Resumo: Este artigo objetiva abordar o percurso histórico por que passou o conceito de cidadania em seu lento processo de evolução. Para tanto, buscou-se traçar um esboço histórico que parte de sua “pré-história”, através dos hebreus e sua concepção de um deus cidadão, passa pela civilização Grega e sua ideia de uma cidadania ligada à comunidade e à partição na gestão da polis, pela civilização romana e seus institutos, pelo longo período medieval e sua combalida cidadania, até a idade moderna e sua cidadania liberal.
Palavras-chave: História Geral, Cidadania.
Sumário: 1. Introdução; 2.A Cidadania e os Hebreus; 3. A Cidadania na Grécia antiga; 4. A Cidadania na Roma antiga; 5. A Cidadania na Idade Média; 6. A Cidadania na Idade Moderna; 7. Conclusão; 8. Bibliografia.
1 Introdução
O presente artigo surge de uma necessidade acadêmica de se visualizar a cidadania como fenômeno histórico, uma vez que seu estudo, em campo teórico, nem sempre possibilita tal panorama. Partindo deste princípio, buscar-se-á apresentar um singelo quadro evolutivo, no qual se demonstrará um reconhecimento histórico e progressivo da análise do conceito de cidadania.
Para tanto, o trabalho em tela será organizado em cinco tópicos centrais, que terão por finalidade esboçar as características da Cidadania nos seguintes cenários: a) a cidadania e os Hebreus; b) a cidadania na Grécia Antiga; c) a cidadania na Roma Antiga; d) a cidadania na Idade Média; e e) a cidadania na Idade moderna.
Em cada um dos tópicos supracitados, delinear-se-ão as contribuições sofridas pela cidadania em cada época, bem como as suas características em cada realidade, tornando esse artigo fonte relevante de elucidação da temática cidadã.
2 A Cidadania e os Hebreus
Atribui-se aos hebreus o nascimento do monoteísmo. Inúmeros povos, todavia, haviam cultuado somente um deus[1]. O que não se vê, em muitos estudiosos, é atribuir ao povo de Moisés as primeiras manifestações do que se entende ser hoje, não pacificamente, cidadania.
Evidentemente, as primeiras manifestações da cidadania não se encontram no contorno de toda a saga hebraica. Assim, não é possível vê-las no período em que eram cativos do Império egípcio ou quando passaram a cultuar um só deus, influenciados pela curta experiência monoteísta imposta pelo rei Amenophis IV, ou mesmo quando se evadiram do cativeiro pelo deserto, em busca de Canaã – a “Terra Sagrada”.
As primeiras manifestações ocorreram com a concepção de um deus que impõe um comportamento ético aos seus seguidores, da mesma forma que estava demasiadamente comprometido com os problemas fincados na exclusão social, na pobreza, na fome e na solidariedade.
A ideia de um monoteísmo ético surge no declínio do período monárquico, através dos profetas, homens que passavam a vida a ser ouvidos e a apregoar verdades em nome do deus por que falam. Esses indivíduos encontraram no povo insatisfeito pelas vicissitudes sociais, saudosos de sua história tribal, terreno fértil para semear seus pensamentos, os quais, amiúde, iam de encontro aos dogmas dominantes, à ideologia que justifica o sistema vigente, e às ritualísticas religiosas praticadas.
Ademais, esses primeiros esboços de construção de cidadania fortaleceram-se, contrariamente, pela perseguição que esse povo sofreu durante sua existência, razão por que Jaime Pinsky nomeou o fato de “o paradoxo da superioridade ética”[2]. Esta expressão é precisa para dar lume e explicitar os motivos que levaram os hebreus a evocarem uma moral messiânica e, consequentemente, uma identidade nacional, mesmo sem território e, constantemente, em um ambiente hostil.
3 A Cidadania na Grécia antiga
A Cidadania na Grécia antiga está ligada à noção de Cidade-estado. O Estado contemporâneo, como é entendido hoje, não se confunde com a experiência antiga, assim como não se pode mensurar um liame evolutivo que unisse os dois mundos[3]. A compreensão da participação social e o entendimento dos direitos inerentes ao cidadão têm, em ambos os casos, perspectivas distintas.
