de aplicação da justiça ao caso concreto, mas sim como uma técnica para aplicação da norma legal nas contendas judiciais:
“Chiovenda é um verdadeiro adepto da doutrina que, inspirada no iluminismo e nos valores da Revolução Francesa, separava radicalmente as funções do legislador e do juiz, ou melhor, atribuía ao legislador a criação do direito e ao juiz a sua aplicação. Recorde-se que, na doutrina do Estado liberal, aos juízes restava simplesmente aplicar a lei ditada pelo legislador”.
Nada mais consentâneo com o Iluminismo, pois se a lei encarnava o mito de ser total, justa e infalível, como poderia ser diferente no âmbito processual, se ele é mero instrumento? Ademais, não se olvide a preocupação dos revolucionários com o controle do poder dos juízes, que antes eram umbilicalmente ligados à monarquia absolutista, notadamente pela razão óbvia de que os cargos da judicatura eram hereditários e podiam ser negociados.
A discussão sobre lide e jurisdição foi um pouco modificada em Carnelutti, que concretizava seu pensamento na jurisdição como justa composição da lide. No entanto, por mais que se tenha avançado no estudo da jurisdição em Carnelutti, na sua evidente preocupação com as partes processuais, com o fato social (lide sociológica) e sua apresentação em juízo, não há ainda nessa teoria o desapego pelo formalismo positivista do século XVIII. Na lide carnelutiana, o juiz integra o ordenamento jurídico com a sentença, pois cria a norma individual para as partes processuais. No entanto, a atuação do juiz, bem como a postulação das partes, estão sempre conectadas pela preexistência de uma norma geral e abstrata, bastando apenas a concretização. Nesse sentido, pois, o processo não busca o direito em outras fontes, mantendo o dogma positivista do culto à lei:
“Quanto torna a norma concreta, ou compõe a lide no sentido da doutrina de Carnelutti, faz apenas um processo de adequação da norma – já existente – ao caso concreto. É certo que a norma jurídica, genérica e abstrata, pode ser concretizada ainda que sem a necessidade do processo. Para tanto, basta que um fato se enquadre perfeitamente à previsão da norma abstrata. Mas se isso não ocorre – até mesmo porque não é fácil, à primeira vista e de comum acordo, concluir se um fato se adapta à previsão da norma abstrata –, surge como necessária a jurisdição para dizer se o fato ocorrido está por ela albergado. Mediante uma atividade de conhecimento do fato e de intelecção da norma, o juiz, ao proferir sentença, individualiza a norma, tornando-a concreta para os litigantes”. (MARINONI, 2008, p. 39).
O processo do Estado liberal, assim como o direito positivo fundado no positivismo exacerbado, fechado, inflexível, foi duramente criticado nos últimos anos porque não espelhava e não intencionava a concretização dos valores da justiça, sobretudo após os horrores das duas grandes guerras do início do século passado. Emblemática na história dos povos foi a perseguição nazista, fundamentada e legitimada na Constituição e nas leis da Alemanha, portanto sob o “albergue da lei”. Verificou-se, por todo o mundo, a fragilidade do sistema legal baseado unicamente nas proposições normativas fechadas.
A sociedade mundial se transformou pela guerra e pelas revoluções industrial e tecnológica, alterando comportamentos sociais em relação ao consumo, ao trabalho, ao casamento, aos filhos, aos negócios, enfim, um novo modelo social, econômico e jurídico surgiu de forma multicultural, diversificado, individualista, porém em massa, exigindo do jurista um novo modo de pensar os problemas jurídicos decorrentes desta transformação, malgrado em relação ao ordenamento jurídico positivista, estabelecido através de normas gerais e abstratas, calcadas na igualdade formal, em uma comunidade extremamente diversificada culturalmente. Como aplicar, então, a norma abstrata ao caso concreto, de forma igualitária?
