Flora Volcato da Costa*
Resumo: Este artigo debate sobre a complexidade de aplicação dos direitos fundamentais na prática quando do confronto entre eles, especificamente fazendo-se uma abordagem entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. Este fenômeno é chamado pela doutrina de colisão de direitos fundamentais. Primeiramente, é realizado um breve relato histórico dos direitos fundamentais e seu surgimento nas Constituições, verificando-se que o reconhecimento dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e os da personalidade, pela inauguração nas Constituições do Brasil, se deu somente em 1824 e 1988, respectivamente. Conceituados os referidos direitos fundamentais, denota-se que o direito à liberdade de expressão é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Quanto aos direitos da personalidade, são essenciais e inerentes à toda pessoa humana, possuindo dupla proteção no ordenamento jurídico. Assim, por fazerem parte do rol dos direitos fundamentais, nenhum deles é absoluto e possuem a mesma hierarquia. Havendo um choque entre eles na prática, ocorre o fenômeno da colisão, pelo que a doutrina e jurisprudência majoritárias entendem por aplicar o instituto da ponderação para a solução do referido conflito. O objetivo do trabalhado foi atingido, visto que encontrou uma solução para o fenômeno da colisão de direitos fundamentais, garantindo sua efetividade.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Liberdade de expressão. Direitos da personalidade. Colisão. Ponderação.
Abstract: The article discusses about the complexity of applying fundamental rights in practice when confronting them, specifically taking an approach between freedom of expression and personality rights. This phenomenon is called by the doctrine of collision of fundamental rights. Firstly, a brief historical account of the fundamental rights and its emergence in the Brazilian Constitutions is made, verifying that the recognition of the freedom of expression and personality fundamental rights took place only in 1824 and 1988, respectively. Once the aforementioned fundamental rights are conceptualized, it is noted that the right to freedom of expression is one of the pillars of the Democratic State of Law. Concerning personality rights, they are essentials and inherent to every person, having double protection in the legal system. Thereby, because they are part of the list of fundamental rights, none of them is absolute or has the same hierarchy. If there is a conflict between them in practice, the collision phenomenon occurs, whereby the majority doctrine and jurisprudence understand to apply the weighting institute in order to solve the referred conflict. The objective of the work was achieved, since it found a solution to the phenomenon of the collision of fundamental rights, guaranteeing its effectiveness.
Keywords: Fundamental Rights. Freedom of expression. Personality Rights. Collision. Weighting.
Sumário: Introdução. 1. Breve Relato Histórico do Surgimento dos Direitos Fundamentais. 2. Liberdade de Expressão. 3. Direitos da Personalidade. 4. O Fenômeno da Colisão entre os Direitos Fundamentais da Liberdade de Expressão e os da Personalidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho visa demonstrar a complexidade de aplicação dos direitos fundamentais na prática quando do confronto entre eles, especificamente fazendo-se uma abordagem entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. Deste modo, será trabalhada a chamada, pela doutrina, colisão de direitos fundamentais.
Conforme a doutrina, existem dois tipos de confronto: a colisão entre os próprios direitos fundamentais e a colisão entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais. Neste artigo será trabalhado tão-somente um tipo, qual seja, a colisão entre os próprios direitos fundamentais. Direcionado o tipo de fenômeno a ser discutido, o trabalho tratará especificamente a colisão de dois direitos fundamentais, o direito à liberdade de expressão em face dos direitos da personalidade.
O tema proposto neste artigo científico tem em vista trazer à tona questões importantes acerca da aplicação dos direitos fundamentais e o respeito à eles na prática por todos, de forma geral. O assunto, de certa forma, é delicado, em razão de que afeta a sociedade, como um todo, inclusive figuras políticas e de imprensa, que a todo instante incorrem na violação destes direitos na prática.
A metodologia utilizada quanto a forma de apresentação do problema foi a qualitativa, tendo em vista a interpretação dos dados coletados na doutrina e jurisprudência para a realização do trabalho. A respeito dos objetivos, foi aplicada a pesquisa descritiva pela análise e descrição das informações, dados e elementos coletados para o estudo. Por fim, no que concerne aos procedimentos técnicos, foram empregados a pesquisa bibliográfica, em virtude da consulta a livros e artigos científicos, e o estudo de caso, limitando-se o trabalho à análise de dois tipos de direitos fundamentais específicos na doutrina e jurisprudência.
