Resumo: Trata-se de uma abordagem do princípio do bis in idem nas suas perspectivas material e formal. Em um segundo momento, aborda-se o princípio na Corte Constitucional Espanhola no que se refere a sua aplicabilidade que se espraia para todo o direito sancionador, abarcando, portanto, tanto o direito penal quanto o direito administrativo sancionador. Em seguida, a autora faz uma sintética abordagem no direito brasileiro das barreiras que cinde o direito penal do direito administrativo, ambos de suma importância ao direito ambiental. Por fim, a análise de julgados do STF e como o bis in idem é abordado pela Corte.
Palavras-chave: bis in idem; direito ambiental; direito penal; direito administrativo sancionador.
Abstract: This paper works on bis in idem principle in accordance with two aspects of it: a material and a formal aspects. In a second moment, this approach the principle in Espanish Constitucional Court where the applicability spreads about either the criminal and administrative law. Following, the author made a synthetic approach about it in Brazilian law, which divides the criminal law of the administrative law, both have importance when the issue is about environmental law. In the end, the analysis is above the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court.
Key words: bis in idem; environmental law; criminal law; administrative law.
Sumário: Introdução; 1. Notas preliminares; 2. Notas gerais sobre o princípio do ne bis in idem no Brasil; 3. Bis in idem no Direito Espanhol; 4. Ne bis in idem material; 5. Ne bis in idem processual; 6. O Bis in idem como direito de defesa do cidadão frente ao estado no Direito Espanhol; 7. Bis in idem e o direito ambiental; 8. Bis in idem no Superior Tribunal Federal; Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O bis in idem é um princípio materialmente constitucional que não está inserto no texto constitucional de 1988, no entanto, está inserido no Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. O dito princípio possui duas vertentes, fundamentalmente, quais sejam, uma vertente material, que diz respeito à tipicidade, proporcionalidade e culpabilidade. Enquanto a sua vertente processual guarda pertinência com a coisa julgada material e formal.
Poucas são as referências ao dito princípio na legislação infraconstitucional brasileira. A questão, no entanto, suscita controvérsia no que tange a superposição de esferas administrativas sancionadoras e penal, especialmente na seara do direito ambiental. No direito espanhol, em alguns pronunciamentos da corte constitucional, resta claro que o princípio se espraia para todo o direito sancionador com o fito de proibir a dupla sanção pelo mesmo fato e fundamento.
A discussão no direito brasileiro, entretanto, é esvaziada, haja visto que existe expressa permissão da superposição de esferas no que tange à punição por delitos ambientais.
Com esse panorama, busca-se demonstrar a incidência deste princípio na legislação brasileira no que tange ao direito ambiental. Em um primeiro momento, desmembra-se o princípio do bis in idem nas suas duas acepções, material e formal. Em seguida, faz-se uma pequena abordagem no Direito espanhol, trazendo à baila alguns julgados da Corte Constitucional Espanhola.
Em um terceiro momento, de forma sintética, a autora enfoca nas possíveis distinções do direito administrativo sancionador e do direito penal. Isto é, é possível traçar com exatidão metodológica as distinções entre ambos os direitos? Se não, como se justifica a superposição de ambas as esferas no direito ambiental? A importância desse bem jurídico supraindividual justifica a dupla punição pelo mesmo fato e fundamento?
Por fim, faz-se uma breve pesquisa acerca do princípio do bis in idem no Supremo Tribunal Federal. Isto é, de que forma esse princípio é trabalhado e em quais casos ele aparece.