Estes desafios ecoaram efeitos sobre todo o Direito, principalmente no estudo da constituição, dos direitos fundamentais, dos princípios, das cláusulas abertas, e, sem dúvida, reforçam a necessidade do estudo do processo civil de forma multidisciplinar e alinhada com os novos paradigmas do direito.
2 DO ESTADO MÍNIMO AO ESTADO SOCIAL: A CONSTITUIÇÃO COMO FONTE DE DIREITOS
A Revolução Francesa inicia a concepção de Estado Moderno mas também encerra uma fase dessa nova forma de pensar o Estado e o Direito. Não há um momento estanque para se delimitar o fim dos ideais revolucionários e o início de uma nova fase do direito, sendo impossível “fixar cortes absolutos entre os diversos momentos do processo cultural” (REALE, 1990, p. 102).
A modernidade instalada pelo Iluminismo influenciou o pensamento da sociedade por mais de um século, repercutindo nos campos político, na medida em que instituiu o Estado dotado de território, população, poder central; e na filosofia do direito, já que fez predominar a dogmática jurídica, ou seja, a implementação do direito positivo, do primado da lei e do dogma do Estado-Legislador justo, onipresente e neutro (COELHO, 2001, p. 39).
No entanto, tal como se originou o pensamento revolucionário iluminista, passados anos de hegemonia do capitalismo individualista, novas reivindicações sociais e jurídicas passaram a sustentar uma reformulação estrutural na sociedade. O desfrute do poder econômico pela ideologia burguesa estava relacionado também ao poder político, na medida em que desde então o poder econômico influenciava a formação das leis do Estado. Ora, se o Estado dependia do capital para se sustentar através dos impostos, como defender leis contrárias aos ideais burgueses? Esse “absolutismo burguês” econômico dominou o poder político do Estado, fator que legitimava legalmente a exploração desenfreada, principalmente da força de trabalho individual.
No início do século XX já se sustentava a insuficiência e injustiça do modelo jurídico preconizado em 1789, efetivado pelas grandes codificações. Miguel Reale (1990, p. 102-103) afirma que:
“O declínio do modelo jurídico, que teve na Escola da Exegese a sua expressão mais acabada, inclusive por seu parnasianismo formal – pois a Escola dos Pandectistas já albergava elementos de caráter histórico-social, por falta de um Código Civil delimitador de suas aplicações – começa a ser determinado pelo que Gaston Morin significativamente qualificada de 'revolta dos fatos contra os códigos'.”
E, de fato, foram os fatos sociais que fizeram eclodir novas necessidades jurídicas. O primeiro ponto a se tratar neste momento histórico foi, como nos demais estudos sobre os regimes políticos, a situação econômica e social, que, como já dito alhures, influencia sobremaneira a forma do Estado e da aplicação da Justiça.
O capitalismo burguês determinou a ideologia da Revolução Francesa e se transformou em teoria libertária dos desmandos do absolutismo monárquico, libertação que favorecia tanto aos comerciantes, como aos camponeses e demais profissionais liberais. Entretanto, paradoxalmente, o crescimento e a própria afirmação do modo de vida capitalista em detrimento do sistema comunista (marxista) passou a ser um problema social.
Na verdade, os fatos sociais não mais se encaixavam no silogismo jurídico requerido pelas normas positivas. O ser não espelhava o dever ser da norma, acarretando a negação de direitos, muitos deles fundamentais para o cidadão, e, por conseguinte, a revolta social.
A igualdade era apenas formal. Na sociedade industrial, a igualdade era um dogma defendido pela Revolução Francesa a todo custo. Ora, o fator decisivo para justificar a igualdade como princípio universal eram os despropositados privilégios outorgados pela monarquia aos nobres e clérigos no antigo regime. Entretanto, com a vivência do dia a dia, verificou-se a extrema injustiça cometida ao se considerar um trabalhador operário igual a um comerciante industrial, por exemplo.
