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Código de Menores, ECA e adolescentes em conflito com a lei

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Resumo: Pretendemos  defender  a  hipótese  segundo  a  qual  o  problema  adolescentes  em  conflito  com  a lei na virada do século vinte e um assemelha-se, em vários aspectos, os quais vamos  apresentar neste  artigo, ao problema adolescentes em conflito com a lei na virada do  século vinte. Para testar nossa hipótese, comentaremos o problema adolescentes em conflito com a lei na virada do século vinte, com  base  em  nossa  tese  de  doutoramento e nas fontes  que  utilizamos   para confeccioná-la, e, a seguir, com  base  em  textos  teóricos  e  estudos  de casos, analisaremos o problema   adolescentes em  conflito  com   a   lei  na  virada do  século  vinte  e  um.

Abstract: We intend  to defend  the  hypothesis  that  the  actual  problem  adolescents  in  conflict  with  the  law  is similar with  the same  problem  during  the  start  of  the  past  century. To  test  our   hypothesis, we  will   approach  both   problems with basis in our PhD tesis  and several   studies about   adolescents in conflict with the law of  the  present time.

Palavras-chave: Adolescentes em  conflito  com a  lei. Resiliência. Violência.Identidade.  Representações  Sociais.

Keywords: Adolescents in conflict with the law. Resilience.Violence.Identity.Social Representations.

Sumário: 1.Uma compreensão introdutória. 2.Código de Menores de 1927  e  conservantismo . 3.Cientificismo e política do menor. 4.A PNBEM. 5.A construção do ECA. 6.O ECA e a realidade brasileira, 7. Concluindo

1.UMA COMPREENSÃO INTRODUTÓRIA

Para compreendermos o problema adolescentes em conflito com a lei de nossos dias é interessante compreendermos como esse problema surgiu ao longo da história,  sob outra denominação, a de menores delinquentes, a partir de meados do século XIX, sendo geralmente englobado na categoria social mais ampla de menores abandonados e delinquentes. Categoria esta que ficava sob a ação direta da polícia, que se encarregava de levar para a prisão tanto os menores abandonados quanto os menores delinquentes, visando uma posterior triagem que poderia tornar uns presos à espera de julgamento e outros libertos, de volta às ruas, entregue aos responsáveis, a instituições governamentais (principalmente para internação em escolas militares de aprendizes) e assistenciais (principalmente da Igreja Católica), a empregos no comércio, indústria ou na área rural, a particulares sob o regime de soldada (espécie de adoção sob regime de emprego, geralmente doméstico), além de outros destinos menos cotados.

A quase totalidade desses menores, os abandonados e os delinquentes, era de origem pobre ou miserável, geralmente  oriundos de famílias incursas  em ambientes de marginalidade, nos quais vigoravam os chamados maus costumes, os hábitos "viciosos", enfim o mundo da desordem.Ser menor abandonado era uma espécie de rito de passagem para se chegar a ser um menor delinquente, embora somente uma minoria dos menores abandonados chegasse a delinquir, no sentido de conflitar com a lei. Não obstante haver uma multiplicidade (mendigos,prostitutas, vadios, rufiões,delinquentes de vários tipos,além de  menores abandonados e delinquentes)  entre os fora da ordem, a polícia tinha o frequente costume de levar todos de roldão para a delegacia, onde passavam por uma triagem para terem um destino de acordo com a situação de cada um. Triagem essa que, não raramente, estava condicionada ao subjetivismo das autoridades policiais, ainda mais se considerarmos que àquela época o respeito aos direitos humanos era bem menos protegido do que é atualmente.

Como decorrência do avanço civilizatório modernizador capitalista e do agravamento do problema menores abandonados e delinquentes, surgiu o Código de Menores, sancionado em 1927. O Código se apresentava como sendo uma lei para todos os menores, independentemente de  condições sociais, étnicas e  ideológicas   dos menores e/ou de seus familiares. Não obstante, na prática, seus "clientes" mais frequentes eram os menores de antes: pobres ou miseráveis, com baixa ou nenhuma escolaridade, oriundos de lares e ambientes  imersos no mundo da desordem, negros ou mestiços em sua maioria.  O Código, malgrado com o tempo ter-se tornado anacrônico, era uma lei avançada para a época, no que tange a  proteger e/ou corrigir os menores de idade. Acontece que – aqui chegamos ao âmago do objetivo principal deste texto -, como no caso  do futuro Estatuto da Criança e do Adolescente, não se muda a realidade por decreto, o que implica dizer que o problema menores abandonados e delinquentes atravessou décadas, à revelia do Código de Menores, vindo a transformar-se nos  atuais problemas crianças e adolescentes em risco social e adolescentes em conflito com a lei. Problemas estes         que  suscitaram a necessidade de uma nova lei, representada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que, a despeito de ser bem mais favorável à causa infanto-juvenil do que fora o Código de Menores, também tem sido insuficiente em mitigar substantivamente a triste realidade de grande parte de crianças e adolescentes enquadrados em seus artigos, isto devido principalmente a que, como no período de vigência do Código, a realidade, na qual qualquer  lei se inscreve, não sofreu alterações significativas que viessem  a possibilitar  uma maior aproximação com os preceitos do ECA; é o que procuraremos discutir ao longo deste texto.

2.CÓDIGO DE MENORES DE 1927  E  CONSERVANTISMO

Em nossa tese de doutoramento, em lugar de concentrarmos a nossa atenção no momento em que o problema menores abandonados e delinquentes já estava em desenvolvimento adiantado, decidimos adotar uma metodologia mista baseada na genealogia nietzscheana, para buscarmos chegar à origem desse  problema, e na dialética marxiana, para, ao invés de isolar o problema, colocá-lo em diálogo com outros problemas, tais como a modernização capitalista europeia, a modernização capitalista brasileira, o surgimento  e desenvolvimento da marginalidade no Brasil e os tratamentos (liberalismo e depois também o  cientificismo) que lhe foram aplicados. Para buscar a origem dos chamados menores abandonados e delinquentes, começamos, após termos lido diversas fontes secundárias sobre o tema, a ler  relatórios de autoridades governamentais da área social de então, basicamente  relatórios de ministros da justiça, chefes de polícia e diretores de instituições prisionais, sobretudo as da Corte. Na primeira metade do  século XIX, não encontramos, nesses relatórios, referências a esses menores, mas já apareciam referências a marginais de diversos tipos (mendigos, vadios, ladrões, homicidas…), os quais passaram a ser combatidos rigidamente pela polícia.