1. Notas preliminares
Não se pretende no presente trabalho adentrar na árdua discussão a respeito das teorias do bem jurídico. No entanto, para estabelecer os parâmetros dentro dos quais se pretende trabalhar, adota-se a concepção de bem jurídico ancorada constitucionalmente. Nesse sentido, os bens jurídicos que são ou serão, em determinado momento, tutelados pela lei penal deverão necessariamente encontrar amparo constitucional. (CUNHA, 1995, p. 271)
Destaca-se, no entanto, a posição de Luís Carlos dos Santos Gonçalves, segundo o qual o bem jurídico não precisa estar necessariamente implícito ou explicito na Constituição. Poderá haver casos em que o bem jurídico tenha dignidade penal, mas não tenha sede constitucional. Não é o natural, até porque com uma Constituição dirigente e prolixa como a brasileira, facilmente, um bem jurídico teria uma conexão, que seja por via oblíqua, com um bem jurídico constitucional, como vida, liberdade, entre outros. (GONÇALVES, 2007, p. 68)
A Constituição, portanto, teria uma dupla função de limitação e legitimação dos bens jurídicos penais, sempre observando o princípio da ultima ratio. Segundo este princípio, o direito penal, por constituir a arma mais interventora na liberdade individual, deve ser o último recurso utilizado pelo Estado. Nesse sentido, havendo a possibilidade de garantir a proteção de um bem por meio de outro instrumento jurídico, o direito penal deverá ser debelado. (BATISTA, 1996, p. 84)
A dualidade legitimação/limitação traduzida na Constituição deve ser interpretada de forma coerente para proteção dos Direitos Humanos.[1] Entende-se por Direitos Humanos “o conjunto de normas que estabelece os direitos que os seres humanos possuem para o desenvolvimento de sua personalidade e estabelece mecanismos de proteção a tais direitos”. (MELLO, 1997, p. 06). Dessa forma, os Direito Humanos aduzidos à Carta Política de 1988 dirigem-se não somente ao Estado, como também ao particular a às entidades privadas.
Abandona-se, dessa forma, a visão liberal pura de não intromissão do Estado na esfera de liberdade do indivíduo. Este deve garantir os direitos e garantias do homem de duas formas, fundamentalmente: contendo o avanço excessivo do Estado nas liberdades individuais e, ao mesmo tempo, protegendo e promovendo os direitos e garantias do cidadão. (CUNHA, 1995, p. 278)
O princípio da ultima ratio não está expresso na Constituição ou no Código penal, no entanto, é imanente ao Estado Democrático de Direito consignado na Carta Política de 1988. (CUNHA, 1995, p. 85). Portanto, o Direito Penal deverá ser reservado apenas aos bens que revelem maior interesse à sociedade.
É inconteste a importância do Direito Penal na proteção de bens jurídicos e, nesse sentido, o próprio constituinte de 1988 deixa consignado na Constituição brasileira diversos mandados de criminalização expressos[2] a serem cumpridos pelo legislador infraconstitucional.
No que tange ao meio ambiente, o art. 225, §3°, o constituinte estabeleceu que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”
Muito embora, a conjunção aditiva “e” que liga os termos “sanções penais” e “administrativas”, por uma razão de consonância com o tratado internacional, do qual o Brasil é signatário, deve ser entendida da seguinte forma: haverá penalidades administrativas para ilícitos menos graves e crime para condutas mais graves, no entanto, para um mesmo fato, as sanções administrativas e penais não poderão se sobrepor.
Isso porque, ontologicamente, não há distinção entre as sanções penais, administrativas e civis. Todas guardam em seu bojo matizes reparadores e punitivas, no entanto, quando se trata da pena, esta revela uma face mais perversa porque trata da restrição/privação da liberdade do indivíduo.
Como corolário da determinação do constituinte, qual seja, a de criminalizar condutas lesivas ao meio ambiente, o que se pretende é mandar uma mensagem: o meio ambiente é direito de todos oriundo da 4° geração de direitos fundamentais, aquele que frustrar a guarda do meio ambiente sofrerá a perda de um direito.