Não se trata, evidentemente, de dar as costas aos ideais do Iluminismo, ou diminuir e até rechaçar a importância histórica da Grande Revolução. Na verdade, é preciso sempre contextualizar historicamente os fatos, cotejando-os com o momento político da época. A monografia que nos dá a exata compreensão da evolução do Estado Liberal, ou seu aprimoramento, é escrita por Paulo Bonavides (2004, p. 35-36), que reconhece:
“A tarefa de alforria da Sociedade, sobre penosa e árdua, assume dimensão gigantesca, pela simultânea exigência de introduzir e consolidar os direitos fundamentais insculpidos em sucessivas gerações, ou dimensões, e cuja concretização se espera da fórmula cunhada pela Grande Revolução do século XVIII.
Nós vivemos e viveremos sempre da Revolução Francesa, do verbo de seus tribunos, do pensamento de seus filósofos, cujas teses, princípios, idéias e valores jamais pereceram e constantemente se renovam, porquanto conjugam, inarredáveis, duas legitimidades, duas vontades soberanas: a do Povo e da Nação.
Aquela Revolução prossegue, assim, até chegar aos nossos dias, com o Estado social cristalizado nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. Uma vez universalizados e concretizados, hão eles de compor a suma política de todos os processos de libertação do Homem”.
O extremismo na luta pela liberdade também fez surgir outro lema da Revolução de 1789, que defendeu a igualdade absoluta entre os cidadãos. A perseguição pela isonomia de direitos tinha opositores diretos e nomeados, quais sejam os monarcas e principalmente os nobres feudais e a Igreja Católica. Diante de tamanha oposição, a teoria libertária da Revolução Francesa adotou como dogma a questão da igualdade entre pessoas. E assim o fez com justiça, ante as evidentes concessões de privilégios aos amigos do rei.
No entanto, a generalização do conceito de liberdade e igualdade proporcionada pela teoria e prática da Revolução Francesa acabou por ocultar uma desigualdade que germinava a partir da formação da classe trabalhadora, submetida economicamente ao “Estado Burguês”. Paradoxalmente, a busca cega pela liberdade individual ocultou as necessidades do homem coletivo, do homem social, sobre cujos direitos silenciava a nova ordem político-liberal.
Basta observar que a luta pela democracia política não era defendida com tão afinco pelos ideias do Iluminismo. A noção de liberdade era individualista, de cunho pessoal e não político-social. O inimigo, como já dito, era o Estado, razão pela qual a busca da Revolução era para consolidar um Estado mínimo, absenteísta, que não violasse os direitos mínimos da pessoa, como sói ocorrera nos tempos da monarquia absolutista. Destarte, nesse terreno político se originou e se consolidou a ideia de direitos fundamentais, todos envolvendo uma prestação negativa do Estado, ou seja, um abstenção do Estado no tocante aos direitos individuais (propriedade, locomoção, pensamento, etc).
Essa posição do Estado perante o indivíduo, defendida exageradamente pela burguesia, justificava e ao mesmo tempo incentivava o individualismo e o liberalismo econômico. O Estado como prestador de políticas públicas sociais não existia ou existia minimamente. Seu papel era de apenas assegurar a liberdade individual e o liberalismo econômico. Não é difícil concluir que a classe proletária estava em desvantagem na ordem política liberal.
A sociedade cada vez mais complexa, e por conseguinte mas ávida por direitos, notadamente os sociais, não mais concebia o sistema jurídico positivista, de cunho lógico-formal. Os fatos sociais não se enquadram nas normas jurídicas preestabelecidas e fechadas. Estavam lançadas, pois, as bases para uma revolução dentro dos ideais da Revolução Francesa, qual seja o abandono do paradigma individual para o social, o Estado Liberal (individualista) para o Estado Social (coletivo), e Paulo Bonavides (2004, p. 19) nos dá a exata dimensão histórica:
“Com efeito, os juristas do Estado social, quando interpretam a Constituição, são passionais fervorosos da justiça; trazem o princípio da proporcionalidade na consciência, o princípio igualitário no coração e o princípio libertário na alma; querem a Constituição viva, a Constituição aberta, a Constituição real. Às avessas, pois, dos juristas do Estado liberal, cuja preocupação suprema é a norma, a juridicidade, a forma, a pureza do mandamento legal com indiferença aos valores e portanto à legitimidade do ordenamento, do qual, não obstante, são também órgãos interpretativos.
