Resumo: O presente artigo versa sobre o Círculo de Viena a corrente do neopositivismo, expressa no mundo jurídico por Hans Kelsen. A abordagem aponta as principais características dessa corrente e ilustra seus objetivos de forma didática e sintética. Ao final, contempla-se um pensamento conclusivo sobre o tema, fiel ao próprio pensamento neo-positivista, onde pauta-se pela experiência…
A Filosofia é o estudo dos princípios fundamentais. O Direito por sua vez, tem por objeto o sistema de normas e as relações sociais. Logo, uma Filosofia do Direito[1] implica no estudo dos princípios fundamentais que regem as normas e as relações sociais.
Entende-se por princípios a essência da coisa, sendo seu âmago imutável. Tal imutabilidade se descreve nas palavras de Parmênides de Eléia, como na unidade e na imobilidade do ser. Já o termo “fundamentais” constitui a noção de fonte primária e propriedade basilar, que sustenta a estrutura de edificação de determinado objeto. Conjuntamente, a idéia de princípios fundamentais implica na noção de núcleo do objeto.
Ao versar sobre princípios, Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, ou Auguste Comte como ficou conhecido, foi autor da célebre frase de que “Tudo é relativo, eis o único princípio absoluto”. Mais além, estabeleceu a Lei dos 3 Estados, onde todas as concepções humanas passariam pelos estados do teológico, do metafísico e do positivo. Parece que essa ordem estabelecida por Comte, se pauta em um critério de desenvolvimento crescente, sendo o primeiro estado (o teológico) mais primitivo e o último (positivo) ao mais sofisticado dos estados.
Nessa concepção, Comte aborda a necessidade de se buscar uma filosofia positiva com base na observação (empirismo). Assim, o sobrenatural e a crença em um ser superior são rechaçados, pois tudo na vida teria uma origem e causa na própria natureza. Tamanha devoção ao positivismo ironicamente virou dogma, levando Comte a fundar um sistema religioso, chamado de Religião da Humanidade.
A rejeição aos dogmas e o culto ao empirismo é um traço marcante também na escola neopositivista. Tal pensamento teve ascensão com o Círculo de Viena. Nesse movimento intelectual, agregavam-se ao redor do físico e filósofo alemão Moritz Schlick[2], um grupo de pensadores de diversas áreas, circunscritos ao então chamado Círculo de Viena.
Dedicava-se o Círculo de Viena ao estudo da filosofia da ciência como uma epistemologia geral[3], canalizando a cooperação intelectual voltada para conclusões válidas para diversos campos de estudo e conhecimento. Esse movimento lança seu manifesto em 1929, sob a autoria de Hans Hahn[4], Otto Neurath[5] e Rudolf Carnap[6]. Fincava este manifesto 3 medidas e 2 atributos basilares:
Medidas:
(a) colocar a linguagem do saber contemporâneo sob rigorosas bases intersubjetivas – não há conhecimento sem comunicação;
(b) assumir orientação absolutamente humanista – o homem é a medida de todas as coisas;
(c) deixar assentado que a filosofia e a teologia não poderiam ostentar validade cognoscitiva – não há liga interdisciplinar entre Filosofia e Teologia.
Atributos essenciais:
(a) todo conhecimento fica sujeito ao empirismo;
(b) reivindicação do método e da análise lógica da linguagem como instrumento sistemático e reflexão filosófica.
Conquistava assim o Círculo de Viena a sua notoriedade junto ao mundo. Historicamente, este movimento elevou a importância do empirismo ao seu grau máximo. Isto tembém demonstrara uma certa influência de David Humes e Thomas Hobbes nesse movimento, ao passo que são atribuídas à estes pensadores as seguintes frases:
David Humes: “o único fundamento sólido que podemos dar à ciência tem que residir na experiência e na observação”.
Thomas Hobbes: “a prudência nada mais é do que a experiência”.
Já Kant e sua metafísica eram rechaçados veementemente pelo Círculo de Viena. Kelsen juntava-se ao movimento como notório opositor ao pensamento kantiano. Assim, tanto Kelsen como o Círculo de Viena negavam aos enunciados metafísicos o direito de serem chamados de proposições. Ao contrário, taxavam-nos de pseudo-proposições.
Libertar a ciência de valores e critérios que não pudessem ser comprovados pela experiência era a regra do neopositivismo, para se separar o científico do não científico, como ilustrado a seguir:
Mais além, os neopositivistas fizeram um percurso que parte da Filosofia[7], atravessa a Epistemologia[8] e chega na Semiótica[9]
Filosofia => Epistemologia => Semiótica
Nesse percurso, a linguagem é tida como instrumento preponderante do saber, permitindo então a composição de um discurso científico rigorosamente claro e objetivo, para se propiciar um relato fidedigno ao mundo, dos dados coletados pela experiência. Os neopositivistas apostavam que a linguagem natural não traduziria os anseios cognoscitivos do ser humano, dada sua ambigüidade e a possibilidade de variadas interpretações (ausência de exatidão).
