São vistos no Brasil, corriqueiramente, anúncios de combate à pirataria. Basta o aluguel de um filme ou a ida a um cinema para se constatar o agora afirmado. Dentre as principais questões sensacionalmente combatidas está aquela que afirma ser a pirataria ligada ao crime organizado, não se abrindo qualquer exceção para tanto.
Uma das mais elucidativas propagandas é a de um vendedor ambulante que oferece o troco em “balas” ao comprador de um DVD contrafeito (“pirateado”). Ao abrir suas mãos, vê-se que as “balas” são projéteis de armas. Encerra-se o enunciado: “o dinheiro que circula na pirataria é o mesmo que circula no crime organizado”.
Já em outro comercial é usada uma criança com seu olhar inocente, assustada ao começar a ver o DVD pirata comprado pela mãe. Nele aparecem alguns criminosos agradecendo os compradores do disco por terem os ajudado na aquisição do armamento ilegal. “Comprar DVD pirata é patrocinar o crime”, são as palavras finais do anúncio. O olhar da criança é de medo, o meu de indignação.
Com palavras também sensacionalistas já posso afirmar: boa parte dos apaixonados por cinema já descobriu, em algum pacato dia, que participa do crime organizado.
Sabido é que na criminalidade econômica em âmbito global se encontram entranhadas as atividades de contrafação de produtos. Segundo dados da Interpol, trazidos pelo Conselho Nacional de Combate à Pirataria, essa atividade envolve um lucro de quinhentos bilhões de dólares por ano, mais que o tráfico de drogas internacional, independentemente de esse lucro ser ou não consequência da própria criminalização.
Misha Glenny (McMáfia: o crime organizado sem fronteiras), Moisés Naím (Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global) e até mesmo Roberto Saviano (Gomorra) trazem dados, fatos e experiências que comprovam a relação das diversas “criminalidades” em âmbito global. Assim, é possível entender que se queira enfrentar tais problemas. Mas devemos enfrentá-los com que armas? A da mentira, hipocrisia ou com a totalmente carregada de ideologias?
A forma como foram feitos os comerciais evidencia um interesse econômico das grandes gravadoras de CD’s e DVD’s e, também, do governo na arrecadação de impostos. Mentiram (ou manipularam, como quiserem) ao se opinar de forma tão generalizada.
A ideia que se passa é: 1) quem compra um disco por R$5,00 (três por R$10,00) com certeza compraria o original por R$15,00, R$25,00, R$45,00 ou R$125,00; 2) todo vendedor ambulante colabora com o crime organizado (e também quem está comprando). A ideia que não se vê é a seguinte: 1) o argumento de que “quem compra o ‘pirata’ compraria o original” tem sua fundamentação baseada no achismo (lembre-se de quanto vale o salário mínimo); 2) em forma de pergunta: o vendedor ambulante que faz desse meio o sustento de sua família (um gravador de discos é comprado em qualquer loja) tem que tipo de relação com a compra de armamentos pesados?
Penso que um artigo do psicólogo Alvino Augusto de Sá (GDUCC – Grupo de Diálogo Universidade, Cárcere, Sociedade: uma experiência que está dando certo), respeitadas as suas peculiaridades, pode ser aqui utilizado. Baseia-se o autor naquilo que o marxismo chama de “estado de alienação”, transportando tal pensamento para o campo criminológico: a alienação faz crer ser a marginalização social do criminoso uma consequência de sua conduta ilegal, quando na verdade, em grande maioria dos casos, a aderência à vida criminosa é consequência da sua (anterior ou primeira) condição de exclusão e marginalização.
Ao serem assistidos os comerciais percebe-se o agora aludido pelo psicólogo: “eles são do mal, nós somos do bem”, como se não tivéssemos qualquer responsabilidade pela situação em que “eles” se encontram. A escolha dos atores revela mais claramente isso. A mãe e a filha que começam a assistir o filme são lindas, pessoas de bem (ou seria ainda “de bens”?). O rapaz que compra tem a cara de bom moço. Já os vendedores… Não são “de bens”, quase todos pardos ou negros, “malandros” que devem ser excluídos.
Ressalta-se que não se duvida da boa intenção de tais comerciais. Que não se duvida estarem eles de acordo com a ideologia predominante e que por isso “deve-se” fazer tal combate. A apreensão dos produtos pirateados feita de forma constante me parece, contudo, uma saída mais proporcional e adequada para o fim que se almeja. Se o intuito do autor da contrafação é o lucro e, sendo seu produto apreendido constantemente, não trará aquela atividade mais benefício para si. Dessa forma, não haveria mais motivos para piratear. Entre isso e levar um sujeito ao cárcere por causa da venda de uns discos – que provavelmente ocorreu porque não lhe foram asseguradas condições mínimas de vida – há um caminho de princípios penais básicos que não devem ser desconsiderados em nome de quaisquer interesses econômicos.
Tomemos muito cuidado para não nos tornarmos também alienados.
Advogado criminalista e Professor de Direito Penal em São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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