As Cidades-estado, no entanto, não tiveram suas concepções restritas à experiência helênica. Seus nascimentos foram consequências naturais de um crescimento econômico e social que ocorreu nas costas do Mediterrâneo, entre os séculos IX e VIII a. C.. Entre as civilizações conhecidas, que abraçaram esse padrão exitoso de organização política, social e econômica, estavam, além da civilização grega, a etrusca, a fenícia e, mais tarde, a romana.
A comunidade das Cidades-estado, muito diferente do que se entende hoje como “cidade”, era organizada por populações camponesas. A cultura agrícola predominava, por mais desenvolvida e rica a região. O acesso a terra, todavia, limitava-se aos entendidos membros da comunidade, que, em progressivo processo de fechamento, excluíam os estrangeiros[4]. Neste contexto, não se tinha uma autoridade acima de todos e central, razão por que os conflitos eram solucionados entre os proprietários. O Estado se confundia com a comunidade.
A dificuldade de ser aceito nessas comunidades variava a depender da Cidade-estado e do seu período histórico. As regras de obtenção da cidadania eram diversas, mas tinham a tendência de prestigiar as gerações posteriores dos povos que ocuparam inicialmente essas regiões[5]. Não era incomum, no entanto, que, pelo Mediterrâneo, cidades gregas fundassem colônias, como as da península itálica (Magna Grécia), com habitantes heterogêneos, oriundos de distintas Cidades-estado. As regras de aceitação dessas comunidades eram naturalmente mais flexíveis.
Ser cidadão de uma Cidade-estado era um privilégio de poucos. O rígido processo de inclusão determinava um contingente inversamente proporcional de excluídos. Estes participavam da sociedade com seus labores e com seus recursos, e, em algumas cidades, como em Atenas e em Esparta, alcançaram um grande percentual populacional. Entre os excluídos, os historiadores destacam três exemplos emblemáticos: os estrangeiros, os povos submetidos e os escravos. Os dois primeiros gozavam de relativa autonomia; todavia, ao passo que os primeiros se acomodavam com as atividades que lhes restavam na sociedade, os submetidos tornaram-se fonte de constantes conflitos. Os escravos, por sua vez, estavam subjugados por um poder ilimitado, por regras privadas de seus proprietários, distante de qualquer direito; ocupando nas cidades mais desenvolvidas grandes percentuais da população, o que, não raro, fomentavam dos pequenos conflitos às grandes sublevações[6].
As rígidas regras de aceitação refletiam-se em uma comunidade cidadã pouco isonômica e integrada. No que se refere ao gênero, as mulheres viviam à margem da vida pública, limitadas em seus direitos individuais, sob a dominação masculina. O espaço apropriado para elas era o doméstico. Quanto ao elemento idade, havia uma distinção entre jovens e velhos. A comunidade era baseada no respeito aos mais velhos. Era verdadeiramente um domínio etário, garantido por uma estrutura, como o poder atribuído aos Conselhos de Anciãos. Ademais, outro elemento de conflito era a propriedade privada, uma vez que terra era o principal meio de produção. Os conflitos eram constantes entre os pequenos, médios e grandes proprietários. Constatamos que a comunidade era um espaço de conflito social.[7]
Não obstante a complexidade social da Grécia antiga, apresentava a Cidade-estado uma dicotomia que se refletia naqueles que eram ou não cidadãos. Assim, a cidadania era elemento de incomensurável valor. Os gregos realizar-se-iam, enquanto homens, se fizessem parte social e politicamente da Cidade-estado.
A evolução social ateniense, em seus primórdios, expunha uma divisão censitária. Apenas uma classe de cidadão efetivamente gozava de cidadania. Após as reformas de Clístines (509 a. C.), todavia, o privilégio de pertencer à comunidade estendeu-se a todo cidadão ateniense que se viu na possibilidade de exercer cargos do governo. Essa revolução estrutural desferiu um duro golpe na Aristocracia governante, uma vez que, confirmando as reformas de Sólon e introduzindo as suas próprias, no que concerne à organização religiosa, Clístines não mais permitiu castas religiosas e privilégios de berço na religião ou na política[8].
A igualdade[9], para Lafer, nasce da organização humana, meio pelo qual equaliza as diferenças através das instituições. A polis, neste contexto, igualava os homens legalmente. Assim, a perda do acesso à esfera pública significava tornar-se desigual e, portanto, não-cidadão. Sem cidadania, restava ao indivíduo sujeitar-se à esfera privada, status no qual estavam inseridos a mulher, o escravo e os filhos: todos submetidos ao chefe de família e à proteção das divindades domésticas.