Para eles, uma imagem valia mais que mil palavras. Quadros, desenhos e símbolos eram usados com freqüência para representar as idéias e os conhecimentos colhidos de forma empírica, substituindo então os vocábulos imprecisos, num processo de elucidação da comunicação. Resumem-se, nessa linha, os recursos da semiótica em três dimensões da linguagem, conforme segue:
a) sintático – signos examinados em sua relação mútua – signo com signo.
b) semântico – que se ocupa da relação signo com o objeto que ele representa.
c) pragmático – signos vistos na relação que mantêm com os que fazem uso da linguagem.
No campo jurídico, a escola neopositivista aborda como núcleo de sua tese a norma. Nesse rigor científico, busca-se um sentido absolutamente racional para conceber o Direito, tendo a norma como essência. Em contra-partida, caracterizam-se os conceitos valorativos (valores) como elementos acidentais do Direito e portanto descartáveis para a ciência do mesmo.
A construção dessa tese usa o empirismo como principal ferramenta. Desta feita, tudo deve ser comprovado pela experiência para que se adquira o status de validade. No caso da norma, Hans Kelsen elabora um sistema de exames (empirismo) para a verificação de sua validade.
Saber distinguir o empírico do científico é elementar para a compreensão da obra de Kelsen. O caráter empírico, implica na mera observação e relato narrativo do experimento. Usar o empirismo, é base de apoio do método científico, pautado na experiência.
Valer-se do método científico, resulta, necessariamente, em se descobrir a relação de causa e efeito ao fenômeno delimitado como objeto de análise (através do corte epistemológico). Delimitado o objeto, parte então o método científico rumo à produção de novos conhecimentos. A etapa seguinte e conclusiva é a conciliação destes conhecimentos produzidos, em quantidade e qualidade suficientes para se propor uma lei ou teorema; somente então, dignos do adjetivo “científico”.
Ao examinar o Direito, Kelsen parte com o propósito de “única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto”[10]. Assim, publica em 1934 a “Teoria Pura do Direito”. A então denominada Grundnorm, seria o ápice da pirâmide kelseniana, segundo Norberto Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico. Trata-se de um mecanismo de fundamentação das normas jurídicas, a partir da Norma Hipotética Fundamental de Kelsen. Tal lógica tem a premissa de que uma norma só é válida se estiver de acordo com a norma imediatamente superior a ela, e assim sucessivamente, construindo todo o sistema de validação das normas.
Junto com essa pirâmide, também se desenvolve um padrão de degraus, onde uma norma fundamenta um ordenamento, que fundamenta outra norma, que por sua vez fundamenta outro ordenamento, criando-se uma verdadeira escada. Kelsen decifrava então o escalonamento das normas e do ordenamento jurídico. Ligados por uma padrão binário[11] (0-1), norma e ordenamento se sustentam de forma recíproca e alternada, num elo simbiótico sem fim.
Mas, o enigma que se cria é determinar quem veio primeiro: norma ou ordenamento? Essa nada fácil dicotomia, entre o ovo e galinha, foi resolvida pelo corte epistemológico (dogma?). Assim, optou-se pelo corte epistemológico, que deu à norma hipotética fundamental (Grundnorm), a primazia de ser onipotente[12] e ocupar o patamar mais elevado da pirâmide: o ápice.
Promovido o corte epistemológico, que delimita o objeto de análise, segue conjuntamente outro corte, desta vez axiológico. O pré-requisito necessário para se ter uma Teoria Pura, era o de filtrar do Direito toda e qualquer forma de valor. Restariam para a abordagem do Direito apenas a ciência e o empirismo.
Tal lógica preza pela perfeição e estabelece um sistema frio[13] e quase que automatizado de validação das normas. Ocorre que tamanha perfeição deste sistema pressupõe a existência de uma sociedade perfeita também. Talvez esteja aí o único defeito desse sistema “perfeito”, o de não se adequar a uma sociedade cheia de imperfeições.
Trata-se da uma noção de perfeição utópica, que não contempla mecanismos para correição de erros ou descompassos, mesmo porque não considera a imperfeição. A partir dessa lógica perfeccionista, surge entre outras dúvidas, a seguinte: Quem fiscalizará o fiscalizador?
Uma noção mais real de perfeição, contemplaria para esse sistema formas de lidar com eventuais erros e descompassos, fatos esses naturais da vida em sociedade.
Existe portanto uma arritmia entre o modelo kelseniano de validação das normas e o compasso da sociedade. Isso por que o modelo de Kelsen representa uma valsa: Ambos são alemães, tem padrão binário de estrutura, primam pela perfeição harmônica e se pautam por passos seguros e previsíveis.
