Consequências previdenciárias do trabalho do marítimo embarcado: o ano marítimo e a aposentadoria especial

Resumo: Em matéria previdenciária a força do princípio tempus regit actum exige que se aplique ao labor a legislação vigente ao tempo da sua prestação houve uma sobreposição entre o regramento específico do ano marítimo vigente até 15.12.1998 e a previsão legal existente até 28.04.1995 de enquadramento da atividade como especial em razão da categoria profissional. Com o crescente aumento dos pedidos de concessão de aposentadoria especial no âmbito do Regime Geral da Previdência Social o resultado tem sido especialmente nas zonas portuárias do país o estabelecimento de controvérsia sobre quando promover o enquadramento do labor como atividade especial por categoria profissional ou o cômputo diferenciado do tempo de serviço do marítimo embarcado via aplicação do ano marítimo. Daí deriva a questão específica atinente à possibilidade ou não de cumulação no caso concreto de ambas as consequências jurídico-previdenciárias previstas para quem laborou no mar.

Sumário: 1. Introdução. 2. O ano marítimo. 3. O enquadramento da categoria profissional dos marítimos como especial. 4. Distinções necessárias. 5. Considerações finais.

1. Introdução

Assim como ocorreu com outras categorias profissionais até o advento da Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998, à categoria dos marítimos embarcados era conferido um regime especial de cômputo de tempo de serviço, ao que se convencionou denominar ano marítimo. Com a referida EC 20/98, sobreveio vedação constitucional a qualquer contagem fictícia de tempo de contribuição, à exceção do trabalho reconhecido como especial e, mais recentemente, dos segurados portadores de deficiência, para os quais, na dicção da atual redação do art. 201, §1º, da Constituição, ainda é legítima a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria.

Ocorre que, não obstante o cômputo privilegiado, para fins previdenciários, de um ano cheio de trabalho a cada 255 dias de labor embarcado, o marítimo, em algumas situações, também era contemplado pela legislação previdenciária com a contagem diferenciada afeta ao tempo especial, na medida em que a atividade vinha elencada como tal nos decretos regulamentadores.

Como, em matéria previdenciária, a força do princípio tempus regit actum exige que se aplique ao labor a legislação vigente ao tempo da sua prestação, houve uma sobreposição entre o regramento específico do ano marítimo, vigente até 15.12.1998, e a previsão legal, existente até 28.04.1995, de enquadramento da atividade como especial em razão da categoria profissional. Com o crescente aumento dos pedidos de concessão de aposentadoria especial no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, o resultado tem sido, especialmente nas zonas portuárias do país, o estabelecimento de controvérsia sobre quando promover o enquadramento do labor como atividade especial por categoria profissional ou o cômputo diferenciado do tempo de serviço do marítimo embarcado via aplicação do ano marítimo. Daí deriva a questão específica atinente à possibilidade ou não de cumulação, no caso concreto, de ambas as consequências jurídico-previdenciárias previstas para quem laborou no mar.

O objetivo deste breve estudo é discutir as possibilidades, os contornos e os limites de enquadramento, como atividade especial, do trabalho do marítimo, diferenciando-o do instituto do ano marítimo, que é, a seu turno, a contagem diferenciada de tempo de serviço em decorrência do trabalho embarcado.

2. O ano marítimo

Até o advento da Emenda Constitucional n.º 20/98, que vedou a contagem fictícia de tempo de serviço, os marítimos embarcados faziam jus a um regime previdenciário diferenciado. Até então, era-lhes concedida contagem proporcionalmente aumentada de tempo de serviço – o chamado ano marítimo -, à razão de 255 dias de embarque para 360 dias de atividade comum. Tratava-se, pois, de um regime especial consistente na contagem privilegiada de cada ano de trabalho.