Com a vinda da família real e, mais ainda, com os processos de Independência e de construção do Estado nacional, o liberalismo, advindo da Europa e aqui assumindo um perfil conservador (não-libertário) sob a égide dos senhores rurais, passou a atuar, ainda que de maneira incipiente e claudicante, no sentido de impor ao Brasil uma ordem liberal, a qual, no caso dos marginais e criminosos, investiu mais no regime de pena de prisão do que na pena de morte e no desterro, o que também era uma característica do liberalismo europeu, conforme podemos detectar, por exemplo, em Vigiar e punir de Foucault.  

No campo do Direito Penal, o liberalismo se apresentou através da Escola Clássica de  Direito Penal, fundada por Cesare Bonesano, o Marquês de Beccaria, em 1764, quando do lançamento de seu opúsculo Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas). A Escola Clássica iria balizar leis liberais em várias partes do mundo, inclusive a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lançada em 1799 e tornando-se um modelo de normas penais liberais para todo o Ocidente (BARRETO, 1938,p. 74, 78 e 79; ANITUA, 2008,p. 160).

No Brasil, o liberalismo penal, em que pese suas limitações de atuar em um país continental  e estar a  serviço   de uma infraestrutura  escravocrata e agroexportadora, começou, a partir do Estado Joanino e, principalmente, do imediato período constitucional, a intervir sobre a realidade das detenções arbitrárias e situação degradante das instituições prisionais, nas quais os presos passavam fome, eram torturados e habitavam celas fétidas, conforme denúncias encontradas em vários relatórios de ministros da Justiça, como os dos anos 1826, 1828, 1832, 1833 e 1835. Essa realidade continha resquícios de uma regulação orientada pelas draconianas Ordenações do Reino, baseadas no absolutismo português de antes da independência do Brasil. Paulatinamente, as autoridades constituídas passaram a se empenhar em normatizar as detenções e situação das prisões sob os moldes de nosso liberalismo (conservador), o que amainou a realidade anterior, mas ainda longe de se equiparar aos preceitos liberais estipulados pela Constituição, pelo Código Criminal do Império e pelo Código de Processo Penal (MENEZES,2009,p.55-59)

A utilização da estatística nas unidades prisionais, por volta de meados do século XIX, começou a relacionar os presos por crimes cometidos, nacionalidade, naturalidade, sexo e também por idade, entre  outras categorias. Foi então que descobrimos que nessas unidades havia não somente um grande número de adolescentes, mas também um significativo percentual de crianças, a partir de 7 anos de idade, pois o Código Criminal do Império, em seu Artigo 13, previa que poderiam ser presos menores a partir de 14 anos de  idade e até abaixo desta idade, desde que o juiz interpretasse que houve discernimento na prática do delito.

A nossa opção de estudarmos os menores nas unidades prisionais, inclusive no Instituto de Menores Artesãos, criado na Casa de Correção da Corte,  fez-nos conhecê-los melhor, porque os marginais recolhidos nas ruas pela polícia ou citados em livros de visitantes estrangeiros ainda não eram distinguidos pela idade, mas camuflados em uma  função social marginal: mendigo, vadio, ladrão, etc. A seguir, passamos a estudar os menores abandonados e delinquentes em outras instituições de sequestro (Foucault), como Casa dos Expostos e estabelecimentos militares (Arsenal de Marinha, Arsenal de Guerra e Escola de Aprendizes de Marinheiros), que os acolhiam como aprendizes e os tinham relatados em sua documentação.

A partir da década de 1860, os menores abandonados e delinquentes começaram a ter considerável destaque em documentos de autoridades governamentais e em documentos de diversas unidades onde se encontravam internados. Percebemos, então, a presença do ideário liberal sobre esses menores, valorizando-os como futuro da nação, por isso dignos de serem doutrinados em internatos de instituições militares ou não militares (grande parte das quais ligadas a ordens religiosas) para aprender ofícios subalternos (jardineiro, funileiro, pintor, carpinteiro, etc.) e obter uma educação de primeiras letras e religião (catolicismo). Esse ideário liberal valorizava a ocupação desses menores, e dos marginais em geral, com o trabalho, o qual, a despeito de a base social ser escravocrata, passava a ser visto como um grande bem moral. 

Esses internatos, no entanto, estavam longe de atender à demanda crescente de menores abandonados e delinquentes. Demanda essa que aumentava à proporção em que a modernização brasileira se aprofundava, fazendo crescer a densidade populacional e surgir um ambiente cultural marginal (bares, casas de jogos, casas de prostituição, cortiços e habitações similares) (HOLLOWAY, 1997; KOWARICK, 1987; BARRETO FILHO & MELLO, s/d; CHALOUB, 1986; CHALOUB, 1996; ESTEVES, 1989; MENEZES, 1992; MENEZES, 1996). A falta de uma educação pública universalista e a grande desigualdade social eram agravantes a provocar o aumento do número de menores abandonados e delinquentes e torná-los um dos maiores problemas nacionais a partir da década de 1860.  Documentos emitidos por autoridades governamentais, agentes policiais, judiciários e aqueles encarregados de lidar diretamente com menores denunciavam com frequência o quadro que acabamos de esboçar neste parágrafo.

A década de 1870 trouxe para o Brasil, também oriundo da Europa como o liberalismo, o chamado cientificismo, corrente de pensamento decorrente de diversas áreas de saberes que estavam  em efervescência em solo europeu ocidental a partir da segunda metade do século XIX. Entre esses saberes, destacavam-se frenologia, fisionomia, darwinismo, positivismo, spencerismo, craniologia, psicologia, psiquiatria, antropologia, biologia, eugenia, racismo e medicina legal (ALVAREZ, 2003; BADARÓ,1973; CARRARA, 1998; CASTIGLIONE, 1962; DARMON, 1991; FOUCAULT, 2002; CORRÊA, 1998, MARQUES, 1994; NAXARA, 2004; NEDER, 1995; RODRIGUES, 1939; RODRIGUES, 1951; ROMERO, 1969; SCHWARCZ, 2004; SODRÉ, 1965; SOUZA, 1982; STEPAN, 1976; TÓRTIMA, 2002; ZUQUIM, 2001).