Distinções básicas de prisma e visão separam, por conseguinte, os que professam, elegem e teorizam o Estado social daqueles que, insulados, se abraçam ao normativismo puro do Estado liberal. A hermenêutica de um pouco ou nada serve à do outro, pois o direito no Estado liberal dos normativistas, via de regra, se lê e interpreta segundo os cânones de Savigny; já o direito no Estado social requer o alargamento e a renovação de todo o instrumental interpretativo, fazendo nessa esfera a revolução dos métodos para a boa compreensão da ordem normativa.”
Com a abertura do direito às novas exigências sociais, notadamente após a Primeira Guerra Mundial, novos valores e paradigmas jurídicos foram inseridos no contexto social, causando nova revolução na prestação da tutela jurisdicional, seja no âmbito da produção legal do direito, mas também, com efeito, na Hermenêutica Jurídica em relação aos fatos sociais. A pessoa humana e a Constituição são os novos ideais perseguidos pelo operador do direito, notadamente na seara constitucional-processual.
2.1 A sociedade pós-moderna e a gestão de direitos
De fato, a história jurídica e política dos tempos remotos e modernos denota que o homem sempre viveu em busca de melhores condições de vida, seja no âmbito pessoal, através, por exemplo, do exercício da mercancia, como alternativa para o regime feudal explorador; seja quanto ao “homem-social”, na luta e resistência em relação às questões políticas, tema caro à vida de milhões de pessoas no curso da história.
A progressiva valorização do indivíduo no Estado Liberal ocasionou a sua libertação política, agora formalmente igual e livre. Entretanto, como já dito, o cidadão comum não estava livre, porquanto o governo pós-Revolução Francesa era ditado pelos ideais de apenas uma classe social.
Novas opressões, novas resistências sociais. A liberdade individual tornara-se um fator de exploração do indivíduo, ao mesmo tempo em que o Direito legitimava teoricamente aquela conduta exploradora. Dois fatos são marcantes para situar no tempo as novas agruras do sujeito: a exploração vivida pela Revolução Industrial e os horrores da Primeira Guerra Mundial.
Estes fatores ensejaram a teorização de um novo tipo de liberdade, a liberdade social, participativa, democrática do indivíduo. Além disso, a demanda por uma participação mais ativa do Estado tornou-se exigência geral. As Constituições editadas no pós-guerra passaram a prescrever novos tipos de direitos, notadamente de cunhos sociais. A sociedade contemporânea, massificada e complexa, não permite o tratamento formalmente igualitário, já que possui múltiplas facetas culturais, econômicas e sociais. Os direitos não cabem mais em um código. Os fatos sociais não podem mais ser – todos – antevistos pelo legislador.
As novas exigências do Estado contemporâneo influenciam diretamente no sistema processual, pois é por meio do processo que se resolve conflitos jurídicos no Estado de Direito. O Direito deve ser compreendido como uma experiência concreta, uma necessária correção entre realidade social e o modelo jurídico prescrito pela norma (REALE, 1990, p. 123). Quanto ao papel jurisdicional, Miguel Reale (1990, p. 124) já afirmava que a terceira fase do direito moderno deveria:
“a) no plano legislativo, dar preferência a modelos jurídicos abertos, não receando recorrer a valores como os de eqüidade ou boa-fé, os quais servirão de elementos mediadores da desejada concreção jurídica, incompatível com o mero dedutivismo a partir das disposições gerais;
b) no plano jurisdicional, conferir maior autonomia e poder criador aos juízes para que a adaptação das normas aos fatos concretos não redunde em simples e perigosa operação mecânica, mas constitua uma atividade predominantemente axiológica.” (grifo do autor).