Diferente do que Ferdinand Lassalle lecionava, segundo o qual a Constituição jurídica não passa de um pedaço de papel, Konrad Hesse afirma que a Constituição tem pretensão de eficácia para além de sua vigência jurídica, portanto, ela procura conformar uma realidade política e social. (HESSE, 2010)
Os mandados de criminalização podem ser identificados também com nomenclaturas diversas, como por exemplo, mandamentos de criminalização, ordens de penalização, ordens de criminalização, cláusula de criminalização ou obrigações de criminalização. De toda sorte, no presente trabalho adotou-se mandados de criminalização para reforçar a imperatividade desse comando. (GONÇALVES, 2007, p. 19)
O Direito Penal, destarte, tendo como função precípua guardar bens jurídicos (HASSEMER; CONDE, 1989, p. 100) emanados constitucionalmente esse é o argumento fundamental para embasar a força impositiva da Constituição. Nesse sentido, cabe ao Estado adotar medidas “no sentido de tornar eficaz a própria Constituição, no sentido de dar vida aos seus valores, de não deixar que fiquem letra morta”. (CUNHA, 1995, p. 287)
Não significa dizer, entretanto, que o Direito Penal deve tutelar todo e qualquer valor resguardado pela Constituição. Deve-se considerar, em qualquer hipótese de criminalização, o princípio da proporcionalidade em seu sentido estrito. Em outros termos, o legislador deve sopesar a gravidade da ofensa praticada e o direito a ser restringido. A conduta, por conseguinte, a ser tipificada deve albergar significativa danosidade social[3], ou seja, lesão ou ameaça de lesão a determinado bem jurídico. (CUNHA, 1995, p. 290)
A Constituição Federal de 1988, assim como as Constituições Federais promulgadas após longos períodos ditatórias, como a Constituição Argentina[4] e Italiana[5], prevê um amplo rol de direito e deveres do cidadão edificada sobre a dignidade humana. A Carta Política de 1988 foi capaz, inclusive, de fazer a transição de um país autoritário para uma cultura constitucionalmente democrática. (BARROSO, 2007)
Superou-se, portanto, a perspectiva essencialmente política que se tinha acerca da Constituição até o século XX na Europa para uma Constituição com força normativa. “Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado”. (BARROSO, 2007)
Nesse sentido, os direitos fundamentais ganham no pós-Segunda Guerra grande relevância, superando os paradigmas jusnaturalistas e individualistas. O direito fundamental, portanto, se desconecta de um viés moralista e ético para se apegar a uma base positiva assegurada pela Carta Constitucional. O que não significa, evidentemente, um total desalinho com a moral e a ética. (GONÇALVES, 2007, p. 35)[6]
Dessa forma:
“Direitos fundamentais é a denominação comumente empregada por constitucionalistas para designar o conjunto de direitos da pessoa humana expressa ou implicitamente reconhecidos por uma determinada ordem constitucional. A Constituição de 1988 incorporou essa terminologia para designar sua generosa carta de direitos”. (GONÇALVES, 2007, p. 35 e 36)
2. Noções gerais sobre o princípio do ne bis in idem no direito brasileiro
Tem-se definido no direito interno o princípio do ne bis in idem, sobretudo, a partir do século XX, sob uma dúplice vertente: de um lado, um princípio de natureza processual, proibitivo de renovação de processos ou julgamentos pelos mesmos fatos; por outro lado, um princípio de direito material, segundo o qual ninguém deve ser apenado mais de uma vez pelos mesmo fatos. (SABOYA, 2015)
No que diz respeito aos fundamentos, quando ressalta-se o seu aspecto material sobressaem-se os princípios da legalidade (necessário conhecimento antecipado de eventual reação punitiva), tipicidade, proporcionalidade (excesso punitivo) e da culpabilidade (o juízo de reprovabilidade seria tomada de forma plural). No que diz respeito ao seu aspecto processual, citam-se a certeza, a estabilidade e a segurança jurídica, sintetizadas pelo respeito à coisa julgada. Isto é, firmeza, imutabilidade e intangibilidade das situações jurídicas, o que impede o reexame, dentro do mesmo processo, de questões já decididas ou a renovação da relação processual e a vedação de qualquer outro procedimento, no mesmo juízo ou em juízos posteriores, sobre o objeto do processo transitado em julgado, formando a coisa julgada material. Há ainda quem relacione o princípio do devido processo legal e a um processo justo.[7]
No plano infraconstitucional encontram-se poucas referências a esse princípio. Cita-se: Estatuto do Estrangeiro, Código Penal e Código de Processo Penal. Nenhum deles reporta-se diretamente a esse princípio.
Na seara penal resta clara a vedação do bis in idem, especialmente em alguns dispositivos do código penal, como por exemplo, arts. 8°[8] e 42[9]. Em todas as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) havia previsão do princípio com escassa aplicabilidade. No código criminal do Império (1830), Código Republicano de 1890, na Consolidação da Leis penais de 1932 não havia previsão do dito princípio. (SABOYA, 2015)
Após a Constituição de 1988, com o deslocamento dos Direitos e Garantias Fundamentais para o epicentro do ordenamento jurídico brasileiro, o princípio do ne bis in idem adquiriu natureza de direito fundamental. Trata-se de direito fundamental igualmente não só aqueles formalmente insertos na Constituição, mas aqueles que possuem conteúdo materialmente constitucional, como reconhece o Ministro Celso de Mello[10], porque o Brasil é signatário de inúmeros tratados que albergam esse princípio em sua redação. Esses tratados, no direito brasileiro, são recepcionados como norma supralegal, conforme entendimento do STF, muito embora não aprovado pelo quórum qualificado previsto no art. 5°, parágrafo 3° da Constituição brasileira inserto pela Emenda Constitucional n° 45 de 2004.