A presença das massas nas grandes cidades europeias, que logo seriam vistas como classes perigosas (CHEVALIER, 1984), trouxe grande apreensão às classes dominantes e dirigentes, provocando denúncias e recomendações de repressão preventiva por parte de intelectuais orgânicos da burguesia, ligados direta ou indiretamente ao cientificismo, entre os quais se destacavam Gustave Le Bon, Scipio Sighele, Gabriel Tarde e Gobineau.

O cientificismo, apesar de não ser anticapitalista, pelo contrário, descria da eficácia do liberalismo em prevenir e combater os vícios anticivilizatórios trazidos pelo boom de modernização do século XIX. Em lugar da igualdade de todos perante a lei e da presunção da inocência até prova em contrário, consignas básicas do liberalismo, os cientificistas, em geral, acreditavam que os indivíduos deviam ser distinguidos pelo seu grau civilizatório, que indicava os mais avançados e os mais atrasados no processo de evolução da humanidade.

Do cientificismo, surgiu, no campo do Direito Penal, a Escola Positiva de Direito Penal, fundada por Cesare Lombroso, através da publicação, entre 1871 e 1876, de seu livro L’uomo delinquente. Além de Lombroso, Rafaelli Garofalo e Enrico Ferri apareceriam como próceres intelectuais dessa nova doutrina jurídica.  Ao contrário da Escola Clássica liberal, a Escola Positiva cientificista centrou a sua atenção no criminoso, em detrimento do crime. O criminoso em potencial deveria ser identificado a priori, por suas características biológicas, antropológicas e psicológicas,que o faziam ser um criminoso nato (segundo tese de Lombroso), para ser tratado em regime de internato, desde a mais tenra infância. Essa prevenção cientificista equivalia à  defesa social, tese  nodal da Escola Positiva, que passou a combater enfaticamente a Escola Clássica, ganhando grande influência na Europa e em países da América Latina, inclusive o Brasil, onde contaminou grande parte de nossa intelligentsia, além de policiais e funcionários de instituições de sequestro.

A partir da segunda metade da década de 1870, os cientificistas, especialmente os adeptos da Escola Positiva, passaram  a ter grande presença no trato com os menores abandonados e delinquentes e com os marginais em geral, disputando com os liberais a hegemonia de ordenar a vida social a partir do controle sobre o Estado. Em documentos emitidos por agentes governamentais, policiais, judiciários e de instituições de sequestro começaram a aparecer juízos de valor cientificistas a identificar  menores (e também adultos) como anormais, depravados, tarados, incorrigíveis, além de outros adjetivos estigmatizantes, propugnando para os mesmos a internação compulsória por tempo indeterminado (que poderia ser por toda vida) como forma de tratá-los de seus vícios anticivilizatórios. Paralelamente, além da correção compulsória, que era uma medida de defesa social, havia também a ideia cientificista de proteger os menores abandonados e delinquentes de ambientes e de adultos marginais, salvando-os para uma vida “normal”.

Entre a última década do  século XIX e as três primeiras décadas do século XX, estava em pleno curso uma “campanha” movida por intelectuais engajados na questão dos menores, grande parte dos quais com maior ou menor adesão ao cientificismo, que propugnavam para o Brasil medidas que já haviam sido aplicadas ou recomendadas em “países civilizados”: criação de internatos para cumprimento de  penas de menores infratores (que até então cumpriam pena em prisões de adultos); criação de tribunais específicos para julgar menores infratores, levando em conta o grau de periculosidade dos mesmos, não mais o discernimento; intervenção estatal no pátrio poder com o objetivo de salvar crianças e adolescentes de lares “viciosos”; abolição das figuras jurídicas da soldada (que, não raramente, entregava o menor à guarda de uma pessoa fora da família do menor, que poderia transformá-lo em serviçal ou escravo informal) e do discernimento (que deixava em mãos do juiz a interpretação se o menor agiu ou não com consciência de cometer o delito); entre outras. Essas medidas estavam expressas em discursos (entrevistas, livros, artigos, etc.) e em projetos-de-lei, alguns dos quais redundariam em leis, culminando com o Código de Menores, promulgado em 1927, que trazia em seus artigos uma forte  presença do cientificismo, mormente o representado pela Escola Positiva de Direito Penal.

Por fim, é interessante declinar os nomes dos mais destacados engajados na questão dos menores, que atuaram em defesa das medidas supracitadas e tiveram influência, direta ou indireta, na  confecção de projetos de leis e leis que comporiam o Código de Menores:  Lopes Trovão, Moncorvo Filho,  Lemos de Brito, Evaristo de Moraes, Alfredo Pinto, Franco Vaz, Mello Mattos, Alfredo Balthazar da Silveira, Astolpho Rezende , Noé Azevedo, Cândido da Motta, Elysio de Carvalho, Esmeraldino Bandeira, Athaulpho de Paiva  e Alcindo Guanabara. 

O Código de Menores  de  1927  foi  produto de uma época  em que o Brasil, a despeito de ter abolido a escravidão e a monarquia, ainda  permanecia  imerso em uma cultura de  autoritarismo  liderada  pela  classe  senhorial  rural com fortes  traços de  patriarcalismo. Em uma   cultura dessa  natureza, na  qual  o liberalismo  ainda era débil, apesar  de  ser  a   referência-matriz  de  nossa  Constituição, tornava-se   praticamente  inviável que  uma  lei  referente  especificamente  a menores de  idade  os norteasse  como  indivíduos  portadores de direitos liberais, mesmo porque grande parte da população, sobretudo no campo, encontrava-se  sob  o domínio  majoritário do  senhoriato  rural  e  seu  conservantismo. Se no  espaço  público a criança e o adolescente estavam longe de serem reconhecidos em termos de direitos liberais; no espaço privado, embora o Código de Menores  previsse  drásticas  intervenções  no  pátrio  poder, em casos  de  abandonos  moral e/ou material, eles  continuavam, o que iria ser mitigado ao longo do século XX, como objeto da criação dos pais, sobretudo da  criação paterna.