E as transformações sociais não foram poucas, a despeito da legislação andar a passos lentos, lentíssimos: direitos da mulher, dos companheiros, da união homoafetiva, das minorias (religiões, partidos, etc), a questão do meio ambiente (ecológico, do trabalho), direitos coletivos em geral, novas demandas dos idosos e das crianças e adolescentes, direitos do trabalhador, previdenciário, etc.
Como então concretizar estes novos valores sociais através de um processo civil (e também penal e do trabalho) edificado sob ideais do século XIX, baseado no individualismo e na igualdade formal? A resposta está na alteração do paradigma hermenêutico, na adaptação do processo à Constituição. Cássio Scarpinella Bueno (2008, p. 159) anota que o processualista moderno deve aplicar um novo olhar sobre o processo civil, agora impregnado pelas diretrizes constitucionais:
“A análise do nosso “modelo constitucional” revela que todos os “temas fundamentais do direito processual civil” só podem ser construídos a partir da Constituição. E diria, até mesmo: devem ser construídos a partir da Constituição. Sem nenhum exagero, é impensável falar-se em uma “teoria geral do direito processual civil” que não parta da Constituição Federal, que não seja diretamente vinculada e extraída dela, convidando, assim, a uma verdadeira inversão do raciocínio useiro no estudo das letras processuais civis. O primeiro contato com o direito processual civil se dá no plano constitucional e não no do Código de Processo Civil que, nessa perspectiva, deve se amoldar, necessariamente, às diretrizes constitucionais.”
O Poder Judiciário, portanto, passa a ter uma nova roupagem na transição do sistema liberal do direito, formal e positivista, para o direito nascido nas constituições. Miguel Reale (1994, p. 69) observa esse fenômeno e registra:
“Um dos campos mais relevantes do “mundo normativo” é representado pelos modelos oriundos de decisões jurisdicionais, muito embora, paradoxalmente, sejam poucos os estudos sobre o conceito de jurisdição como fonte reveladora de normas jurídicas.
Os autores, em geral, situam o problema no plano processual, a fim de determinar, primeiro, a competência do órgão jurisdicional, e, depois, a forma segundo a qual essa competência deve atualizar-se. Penso, todavia, que antes há uma questão que se põe nas matrizes do Direito Constitucional, como configuração do poder de decidir, próprio do Judiciário, em paralelo e sincronia com o que se atribui ao Legislativo e ao Executivo.”
É na relação de direito material, nos fatos, que a jurisdição enfrenta maiores problemas na árdua tarefa de concretização dos direitos através do processo. As cláusulas abertas previstas nas constituições e novas codificações civis, notadamente, não estabelecem literalmente o modus de realização, deixando uma margem de atuação do juiz para o caso concreto, a fim de permitir uma contínua atualização da norma em decorrência da adoção e novos fatores culturais da sociedade.
Essa abertura hermenêutica à atuação do juiz contemporâneo tem sido objeto de inúmeros debates doutrinários e jurisprudenciais, principalmente pela questão da imersão do juiz em questões de cunho político, afetos ao legislador ou ao administrador. Os que objetam essa nova competência do juiz moderno afirmam que o dogma da separação dos poderes impede que o juiz, carente de legitimidade democrática, possa decidir questões afetas ao legislador. Outros defendem a atuação judicial proativa, inovadora, principiológica, maiormente nas hipóteses de omissões estatais. Mais uma vez é preciso retornar aos estudos de Miguel Reale (1994, p. 84-85), que, explicando a sua dialética da complementariedade, ensina:
“Por outro lado, observando-se a figura supra-oferecida, verifica-se que uma norma, e notadamente um modelo jurídico, não conserva sempre inalterado o significado ou o sentido com os quais começou a ter vigência, mas pode sofrer alterações semânticas, que a Hermenêutica jurídica atribui à supremacia de mudanças operadas nos planos dos fatos, dos valores ou de outros processos normativos. (…)
É que, na dinâmica social, há tanto coimplicações como contrastes e confrontos, antinomias e analogias, projeções axiológico-normativas contínuas e lacunas de normatividade, o que tem levado alguns a falar em ambigüidade, quando, na realidade, estamos perante um processo histórico-social, aberto e diversificado, segundo múltiplas variáveis e bem poucas variantes, como se verá logo mais.”