Encontra-se referências ao princípio no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), em seu art. 8.4[11]; no art. 9º da Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal (decreto 6.340/2008)[12]; art. VII, item 1, da Convenção Interamericana sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior (decreto n° 5.919/2006)[13]; e, finalmente, no art. 20[14] do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Decreto nº 4.388/2002. (JAPIASSÚ, 2004)
3. Bis in idem no Direito Espanhol
A proibição dirigida ao Estado de não incorrer em bis in idem, geralmente, em princípio, identifica-se com a mais específica proibição de dupla sanção, ou enunciado desde uma perspectiva do cidadão, com o direito a não ser sancionado em uma pluralidade de ocasiões por um mesmo fato. Tem um conteúdo limitador e restritivo da condenação penal e, na atualidade, constitui um princípio reconhecido com caráter geral para todo o direito sancionador. É um princípio informador do direito sancionador que goza de um amplo reconhecimento a nível doutrinal e jurisprudencial. (MANZANO, 2002, p. 17)
Há alguns diplomas legais que o reconhecem na Espanha. No entanto, é um reconhecimento recente, porque a tradição legal e jurisprudencial espanhola se assentava na compatibilidade entre as sanções administrativas e penais, tendo, no entanto, uma única exceção decorrente do código penal de 1928 no art. 853. (MANZANO, 2002, p. 17)
Ainda que a maioria dos países reconheçam também a vigência desse princípio, seguem existindo alguns países que consideram compatíveis as sanções administrativas e penais por considerarem que tem um fundamento diferente. Na União Europeia, por exemplo, admite-se a concorrência de sanções comunitárias com as nacionais, no âmbito da competência, a partir do caso Wilheim com sentença exarada pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia. (MANZANO, 2002, p. 24)
No entanto, mais que um reconhecimento do princípio e a admissão de certas exceções, antes de tudo, a proibição de ser sancionado pelos mesmos fatos em mais de uma ocasião constitui uma das garantias do cidadão frente ao Estado cuja relevância constitucional no marco de direito fundamental construído no art. 25.1 da Constituição Espanhola foi admitida pelo Tribunal Constitucional, apesar de não aparecer expressamente plasmado no texto constitucional. (MANZANO, 2002, p. 17)
A partir deste reconhecimento do Tribunal Constitucional, o princípio informa todo o Direito sancionador.
A partir da análise dos casos concretos, aplicando-se também os tratados internacionais da qual a Corte Europeia é parte, chega-se à análise dos pressupostos da tripla identidade: fato, fundamento e sujeito.
O Superior Tribunal Constitucional Espanhol, em 1981, declarou que o princípio geral de direito supõe que não recaia duplicidade de sanções, administrativas e penais, nos casos em que haja identidade de sujeito, fato e fundamento, ressalva-se os casos em que há uma relação de supremacia da Administração Pública com relação ao sujeito. (MANZANO, 2002, p. 24)
Esse direito proíbe, por um lado, o direito a não ser submetido a uma pluralidade de sanções sempre que apareçam os mesmos três elementos: identidade do fato, do sujeito e do fundamento. Por outro lado, esse reconhecimento na jurisprudência constitucional goza de uma exceção amplamente reconhecida, que se trata das denominadas relações de sujeição especial em cujo âmbito de imposição de uma sanção não impediria a posterior imposição de outra sanção estatal.
Por último, o reconhecimento de um direito fundamental se efetua no marco das garantias estabelecidas no art. 25.1 da Constituição espanhola. Esta construção jurisprudencial é consequência da vinculação da proibição de acumulação de sanções com os direitos da legalidade e tipicidade das infrações. De maneira que o não reconhecimento expresso na Constituição, não impede seu reconhecimento dada a sua conexão com essas garantias.
O Tribunal Constitucional foi ampliando o âmbito de proteção do direito a não ser sancionado de forma múltipla.