Com o desenvolvimento do capitalismo, da sociedade industrial, o mercado  foi-se  ampliando sucessivamente  a ponto de  penetrar em uma instituição das mais impermeáveis  e preservadas da esfera privada: a família tradicional ou patriarcal, a qual passava a mesma formação, os mesmos valores, de geração a geração, com o fito de resguardar a moral do mundo da ordem, evitando, assim, que seus membros, de três  a quatro gerações, sofressem desvios em direção ao fim  previamente  traçado  pelo patriarca . O capitalismo atingiu essa família gigantesca, fazendo grande parte de seus membros evadirem para o mercado em busca de  melhores condições  de vida  material do que  se  permanecessem  sob  a guarda  patriarcal, o que fez  surgir  a  família  nuclear  ou  família burguesa, constituída de pai, mãe e filhos, todos submetidos  à  lógica  do  mercado, por  isso  mais  passíveis do  que  antes de  se  desestruturarem  e se desviarem do mundo da  ordem.

“Durante séculos, cada geração transmitiu à seguinte um patrimônio não somente material, mas também moral. Todos tinham o culto das qualidades familiares, da honra  e responsabilidades. Do mesmo modo que uma terra, uma carga de mercadorias ou um móvel eram transmitidos os valores ligados a estas  coisas: o gosto pelo trabalho, pela  economia, o senso do dever, o amor à ordem e à perfeição. Atualmente, não há mais um  planejamento que passa de geração a geração: os pais deixam seus filhos se adaptarem a um futuro imprevisível (…) Os interesses atuais são alimentados e aparentemente satisfeitos pela mídia, o cinema e a televisão (…) Os interesses são avivados, mas satisfeitos de uma forma superficial” (PARROT & GUENEAU,1959,p.193-194).

Comentando Agnès Heller, Maria de Lourdes Trassi apresenta  argumentação semelhante a  que acabamos  de  expor:

“Ao discutir a questão do poder moral nos tempos atuais, Agnès Heller aponta que a família na sociedade moderna  não consegue  manter por muito tempo seu poder moral independente sobre seus membros. A família de três gerações desapareceu e agora a família celular está  em decomposição. A tradicional divisão socioeconômica de trabalho entre sexos não se sustenta mais e todos nascem livres e iguais e falta pouco para isto de fato ocorrer” (TRASSI,2006,p235).

 Na escola, que  podemos  reconhecer  como  uma  extensão  do  lar  e  uma  porta de entrada na esfera pública, o professor (geralmente a professora primária) assumia a função de normatizar a criança  segundo  a  cultura/moral  vigente.  Para as crianças que  escapassem  à  persuasão  da mestra  ou  do  mestre,  havia  a aplicação de métodos corretivos que datavam do período pré-republicano, entre os  quais  se  destacava  a  famosa  palmatória. Se  nos  situarmos  na  evolução  moral  do  Ocidente e especificamente do Brasil, lembrar-nos-emos que somente  a  partir  de  fins  da  década  de  1960, tendo  o  maio francês como epicentro e paradigma, passou a haver  uma  liberação, podemos  falar  até  em  revolução, tanto  na  esfera  pública quanto na esfera privada, dos jovens e das crianças da  rígida  moral  que  os  subalternizava  e  os  oprimia. Muitos fatores  atuaram  nesse  sentido, podemos destacar  alguns, como duas guerras  mundiais, a depressão de  29, o boom  de desenvolvimento tecnológico (avião, rádio, cinema, televisão…), a conquista da hegemonia da cidade sobre o campo, o surgimento e desenvolvimento da indústria cultural  e a chamada revolução sexual, que atingiu diretamente a família conservadora, que era uma das principais, senão a principal, fonte protetora/corretiva da criança, e até do adolescente. “É de pequeno que se torce o pepino”, dizia uma máxima popular que bem expressava o tipo de proposta  tida por escorreita de educação  a ser aplicada no  lar  e  na  escola  para  que  o  mundo  não  se  encarregasse  de “educar” os filhos digressos. Esses fatores que concorreram para a liberação da criança e do adolescente também concorreram  para  a  liberação  da  mulher,  dos  homossexuais  e  para o desenvolvimento dos movimentos de negros e de bairros, contribuindo para a diluição da cultura conservadora dominante e para a descentralização do macropoder concentrado no  Estado (sobretudo a nível federal), nos sindicatos (de patrões e empregados) e em partidos políticos. No Brasil, forças conservadoras e progressistas digladiaram durante todo o século XX, em meio a duas ditaduras e algumas tentativas de golpe de Estado, resultando no período democrático liberal  pós-regime militar e  sua  Carta, ainda  mais  liberal  do  que  a  de  1946.  Há que se levar em conta também, além da força do conservantismo, o grande poder da desigualdade social em produzir  nichos de  pobreza, miséria e marginalidade, contribuindo, não determinando, a que muitos, entre os quais crianças e adolescentes, entrem em conflito com a lei. É dentro desse contexto que acabamos de esboçar que se movimentou e continua a se movimentar a questão das crianças e adolescentes. Daí que o Código de Menores não pode ser liberal  quando  de sua promulgação e a sua sobrevida  prolongada (até 1990,quando foi revogado pelo ECA)  foi  resultado  da prolongada sobrevida da hegemonia conservadora na cultura brasileira.

3.CIENTIFICISMO E POLÍTICA DO MENOR

O Código de Menores surgiu em um momento de conflito entre liberalismo e cientificismo, quando a  primeira  doutrina, ainda  de  baixa  capacidade de se instrumentalizar através de instituições (justiça, polícia, educação, saúde, cultura, lazer…) de caráter liberal, não dava conta de enfrentar, de imediato, graves  problemas de insalubridade, marginalidade e  criminalidade  que  atentavam  contra  a  ordem  civilizatória, que trouxe consigo um grande grau de desordem, também civilizatória. O cientificismo apresentou argumentos e instrumentos mais convincentes e eficazes  para  combater  a  desordem, razão  pela  qual   levou   vantagem   não   só  na esterilização de cidades, epidemias e  insalubridades, mas   também  de  marginais, entre os quais os menores abandonados e delinquentes, que, para seu controle e proteção, ganharam o Código de Menores de 1927, que  tinha  como  pressuposto  (cientificista)  a  identificação   prévia do que  era  ser  abandonado  e  do que era ser delinquente. Em suma, abandonados e delinquentes, na prática, eram quase sempre as crianças e adolescentes não-brancas, de lares pobres, ou sem lar, frequentadores de ambientes tidos como marginais, de baixa ou sem escolaridade… os atrasados civilizatoriamente, os não-aptos a conviverem no mundo da ordem, no mundo civilizado, os “anormais”. Estes traços anticivilizatórios estavam introjetados não somente nos agentes da lei encarregados de lidar com os menores, mas também em grande parte do senso comum e da intelectualidade.