Na primeira seção do desenvolvimento deste artigo será apresentado um breve relato histórico dos direitos fundamentais e seu surgimento nas Constituições, em que será visto que o reconhecimento deles principia no século XVIII.
As próximas duas seções irão trazer o conceito de cada um dos direitos fundamentais aqui discutidos, para se ter uma melhor base de compreensão no momento em que haver a colisão entre eles quando de sua aplicação na prática.
Em relação à terceira seção, consistirá numa abordagem doutrinária e jurisprudencial acerca do fenômeno da colisão destes direitos fundamentais e as possibilidades existentes de solucionar estes conflitos na prática.
Ao final do trabalho, o objetivo é tentar encontrar uma solução mais adequada, justa, legal e constitucional para a resolução de cada caso em específico, em que gere uma consequência positiva aos envolvidos e que tenham seus direitos fundamentais garantidos.
Inicialmente, oportuno apresentar um pouco da história dos direitos fundamentais, o seu surgimento nas Constituições, para, após, ser analisado o conceito dos direitos fundamentais aqui abordados.
O reconhecimento dos direitos fundamentais se deu a partir do século XVIII, e sua consagração quando do surgimento das primeiras Constituições. Aqui principia as gerações dos direitos fundamentais, tendo em vista que iniciou-se as transformações desses direitos a partir de novas necessidades básicas os quais estão conectados, como a evolução do Estado Liberal para o moderno Estado de Direito (Estado Social e Democrático de Direito), e, ainda, pelas alterações originadas do processo de industrialização e seus reflexos, pelo impacto tecnológico e científico, dentre outros fatores (SARLET, 2005, p. 43).
Deste modo, o reconhecimento dos direitos fundamentais se deu a partir da consagração das primeiras Constituições, sendo foi primeiramente admitido como direito constitucional positivo dos direitos fundamentais.
As primeiras concepções desses direitos fundamentais surgiram a partir do pensamento jus naturalista, em que o ser humano apenas existindo já é possuidor de alguns direitos naturais e inalienáveis inerentes à ele, chamada esta fase de pré-história dos direitos fundamentais (SARLET, 2005, p. 44).
No século XVII, os autores H. Grócio, John Milton e Thomas Hobbes, em suas obras, elaboraram os conceitos de direitos naturais inalienáveis do homem e da submissão da autoridade aos ditames do direito natural (SARLET, 2005, p. 46).
Não obstante, cumpre referir que, na Inglaterra, a Magna Charta de 1215 representou uma conquista histórica no campo das garantias básicas de liberdade e segurança pessoal. Com a substituição do Estado estamental pelo Estado absoluto, quando o rei atingia a posição de soberano sobre todos, surgiram discussões em torno da legitimidade do poder, possibilitando a criação de condições materiais para o surgimento dos direitos fundamentais. Em que pese ainda houvesse limitações em seu conteúdo, “a Magna Carta até hoje é considerada um símbolo de avanço legislativo no mundo ocidental”[1].
Assim sendo, o principal estudo encontrado acerca da evolução dos direitos humanos foi na Inglaterra da Idade Média, precisamente no século XVIII, conhecido como Magna Charta Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo Rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses. Este pacto serviu como ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, como por exemplo, o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade (SARLET, 2005, p. 48).
No entanto, as primeiras linhas traçadas dos direitos individuais foram no século XVIII, com as Revoluções Francesas e Americanas, em que a 1º Declaração foi a de Virgínia, de 1776. Logo após sobreveio a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (PINHO, 2001, p. 63-64).
Estas declarações marcaram a transição dos direitos de liberdade legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais. Segundo Sarlet (2005, p. 50), foi a “primeira vez que os direitos naturais do homem foram acolhidos e positivados como direitos fundamentais constitucionais”.
Forçoso referir que “este status constitucional da fundamentalidade em sentido formal” foi “definitivamente consagrado somente a partir da incorporação de uma declaração de direitos à Constituição em 1791” (SARLET, 2005, p. 51).
A partir do seu reconhecimento sobredito nas primeiras Constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas mutações, inicialmente observados nesta seção. Importante se trazer uma breve linha histórica dos direitos fundamentais, para uma melhor compreensão destes direitos no mundo jurídico.
