Resumo:
o presente ensaio tem a intenção de resgatar a nova conformação da relação
público-privado no Estado Democrático de Direito a partir da conformação do
sistema de controle de constitucionalidade. Questiona a atual tendência à
concentração presente nesse sistema, propugnando pela valorização do já
consagrado sistema difuso como exigência do novo paradigma constitucional.
Sumário. Capítulo 1. Colocação do Problema — a concentração do controle
de constitucionalidade e o espaço público. Capítulo 2. A Relação
Público-Privado no Estado Democrático de Direito. 2.1. Do Estado Liberal
ao Estado Democrático de Direito. 2.2. Autonomias Pública e Privada no
Estado Democrático de Direito. Capítulo 3. A Construção de um Espaço
Público Plural.
Capítulo 1. Colocação do Problema — a concentração do controle de
constitucionalidade e o espaço público
O sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis e atos
normativos vem sofrendo sucessivos ataques no Brasil nos últimos tempos.
Basta vermos, por exemplo, a forma como foram regulamentadas a Ação
Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade
(esta criada com a Emenda Constitucional n. 3/93), através da Lei 9.868/99,
além da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, regulamentada pela
9.882/99.
De início ressalte-se que a
ampliação de competências dada ao Supremo Tribunal Federal através de lei
ordinária é no mínimo questionável. Já nos ensinava o Professor Afonso Arinos:
“lei que amplia jurisdição de tribunal é inconstitucional” (Melo Franco,
1958, p. 73, grifos nossos).
O que faz a lei
9.868/99 senão alargar as competências do STF? Desde uma perspectiva mais
“dogmática”, cremos que apenas a Constituição poderia dispor sobre os efeitos
da Ação Direta de Inconstitucionalidade, tal qual ocorreu nas Constituições
portuguesa e austríaca.
Quanto ao
previsto nos artigos 27 e 28, parágrafo único, como pode o Supremo Tribunal
Federal definir a partir de quando a decisão começa a produzir efeitos?
Como pode o órgão de cúpula do Judiciário possuir fundamentos para dizer que há
“razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” que lhe
obriguem a “restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só
tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que
venha a ser fixado”?
O Relatório da
Comissão que elaborou o anteprojeto defende que através das “informações”
recebidas pelo Relator, o Supremo Tribunal Federal terá condições para tanto.
Certamente as várias situações concretas que estejam ocorrendo (ou venham a
ocorrer) em virtude da lei questionada jamais poderão ser sopesadas pelo STF
para que este possa “restringir os efeitos da decisão”
E mais, pelo
parágrafo único do art. 28, a decisão do Supremo Tribunal Federal terá efeito vinculante,
não apenas para as decisões em sede de ADC, tal qual prevê a Constituição
reformada, mas também para as decisões em sede de ADIN.
Este dispositivo
(de clara influência alemã) vem dificultar quaisquer tentativas de construção
de uma sociedade mais aberta de intérpretes da Constituição, pelo menos
no que toca ao âmbito operativo amplo destas interpretações via Judiciário e à
defesa de direitos lesados ou ameaçados: ou porque a lei declarada
constitucional atinge factualmente direitos subjetivos de certos cidadãos ou
porque, antes de vir a ser declarada inconstitucional, a lei criou direitos (ao
cidadão que de boa-fé agiu em conformidade com ela) que somente o juiz
ordinário poderia avaliar, ou ainda, porque o cidadão se vê ainda
prejudicado por uma lei porque a sentença que a declarou inconstitucional não alcança
o período no qual a mesma porventura tenha causado lesão.
Nesse
sentido assevera o Prof. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira a respeito de tais
dispositivos:
“… é também preciso reconhecer a inconstitucionalidade da lei nº
9.868/99, que pretende descaracterizar o controle difuso, (…) e por intentar
transformar as decisões em ação direta de inconstitucionalidade perante o
Supremo Tribunal Federal num meio espúrio de suspensão da ordem constitucional,
ao pretender atribuir a esse Tribunal o poder de restringir o conteúdo e de
fixar os efeitos temporais de suas decisões, flagrantemente invertendo a
hierarquia das fontes” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 214).