A superação do Estado liberal pelo Estado social redimensionou a prestação de serviços estatais. Paulo Bonavides (2004, p. 186) cita algumas das características do novo Estado:
“Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o
Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social.”
Essa diretriz interpretativa, embora louvável, acarreta alguns problemas de ordem política e constitucional, pois como adverte Bobbio (1992, p. 72):
“Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder –, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado”.
Nessa ordem de ideias, o Estado passa a ter imensa e porque não dizer infinita responsabilidade perante os cidadãos. Esse é um tema que vem rendendo inúmeras discussões jurídicas, na medida em que envolve uma extrema tensão entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e será desenvolvido em tópico próprio, adiante.
A socialização dos direitos estatais provocou uma intensa busca dos seus destinatários pela sua concretização. Inicialmente, os documentos constitucionais se utilizaram da técnica de prescrever estes direitos para o futuro, através das denominadas normas programáticas, que nada mais são do que uma declaração de impotência do Estado em tutelar determinados direitos de forma imediata. Esse é um exemplo brasileiro. O Estado se escusava na prestação de políticas públicas alegando o caráter prescritivo de determinados direitos (saúde, segurança, educação, moradia, saneamento básico, etc).
Cada vez mais se solidificou e ainda se encontra em construção a teoria dos direitos fundamentais, que aborda entre outros assuntos seu caráter vinculante enquanto direito subjetivo do cidadão. Em estudo clássico, Friedrich Müller (2011, p. 57-58) já advertira que:
“Só se pode falar enfaticamente de povo ativo quando vigem, são praticados e respeitados os direitos fundamentais individuais e, por igual, também os direitos fundamentais políticos. Direitos fundamentais não são “valores”, privilégios, “exceções” do poder de Estado ou “lacunas” nesse mesmo poder, como o pensamento que se submete alegremente à autoridade governamental ainda teima em afirmar. Eles são normas, direitos iguais, habilitação dos homens, i.e., dos cidadãos, a uma participação ativa. No que lhes diz respeito, fundamentam juridicamente uma sociedade libertária, um estado democrático. Sem a prática dos direitos do homem e do cidadão, “o povo” permanece uma metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade. Por meio da prática dos human rights ele se torna, em função normativa, “povo de um país” de uma democracia capaz de justificação – e torna-se ao mesmo tempo “povo” enquanto instância de atribuição global de legitimidade, povo legitimante”. (grifo do autor).
Na medida da discricionariedade do administrador os benefícios sociais ou as prestações positivas estatais eram ofertadas à população necessitada. A insuficiência das prestações positivas do Estado-Administrador gera direito subjetivo do cidadão? A omissão do legislador na previsão legal destes direitos autoriza o Estado-Juiz a legislar e ele próprio determinar a concretização de direitos sociais?
Jürgen Habermas (1997, p. 297) aborda a questão e desafia o leitor de sua obra à seguinte indagação:
“No entanto, ainda não foi resolvida a seguinte questão: de que modo tal prática de interpretação, que procede construtivamente, pode operar no âmbito da divisão de poderes do Estado de direito, sem que a justiça lance mão de competências legisladoras (o que faria soterrar a ligação estrita que deve haver entre a administração e a lei)?”
O terreno aqui se torna fértil para abordagem sobre as grandes questões do Direito na atualidade. Administração de recursos públicos, escassez orçamentária, processo civil como instrumento de concretização de direitos, o papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, enfim, toda essa influência política sobre as questões da Justiça.
O advento do Estado Social ampliou os horizontes jurídicos das classes menos favorecidas. As normas programáticas passaram a ser interpretadas como direitos imediatos, as demandas de saúde, moradia, educação, segurança, saneamento básico, entre outras, passaram a constituir pauta dos julgamentos dos mais variados Tribunais do país.