Nesta linha, Bobbio[2] esclarece que:
“Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”
Por fim, em relação aos direitos fundamentais abordados neste trabalho, importante apontar brevemente o seu surgimento especificamente no Brasil. O direito à liberdade de expressão foi inaugurado timidamente pela primeira vez na Constituição Política do Império do Brasil de 1824, entre idas e vindas nas próximas Constituições, e os direitos da personalidade somente foram reconhecidos e consagrados na nossa atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Portanto, passada esta breve linha histórica dos direitos fundamentais, serão introduzidos neste momento, mais especificadamente, os conceitos dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e os da personalidade.
Nesta seção, será traçado o conceito de liberdade de expressão trabalhado pela doutrina e jurisprudência do Brasil, com a finalidade de melhor compreendê-lo para, após, se utilizar das ferramentas de aplicação na prática.
“A liberdade de expressão constitui uma das características das atuais sociedade democráticas” e “deduz-se da liberdade de manifestação do pensamento”, como bem alude Farias (1996, p. 128).
A liberdade de expressão é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e está consagrada nos artigos 5 e 220 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nos seguintes termos:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Em análise dos artigos supracitados, Farias (1996, p. 131) aponta que:
“(…) a liberdade de expressão e informação é atualmente entendida como um direito subjetivo fundamental assegurado a todo cidadão, consistindo na faculdade de manifestar livremente o próprio pensamento, ideias e opiniões através da palavra, escrito, imagem ou qualquer outro meio de difusão, bem como no direito de comunicar ou receber informação verdadeira, sem impedimentos ou discriminações.”
Nesta linha, “a liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades”[3].
Deste modo, este direito fundamental tem como base a liberdade do indivíduo de se manifestar de forma privada ou pública, buscando, recebendo e propagando informações e ideais, através de qualquer meio de comunicação. No entanto, esta garantia constitucional não é absoluta e vai até o momento em que possa atingir o direito de outrem.
No que se refere à prestação de informações, por exemplo, o direito de noticiar fatos está condicionado à verdade da informação, como um limitador da liberdade de expressão. Este critério, por conseguinte, não exige que o indivíduo que publicou a notícia prove a verdade das informações, sendo-lhe somente proibida a disseminação de fatos notoriamente inverídicos.
Portanto, de acordo com essa perspectiva, Mendes[4] observa que “o texto constitucional parece deixar claro que a liberdade de expressão não foi concebida como direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo”.
Neste sentido, a jurisprudência se manifesta no sentido de que “o direito à liberdade de expressão não é absoluto, não pode seu exercício ultrapassar a barreira fixada por outras garantias constitucionais, sob pena de legitimar as irresponsabilidades de afirmação.”[5]
Em continuidade, a Ministra Maria Isabel Gallotti do Superior Tribunal de Justiça, manifestando-se em um julgado[6], afirma que:
“Em certas situações, de forma implícita ou explícita, a Constituição permite que o legislador, o Judiciário e o Executivo estabeleçam restrições ao exercício daquela liberdade, valorizando a prevalência dos direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem.”
No final da referida manifestação, a Ministra assevera que “conclui-se, portanto, que a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem, caracterizam-se como limites externos à liberdade de imprensa”.
Assim sendo, resta clarificado que o direito à liberdade de expressão se encontra enraizado na sociedade democrática e é um dos direitos fundamentais mais importantes do Estado Democrático de Direito, porém, como visto, não significa que tenha algum tipo de posição hierárquica superior em frente aos demais.
Os direitos da personalidade estão consagrados no artigo 5º, inciso X da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[7], quais sejam: a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.
Registra-se que estes direitos possuem duplo caráter, em virtude de que são direitos fundamentais com proteção especial no ordenamento jurídico pela Carta Magna, e direitos da personalidade, essenciais e inerentes à pessoa humana, com proteção pela legislação infraconstitucional (Código Civil).
Para Farias (1996, p. 109), o direito à honra possui duas características essenciais, a de que seu fundamento advém do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo um atributo inerente a qualquer pessoa, e a de que o conteúdo reporta-se a honra objetiva (reputação da pessoa na consideração dos outros) e subjetiva (sentimento da pessoa sobre sua própria dignidade moral).