A sociedade, por outro lado, dança em uma infinidade de ritmos. Tem vezes que se tem um tango, melancólico e atrevido onde os descompassos são corrigidos pelo parceiro. Às vezes se tem a irreverência do samba ou o ímpeto voluntarioso da dança flamenca. Noutras, a rebeldia do Rock’n Roll com seus solos de guitarra. Ou ainda, se tem a música eletrônica com sua interação de transe psicodélico.
Por outro lado, se a analogia estivesse no campo da dramaturgia, Kelsen seria um diretor rígido e exigente quanto interpretação dos atores às falas dos personagens. Porém, parece que no palco da vida em sociedade, nem sempre se é fiel ao script. A vida é dinâmica e logo sujeita aos improvisos. Aliás, resta lembrar que no cinema, as melhores e mais marcantes cenas foram frutos do improviso e da espontaneidade. Não seria assim também a vida em sociedade?
A visão de sociedade, proposta pela Teoria Pura do Direito, parte de uma idéia estática e bi-dimensional. Não condiz com os vetores sociais de evolução e involução. O percurso da sociedade pela história se faz de forma cíclica, com movimentos rotacionais elípticos. Esse fenômeno cria padrões de repetição, com base na lei de ação e reação. Os padrões apesar de semelhantes, nunca são idênticos tal como a estrutura de dupla hélice do código da vida: o DNA[14].
Do ponto de vista geométrico, importante notar que Kelsen se associa ao CÍRCULO de Viena. O círculo representa uma figura de simetria perfeita onde qualquer ponto de sua circunferência traça raios eqüidistantes ao ponto central dessa forma geométrica. Ao que tudo indica, a sociedade não se move em círculos perfeitos. Tal como a órbita da terra ao redor do sol, os ciclos da sociedade mais se comparam ao movimento elíptico irregular: logo assimétricos por natureza.
Tome-se como exemplo dessa assimetria as desigualdades sociais. Desigualdades estas que se não atenuadas, são a razão de crises e levantes, pautados sempre na eterna promessa de erradicação das mesmas. Assim, rompe-se uma ordem e implanta-se outra, agora com um novo formato também assimétrico, logo com um novo padrão de desigualdade.
Os movimentos dos ciclos sociais, sendo rotacionais por excelência, estão sujeitos às forças de expansão e desenvolvimento (força centrífuga), como também de contração e regressão (força centrípeta). Daí se tem os fenômenos de evolução e involução social em cadeia heterogênea (sem precisão quanto ao futuro). Com sua teoria, Kelsen faria com que os ciclos fossem mais homogêneos, enrijecendo a elasticidade daqueles movimentos rotacionais dos ciclos sociais, em busca da previsibilidade e da segurança jurídica. Enfim, Kelsen queria fazer da elipse um círculo.
Além disso, uma das mais severas críticas que se faz a Kelsen diz respeito ao fato de sua Teoria Pura do Direito poder fundamentar regimes cruéis e totalitários tal como o terceiro reich. Tal golpe deve ter sido duríssimo, alem de injusto. A idéia de Kelsen, ao estabelecer sua teoria, era a de criar um sistema que buscava a manutenção da ordem e que evitaria o caos.
Nessa busca pela ordem, há uma valorização da forma em detrimento do conteúdo. Parece que a idéia era fazer da forma uma embalagem e do conteúdo o seu produto, para que o sistema normativo permanecesse perene e imune a crises. Ocorre que a embalagem (forma) se muito rígida, acaba aprisionando o produto (conteúdo), ao invés de protegê-lo.
Assim, corre-se o risco de se ter dentro de uma embalagem perfeita um verdadeiro presente de grego[15], como no caso nazista. Lá o formato do ordenamento jurídico era impecável do ponto de vista neopositivo e obedecia fielmente à estrutura de validação das normas. Não havia nenhuma preocupação quanto ao valor do direito, focando-se tão somente na questão da validade do direito. Nessa linha, Estado e Direito fundiam-se em um só corpo.
Como conclusão, cabe ressaltar que imputar ao pobre Kelsen responsabilidade pelo nazismo é no mínimo uma grande injustiça. Os que o criticam Kelsen ainda hoje, como eu, devem ter em mente a clemência do bom senso, relevando as circunstancias daquela época com as de hoje. Exigir que uma teoria da década de 30, se adéqüe aos dias de hoje sem adaptações é absurdo. Tão absurdo quanto trafegar com um automóvel fabricado naquela época nas estradas de hoje, exigindo alto rendimento e performance. Negar à Kelsen méritos por sua obra, apontando apenas os seus defeitos é uma visão míope, senão cega.
Sem o neopositivismo de Kelsen, não se teria hoje a noção disciplinada e sistematizada do ordenamento jurídico, fiel ao método empírico – cientifico.
Advogado e Professor de Direito Internacional, Bacharel pela USP e Mestrando pela PUC/SP
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