Resumo: O Brasil vivenciou um momento histórico no dia 05 de Maio de 2011. Não apenas para a população LGBT, mas para a sociedade em geral. O julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 representou uma genuína quebra de paradigmas e um avanço para o nosso Direito das Famílias. A União homoafetiva – aquela formada por pessoas do mesmo sexo – é entidade familiar e dela decorrem todos os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher, consagrada no art. 226, § 3º da Constituição Brasileira e no art. 1.723 do Código Civil. O presente artigo visa analisar brevemente o julgamento das duas ações constitucionais e os efeitos da equiparação entre a união homoafetiva e a união estável, em especial no que diz respeito à possibilidade do casamento civil por conversão e a adoção conjunta.
Palavras chave: união homoafetiva – união estável – equiparação – casamento – adoção conjunta
Abstract: Brazil experienced a historic moment on May 5th, 2011. Not just for the LGBT population, but for society in general. The trial of ADPF 132 and ADI 4277 represented a genuine paradigm shift and a progress for our Family Law. The homoaffective union – formed by the same-sex people – is a family unit and it generates all the rights and obligations that emanate from the stable union between a man and woman, enshrined in art. 226, § 3 of the Brazilian Constitution and art. 1723 of the Civil Code. This article aims to briefly examine the trial of these two constitutional actions and effects of the assimilation between the homoaffective union and stable union, in particular the possibility of civil marriage by conversion, and the joint adoption.
Keywords: homoaffective union – stable union – assimilation – same-sex marriage – adoption
Sumário: Introdução; 1. Um breve histórico das ações; 2. A decisão; 3. O ativismo judicial; 4. Casamento civil homoafetivo? 5. Adoção conjunta; Considerações finais; Referências.
Introdução
A preocupação com a regulação das uniões homoafetivas integra a agenda do pensamento jurídico mundial. Hoje, muitos países do mundo deixaram “cair a venda” outrora existente para ignorar os vínculos homoafetivos. Pouco a pouco, a homoafetividade vem ganhando visibilidade social e jurídica.[1]
Em território brasileiro, as relações homoafetivas vinham sendo reconhecidas, dia após dia, pelos tribunais estaduais e pelos magistrados de 1º grau. Toda sorte de direitos já vinham sendo concedidos aos parceiros homossexuais, como partilha de bens, pensão por morte, condição de dependente em planos de saúde, direito real de habitação, direito à declaração conjunta de Imposto de Renda, alimentos, adoção conjunta de crianças, entre outros. Finalmente, em Maio do corrente a Suprema Corte brasileira veio a chancelar o que já acontecia nos tribunais inferiores, equipando as uniões estáveis entre homossexuais e heterossexuais.
1. Um breve histórico das ações
Em 25 de Fevereiro de 2008 foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal brasileiro a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132[2], de autoria do Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A ADPF indicou, inter alia, como direitos fundamentais violados, o direito à isonomia, o direito à liberdade, desdobrado na autonomia da vontade, o princípio da segurança jurídica, para além do princípio da dignidade da pessoa humana.
Em resumo, o pedido principal da ação traduziu-se em requerimento da aplicação analógica do art. 1723 do Código Civil brasileiro às uniões homoafetivas, com base na denominada “interpretação conforme a Constituição”. Requisita-se que o STF interprete conforme a Constituição, o Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro e declare que as decisões judiciais denegatórias de equiparação jurídica das uniões homoafetivas às uniões estáveis afrontam direitos fundamentais. Como pedido subsidiário, pede-se que a ADPF – no caso da Corte entender pelo seu descabimento – seja recebida como Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que de fato, terminou por acontecer.
Em 02 de Julho de 2009, a Procuradoria Geral da República propôs a ADPF 178 que terminou sendo recebida pelo então Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, como a ADI 4277. O objetivo principal da mencionada ação constitucional era o de que a Suprema Corte declarasse como obrigatório o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, desde que preenchidos os mesmos requisitos necessários para a configuração da união estável entre homem e mulher, e que os mesmos deveres e direitos originários da união estável fossem estendidos aos companheiros nas uniões homoafetivas.[3]
2. A decisão
Todos os 10 Ministros votantes no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 manifestaram-se pela procedência das respectivas ações constitucionais, reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar e aplicando à mesma o regime concernente à união estável entre homem e mulher, regulada no art. 1.723 do Código Civil brasileiro. Talvez nunca se tenha visto a Suprema Corte brasileira com um posicionamento tão homogêneo e consensual, ao menos no que diz respeito ao resultado, ao considerar que a união homoafetiva é, sim, um modelo familiar e a necessidade de repressão a todo e qualquer tipo de discriminação.