O ano marítimo foi instituído à época do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos – IAPM, criado pelo Decreto n.º 22.872/33 para abranger os trabalhadores nos “serviços de navegação marítima, fluvial e lacustre, a cargo da União, dos Estados, Municípios e particulares nacionais, bem como os da indústria da pesca”. Seus associados, portanto, eram trabalhadores que serviam a bordo de navios e embarcações nacionais. Assim, o escopo do ano marítimo era, em síntese, proteger ou compensar aqueles que passavam grande parte do ano embarcados, em alto-mar, ou, como já afirmou o Superior Tribunal de Justiça, “com o intuito de minorar o sofrimento dos trabalhadores marítimos, ocasionado pelo confinamento”.[1]

Desde então, a aplicação do regime especial do marítimo embarcado, embora limitada a 1998, se dá na forma prevista no Decreto nº 83.080/79, em seu §1º do art. 54, e, a seguir, nos termos do parágrafo único do art. 57 do Decreto nº 2.172/97, que prevê que “no caso de segurado marítimo, cada 255 dias de embarque em navios nacionais, contados da data do embarque à do desembarque, equivalem a um ano de atividade em terra, obtida essa equivalência pela proporcionalidade de 255 meses de embarque, no mínimo, para 360 meses em terra, no mínimo.”

À vista da sua finalidade, porém, o ano marítimo jamais foi aplicado a todos os trabalhadores do transporte marítimo. Ao contrário: a especificidade da contagem diferenciada do tempo de serviço denota não se estar diante de tempo ficto concedido a todo e qualquer trabalhador aquaviário, mas sim àqueles que se submetiam a longos períodos de afastamento da terra. Em verdade, desde sua criação o instituto já fazia menção às expressões embarque e desembarque, demonstrando a exigência do afastamento prolongado da terra para sua aplicação no caso concreto. Por isso mesmo, para fazer jus a tal cômputo sempre se exigiu a comprovação documental dos efetivos embarques e desembarques havidos em navios mercantes nacionais.

Nessa linha, a navegação de travessia, por exemplo, foi excluída da sua aplicação, assim como a de pequena cabotagem, no apoio portuário, na pesca profissional e no transporte fluvial. A legislação somente previu o regime especial do ano marítimo em se tratando de labor em navios mercantes nacionais, assim entendidas as construções náuticas destinada à navegação de longo curso, apropriadas ao transporte marítimo ou fluvial de carga ou passageiro.

Para fazer jus à contagem proporcionalmente aumentada do tempo de labor, portanto, a legislação exige, a um só tempo, que o trabalhador comprove sua condição de marítimo embarcado e, ainda, que apresente documentação que ateste os embarques e desembarques realizados. Uma vez preenchidos os requisitos, haverá, então, a contagem do tempo de serviço embarcado à razão de 255 dias para 360 dias de serviço.

Em última análise, independentemente do momento em que o segurado implementar os demais requisitos para fazer jus à aposentadoria, os períodos em que trabalhou como marítimo embarcado até 16.12.1998 são computados na forma do ano marítimo, como atualmente dispõe, no plano infralegal, a Instrução Normativa INSS/PRES n.º45/2010, em seus art. 111 a 113.

3. O enquadramento da categoria profissional dos marítimos como especial

O ano marítimo, assim como outras contagens previdenciárias criadas exclusivamente para determinadas categorias profissionais por meio de legislação específica, não constitui espécie de aposentadoria especial. Ainda assim, em alguns casos a categoria profissional beneficiada por um instituto previdenciário específico, resquício dos diversos regramentos dos Institutos de Aposentadorias e Pensões existentes no passado, está também contemplada com seu enquadramento como atividade especial. É o que ocorre com os marítimos.

Com efeito, além de prever, para os marítimos embarcados, o ano marítimo, o Decreto n.º 83.080/79, em seu anexo II, código 2.4.4, também previa o enquadramento, como atividade especial, das atividades de transporte marítimo do foguista e dos trabalhadores em casa de máquinas. No código 2.2.1, outrossim, o Decreto fazia menção à categoria de pescadores como passíveis de enquadramento para fins de aposentadoria especial. Da mesma forma, o Decreto n.º 53.831/64 enquadrava como especial, em seu quadro anexo, os pescadores e marítimos de convés de máquinas, de câmara e de saúde em transporte marítimo, fluvial e lacustre, assim como os operários de construção e reparos navais.

Para esses trabalhadores, portanto, havia um verdadeiro direito de categoria, ou seja, uma presunção legal absoluta de exposição a agentes nocivos, aplicável até o advento da Lei n.º 9.032/95 e que impunha, por si só, fosse considerado o trabalho assim desenvolvido como especial, para fins de jubilação com tempo total de serviço reduzido para vinte e cinco anos.