A doutrina afirma, em caráter geral, que é um princípio geral do direito baseado nos princípios da proporcionalidade e da coisa julgada, proibindo a aplicação de duas ou mais sanções ou o desenvolvimento de duas ou mais ordens sancionadoras, quando houver identidade de sujeito, objeto ou causa material e de ação ou razão de pedir se nos referirmos à perspectiva processual e sempre que não exista uma relação de supremacia especial da administração pública em relação ao sujeito. O Tribunal Constitucional Espanhol vem admitindo a relevância da faceta processual do princípio ao sustentar que este alcança o duplo processamento ou ajuizamento de um mesmo feito, vinculando dita proibição com a garantia processual da coisa julgada. (MANZANO, 2002, p. 24)
4. Ne bis in idem material
A proibição de dupla sanção está intimamente relacionada com o princípio de legalidade e tipicidade, direito fundamental do cidadão. O princípio do bis in idem não se refere tão somente a inaplicabilidade de duas sanções de matiz diversa, como também dentro de um mesmo procedimento ou processo, quando diante do mesmo sujeito, fato e fundamento.
Desta forma, impede-se que por um mesmo crime se puna duas vezes, em concordância com o princípio da proporcionalidade entre infração e sanção. Essa adequação leva ao legislador a qualificar o delito dentro de um determinado nível de gravidade fixando sanções proporcionais a tal qualificação, dentro dos quais atuam os critérios de graduação. Uma vez determinada a sanção pelo juiz, a reação punitiva se esgota.
O princípio do bis in idem revela imperiosa importância em matéria de concurso de leis. Em caso jurisprudencial citado por Ramón Albero (1995, p. 33), o Tribunal Constitucional Espanhol entendeu que a tomada de reféns foi uma continuação do crime de roubo para garantir a efetividade deste, portanto, houve bis in idem material em conexão com o princípio da proporcionalidade quando da tipificação como dois crimes, ao invés da tipificação como roubo qualificado pela tomada de reféns. No que tange a essa questão, o Tribunal se posiciona contrariamente ao exercício reiterado do ius puniendi do Estado, o que o impede de castigar duplamente.
5. Ne bis in idem processual
No que diz respeito ao bis in idem processual, o Tribunal Constitucional vem declarando jurisprudência em diferentes posições.
O STC 77/1983 faz referência à supremacia da atuação jurisdicional em detrimento da atuação administrativa, em respeito à coisa julgada. Desta premissa, conclui-se que: necessário controle a posteriori pela autoridade judicial dos atos administrativos mediante o oportuno recurso; a impossibilidade de que os órgãos da administração levem a cabo as atuações ou procedimentos sancionadores, nos casos em que as ações possam constituir delito ou enquanto a autoridade judicial não tenha se pronunciado sobre ele; a necessidade de se respeitar a coisa julgada, caso contrário redundaria na vulneração do princípio do bis in idem. (MANZANO, 2002, p. 24)
A coisa julgada tem efeito positivo e negativo: positivo no sentido de constituir verdade jurídica e negativo porque determina a impossibilidade de que se produza um novo pronunciamento sobre o tema.
Na mesma sentença se sustentou que mesmo quando o ordenamento permita uma duplicidade de procedimentos, ele não pode conduzir a uma diferente apreciação e determinação fática, ainda que seja possível que em ambos os procedimentos se efetuem um ajuizamento e qualificação jurídica distintos sobre os mesmos fatos.
Finalmente, a conexão de subordinação da administração frente aos Tribunais de Justiça conduz a defender que a administração deve atuar depois dos órgãos judiciais e que quando atua posteriormente a estes, ela está obrigada a respeitar a determinação fática realizada pelos Tribunais. (MANZANO, 2002)
O Tribunal Constitucional entendeu que a proibição do bis in idem impede que as autoridades de mesma ordem sancionem a mesma conduta repetidamente através de dois procedimentos distintos e que o direito ao bis in idem só pode ser exercido frente à pretensão de exercer um novo ius puniendi ou para conseguir a anulação de decisão posterior, isto é, para anular decisão que conduza a uma nova punição. (MANZANO, 2002)
A proibição de um duplo processo se relaciona com ao direito a uma tutela judicial efetiva e com a denominada coisa julgada material. Se declara conectado com o direito de que as resoluções judiciais alcancem a eficácia própria que o ordenamento reconhece, isto é, que as resoluções judiciais se executem em seus próprios termos e, como consequência, o direito ao respeito das decisões e a intangibilidade das situações jurídicas por elas declaradas; A proibição de um duplo processo impede o início de um novo procedimento, salvo nos casos de revisão e demanda de amparo[15]; a proibição de duplo processo não impede um novo processo se o primeiro procedimento e a primeira resolução deixaram de resolver judicialmente uma relação jurídica extraprocessual que requeira um novo pronunciamento de fundo, tão pouco impede a proibição de um novo processo se o objeto reside em corrigir uma vulneração de relevância constitucional. (ALBERO, 1995, p. 33)
O princípio do bis in idem processual também traz à baila delimitações à acusação no direito de recorrer de sentenças penais absolutórias. As partes acusatórias só podem alegar lesão de um direito no que concerne ao procedimento penal, que culmina com a absolvição do réu, caso contrário, estaria-se vulnerando o dito princípio pela imposição de dupla reprimenda, isto porque deve ser observado o devido processo legal (deve-se garantir os direitos de todos os sujeitos do processo).