Alguns votos possuíram como fundamentação a interpretação conforme à Constituição, de acordo com o pedido formulado nas petições iniciais de ambas as ações. Outros votos divergiram, apontando que a união entre pessoas do mesmo sexo não poderia ser considerada união estável homoafetiva, mas ao revés, deveria ser considerada união homoafetiva estável. Ainda apontou-se que a constitucionalidade da união homoafetiva como entidade familiar possuía sustentáculo nos direitos fundamentais. Argumentou-se também no sentido de existir uma lacuna legislativa, que deveria ser suprida por meio da analogia com o instituto mais aproximado: a união estável e, por fim, ainda existiu entendimento de que se deveria aplicar extensivamente o regime jurídico da união estável. Todos os entendimentos, com a sua variedade de fundamentações, levaram a um mesmo resultado: a submissão da união homoafetiva ao regime jurídico da união estável.
3. O ativismo judicial
Uma questão que causou certa celeuma, em especial entre os constitucionalistas, foi a idéia de que o ativismo judicial do STF estaria a afrontar o princípio da separação de poderes, fundamentado no juízo de que o Judiciário estaria a usurpar o papel do legislativo[4], idéia que foi rebatida por alguns dos Ministros em seus votos.
O ativismo judicial que, certamente, não pode ser exacerbado – devendo ser utilizado com prudência e moderação – e deve ter lugar em ultima ratio, na situação em tela se justifica, entre outras razões, pela inércia do legislativo.[5] Trata-se, portanto, de uma maneira proativa de interpretar a Carta Magna, estendendo o seu alcance e sentido. Como referido, usualmente emerge na ocorrência de “retração do Poder Legislativo, de certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sejam atendidas de maneira efetiva”. [6] Esse é o caso do Brasil.
E no caso específico do julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 o eventual ativismo judicial se justifica pela absoluta omissão e indolência – para não dizer acovardamento – do Legislativo em relação às questões concernentes à homoafetividade. Basta relembrar que existem, em tramitação, projetos de lei que versam sobre as uniões homoafetivas de meados da década de 90.[7]
Como referido, o ativismo judicial deve ser utilizado em último caso, mas, na situação em tela, nada mais parecia poder ser feito. Existem nas casas legislativas brasileiras, diversos projetos de lei, proposta de emenda à constituição[8] que nunca foram à votação. Os projetos que não foram arquivados encontram-se perdidos em algum fundo de gaveta, e quando ressurgem, esbarram nas Comissões Parlamentares, cuja maioria esmagadora é formada por parlamentares cujo fundamentalismo moral – especialmente com viés religioso – chancela a sonegação de direitos civis a uma grande parcela da sociedade. Como bem afirmou o Min. Celso de Mello no julgamento:
“Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade”.[9]
Como referido, estavam a ser desrespeitados e sonegados os direitos fundamentais de muitos cidadãos brasileiros e, o grande papel do tribunal constitucional brasileiro, do STF, é o de promover e proteger os direitos fundamentais de todos. Como assinala Luís Roberto Barroso, uma “eventual atuação contramajoritária do Judiciário em defesa dos elementos essenciais da Constituição dar-se-á a favor e não contra a democracia”.[10]
Destarte, não há como se questionar a legitimidade jurídico-constitucional da decisão proferida pela Suprema Corte brasileira, que se traduz em prestígio pela Constituição e pelos princípios nela insculpidos, e a materialização do verdadeiro Estado Democrático de Direito.
4. Casamento civil homoafetivo?
Já existia o entendimento de que o casamento civil homoafetivo era possível no Brasil, antes mesmo da decisão do STF[11], o que veio foi um caminho a mais, um plus. Senão vejamos: o Código Civil brasileiro não possui uma definição de casamento como sendo a união entre homem e mulher. A Constituição Federal tampouco traz uma definição de casamento ou explicita que a diversidade de sexos é requisito para a existência do mesmo. Limita-se a determinar que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher[12]. Código Civil leva à conclusão, a priori, de que o casamento é instituto exclusivamente reservado a pares heterossexuais, em virtude da locução “homem e mulher” presente em diversos dispositivos, como os arts. 1.514, 1.517, caput, e 1.565 do referido Diploma. Trata-se, no entanto, de mera presunção.