Esse enquadramento por categoria profissional vigorou até 28.04.1995, quando a Lei n.º 9.032/95 pôs fim ao critério de consideração da atividade como especial tão-somente por categoria profissional. A partir daí, independentemente da profissão ou atividade laborativa exercida, a contagem diferenciada do tempo de serviço se reservou às hipóteses em que efetivamente comprovada a submissão habitual e permanente a agentes nocivos.

Nesse passo, não há, hoje, vedação a que se compute como especial o trabalho do marítimo embarcado, ou mesmo do pescador e atividades análogas. A vedação existente diz tão-só com a utilização do ano marítimo, que foi extinto com a EC n.º 20/98. Para que haja o cômputo diferenciado do tempo de labor, porém, exige-se efetiva comprovação da submissão habitual e permanente a agentes nocivos ao longo da jornada de trabalho.

4. Distinções necessárias

Uma vez diferenciados os institutos jurídico-previdenciários afetos ao marítimo, emerge a possibilidade de uma mesma situação fática preencher os requisitos para a contagem diferenciada do tempo de serviço com base tanto no ano marítimo como no enquadramento por categoria profissional. É o que pode ocorrer, por exemplo, na hipótese de um segurado marítimo embarcado que laborou em tal condição anteriormente à Lei n.º 9.032/95 e à EC n.º 20/98 e, mais que isso, que sempre exerceu o ofício de marítimo de convés de máquinas.

A questão que aqui emerge, portanto, diz com a possibilidade ou não de aplicação simultânea, a um mesmo caso concreto e quanto ao mesmo período de trabaho, do regramento especial da categoria, ou seja, o ano marítimo, e da regra geral afeta ao benefício de aposentadoria especial. Conquanto não haja consenso quanto à matéria, entende-se, aqui, que a contagem diferenciada do tempo de serviço do marítimo embarcado não pode ser sobreposta ao enquadramento da categoria profissional como atividade especial.

Não se olvida que há diversos precedentes dos Tribunais Regionais Federais confundindo ou sobrepondo ambas as situações, já tendo inclusive o Superior Tribunal de Justiça, ainda que em decisão não-unânime, rescindido julgado da Sexta Turma que não havia considerado em duplicidade o tempo de serviço do marítimo.[2]

Demais disso, conquanto a presunção de que o tripulante embarcado contasse um ano de tempo de serviço a cada 255 dias de trabalho embarcado tenha surgido no art. 54, parágrafo primeiro, do Decreto n.º 83.080/79, cujo teor depois foi reproduzido nos Decretos n.º 357/91, 611/92 e 2.172/97, foi somente a partir do Decreto n.º 375/91 que se previu expressamente que “na contagem de tempo de serviço dos marítimos, para efeito de aposentadoria especial, não será efetuada a conversão do tempo de embarque em tempo de atividade em terra”. Antes disso, não havia vedação legal expressa à aludida conversão, para fins de aposentadoria especial, de tempo de serviço já computado de forma ficta por conta do ano marítimo. Por tal razão, há quem conclua pela possibilidade da dupla contagem diferenciada até então.

Entretanto, e a despeito de não haver tal vedação legal expressa anteriormente a 1991, a razão de ser de ambos os institutos permite se conclua pela impossibilidade da sobreposição de contagens reduzidas em favor do marítimo cuja atividade, além de ter sido realizada em alto-mar, esteja também prevista como especial nos anexos dos decretos reguladores. É que não se faz possível a aplicação simultânea de duas leis que tratam sobre assuntos similares, sob pena de o intérprete criar uma terceira regra (lex tertia) e, com isso, transmudar-se em legislador positivo. No caso dos marítimos, as situações, além de autonomamente regulamentadas, nunca se confundiram, razão pela qual também jamais puderam ser sobrepostas.

O ano marítimo, tal como instituído – o que ocorreu anteriormente ao surgimento da aposentadoria especial, que remonta a 1960 -, objetivava justamente reduzir o tempo de serviço necessário para a aposentadoria por tempo de serviço daquela categoria; cuidava-se, pois, de benesse prevista em legislação específica para uma situação fática também restrita e que nunca se confundiu ou teve como fundamento a especialidade do labor. Por sua vez, os trabalhadores cujas atividades estavam expressamente previstas nos anexos dos decretos relativamente ao transporte marítimo gozavam de enquadramento como atividade especial por presunção de nocividade, quer em razão da insalubridade da atividade, quer em razão da sua periculosidade, ou seja, para fins de aposentadoria especial. Por isso mesmo, as atividades aquaviárias previstas como especiais não se limitavam aos marítimos embarcados, englobando inclusive toda a espécie de pescador profissional.