Nobre e Terra (2008, p. 203), em obra destinada a comentar o pensamento de Habermas, ao abordar a conexão entre democracia, direitos fundamentais, sociedade e Judiciário, escrevem que:
“Essa situação de tensão entre democracia e direitos fundamentais ou, no plano institucional, entre legislador e juiz, é o objeto da análise que Habermas chama de “papel e legitimidade da jurisdição constitucional”. Em termos ainda genéricos, isso significa analisar de que forma a interpretação constitucional pode “operar dentro dos limites da separação de poderes em um Estado de Direito, sem que haja uma usurpação de competências do legislador por parte da Justiça”.”
A nova dimensão que a Constituição Federal proporciona sob a luz da nova interpretação de suas normas abre campo para atuação de novos atores no cenário político e jurídico da sociedade. O pluralismo jurídico ganha novos atores porque os direitos fundamentais, notadamente aqueles de cunho social, quando não se referem à toda sociedade, em grande parte destina-se à satisfação do direito de inúmeras pessoas. Considerando-se que o Executivo não está mais sozinho na tarefa de gestão administrativa dos direitos fundamentais, sponte propria, já que passou a ter a “concorrência” do Poder Judiciário na implementação de assuntos que outrora detinham caráter eminentemente discricionário da Administração Pública, inevitavelmente criou-se uma tensão entre estas funções constitucionais, na medida em que o Judiciário determina obrigações ao Executivo, mas este último objeta que está carente de recursos para tanto, ou que aquele direito é menos urgente do que outro, dentro dos critérios de prioridade admitidos pelo gestor público, democraticamente eleito pelo povo.
CONCLUSÃO
Nesta incursão histórica pelo poder, o sistema jurídico adquiriu se apresentou como fator preponderante para o fundamento de um Estado Democrático. Antes submisso ao modelo liberal dominante, o direito era exatamente o meio para a aplicação fria da legislação. A influência da máxima efetividade constitucional no que toca aos direitos fundamentais exigiu novas posturas do juiz, a fim de que se desvencilhasse dos parâmetros fechados do código processual e imprimisse novo olhar hermenêutico sobre os problemas socioeconômicos postos sob julgamento.
O processo civil, um dos ramos do direito, naturalmente, passou a integrar o próprio conceito de direitos fundamentais, cujos componentes – previsão legal e prestação estatal – restaram insuficientes nas últimas décadas.
E mais, o papel do juiz convolou-se do mero aplicador da lei, carente de crítica, para um gestor de direitos fundamentais, como elo entre a legalidade e a justiça, que não se confundem. A legalidade é conceito objetivo, dogmático; porém, a justiça é um conceito indeterminado, cujo sentido vem sendo estudado por filósofos desde à Grécia antiga. Portanto, o novo papel do juiz no processo civil, sob o pretexto de fazer justiça, é composto de extrema subjetividade e discricionariedade de decisões, o que pode acarretar sérios problemas quanto à segurança jurídica e a administração política dos direitos fundamentais.
Essa tensão entre Poder Judiciário e demais Poderes vem oferecendo debates interessantes sobre a administração dos direitos fundamentais judicializados. Fala-se em judicialização da política ou da politização da Justiça. Seja qual o título que se queira adotar, a verdade é que no sistema jurídico atual, isso em termos mundiais, há uma pluralidade de instâncias decisórias, inclusive sobre temas antes deferidos exclusivamente ao parlamento ou à administração, e um dos problemas centrais suscitados se refere ao custo financeiro dessa novel forma de administração estatal dos direitos fundamentais, notadamente pela participação de um Poder Político estranho aos assuntos econômicos do Estado, entre eles as contas públicas e equilíbrio financeiro de todo o sistema administrativo.
Mestre em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense – Unipar. Membro da AGU na carreira de Procurador Federal em Paranavaí/PR. Professor de Direito Processual Civil na Unipar
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