A prática saneadora  decorrente  do cientificismo  imposto  ao  Código de Menores  era  intervir  previamente  na  realidade  para  recolher os menores em  desacordo com a lei, objetivando selecioná-los para destinos diversos, sendo a prática de internação uma das mais contumazes para o efeito de civilizar o incivilizado. Para aperfeiçoar essa prática a nível nacional, principalmente para isto, surgiu, em 1941, não por acaso em pleno regime ditatorial, o SAM- Serviço de Assistência aos Menores, “funcionando como um equivalente do sistema penitenciário para a população infanto-juvenil” (CRUZ NETO et al.,2001: p.61)

O  projeto desenvolvimentista dos anos JK, vindo na esteira da modernização industrializadora  promovida  pela  Era Vargas, conduziu o Brasil a um grande salto em termos de desenvolvimento econômico e tecnológico; no entanto; tratava-se de um desenvolvimento concentrador de  riquezas, que trouxe um incremento de densidade populacional para as cidades mais desenvolvidas, sobretudo as do sudeste, acometidas de seguidos êxodos rurais que sobrecarregavam a capacidade urbana de atender a essa demanda excedente em  termos de serviços públicos (saúde, educação, saneamento básico…), empregos e moradias, levando muitas famílias a não terem outra opção senão ocupar áreas sem estrutura habitacional adequada, como as favelas, que se desenvolviam em extensão, desordem urbanística, número de habitantes e marginalidade/criminalidade. Todo esse quadro estrutural atingia diretamente a questão do menor, que, desde sua origem, em meados do século XIX, esteve associada, em grande parte, à desigualdade social, que persistia como um problema crônico.

No plano ideológico, a política do menor  seguia  tendo  considerável  porção  do  viés  cientificista de indigitar o menor como alguém fora da ordem, portanto  merecedor  de correção, já  que  ainda não  se  aventava  a lógica  de  que a correção deveria passar  por  responsabilizar o Estado em garantir para todas as crianças e  adolescentes, independentemente de condição social ou étnica, os três lotes (cívico, político e social) de direitos básicos indicados por Marshall  como componentes da cidadania liberal. A lógica continuava a ser responsabilizar o menor por sua “culpa” de  se  encontrar  marginalizado, concedendo-lhe  a  correção  como  forma  de  seu adestramento social. Era tal lógica que norteava, de modo geral, os processos corretivos, eivados por um cientificismo de caráter lombrosiano  (BATISTA, 2003). Também continuava o papel hegemônico do Estado (centralizador, mesmo no período da chamada República de 46) em dirigir a política do menor.

4.A PNBEM

Em 1964, o regime militar revogou o SAM  e  criou  a  PNBEM – Política Nacional do Bem-Estar do Menor para o seu lugar, reconhecendo  o fracasso até então de se assistir os chamados  menores  abandonados  e  corrigir  os  chamados  menores infratores. O governo  reconhecia que  a  causa  principal  desse  fracasso  residia  no  fato  de  que  a  maior  parte  desses  menores  estava  incursa nos seguintes  pontos  comuns que lhes vitimavam: “situação de pobreza; quebra de valores e de comportamento cultural;alto índice de natalidade; atividade marginalizada; alto índice de alcoolismo;alto índice de violência e criminalidade; alimentação deficiente ;promiscuidade habitacional; e mendicância”(apud RIZZINI,1995,p.303). A PNBEM  propunha  romper, ou  pelo menos mitigar o mais que pudesse, a política anterior do SAM, baseada na internação de menores como uma das principais medidas corretivas. Sem acabar com a internação, a PNBEM estabeleceu, como medida preventiva privilegiada, a reinserção de menores abandonados em sua família, o que apresentou grandes dificuldades por que essa   família, e não apenas o menor, encontrava-se, geralmente, vitimada pela desigualdade social e por  problemas  sociopsicológicos  dela decorrentes. Para agravar a  situação, a  PNBEM  era  produto  de  um   regime  autoritário e  a  FUNABEM – Fundação Nacional de  Bem-Estar  do  Menor, encarregada  de  operacionalizá-la  a nível nacional, além das FEBEMs – Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, operadoras a níveis estaduais, havia herdado não só a estrutura físico-burocrática do SAM  como também a maioria de seus funcionários e métodos corretivos.

O resultado foi o aviltamento da questão do menor  na  proporção direta do fracasso do modelo econômico do regime militar, que acentuou a desigualdade social,  fazendo  recrudescer  a  marginalidade e, por conseguinte, a criminalidade, aumentando o exército dos chamados menores  abandonados e menores infratores.Esse era o retrato de  diversas regiões metropolitanas  brasileiras e o retrato revelado  por  uma  pesquisa dedicada  a  estudar  os  menores  no então  estado  da  Guanabara  durante  a  década  de 1960 (MISSE et al.,1973). Por essa época também foi realizada uma pesquisa  semelhante  relativa à cidade de São Paulo (CEBRAP, 1972) que também constatou a ligação da desigualdade social com a questão do menor.

A   denominada CPI do Menor, instalada pela Câmara dos Deputados, em 1976, ratificou que a realidade do menor estava, em linhas gerais, condicionada pelo alto índice de desigualdade social, além de criticar a ineficiência da  PNBEM. Três anos depois, o governo federal criaria o novo Código de Menores  que  reconhecia  os menores abandonados e os menores infratores  como  estando  em  situação  irregular  pela  sua condição  de  marginalizados.  Tal reconhecimento  não  provocou  mudanças  substantivas sobre a política do menor, pelo simples fato de que o status quo social persistia aprofundando a marginalidade.