O Estado, neste período, não tem a mesma similitude com o que se vê hoje, era mais uma longa manus da família. Como a família era base da sociedade, o indivíduo via-se totalmente absorvido pela Cidade-estado. Por esta razão, o ideal grego de cidadão era ser “membro de uma comunidade política” [10], afastando-se dos assuntos privados. Com efeito, cidadão era aquele que se debruçava sobre as discussões públicas.
4 A Cidadania na Roma antiga
Um ponto de grande magnitude para entender-se a construção da cidadania[11] romana é a chegada dos etruscos. Povo oriundo do norte da Península Itálica, os etruscos foram essenciais para a elaboração do império que Roma se tornaria, uma vez que os povos submetidos herdariam de seus dominadores as primeiras instituições e formas de estado. Herança que se observa facilmente pela bipartição nobreza e população subalterna, o que em Roma seria conhecido como patrícios e plebeus. Da mesma forma, o significante papel da mulher na sociedade romana é outro de seus legados. Diferente da participação feminina nas comunidades gregas, as romanas tinham uma liberdade pouco comum, que lhe possibilitava assistir aos espetáculos e aos jogos, participar de banquetes e serem retratadas, com grande relevo, nas artes[12].
Por muito tempo a cidadania romana foi atributo verdadeiramente restrito aos patrícios. Entre o período monárquico (753 – 509 a.C.) e o início do período republicano (509 – 31 a.C.), os cidadãos formavam uma nobreza de sangue e hereditária, um grupo fechado e inacessível; eram os senhores da guerra que tinham acesso aos cargos públicos.
A cidadania romana, por esta razão, era atributo dos homens livres. No entanto, poucos homens livres considerar-se-iam cidadãos. Em Roma, havia três distintas classes sociais, qual sejam, os patrícios (descendentes dos povos fundadores), os plebeus (descendentes dos povos itálicos, estrangeiros) e os escravos (prisioneiros de guerra e aqueles que alcançavam esta posição por dívida). Havia também os clientes, que eram homens livres, mas dependentes de um aristocrata. Os clientes tinham uma relação de fidelidade com um patrício, patrono “[…] a quem deviam serviços e apoios diversos e de quem recebiam terra e proteção […]” [13].
Inicialmente, o que distinguia patrícios de plebeus era o fato de que estes, embora livres, não eram cidadãos. Cidadania era privilégio dos patrícios, que gozavam de todos os direitos civis, políticos e religiosos. Tamanha disparidade gerou diversas sublevações e lutas internas. No período monárquico, esta situação social não passou despercebida pelos monarcas, que, temerosos do grande poder dos patrícios, viam na plebe um escudo natural. Assim, Realeza e plebe compartilhavam o mesmo inimigo, o que fomentou, entre eles, uma aliança silenciosa[14].
Por esta razão, no reinado de Sérvio Túlio, segundo rei etrusco (514 – 510 a. C.), as tradições anunciam as primeiras reformas em favor da plebe. Destas, é interessante destacar a doação de terras conquistadas, a promulgação de leis benéficas (estabelecendo um direito comum), a criação de novas tribos, nas quais as duas ordens estavam misturadas, e o acesso a um serviço militar mais igualitário. A crescente evolução dos direitos dos plebeus, todavia, sentiu temporários retrocessos, pois, com o assassinato de Sérvio e a expulsão de Tarquínio, a realeza, junto com a plebe, foi vencida[15]. Apenas com a promulgação da Lei das Doze Tábuas, foi-lhe expressivamente assegurado uma relevante participação política, alavancada pela expansão militar da então República Romana.
Nesta conjectura, o Direito Romano regulamentava as diferenças entre cidadão e não-cidadãos. O Direito Civil regulava a vida do cidadão, enquanto ao estrangeiro se aplicava o Direitos das gentes. A distinção era simples: considerava-se estrangeiro quem não era cidadão. Não obstante, já era tendência de Roma, desde o fim da República, estender uma paulatina cidadania a todos seus súditos[16].