O direito à imagem remete tanto aos atributos físicos da pessoa quanto aos atributos de sua personalidade, sendo um direito autônomo, porquanto difere dos outros direitos da personalidade, em virtude de que é disponível.
A pessoa pode autorizar o uso de sua imagem, mediante contrato de concessão de uso, por exemplo, o que nada impede de se ter também aqui uma violação à este direito. Porquanto, além da falta de autorização de uso pela pessoa, também há a extrapolação desta licença, utilizando-a para fins diversos daqueles evidentemente permitidos.
Além disso, oportuno salientar que a imagem de uma pessoa prolonga-se para além de sua vida, como bem preconiza o parágrafo único do artigo 20 do Código Civil[8].
O direito à vida privada é subjetivo e está intimamente ligado ao direito à intimidade, como também aos direitos fundamentais da inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, previstos no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal[9].
Nesta linha, Stoffel (2000, p. 26-27) conceitua o direito à intimidade:
“O direito à intimidade visa proteger o indivíduo dos riscos oriundos da pressão social, em determinadas situações, para que o indivíduo seja deixado em sossego, como exigência moral, constituindo um direito de inibir a indiscrição alheia sobre sua privacidade.”
Deste modo, os direitos da personalidade fazem parte do rol dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, assim como o direito à liberdade de expressão, logo, nenhum deles é absoluto e possuem a mesma hierarquia dentre os direitos fundamentais.
Corroborando o entendimento de que eles não são absolutos e que seus limites estão delimitados uns pelos outros, segue manifestação do Superior Tribunal de Justiça[10]:
“A partir de uma interpretação sistemática e sob a perspectiva do princípio da unidade da Constituição, infere-se que a liberdade de informação jornalística não detém caráter absoluto, de modo a ser mitigada nas hipóteses previstas no artigo 5º e incisos ali enumerados, isto é, em se tratando de direitos e garantias relacionadas aos direitos de personalidade.”
Ainda, salutar mencionar que, uma vez violados os direitos da personalidade, resta configurado o ato ilícito, como bem preconiza o artigo 186 do Código Civil, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Na esfera constitucional, nesta mesma lógica, é assegurado o direito de indenização por dano material, moral ou à imagem quando violado um dos direitos da personalidade, insculpido no inciso V da Carta Magna[11].
Destarte, os direitos da personalidade são consagrados como direitos fundamentais, assim como o direito à liberdade de expressão, e, por terem a mesma hierarquia, não se sobrepõem à nenhum direito fundamental. Todavia, os direitos da personalidade, como verificado acima, são limitadores ao direito à liberdade de expressão.
Inicialmente, oportuno transcrever as palavras de Farias (1996, p. 93) sobre os direitos fundamentais e quando eles se colidem:
“Os direitos fundamentais são direitos heterogêneos, como evidencia a tipologia enunciada. Por outro lado, o conteúdo dos direitos fundamentais é, muitas vezes, aberto e variável, apenas revelado no caso concreto e nas relações dos direitos entre si ou nas relações destes com outros valores constitucionais (ou seja, posições jurídicas subjetivas fundamentais prima facie). Resulta, então, que é frequente, na prática, o choque de direitos fundamentais ou choque destes com outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente.”
Portanto, em singela síntese, ocorrerá o fenômeno da colisão de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental chocar-se com o exercício de outro (FARIAS, 1996, p. 93).
A Constituição já prevê em alguns casos a solução dos conflitos entre os direitos fundamentais quando da outorga ao legislador, por meio de lei, da possibilidade de restrição destes direitos.
Um exemplo bem marcante na Constituição Federal consta no artigo 9º, parágrafo 1º, o qual dispõe que é assegurado o direito de greve. Contudo, a lei é que vai definir os serviços ou atividades essenciais e o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade quando do evento do exercício da greve, no intuito de não infringir qualquer outro direito fundamental, tal como o direito à manutenção da saúde, dentre outros.
No entanto, “tratando-se de colisão entre direitos fundamentais não sujeitos à reserva de lei, a solução fica por conta dos juízes ou tribunais” (FARIAS, 1996, p. 95).