Quanto
à lei 9.882/99, observa-se que não há uma indicação do que seja “preceito
fundamental”, afinal, qual preceito da Constituição não é fundamental? Ainda
que se diga que a ação visa proteger os Direitos Fundamentais continua de pé a
questão: há normas “mais constitucionais” que outras?
Segundo
o art. 10 dessa lei, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, irá fixar “as
condições” e o “modo de interpretação e aplicação” do preceito fundamental e
dessa decisão (que possui eficácia erga omnes e vinculante) serão
comunicadas as “autoridades ou os órgãos responsáveis pela prática dos atos
questionados”.
É
sempre muito interessante observarmos a crença presente tanto nesta lei
como na 9.868/99 de que o texto (decisão) pode limitar ou estabelecer quadros
interpretativos a outro texto (lei, preceito fundamental ou outro ato). Será
que o Supremo Tribunal Federal conseguirá completar satisfatoriamente uma tal
tarefa? Pensamos que não, seria preciso uma razão sobre-humana para poder
imaginar as interpretações possíveis e proceder de forma democrática e honesta
à fixação daquela mais adequada. Além disso, já dissemos que ele não teria
condições de avaliar todas as situações subjetivas relacionadas ao ato
questionado[1].
O
que se infere do exposto é uma explícita tentativa de transformar o Supremo
Tribunal Federal em uma Corte Constitucional, tal qual as Cortes européias.
A
teorização dessa demanda possui entre o mais importante de seus defensores o
Prof. Gilmar F. Mendes. De fato, no seu livro “Jurisdição Constitucional: o
controle abstrato de normas no Brasil e Alemanha”, o Prof. Gilmar procura fazer
um estudo comparado do controle abstrato de normas perante o Tribunal
Constitucional alemão e o Supremo Tribunal Federal, buscando apontar diferenças
e semelhanças entre as duas formas de controle. Ao final da obra encontram-se
algumas “teses” que resumem bem o objetivo do texto:
· “não se deve olvidar
que a Constituição de 1988 contribuiu para uma relativa concentração
das questões constitucionais no Supremo Tribunal Federal, mediante a ampliação
do direito de propositura e a limitação do recurso extraordinário às questões
constitucionais” (p. 304).
· “A gradual evolução
[?] de um sistema de controle incidente para um modelo no qual a função
principal do controle está concentrado no Supremo Tribunal Federal, reforça o
caráter do Tribunal, como autêntica Corte Constitucional, uma vez que
ele não apenas detém o monopólio da censura no processo de controle abstrato de
atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, como tem
a última palavra na decisão das questões constitucionais submetidas ao controle
incidental” (p. 304, grifos nossos).
Será, contudo,
que todas estas inovações de que se fez menção se compatibilizam com a tradição
do controle de constitucionalidade no Brasil? Será que a centralização (tão
festejada) é, no caso brasileiro, uma “evolução”, ou, mais diretamente, seria
ela constitucional?
Percebemos,
pois, atualmente, uma grave e discutível tentativa de esvaziamento do papel do
controle difuso de constitucionalidade no Brasil em favor de formas centralizadoras
de controle, tudo em nome de expressões como “segurança jurídica”, “celeridade
processual” ou “uniformização (harmonia) da jurisprudência”.
“O controle jurisdicional de
constitucionalidade não pode ser tratado como uma questão de Estado. É no contexto
de uma esfera pública política de cidadãos, os quais, no exercício de seus
direitos fundamentais, aprofundam o seu sentimento de Constituição e de
Democracia, que a jurisdição constitucional deve ser exercida” (CATTONI
DE OLIVEIRA, 2001, p. 164).
Logo, aquela via
centralizadora proposta não se coaduna com os princípios do Estado Democrático
de Direito consagrados constitucionalmente, por exemplo (e este é o tema deste
trabalho) com a percepção que ele possui do que deve ser a relação
público-privado, isto é, que o Estado Democrático de Direito propõe a
formação democrática das decisões vinculantes do Estado a partir do
estabelecimento de condições equânimes de formação da vontade e da opinião
públicas.