6. O Bis in idem como direito de defesa do cidadão frente ao estado no Direito Espanhol
Superior Tribunal Constitucional, caso 177: caso jurisprudencial em que uma empresa despejou no rio vestígios contaminados, em desrespeito à lei de águas, dando causa a um procedimento administrativo contra a empresa. Este procedimento não foi suspenso frente ao Tribunal em que foi instado a decidir a causa penalmente por crime ecológico. A empresa foi penalizada administrativamente a pagar uma multa.
Posteriormente, um diretor e um conselheiro da empresa em questão foram condenados a dois meses de prisão e multa por crimes contra o meio ambiente. Em recurso de amparo se decidiu que a multa já havia sido satisfeita, posto que paga anteriormente pela empresa, sendo, portanto, a imposição de multa às pessoas físicas desproporcional. (MANZANO, 2002, p. 41)
Dentre as questões levantadas a época do julgamento, como a incompetência da jurisdição de amparo para rever sentenças exaradas pelo tribunal e, portanto, uma violação do princípio da legalidade, o fundamento do bis in idem material reside na previsibilidade das infrações e sanções e a necessária proporcionalidade dessas.
Isto é, o sujeito deve saber antecipadamente em quais infrações irá incorrer no caso de desrespeito a uma norma. A sujeição ao duplo procedimento, administrativo e penal, diante do mesmo fato e fundamento, feriria frontalmente, portanto, o bis in idem material. Ressalta-se que a dimensão processual do princípio só tem sentido a partir de sua vertente material, de forma que as duas não podem ser interpretadas em desacordo; o bis in idem constitui um direito de defesa do cidadão frente ao estado, de modo que a dupla sanção não pode ocorrer. É um direito fundamental do cidadão.
7. Bis in idem e o direito ambiental
No relatório do grupo brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal de 2004 observou-se que inexiste no plano nacional proibição de se impor cumulativamente sanções penais e administrativas pelos mesmos fatos, bastando que a conduta de determinado indivíduo se subsuma a figuras típicas dessas duas ordens normativas. (JAPIASSÚ, 2004)
A tutela do meio ambiente conclamada com um mandado de criminalização na Constituição Federal, inclusive da pessoa jurídica, no art. 225, §3° e a Lei 9.605/98 demonstram a importância desse bem jurídico à sociedade.
Para além dessa norma infraconstitucional, outras leis ainda tutelam o meio ambiente, como a lei 9.938/81, lei 9.985/00, lei 7.347/85, lei 9.433/97, lei 12.651/12, lei 11.105/01 e ainda as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente.
A tutela do meio ambiente inserta na Constituição propõe a interposição de esferas administrativa, penal e civil, o que dá azo à punição em diversas esferas por um mesmo fato. Em uma perspectiva em que o princípio do bis in idem se espraia para todo o direito sancionador, tendo em vista que o direito administrativo sancionador e o direito penal não guardam diferenças substanciais, mas tão-somente gradações da instância punitiva conforme afirma Nelson Hungria,[16] haveria, portanto, um bis in idem quando da condenação nas duas esferas, mais especificamente.
É certo que, contemporaneamente, as fronteiras entre o Direito Penal e Direito Administrativo sancionador tenham em muito se diluído, em razão de uma conformação meramente positiva do bem jurídico penal, sem que haja uma preocupação com os direitos fundamentais e com o próprio objeto da tutela penal. No entanto, segundo Fábio D’Avila (2006), ainda existe uma fronteira infranqueável de um direito penal legítimo.