Na construção de um entendimento de cidadania, relevante é o legado deixado pela experiência romana, principalmente no que toca o conceito de democracia. Para Funari[17], muitos estudiosos têm entendido que, já nas últimas décadas do Império, a política de Roma deu-se com um menor controle aristocrático, de sorte que, a noção de cidadania moderna e de participação popular, nela já podiam serem vislumbrados. Como não constatar que muitas instituições romanas voltaram a incorporar-se nos Estados modernos, como o Senado e a Câmara (antigas assembleias), o voto secreto e o Fórum? Tudo isso reforça a ideia de que o conceito de cidadania romano não está tão distante do entendimento moderno como o antigo Império está de nós cronologicamente.
5 A Cidadania na Idade Média
Sob uma perspectiva social, econômica e política, a Idade Média[18] foi um período de transformações que levou a uma nova tela organizacional da sociedade. Houve, durante o processo de formatação do feudalismo, inúmeras mudanças quanto ao saber e à política, sem as quais não seria possível observar um contexto em que se constata uma cidadania peculiar.
Com a crise de Roma, principalmente pela escassez das guerras, que lhes possibilitavam arrecadação do espólio (no qual estavam inseridos os escravos), ocorreu a diminuição da mão-de-obra, e, por conta disso, a queda da produção. Nesta conjectura, era preciso que o Estado criasse estratégias outras para sobreviver, e, assim o fez, ao adotar o regime de Colonato[19]. Neste sistema, a terra era divida em reserva senhorial e em lotes dos camponeses. Estes, ao receberem os lotes, tinham a obrigação de transferir parte do que produzissem e de trabalhar, sem remuneração, na reserva senhorial. Com efeito, houve a mudança da forma trabalho. A escravidão da Antiguidade Clássica deu lentamente lugar à servidão.
Os povos germanos, por sua vez, sem Estado e cidades, mas com vínculo estreitado na família e na tribo, estabelecia com o Imperador, inicialmente, um contrato, com o fim de diminuir, para o Estado, o investimento em defesa. Neste ajuste, o Estado concedia terras e, em contraprestação, os novos proprietários tinham que as defender, fornecendo soldados. Desta forma, e pela constate ruralização do Império, ocorreu o processo de “privatização da defesa”.
Assim, com a fragmentação do mundo antigo, vemos estas alterações abissais nas estruturas sociais. A Idade Média é marcada por ser socialmente estamental e hierarquizada, assim como o mundo antigo, em certa altura, mas com classes sociais distintas e bem definidas, principalmente no fim do século IX ou no início do século X, no qual se registra Nobreza, Igreja e servos, estruturando a sociedade, como regra.
O Estado Medieval, neste contexto, era figurativo e descentralizado. Os senhores feudais exerciam funções estatais, como legislar, julgar, cobrar tributos e formar exército. Não é inapropriado registrar que um Feudo aproximava-se da ideia que se tinha de Estado[20], e, muitos vezes, em sua complexidade, rivalizava-se com o Estado formal ou que nele se transformava.
Se, por um lado, havia o fracionamento do poder, por outro, existia uma aspiração à unidade. Para Dallari[21], o cristianismo torna-se “a base da aspiração à universalidade”. A unidade da Igreja[22] se afirmava como um farol num mundo sem unidade política. Com efeito, propagou-se a ideia de que os cristãos deveriam se unir em uma só “sociedade política”, sem distinção de origem. Objetivava-se criar um “Estado Universal”. Não é por acaso que o Papa Leão III conferiu a Carlos Magno, em 800 d. C, o título de Imperador e Augusto, o imperador dos romanos.
Essa temporária centralização do poder na Idade Média foi uma variável na lógica de sua equação histórica. Fatores diversos perturbariam sua estrutura, como os múltiplos centros de poder vigentes e a insubordinação, não rara, do Imperador ou dos futuros imperadores, quando os interesses se atritavam ou quando havia pretensões de interferência nos assuntos eclesiásticos.
O que se pode constatar com clareza, na análise do Estado Medieval, é a influência do feudalismo. Seus vários institutos, assim como a vida social, estavam subordinados à propriedade e à posse da terra, fazendo com que houvesse uma confusão do que fosse público e privado. A vassalagem, o benefício (beneficium-feudum) e a imunidade contribuíram para que o Feudo alcançasse uma ordem jurídica própria, mesmo porque “[…] os próprios agentes do poder público, ligando o exercício de suas funções à propriedade ou à posse da terra, afirmavam a independência em relação a qualquer autoridade maior […]” [23].