5.A CONSTRUÇÃO DO ECA

Por essa época, segunda metade da  década de 1970, a  ditadura  chegava  a  seu esgotamento, não somente pelo fracasso de  sua  política  econômica  e  social, mas  também  por  pressão  da  população e de segmentos organizados (OAB, ABI, Igreja, sindicatos de trabalhadores…) da sociedade civil (Gramsci), e até por pressão de governos (especialmente a política de direitos humanos do governo Carter) e de organizações não-governamentais  internacionais. Os segmentos organizados da  sociedade  civil  foram  ocupando  espaços  na  esfera pública  e,  em  referência  à  política  do  menor, essas ocupações resultaram, em três importantes movimentos sociais, entre  outros: Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua, Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e o Fórum-DCA (Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente).

A Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança, congregando os “mais diversos setores sociais, categorias profissionais e convicções filosóficas, políticas e religiosas”, reuniu-se em Brasília, entre 21 e 25 de outubro de 1986, para realizar o IV  Congresso O Menor na  Realidade    Nacional, no qual foi proclamada a Carta à Nação Brasileira, endereçada a  toda  a  nação  e,  em particular  ao  Congresso  Constituinte  que  estava  elaborando  a  nova  Constituição. Nessa Carta, era  reivindicado   que   a  Constituinte  incorporasse  na   nova Constituição os princípios da Declaração Universal  dos  Direitos  da  Criança,  aprovada  em  20 de  novembro de  1959, pela Assembléia   Geral das Nações Unidas, com a participação signatária do Brasil. Princípios  esses, é de bom alvitre sublinhar, de caráter liberal. Também   se   reivindicava  para  as  crianças  e  adolescentes  a  garantia  do  direito  a  uma cidadania liberal completa em suas etapas civil, política e social, que lhes assegurasse “o acesso às políticas sociais básicas de educação, saúde, alimentação, habitação, transporte. lazer e cultura – e, na idade e em condições convenientes, também de trabalho”. Para crianças e adolescentes com deficiências físicas ou mentais, bem   como  em  situação  de  risco  social  (“abandono,  negligências,  infração  penal  e outras”), propugnava-se o atendimento por meio de “programas especiais de assistência e proteção”.  Reconhecendo que a política referente às crianças e adolescentes estava diretamente ligada    à   macropolítica institucional, a Carta defendia uma “ampla reforma democrática do Estado Brasileiro”, a legitimação de movimentos e entidades da sociedade civil engajados na defesa dos direitos da criança e do adolescente, além de   uma descentralização dessa defesa, priorizando os municípios e, dentro destes, a família, a escola e a comunidade local (apud Instituto Brasileiro de Pedagogia Social,1990, p.27-29).

Em 1987, foi criada, por  entidades da sociedade civil, a emenda popular “Criança – Prioridade Nacional”, que seria   apresentada aos constituintes pelo Fórum-DCA, formado no primeiro semestre de 1988, para   fazer parte da Constituição. Essa emenda representava um consenso entre os defensores da   causa   infanto-juvenil, consagrando os  pontos  básicos da Carta da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança que vimos há pouco, que seriam sintetizados nos Artigos 203, 204, 227 e 228 da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988. Pelo caput do Artigo 227  da Constituição federal fica evidenciado que a nova política em relação a crianças e adolescentes tem como base a doutrina de proteção integral, garantidora de direitos (liberais), em substituição à doutrina de situação irregular do novo  Código de Menores (1979), a qual contribuía    para    identificar  o menor    pela   sua  condição social   marginalizada.   Esse   caput   determina   que:

“É dever da família, da   sociedade  e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O Artigo 228 garante inimputabilidade aos menores de dezoito anos de idade, “estando os mesmos sujeitos às normas da legislação especial”, que seria o futuro ECA, e os artigos 203 e 204 tratam de assistência social, com partes referentes a crianças e adolescentes, bem como à descentralização operacional. O Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionado pelo presidente da República, Fernando Collor de Mello, através da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, teve como  referência  básica  esses quatro artigos da Constituição. Complementando o Artigo 228 da Constituição, no que se  refere  a  atos  criminosos  ou  contravencionais  praticados  por   adolescentes, o ECA proibi  o cumprimento de  penas e estabelece o cumprimento de  medidas socioeducativas de advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional, além de outras medidas que visem  ao acompanhamento do infrator na família, escola, comunidade, serviços de saúde, etc. A medida   de  internação  é  aquela  que  coloca  o  infrator sob  custódia  do  Estado, privando-o de liberdade total ou parcial. Essa medida somente  pode  ser   aplicada   pelo   juiz   em  caso   de  infração  cometida  por  meio  de  grave  ameaça  ou  violência  à   pessoa  e  no  caso  de  reincidência  de  ato  infracional  grave.  Não   há  previsão de  tempo  para  internação,  contudo,  a permanência  do  jovem  nesse  estabelecimento  não  pode  ultrapassar  o prazo de três anos, devendo  ser  a  mesma avaliada  a  cada semestre. A libertação será compulsória aos vinte e um anos de idade.

6.O ECA E A REALIDADE BRASILEIRA

Se  no  plano  superestrutural  os  avanços em  favor  do  ECA  são  inegáveis, em comparação com o Código de Menores ; no plano infraestrutural, os avanços ainda estão bem   aquém   de  proporcionar  para  as  crianças  e  adolescentes  os  direitos  contemplados na lei. É fato que o Brasil tem alcançado destaque no plano internacional, tornando-se  a  sexta  economia mundial, além de, no plano interno, ter conseguido reduzir o enorme fosso de desigualdade social, porém continuando bastante atrasado nesse sentido, o que o coloca como o 84º IDH  do  mundo,  uma  diferença  de  quatorze  vezes  em  relação  à  sua  posição  de  sexta  economia  do  mundo. As ofertas de vagas na educação, do ensino fundamental ao ensino superior, vêm aumentando significativamente, principalmente a partir da década de 1990. No entanto, a qualidade do ensino público, nos  níveis fundamental e médio, além de do ensino privado no nível superior, tem estado em queda constante. A opção governamental de privilegiar investimentos no ensino de nível superior, em detrimento dos níveis fundamental e médio nas escolas públicas, tem trazido  grande  prejuízo  à  formação  intelectual, moral e cidadã de milhões de crianças e adolescentes, sobretudo as oriundas de famílias pobres, que compõem o maior  percentual  de  usuários da educação pública. Além disso, grande parte da grade curricular  do ensino médio  tem suas  disciplinas   voltadas para a formação profissionalizante, com vistas à ocupação de funções  subalternas  e de  baixa  remuneração, em  detrimento  de  uma  formação  humanista ou clássica  que  possibilite  o despertar  e  desenvolvimento  de  uma  consciência  crítica  visando fortalecer o seu papel de cidadão e lhe preparar  para ingressar em uma  faculdade competitiva (geralmente disponível em uma universidade pública) que lhe abra mais possibilidades de se desenvolver dentro da  carreira escolhida. O ensino superior, que era dirigido a formar intelectuais, tem-se dirigido, principalmente a partir da década de 1990, quando se consagrou o neoliberalismo no Brasil, para uma formação mercadológica, “não-pensante”, sobretudo no caso de grande parte  das universidades, centros universitários e faculdades particulares, diminuindo em muito a qualidade do ensino e debilitando a  possibilidade  de  se  desenvolver  uma  consciência  crítica.   É importante ressaltar que muitos dos adultos egressos de  uma  formação  mercadológica  e  alienadora lidam e lidarão com crianças e  adolescentes, na   qualidade de professores, jornalistas, juízes, promotores, defensores, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos…   