Goldschmidt que, desde o século XX, traça distinções entre ilícito penal e administrativo, sendo o primeiro caracterizado pela infração formal e material de um preceito normativo e de um bem jurídico, consecutivamente, cuja consequência naturalística seria o danus emergens, enquanto o ilícito administrativo seria a violação de uma norma cuja função seria a promoção de um valor e sua infração não acarretaria um dano, mas tão-somente a omissão na promoção desse valor, isto é, um lucrum cessans. (D’AVILA, 2006)
Em que pese a distinção traçada por Goldschmidt, me filio à corrente esposada por Claus Roxin, segundo o qual não há distinção substantiva entre ilícito administrativo e penal. Nesse sentido, a infração administrativa possui as mesmas características da infração penal, no entanto, destina-se à infração menos grave. (D’AVILA, 2006)
Nessa perspectiva, se inexiste diferença estrutural entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, o direito penal de forma frequente vem assumindo o modo de raciocínio próprio do direito administrativo sancionatório. Como consequência, tem provocado justaposição das esferas, sendo cada vez mais perceptível a diluição das fronteiras outrora estabelecidas mesmo artificialmente.
Não raro, há a concorrência normativa entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, principalmente na tutela de bens jurídicos supraindividuais.
Em sendo, portanto, o ius puniendi uno, isto é, exercido por uma única pessoa, o Estado pelas suas diversas faces, jurídica e administrativa, como exercício da sua soberania, é forçoso reconhecer uma distinção material entre as sanções administrativas e penais.
Não tem merecido muita atenção do legislador brasileiro as diversas situações de concorrência normativa entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, delas decorrendo medidas descoordenadas, tais como frequentes acumulação de sanções penais e administrativas pelos mesmos fatos e fundamentos, sobretudo na tutela de interesses difusos. Como por exemplo a lei de Crimes Ambientais que também possui infrações administrativas decorrentes do decreto 6.514/2008, por idêntico fundamento e objeto de proteção.
Sendo o princípio da ultima ratio informador do direito penal, isto é, o direito penal deve ser reduzido ao mínimo irrenunciável, a criminalização de condutas deverá ser destinada àquelas necessária para resguardar bens jurídicos que os outros ramos do direito não foram capazes de fazer. É evidente que essa opção deverá ser orientada pela política-criminal e pelos princípios norteadores do direito penal, como a proporcionalidade, a subsidiariedade e a ultima ratio. (SABOYA, 2015)
Quando se trata do meio ambiente, o primado da tutela é do direito administrativo. Aliás, antes do direito penal tutelar condutas na seara ambiental, já o fazia o direito administrativo. A título exemplificativo, a atual Lei de Crimes Ambientais não raro faz remissão a algum ato próprio de órgãos da administração pública, como é o caso do art. 29[17] e art. 34[18], entre outros. (GRECO, 2006)
Um primeiro problema apontado por Luís Greco (2006, p. 154) quanto à remissão da norma penal ao ato do poder administrativo é uma questão de legalidade. Isto é, uma vez que a norma penal faz referência ao ato administrativo, não se estaria relegando ao poder administrativos com seus atos próprios, orientados pela conveniência e oportunidade, a tipificação de condutas penais, que são, por sua vez, orientadas pela legalidade?
A doutrina pátria não observou esse problema, sendo rara a manifestação pela inconstitucionalidade das normas penais em branco. Alguns tribunais constitucionais, como o alemão, espanhol, americano e italiano, já se manifestaram a respeito da constitucionalidade desde que o núcleo fundamental da conduta tipificada tenha sido um ato legislativo. (GRECO, 2006, p. 154)
Por todo o exposto, o princípio do ne bis in idem proíbe o exercício do ius puniendi em face dos mesmos fatos e fundamentos. A perspectiva processual é a mais evidente consequência do princípio, em razão da coisa julgada formal e material. No entanto, o direito à unicidade de julgamento na perspectiva do cidadão pautado no princípio da dignidade humana deverá ser o fundamento do princípio.
8. Bis in idem no Superior Tribunal Federal
Em pesquisa no sítio do Superior Tribunal Federal com a palavra-chave bis in idem, não foi encontrado nenhum resultado que abordasse a questão no direito ambiental ou da duplicidade de punição oriunda do direito administrativo e penal.
O que muito se discute em sede jurisprudencial é a ocorrência do dito princípio na dosimetria da pena, conforme se vê adiante:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES DOSIMETRIA. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO DA OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM EM DECORRÊNCIA DA CONSIDERAÇÃO, NA PRIMEIRA E TERCEIRA FASES DA DOSIMETRIA DA PENA, SOBRE A QUANTIDADE E A ESPÉCIE DA DROGA APREENDIDA. POSSIBILIDADE. – HC 117435 / SP – Relator: Ministro Dias Toffoli.
EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES (LEI N. 11.343/06, ART. 33, CAPUT). DOSIMETRIA DA PENA. SIGNIFICATIVA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. EMPREGO DE ADOLESCENTE NA EMPREITADA CRIMINOSA. MAJORAÇÃO DA PENA-BASE (ART. 42, LEI 11.343/06) E DEFINIÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA (ART. 40, VI, LEI 11.343/06). POSSIBILIDADE. BIS IN IDEM NÃO CONFIGURADO. – HC 113136 / DF- Relator: Minitro Luiz Fux.”
Em poucos acórdãos se discutiu a existência da dimensão processual do bis in idem, com a duplicidade de procedimentos penais.
“EMENTA: HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE. DUPLICIDADE DE PROCESSOS DECORRENTES DE UM MESMO FATO. POSSIBILIDADE. IMPUTAÇÕES DISTINTAS. CRIMES DE NATUREZA COMUM E CASTRENSE. COMPETÊNCIA ABSOLUTA. ORDEM DENEGADA. UM DETERMINADO ACONTECIMENTO PODE DAR ORIGEM A MAIS DE UMA AÇÃO PENAL E EM ÂMBITOS JURISDICIONAIS DISTINTOS E ESPECIALIZADOS. – HC 105301 / MT. Relator: Ministro Joaquim Barbosa.
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. ALEGAÇÃO DE DUPLICIDADE DE PROCESSOS SOBRE OS MESMOS FATOS. CRIMES DE NATUREZA COMUM E FEDERAL. ABSOLVIÇÃO NA JUSTIÇA ESTADUAL. COISA JULGADA MATERIAL. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA FEDERAL. PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM: AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DOS FUNDAMENTOS APRESENTADOS. HABEAS CORPUS DENEGADO.- HC 97237 / SP. Relator: Ministra Cármen Lúcia.”
Uma decisão interessante que discute a face processual do bis in idem e que considera constrangimento ilegal submeter pelo mesmo fato, fundamento e objeto, o cidadão a novo procedimento penal, conforme ementa que se segue:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR POR FATO JULGADO NO JUIZADO ESPECIAL DE PEQUENAS CAUSAS, COM TRÂNSITO EM JULGADO: IMPOSSIBILIDADE: CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ADOÇÃO DO PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. – HC 86606 / MS. Relatora: Ministra Cármen Lúcia.”
No voto da ministra relatora, ela aduz o seguinte:
“A adoção do princípio do ne bis in idem pelo ordenamento jurídico penal complementa os direitos e garantias individuais previstas pela Constituição da República, cuja interpretação sistemática leva à conclusão de que a liberdade, com o apoio a coisa julgada material, prevalece sobre o dever estatal de acusar – HC 86606/MS, Min. Relatora: Carmén Lúcia, 2007.”[19]
Dessa forma, a relatora ressalta o princípio do bis in idem não somente na sua acepção processual, como proteção à coisa julgada material e processual, como também na vertente material, como esfera de proteção ao indivíduo pautado na dignidade da pessoa humana.
Conclusão
No direito brasileiro, mais especificamente, na seara ambiental, pouco se discute da incidência do bis in idem, quando se trata da dupla punição por violações à lei de crimes ambientais e tantos outros decretos que tutelam o mesmo bem jurídico. A ânsia punitiva ainda é reforçada pelo fato de o meio ambiente se tratar de um bem jurídico supraindividual e, por isso, supostamente, se justificaria a justaposição de esferas administrativas e penal.
O que resta muito claro em alguns países, como a Espanha, a existência de dito princípio, no Brasil ainda é sequer discutido. Muito disso se deve a exigência constitucional estampada no art. 225, §3° da Constituição da República que esvazia a discussão e, doze anos posteriormente, a lei 9.605/1998 corroborou esse entendimento no artigo 3°[20] do dito diploma. No entanto, se o bis in idem, conforme demonstrado, trata-se de um direito fundamental do cidadão, insertos em muitos dos tratados dos quais o Brasil é signatário, nada mais correto que repensar a forma de punir àqueles sujeitos ao processo penal por crimes ambientais.
Não está se discutindo aqui a relevância do meio ambiente para a comunidade. Todos estão informados da sua relevância para a continuidade da espécie humana, no entanto, isso não autoriza o poder punitivo usar de sua força de forma desmedida, contrariando princípios de tamanho interesse ao cidadão, não somente enquanto réu de uma ação penal, mas a todo cidadão, em razão da íntima conexão deste princípio com o da previsibilidade da sanção.
Mestra pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ
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