Com tudo isso, ulula a questão de conseguirmos identificar e analisar a cidadania neste contexto histórico. Poderíamos afirmar que a hierarquização das estruturas em classes sociais fez minguar o princípio da cidadania? Seria precipitado entendê-lo inexistente. Evidente que, na sociedade medieval, o status era o que possibilitava a distinção de classes, assim como se tornava a “medida de desigualdade”. Desta forma, por não haver um “código uniforme de direitos e deveres” que regulasse a participação na sociedade de todas as pessoas, sejam elas nobres, plebeus, livres e servos, inexistia, por conseqüência, um princípio de igualdade, que se contrastaria com a desigualdade de classes[24]. Seria igual à ausência de um facho de luz, que permitiria visualizar os contornos em um ambiente escuro.
Por esta razão, a sociedade na Idade Média, sem perspectiva de mobilidade social, foi cenário de inúmeras revoltas sociais[25]. Entre as vicissitudes enfrentadas pelos servos havia a ius primae noctis, pela qual a camponesa era obrigada, ao casar, a dispor de sua virgindade, na noite de núpcias, ao seu senhor ou ao seu capataz. Neste estado, o nascimento das cidades veio como sinônimo de libertação.
O servo, então, evadia-se do feudo e penetrava nos muros da cidade. Isso ocorreu principalmente na Baixa Idade Média (entre os séculos XII e XV) por causa da autonomia de certas cidades, o que as transformou em lugares sem igual para a prática da liberdade. Desta forma, o burgo[26] projeta-se como a polis da antiguidade clássica[27], e o burguês como a representação do cidadão, sendo a cidade o seu ambiente apropriado[28]. Algumas cidades da península itálica, a partir do século XI, não coincidentemente, tinham uma vida política muito próxima das antigas Cidases-estado, da mesma região, e com iguais características quanto à sua concepção de cidadania. Apenas o grupo que detinha direitos políticos, uma minoria burguesa, era entendido como cidadão[29].
6 A cidadania na Idade Moderna
A decadência e o fim do feudalismo vieram naturalmente com a formação dos Estados Nacionais. A sociedade, embora ainda organizada em nobreza, clero e povo, vê o poder retornar às mãos do rei e o nascimento do Estado unitário ou centralizador[30].
Os séculos que pintaram esse cenário descrevem a expansão do capitalismo e a necessária redefinição de uma tela institucional que se moldasse ao novo modo de produção. Assim ocorreu, principalmente, quando o “povo”, como fizera na Roma monárquica, viu, na figura do rei, a unidade política necessária para, num processo inverso, minasse os centros menores de poder, o poder feudal, que lhes subtraíam os direitos mais elementares. Para tanto, não bastava apenas a fuga do feudo ou o investimento em defesa das cidades fortalezas que começavam a povoar a Europa, era também necessário que se pensasse o Estado, a Sociedade e o Povo por outros prismas e se redescobrisse conceitos clássicos que dormitaram ao longo dos séculos, amortecidos por uma conjectura histórica, social e cultural desfavorável.
Com efeito, passa a ser natural questionar as contradições e as distorções que sustentavam os privilégios que a nobreza e o clero insistiam em manter, pois a burguesia, ainda inserida na ideia de uma classe amalgamada ao povo, não mais se contentava com o Estado Absolutista[31]; aspirava horizontes menos restritivos, mares nunca d’antes navegados. Houve, por isto, fortalecimento de uma cidadania essencialmente mais próxima da experiência clássica, uma vez que a igualdade e a liberdade tornaram-se seus princípios basilares.
Os regimes absolutistas estabeleciam que os direitos dos indivíduos eram outorgados por dádiva dos soberanos, em razão do direito divino. O Estado Hobbesiano, o Leviatã, nasce como uma solução para evitar anarquia social: o homem é lobo do homem. Desta forma, o jusnaturalismo aparece com importância fundamental no fornecimento da base jurídica às grandes revoluções burguesas. Antes do Estado, havia um estado de natureza onde havia liberdade e igualdade. Os indivíduos decidem livremente, por contrato social, instituir o Estado, que passa a representar a vontade de todos, assim como bem comum, pela ótica de Rousseau.
Esse ânimo de mudança se deu com o retorno do ideal republicano do mundo clássico. O Renascimento permitiu a construção das bases para o nascimento da moderna cidadania, em pleno século XVIII, enquanto se deflagrava as Revoluções Estadunidense, de 1776, e Francesa, de 1789. A incompatibilidade entre a monarquia absoluta e a cidadania (de inspiração greco-romana e sua liberdade civil), obriga os pensadores modernos a redefinir o que seja sua própria cidadania[32].