A exemplo do supramencionado, no julgamento de um recurso pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[12], assim se manifestaram os magistrados:
“Em se tratando de colisão de direitos fundamentais – liberdade de expressão / imprensa x direito à imagem, à honra e à privacidade – não há solução normativa prévia sobre qual dos direitos deve prevalecer. A solução do conflito passa pela ponderação dos interesses legítimos, à luz das particularidades do caso concreto, já que nosso ordenamento constitucional não hierarquiza, abstratamente, os diversos direitos fundamentais passíveis de conflito. Deve-se buscar, portanto, a solução que preserve, no caso concreto, o máximo possível do núcleo essencial dos direitos fundamentais em colisão.”
Assim, pertinente registrar que
“Pondera-se que se pode incorrer em uma “tirania do valor” ao se pretender estabelecer em abstrato uma hierarquia, independente do caso concreto, pois se deve partir de uma igualdade abstrata de valores e apenas diante das circunstâncias específicas do fato em exame escolher qual valor deve ter, na hipótese, maior peso diante dos perigos advindos aos valores em jogo, dada a situação concreta.”[13]
Neste sentido, os direitos fundamentais, atualmente, não podem ser entendidos unicamente sob a ótica individual, uma vez que figuram em um sistema de diversos valores e princípios inaugurados na mesma hierarquia constitucional, em razão do princípio da unidade da Constituição.
À luz desta compreensão, resta comprovada a necessidade de aplicação do instituto da ponderação no caso de colisão entre os direitos fundamentais na prática e que seja de acordo com cada caso em concreto.
Por conseguinte, nesta linha de raciocínio, tempestivo trazer à baila entendimento firmado num julgado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul[14]:
“Anote-se que a decisão sobre qual direito fundamental prevalecerá não possui viés subjetivo, isto é, não decorre do simples entendimento adotado pelo juízo. É imprescindível que tal decisão possua relação intrínseca com os elementos objetivos dos autos. Em outras palavras, há um juízo de valoração, porém deverá ser proferido em total vinculação aos fatos/provas do caso concreto.”
Na visão de Júnior[15], “a ponderação se apresenta, portanto, como um instrumento idôneo a resolver um jogo entre princípios que em abstrato podem conviver, mas que são potencialmente contraditórios, como é exemplo, a liberdade de expressão e a proteção à honra, a serem devidamente sopesados em cada caso”.
O Supremo Tribunal Federal, reforçando a ideia de aplicação do instituto da ponderação no caso de choque entre direitos fundamentais e reconhecendo que os mesmos não são absolutos, assim se manifestou[16]:
“A colisão de direitos fundamentais deve ser resolvida pela ponderação dos valores constitucionais em conflito, prevalecendo aquele que se mostra mais suscetível a um perigo de lesão. A liberdade de manifestação de pensamento, não obstante seja um dos pilares da democracia, deve ser relativizada quando em confronto com outros direitos fundamentais, mormente aqueles de caráter personalíssimo, considerados invioláveis pela Constituição (art. 5º, inciso XI).”
Logo, com a análise da doutrina e jurisprudência, denota-se que a liberdade de expressão é direito constitucional fundamental do Estado Democrático de Direito, porém este direito vai até atingir o direito de outrem. Por exemplo, a pessoa tem o direito de se manifestar nas redes sociais como bem entender, porém, no momento que atinge pelo menos um dos direitos da personalidade de alguém, seja pessoa anônima ou figura conhecida, o seu direito se esbarra no direito daquela pessoa, advindo o fenômeno da colisão de direitos fundamentais.
Para além das relações privadas, imperioso citar também o exemplo de veiculação de informações em jornais e de matérias jornalísticas, em virtude de que, nos dias atuais, são os maiores exemplos de ocorrência de extrapolação dos limites do direito à liberdade de expressão e informação.
Existem muitas notícias circulando pelo mundo que trazem matérias falsas, chamadas popularmente de fake news, ou que apresentam conteúdo sem fundamentação legal e etc., e que acabam por ferir os direitos da personalidade de alguém.
Em se tratando de um direito fundamental que não é absoluto, as pessoas que veiculam informações e matérias jornalísticas tem o dever de se ater aos limites impostos ao direito fundamental de liberdade de expressão e informação, como visto acima.
Assim, em que pese o direito à liberdade de expressão seja um dos pilares do Estado Democrático de Direito, ele não pode ultrapassar as barreiras de outros direitos fundamentais, tais como os da personalidade, sendo estes verdadeiramente limites externos daqueles.