A  oferta de cultura/lazer (música, teatro, cinema, televisão, internet, etc.) é muito maior e mais variada atualmente do que há cem, cinquenta, trinta anos, inclusive permitindo que um número cada vez maior de pessoas participem de atividades culturais e de lazer perto de seu local de moradia, através de diversos projetos governamentais e não-governamentais, atuando como sujeito de suas próprias criações, o que é algo bastante salutar, principalmente para a formação de crianças e adolescentes. Todavia, sem queremos fazer juízo de valor, houve, no  período  dos  últimos  cem  anos, grande aumento de manifestações artísticas e culturais de natureza alienadora, mercadológica e, em alguns casos, incitadoras de comportamentos não-solidários,  não-fraternais, para  não  dizermos violentos e desrespeitosos aos direitos humanos consagrados internacionalmente, quanto na Constituição e no ECA.

Essa digressão  para  tratarmos  de  educação  e cultura/lazer  deve-se  ao  fato  de  que  o ECA  tem  estes bens,  assim como integridade física, esportes, saúde/alimentação, profissionalização, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária , na qualidade de objetos de direitos que devem ser garantidos para todas as crianças e adolescentes. Entretanto, os direitos, no campo do liberalismo, apesar de  serem  produzidos  para   todos equitativamente, são distribuídos  pelo mercado, que limita a oferta de acordo com a capacidade  econômica  de quem  os  vai  utilizar. Assim,  na  prática,  as   crianças  e   adolescentes, bem   como  os    adultos, vão fazer  uso de seus direitos com  uma qualidade e quantidade de bens diretamente proporcional ao seu poder aquisitivo, com exceção de bens ofertados gratuitamente por organizações governamentais e não-governamentais. Os bens educação, cultura, lazer e saúde, por exemplo, têm seus valores (monetários) medidos pelo mercado. Uma criança (ou adolescente) que estuda em escola pública e é usuária de saúde pública tem mais chances de obter bens de menor  qualidade do que se estudasse  em  uma  escola  privada mediana e fosse usuária de saúde privada. O que  faz uma criança (ou adolescente) ser destinada à escola ou saúde pública ou privada é, geralmente, a sua maior  oumenor   capacidade   de   comprar   os bens educação e saúde distribuídos pelo mercado, ocorrendo o mesmo em relação a outros bens, como cultura, lazer, esportes e alimentação. Como  nenhum  ser  humano  se  forma  isoladamente, mas interagindo com outros seres humanos, através de grupos de sociabilidade  reais  e  virtuais (TV, cinema, internet…), a formação de cada um está diretamente   ligada  às  condições  materiais  de  renda/salário  de  sua família. De  modo  que, o  ECA, apesar  de  representar  uma  significativa revolução  a  nível  superestrutural, depende   que  seja  realizada  revolução  equivalente, ou  no  mínimo uma reforma substantiva, a  nível infraestrutural, para que  sejam efetivados  os  direitos  garantidos  por  essa  lei. Enquanto  continuar a grande defasagem entre a lei  e  a  realidade  à  qual  a  lei  se   aplica, as  crianças  e  adolescentes  mais  pobres,  não-brancas, com  baixa  escolaridade, usuários de escola e saúde públicas, além de cultura não propiciadora  à  formação  de  consciência crítica, e com poucas opções de lazer e esportes, continuarão a estar, em desvantagem, em geral, com chances mais elevadas de serem vítimas de abandono, mortalidade infantil e  violência  no   lar e fora dele, como  atesta um relatório do governo federal (BRASIL,2006,p.48-52).

No caso específico de adolescentes em conflito com a lei, diversos estudos   apontam  uma  relação direta  entre  pobreza, etnia, cultura alienadora e educação deficitária com    atos criminosos  e contravencionais (ANCED/FORUM DCA,2004; GALLO & WILLIAMS,2005). Uma pesquisa realizada   em   2002 consigna  que  dos   9.555   adolescentes   cumprindo   medida  socioeducativa (MSE)  de  internação e internação   provisória,  portanto   praticantes   de   atos   infracionais   graves, 90%   eram   do   sexo masculino, 63% não-brancos (dentre estes, 97%  afrodescendentes), 51%   não frequentavam a  escola, 90%   não acabaram o ensino fundamental  e  49%    não estavam ocupados com nenhuma atividade de trabalho destinada a adolescentes (apud ZAMORA,2008).

Parte da literatura indica que o tratamento  da  polícia  a  adolescentes  pobres e, por conseguinte, moradores de áreas pobres, além de frequentadores de atividades culturais destinadas, geralmente,  a  pobres, como o funk, é   diferente   do   tratamento   dirigido   a adolescentes não-pobres, a despeito de   o   ECA  ser  uma  lei  voltada  igualitariamente  a  todas  as  crianças e adolescentes, independentemente de condição social e etnia. Abramovay  et  al., em  pesquisa  desenvolvida  na  periferia  de Brasília, verificaram abordagens vexatórias e agressivas de policiais a jovens de ambos os sexos, além  de representações sociais em que ambos os lados tomam o oponente como inimigo através de falas preconceituosas e estigmatizadoras,  pelas quais policiais acusam os jovens de malandros, bandidos, piranhas, safadas, putas, enquanto estes os acusam de não respeitar os direitos humanos, forjar flagrantes, etc. (ABRAMOVAY et al.,2004). Alguns outros estudos também indicam representações semelhantes, tanto de parte de adolescentes quanto de parte de agentes da lei (BATISTA,2003;NERI,2009; COUTINHO et al.,2011).