O esteio da doutrina e jurisprudência, que entende “inexistir” o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, reside, primordialmente, na leitura do aert. 1514 do CC.[13] Entende-se que, em virtude de ausência de referência expressa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, a diversidade de sexos constitui uma “condição de existência” no casamento civil[14]. Note-se, entretanto, que mesmo os defensores da “teoria da inexistência” confirmam que não se encontra, no ordenamento brasileiro, texto legal que consagre esse juízo[15], o que deveria levar ao apartamento automático desse entendimento por patente falta de fundamento normativo que o legitime.[16]
A teoria do casamento inexistente, no Brasil, terminou por ser arquitetada em virtude da omissão legislativa e da recusa em se conceder validade ao casamento homossexual, não obstante a inexistência de proibição para tal ato na lei, ou de um dispositivo legislativo que indique a inexistência do matrimônio, como era o caso de Portugal. Ou seja, em território brasileiro trata-se de uma construção meramente doutrinária, sem respaldo legal.[17]
Ultrapassada a “teoria da inexistência”[18], contrariamente ao casamento homossexual, argumenta-se ainda que um par do mesmo sexo apenas poderia contrair matrimônio se a legislação fosse expressa nesse sentido, o que não ocorre em virtude da expressão “o homem e a mulher”, presente no Diploma Civil brasileiro. Diante de tal fato, vislumbra-se, portanto, uma vedação implícita, em virtude, novamente, da redação do art. 1.514 do CC, entendimento que contraria o disposto no art. 5º, II da Carta Magna brasileira[19].
A doutrina favorável ao reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, no Brasil, fundamenta-se na lógica de que a expressão “o homem e a mulher” não possuiria o condão de impedir o casamento entre um par do mesmo sexo. Afirma-se que os impedimentos matrimoniais são as proibições expressamente elencadas pelo CC, no art. 1.521, ou em outros dispositivos esparsos que determinam a anulabilidade ou nulidade do casamento civil. Assevera-se que a referência a homem e mulher indica apenas a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso se traduza em proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, que deveria ser regulado por meio da analogia ou interpretação extensiva[20].
Não obstante todo o exposto, com a decisão emanada do Supremo Tribunal Federal brasileiro, outra saída agora pode ser vislumbrada para os casais do mesmo sexo que desejem contrair matrimônio: a conversão da união estável em casamento. Não se trata de nenhuma fórmula mágica ou ginástica hermenêutica. É uma solução muito simples, oriunda da legislação positiva brasileira.
O art. 226, § 3º da Carta Magna brasileira assevera que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável como entidade familiar[21], devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Na legislação infraconstitucional, o Código Civil determina, em seu art. 1.726 que “a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”.
Ao julgar procedentes as duas ações constitucionais, o STF deu ao art. 1.723 do Código Civil brasileiro interpretação conforme à Constituição para apartar qualquer entendimento que obste o reconhecimento da “união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Assim, restaram, para todos os fins de direito, as uniões homoafetivas equiparadas às uniões heteroafetivas.[22] Desta forma, é de clareza meridiana o entendimento de que a união estável – seja hetero ou homoafetiva – poderá ser convertida em casamento observado o disposto no art. 1.726 do CC.[23]
5. Adoção
A adoção por casais do mesmo sexo também pode ser facilmente equalizada dentro do atual contexto do ordenamento brasileiro. Antes de tudo, é importante relembrar que a idoneidade dos requerentes à adoção, assim como a sua capacidade para o exercício efetivo e afetivo da parentalidade são os fatores que deverão ser levados em conta, para materialização do melhor interesse da criança. Só um estudo aprofundado nessas questões – apartando-se do fato de o casal ser homossexual ou não – poderá evidenciar se o interesse daquela criança estará sendo atendido, o que poderá resultar da preterição ou não do exercício da parentalidade.
Mister também ressaltar o papel fundamental que a jurisprudência brasileira desempenhou nessa seara, já que adoções conjuntas a casais homossexuais já estavam a ser deferidas por todo o Brasil.
Feitas essas considerações, a outra conclusão bastante simples nos leva o próprio ordenamento brasileiro atual: já não existem óbices legais de qualquer natureza para que um par homossexual pleiteie a adoção conjunta de um infante.
O art. 42,§ 2o do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece como requisito para a adoção conjunta que os candidatos sejam unidos pelo matrimônio ou vivam em união estável, comprovada a estabilidade da família. A união homoafetiva foi equiparada à união estável para todos os efeitos. Portanto, qualquer impedimento legal que se vislumbrasse, já não cabe mais dentro do ordenamento brasileiro hodierno.
Considerações finais
Com argumentos ora convergentes, ora divergentes na fundamentação dos seus votos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro outorgaram o “selo” de família às uniões homoafetivas, e entenderam que as mesmas estão submetidas ao regime da união estável, de onde decorre uma vasta gama de direitos e deveres. Com o julgamento – e como restou evidenciado em cada voto – a Suprema Corte espancou a intolerância e o preconceito, fazendo valer o verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra
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