Deste modo, havendo a colisão de direitos fundamentais, pela análise da doutrina e jurisprudência majoritária, conclui-se que a chave para a resolução mais eficaz deste conflito é a utilização do instituto da ponderação.
Entretanto, faz-se necessário empregar a ponderação em caráter de exceção pelos julgadores, tendo em vista a limitação que o direito à liberdade de expressão sofre pelos direitos da personalidade, como sobredito.
Conclusão
O surgimento dos direitos fundamentais e a sua consagração nas Constituições remonta à séculos atrás, especificamente no século XVIII, todavia, o reconhecimento dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e os da personalidade, através da sua inauguração nas Constituições do Brasil, se deu somente em 1824 e 1988, respectivamente.
De tal modo, em que pese serem notadamente direitos novos para a sociedade brasileira, a sua efetividade e aplicabilidade já encontra-se enraizado na prática pelos doutrinadores e juristas de todas as esferas.
Como visto, o direto à liberdade de expressão é um direito subjetivo fundamental assegurado a todo cidadão e um dos pilares do Estado Democrático de Direito, porque, resumidamente, se traduz na liberdade de manifestação do pensamento.
Abrindo-se um pouco o conceito deste direito fundamental, trata-se da liberdade do indivíduo de se manifestar, levando à público às suas opiniões, pensamentos e ideias, através de qualquer meio de divulgação. Ainda, consiste no direito de prestar ou receber informações verdadeiras, sem impedimentos ou discriminações.
Já em relação aos direitos fundamentais da personalidade, consistem num conjunto de direitos essenciais e inerentes à pessoa humana: intimidade, vida privada, honra e imagem. Por sua vez, todos estão intimamente ligados entre si e, uma vez violados, configura-se ato ilícito, nos termos do Código Civil, bem como, por decorrência, gera direito à indenização por dano moral, material ou à imagem, segundo previsão na Constituição Federal.
Estes direitos fazem parte do rol dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, além de possuírem proteção pela legislação infraconstitucional, pois se encontram previstos em um capítulo específico do Código Civil.
Assim sendo, ambos os direitos fundamentais da personalidade e da liberdade de expressão fazem parte do rol dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, consequentemente, nenhum deles é absoluto e possuem a mesma hierarquia dentre os direitos fundamentais.
Entretanto, o direito de uma pessoa vai até atingir o direito de outrem, assim, é um dever à toda a pessoa humana se ater aos direitos fundamentais como um todo, no momento em que difundir a sua manifestação, opinião, pensamento, veicular notícias e informações.
Ocorre que na prática não funciona desta maneira, em virtude de que se vê a todo instante a transgressão de dois ou mais direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e informação frente aos direitos da personalidade. Este tipo de violação é chamada, pela doutrina, do fenômeno da colisão de direitos fundamentais.
Em outras palavras, pode-se dizer que ocorre a colisão de direitos fundamentais na prática quando o exercício de um direito fundamental abalroar com o exercício de outro direito fundamental.
Importante destacar que a Constituição Federal prevê em alguns casos a solução dos conflitos entre os direitos fundamentais quando da outorga ao legislador, por meio de lei, da possibilidade de restrição destes direitos. À título de exemplo foi citado o direito de greve, com determinação para a lei definir os seus parâmetros, com a finalidade de não infringir qualquer outro direito fundamental na ocasião em que advir o exercício dele.
Contudo, no momento em que a Constituição não prevê uma hipótese de resolução para a colisão de diretos fundamentais, esta fica ao encargo dos julgadores. Assim, consoante visto neste trabalho, entende a doutrina e jurisprudência pela aplicação do instituto da ponderação dos princípios e direitos conforme o caso em concreto, em virtude de que o nosso ordenamento jurídico constitucional não faz uma hierarquia entre os direitos fundamentais.
Isto posto, com a análise da doutrina e jurisprudência, possibilitou-se verificar e confirmar que os direitos fundamentais não são absolutos, não possuem hierarquia, nem preferências, e que não há uma normativa expressa para a solução de conflitos quando da ocorrência de choque entre o direito à liberdade de expressão e os da personalidade.
Em verdade, foi apurado no desenvolvimento que, tanto a doutrina quanto a jurisprudência majoritárias, entendem por certo aplicar o instituto da ponderação dos princípios e direitos para cada caso em concreto, para se chegar na melhor conclusão possível, garantindo-se, assim, a aplicabilidade e efetividade dos direitos fundamentais na prática de forma justa, legal e constitucional.