Não por acaso, Rousseau idealiza a transferência da soberania para as mãos do povo. O monarca não poderia ser mais confundido com o Estado. No seu contrato social, não há espaço para a democracia indireta, pois a soberania é a vontade geral, que é a vontade do povo, e esta vontade não se representa. Na República Moderna os direitos civis são direitos naturais, razão porque são sagrados e de todos. Uma singela leitura da Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa basta para se constatar os direitos conquistados, como a igualdade e o direito de propriedade, que é pilar também para a economia moderna de mercado.
O embate no processo de repensar o mundo trouxe consequências que nos levam à atual forma de se pensar o Direito Civil, assim como centraliza o debate sobre os direitos políticos ou de quem os possui e os exerce. Analisar a cidadania, neste panorama, é constatar que emerge um traço de diferenciação entre povo e burguesia, agora não mais englobados. Na luta pelos direitos, observa-se aqui que, principalmente os políticos, prevalecem os interesses dos noveau riche (burgueses).
O esforço teórico do iluminismo é facilmente explicado tendo em vista o pensamento político contextualizado, influenciando, como foi dito, as grandes revoluções da época. Não por acaso, a sociedade ideal no Estado liberal demonstra desigualdades sociais doravante abissais. A combalida cidadania da Idade Média adentra a Idade Moderna com uma roupagem nova, mas com o mesmo tecido. Adquirir a cidadania não mais estava fincada na ideia de pertencer à comunidade, como na Grécia antiga, sua concessão significava que o exercício dos direitos “[…] não está ao alcance de todos que os possuem”[33].
Dessa forma, a diferenciação das classes é o elemento formatador da amplitude dessa cidadania, limitando ou não os direitos do cidadão. Esta peculiar situação cidadã, quanto a sua evolução histórica, conduzirá autores do materialismo histórico, pensadores liberais do “século das luzes” e até mesmo pesquisadores atuais à problemática central das limitações que são sua prática no presente.
7 Considerações Finais
Por tudo já explanado, reconhece-se o caráter evolutivo da cidadania, de modo que, a depender da época e da sociedade na qual é estudada, abriga ela traços particulares. Isso, por outro lado, evidencia a importância do presente artigo, uma vez que se incumbe de demonstrar as nuances cidadãs nos mais diversos contextos.
Nesses termos, ao fim do trabalho em tela, pode-se efetivar as seguintes constatações nucleares:
– entende-se, inicialmente, que a gênese da acepção da cidadania, teve início com a civilização hebraica, quando esta concebe um deus, que, através dos profetas, estabelecia limites ao poder estatal e se preocupava com a sorte de seu povo;
– a civilização grega, por sua vez, possibilitou visualizar uma cidadania que estava restrita à ideia de comunidade. O cidadão era tão-somente o membro masculino da comunidade, que, por suas peculiaridades, podia se debruçar sobre as discussões públicas e gerir a polis;
– no que diz respeito à civilização romana, nos moldes aqui visualizados, pode-se afirmar que não estava tão distante da grega em muitos aspectos, pois somente poucos eram entendidos cidadãos, durante quase toda sua existência. A sua importância encontrava-se em seus institutos, que foram resgatados na atualidade, e que, no estágio final da história romana, mostravam-se muito próximos daqueles hoje vigentes;
– durante a Idade Média, observa-se que a cidadania mostra-se muito combalida, para não dizer inexistente. A cidadania medieval só é de fácil visualização quando o feudalismo se vê em decadência e há a formação dos burgos;
– Na Idade Moderna, por fim, ao revés, a cidadania encontra ares mais saudáveis, principalmente com a redescoberta dos conceitos das civilizações clássicas. Nesse período, a cidadania se veste de uma roupagem visivelmente liberal.
No mais, destaca-se que o estudo panorâmico da cidadania, nos mais diversos momentos históricos, efetivado neste artigo, viabilizou a sua compreensão como um aspecto mutante e suscetível ao processo de evolução. Tal realidade diverge de posicionamentos doutrinários equivocados que tendem a limitar a dimensão da cidadania a um valor estático, permanente e objetivo.
Advogado. Escritor. Especialista em Direito do Estado pelo Jus Podivm
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