Esses fatores negativos para o desenvolvimento de crianças e adolescentes são considerados por alguns estudiosos (PARROT &GUENEAU,1959,p.17-31 e 191-219; BARTOL& BARTOL,2009; GALO & WILLIAMS,2005) como fatores de risco, enquanto que o contrário são denominados fatores de proteção. C. Bartol e A. Bartol elencam como fatores de risco os extrafamiliares (comportamentos antissociais, rejeição, escolas inadequadas, comunidades violentas, pobreza, entre outros), familiares (falhas na educação,problemas psicopatológicos, maus tratos a crianças), psicobiológicos e problemas de  saúde física. Quanto aos fatores protetivos, eles os definem, genericamente, como sendo “todas as experiências e influências cognitivas, sociais ou emocionais que servem para moderar, mitigar ou isolar fatores de risco” (BARTOL.& BARTOL,2009,p.23 e 78).

Sartório & Rosa, analisando discursos em processos de Varas da Infância e Juventude de duas cidades brasileiras, detectaram que a  vulnerabilidade social é o maior fator de  risco para adolescentes em conflito com a lei , considerando que, “ainda hoje, com a vigência do Ecriad, no sistema socioeducativo, encontram-s e os adolescentes em situação de maior vulnerabilidade social” (2010,p. 3). Sistema socioeducativo   esse   ao   qual  elas  tecem  críticas  pelo  fato de  o  mesmo ser ineficiente em conseguir “propiciar um acompanhamento sistemático e contínuo para  os adolescentes sob sua guarda (Ibid.:9).  Baquero et al. (2011) verificaram em sua pesquisa que a presença de um projeto de vida por parte de adolescentes atua como um fator protetivo, enquanto a ausência  atua em sentido contrário. Também Costa & Assis consideram, através de estudos de literaturas nacional e internacional, que “a ausência de um projeto d e vida pessoal relaciona-se à vulnerabilidade dos adolescentes diante do mundo” (2006,p.6), sendo, portanto, um significativo fator de risco.

Segundo o ECA (Art. 124), instituições para cumprimento de MSEs, as quais podemos classificar como instituições de sequestro ,  devem  garantir aos  adolescentes  os seguintes direitos, entre outros: “ser tratado com respeito e dignidade”,“habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade”, “receber escolarização e profissionalização” e “realizar atividades culturais, esportivas   e de lazer”.  Essas instituições, em tese e até de fato, levam considerável vantagem sobre suas congêneres da virada do século XX    em  termos  de  ressocializar  adolescentes, não obstante   estudos  venham  demonstrando  que  tais instituições, em grande parte, têm apresentado graves deficiências em cumprir sua função. Em algumas delas, encontramos situações semelhantes às encontradas naquelas da  virada do século XX, guardadas as devidas proporções, dando conta   de  altos   índices   de   reincidência  de  infrações, em   torno de 40 a 50% (NERI, 2009,p.74-79), improficuidade na aplicação de medidas socioeducativas (BRASIL,2002; COSTA & ASSIS,2008;BAQUERO et al., 2011;OLIVEIRA & ASSIS,1999) e até casos de agressão verbal e/ou física por parte de agentes de disciplina ou entre adolescentes (OLIVEIRA & ASSIS,1999). Também há  casos, como  em  relação  aos  menores  abandonados e delinquentes da  virada  do século  XX,  de juízos  de  valor   proferidos  por  agentes  da  lei (agentes  de  disciplina, técnicos, promotores e até juízes) que  estigmatizam  o adolescente  como  sendo propenso à criminalidade, irrecuperável, entre outros epitetos (BATISTA,2003;SILVA,2010).

7. CONCLUINDO

Concluimos este texto com a impressão de  que o problema social envolvendo crianças e adolescentes em risco social e adolescentes em conflito com a lei segue em um estado de extrema gravidade, tanto, ou quase tanto, quanto na época anterior à vigência do Estatuto da Criança e do adolescente. As razões para tal gravidade, como tentamos problematizar, estão na continuidade (embora amenizada a partir da década de 1990) do alto nível de desigualdade social que marca a sociedade brasileira, na influência perniciosa da indústria cultural em forjar valores e comportamentos baseados no individualismo possessivo, na deficiência escolar (sobretudo em se tratando de escola pública de ensino básico) em não educar os alunos para o fortalecimento de uma consciência crítica diante do mundo em que estão inseridos, além de fornecer-lhes uma educação de baixa qualidade em termos de disciplinas curriculares, e na deficiência, não menos grave do que a escolar, dos dispositivos estatais em educar os adolescentes cumpridores de medidas socioeducativas. Finalmente, a razão provavelmente de maior gravidade, por estar na raiz do problema, é a incapacidade de muitas famílias em educar suas crianças e adolescentes de modo a prevenir que elas entrem em situação de risco social, o que contribui de forma bastante acentuada para que sejam futuros agentes de conflitos com a lei. Tal incapacidade decorre do fato de essas famílias estarem acometidas de alguns dos males (ou até todos) que acometem seus filhos – males que acabamos de descrever nesta conclusão – e não contarem com apoio suficiente de organizações governamentais e/ou não-governamentais que lhes deem subsídios suficientes para desenvolverem uma consciência critica e uma condição material capazes de proteger a si a seus filhos.

Não atacando essas fontes principais de fatores de risco, de modo a fazerem serem vencidos por fatores protetivos, a tendência é que os problemas crianças e adolescentes em risco social e adolescentes em conflito com a lei prossigam no mesmo diapasão de então ou até venham a se agravar, a despeito da vigência de uma  lei bem qualificada do ponto de vista protetivo/corretivo e da diligência de uma multiplicidade de projetos, organizações e agentes bem intencionados – nem todos – em mitigar ambos os problemas.

 

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Informações Sobre o Autor

Vinicius Bandera

Pós-doutorando em História Social (USP). Doutor em Sociologia (UFRJ). Mestre em Ciência Política (UNICAMP).


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Equipe Âmbito Jurídico

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