 Veja-se que, em se permitindo a contagem de tempo de serviço do marítimo embarcado, para fins de aposentadoria especial, como de 255 dias, estar-se-ia conferindo a ele tratamento diferenciado em detrimento de outras classes trabalhadoras cujas condições de trabalho são de igual ou ainda maior nocividade para a saúde do trabalhador. Além disso, a legislação que previu a atividade do marítimo como especial conferiu à categoria aposentadoria especial após vinte e cinco anos de trabalho; se utilizado o ano marítimo para contagem desse tempo de trabalho, o que se teria seria a jubilação após pouco mais de dezessete anos de efetivo labor.

Por outro prisma, se o marítimo já possui, até a EC n.º 20/98, forma privilegiada de contagem de tempo de serviço – e o fator de conversão supera 1,4 – seu tempo de aposentadoria por tempo de serviço já foi reduzido por ficção legal. Aplicar a equivalência de 255 dias embarcados para 360 dias em terra de forma concomitante ou sobreposta ao reconhecimento do respectivo caráter especial implicaria valorar duas vezes a mesma circunstância, conferindo à categoria uma dupla benesse, o que não se afigura razoável. Nessa linha, enfim, há diversos precedentes dos Tribunais Regionais Federais: “a contagem proporcionalmente aumentada do segurado marítimo embarcado (Dec. 611/92 e Dec. 2.172/97, art. 57, parágrafo único), não é cumulável com a conversão de atividade especial do segurado obrigatório da previdência social”[3]; “a utilização do ano marítimo de forma concomitante com o cômputo de tempo especial não é possível, uma vez que na hipótese haveria uma dupla contagem de tempo fictício. Entender de forma diversa significaria conferir um tratamento por demais favorável ao marítimo em relação às demais categorias profissionais, o que certamente não corresponde à vontade do legislador”.[4]

5. Considerações finais

Em matéria previdenciária, o princípio tempus regit actum dá ensejo à aplicação de legislação pretérita, ainda que já revogada, por ocasião da análise da pretensão de aposentadoria. É que a valoração de cada período de labor atentará para o regramento vigente ao tempo de seu exercício.

À vista disso, ainda é atual a discussão quanto à forma de cômputo do trabalho do marítimo e à possibilidade de o labor embarcado ser computado de forma proporcionalmente aumentada tanto por força do ano marítimo como em razão de a categoria profissional ser tida como especial pelos decretos regulamentadores. A análise de ambos os institutos afetos ao trabalho dos aquaviários, contudo, sinaliza para a impossibilidade de cumulação, no caso concreto, de ambas as consequências jurídico-previdenciárias previstas para quem laborou no mar.

Em última análise, se, a priori, não há qualquer controvérsia quanto à não-aplicação do ano marítimo para o labor posterior à EC n.º 20/98, que vedou a contagem de tempo ficto, bem assim no tocante à impossibilidade de enquadramento da atividade como especial em razão tão-só da categoria após a Lei n.º 9.032/95, para o período anterior, a despeito da aparente sobreposição das normas, há de se afastar a dupla valoração das mesmas circunstâncias, sob pena de tratamento previdenciário demasiadamente privilegiado a uma só categoria profissional.

 

Notas:
[1] STJ, AR 3.349-PB, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 10/2/2010.
[2] STJ, AR 3349-PB, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Terceira Seção, j. 10.02.2010, Dje 23.03.2010.

[3] TRF4, AC 199971010014895, Des. Federal Néfi Cordeiro, Sexta Turma, 18/12/2002.

[4] TRF5, AC 200883000138446, Des. Federal Manuel Maia, Segunda Turma, 19/08/2010. E ainda: TRF4, AC 2005.72.08.003549-1, Des. Federal Luís Alberto D´Azevedo Aurvalle, 15/06/2011; TRF5, AC 417505, Des. Federal Conv. César Carvalho, 25/05/2008, dentre outros.


Informações Sobre o Autor

Aline Machado Weber

Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS. Especialista em Direito Previdenciário pela PUC-Minas. Procuradora Federal


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