Conclui-se, finalmente, que o objetivo do trabalhado foi atingido, tendo em vista que encontrou a melhor solução possível para resolver uma colisão de direitos fundamentais, qual seja, aplicando-se o instituto da ponderação.
Para tanto, deverá ser realizada uma análise em cada caso dos fatos em concretos, de forma imparcial pelos julgadores, ponderando todos os princípios e direitos envolvidos na situação, como uma forma de garantir a efetividade dos direitos fundamentais e resolver a lide da forma mais justa e legal para ambas as partes.
Todavia, de suma importância destacar novamente que os direitos da personalidade são reais limitadores externos do direito à liberdade de expressão.
Assim, no momento de resolução do conflito pelo julgador, deve-se levar em consideração essa importante limitação da liberdade de expressão, utilizando-se o instituto da ponderação em caráter de exceção. Caso contrário, os direitos da personalidade estar-se-iam sendo violados a todo instante, como se vê atualmente, pelo que esta é a linha de pensamento adotada neste artigo.
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TJ-MS – APL: 08026148120188120008 MS 0802614-81.2018.8.12.0008, Relator: Des. Luiz Tadeu Barbosa Silva, Data de Julgamento: 20/03/2019, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 22/03/2019.
TJ-RS – AC: 70078781523 RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Data de Julgamento: 27/02/2019, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: 01/03/2019.
[1] FERNANDES, Claudio. Magna Carta de 1215. Disponível em: <https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/magna-carta-1215.htm>. Acesso em: 25/03/2020.
[2] BOBBIO, Norberto, 1992, apud SIQUEIRA, Dirceu Pereira; PICCIRILLO, Miguel Belinati. Direitos fundamentais: a evolução histórica dos direitos humanos, um longo caminho. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/direitos-fundamentais-a-evolucao-historica-dos-direitos-humanos-um-longo-caminho/>. Acesso em 25/03/2020.
[3] STF – TP Rcl: 31315 SP – São Paulo, 0075474-58.2018.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 08/08/2018, Data de Publicação: DJe-162 10/08/2018.
[4] MENDES, Gilmar. Liberdade de expressão e Direitos de Personalidade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-16/direito-civil-atual-liberdade-expressao-direitos-personalidade. Acesso em: 05/03/2020.
[5] TJ-MS – APL: 08026148120188120008 MS 0802614-81.2018.8.12.0008, Relator: Des. Luiz Tadeu Barbosa Silva, Data de Julgamento: 20/03/2019, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 22/03/2019.
[6] STJ – REsp: 1675307 MG 2017/0127452-0, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 04/10/2017.
[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[8] Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
[9] XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
[10] STJ – REsp: 1407907 SC 2013/0327526-0, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 02/06/2015, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/06/2015.
[11] V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
[12] TJ-RS – AC: 70078781523 RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Data de Julgamento: 27/02/2019, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: 01/03/2019.
[13] JÚNIOR, Miguel Reale. Limites à liberdade de expressão. Revista Espaço Jurídico. v. 11, p. 374-401, maio 2011. Disponível em: http://primo-pmtna01.hosted.exlibrisgroup.com/PUC01:PUC01:TN_doaj_soai_doaj_org_article_41e5bea0bb42475e9d20ff69c81a1bd5. Acesso em: 25/03/2020.
[14] TJ-MS – APL: 08026148120188120008 MS 0802614-81.2018.8.12.0008, Relator: Des. Luiz Tadeu Barbosa Silva, Data de Julgamento: 20/03/2019, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 22/03/2019.
[15] JÚNIOR, Miguel Reale. Limites à liberdade de expressão. Revista Espaço Jurídico. v. 11, p. 374-401, maio 2011. Disponível em: http://primo-pmtna01.hosted.exlibrisgroup.com/PUC01:PUC01:TN_doaj_soai_doaj_org_article_41e5bea0bb42475e9d20ff69c81a1bd5. Acesso em: 25/03/2020.
[16] STF – ARE: 1081119 DF – DISTRITO FEDERAL 0073436-95.2015.8.07.0001, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 06/10/2017, Data de Publicação: DJe-236 17/10/2017.
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