Segundo esse
novo paradigma, o Estado não compreende todo o público (que também se
operacionaliza através, e.g., de organizações não-governamentais) e, por
outro lado, o privado não quer dizer egoísmo, mas respeito à igualdade (e/ou
diferença) e liberdade do outro — conforme teremos oportunidade de tratar mais
à frente.
A
incompatibilidade entre o paradigma do Estado Democrático de Direito e a tendência
acima exposta é patente. Considerando que aquele reclama a ampliação dos foros
de discussão e também dos centros decisórios de poder, essa, por sua vez, no
que diz respeito ao controle de constitucionalidade, aponta em direção oposta à
medida que propõe centralização da argüição de constitucionalidade ou
inconstitucionalidade em um só órgão do Judiciário, que deve não apenas decidir
abstratamente — logo, sem considerar as situações subjetivas envolvidas
— mas também de forma vinculativa.
No intento de
mostrar tal incompatibilidade, propomos estudar o espaço público da maneira
como é entendido no Estado Democrático de Direito e a importância do sistema de
controle difuso de constitucionalidade para a construção desse espaço.
Procuraremos
repassar (rapidamente) alguns pontos sobre a evolução dos paradigmas
constitucionais até chegarmos ao Estado Democrático de Direito, mostrando como
evoluiu a relação público-privado. Dentro do atual paradigma, mostraremos, com
Habermas principalmente, a eqüiprimordialidade do “público” e do “privado”.
Apontaremos como o controle difuso no Brasil é — ou pode ser — um mecanismo
eficaz à construção de um espaço público democrático e plural; ao contrário de
concepções que visam aproximar o Supremo Tribunal Federal da Corte
Constitucional alemã (esta objeto de críticas no próprio Estado germânico (e.g.,
MAUS, 2000 e CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 129 e segs.).
Assim esperamos
aplicar a esta decisão o que temos dito, mostrando como a concentração do
controle de constitucionalidade pode colocar em risco — e até, no caso,
obstruir — foros de formação discursiva de decisão judicial, frustrando ademais
pretensões a direito e o próprio contraditório.
Capítulo 2. A
relação público-privado no estado democrático de direito
Para entendermos
a conformação da relação entre o “público” e o “privado” no atual paradigma
(sobre o conceito de paradigma, CARVALHO NETTO, 2001, 15) vamos nos referir
rapidamente a como essa relação foi vista nos dois paradigmas constitucionais
anteriores. Antes, porém, convém, desde já, delinearmos uma idéia do que temos
entendido por espaços público e privado. Nesse sentido, tomamos a Habermas,
quando este define como “públicos” aqueles eventos que são acessíveis a
qualquer um (HABERMAS, 1984, p. 14); nessa linha, o espaço privado diz respeito
ao sujeito em relação aos seus direitos, como destinatário da norma. Voltaremos
a isso mais à frente.
2.1. Do
estado liberal ao estado democrático de direito
Num primeiro
momento do Estado Moderno (Estado Liberal de Direito), apenas tinham acesso ao
poder público os que participavam do Estado. O “privado” era sinônimo de
exclusão. Aliás, como bem mostra Habermas, em latim privatus dá a idéia
de “estar excluído”, “privado dos aparelhos do Estado” (HABERMAS, 1984, pp.
30-31). Isto se deu pelo próprio pano-de-fundo subjacente à noção que os
liberais possuíam de Estado. As Revoluções burguesas do século XVIII colocam em
xeque a estrutura absolutista dos Estados Nacionais, não apenas ao derrubar
efetivamente seus déspotas (ainda que esclarecidos), mas também — e
quiçá com maior força — ao pregar princípios como liberdade, igualdade e
propriedade, e conseqüentemente, laissez-faire, laissez-passer.
O Estado que
então nascia pretendia dar à burguesia que o controlava uma liberdade quase
total para agir segundo seus próprios interesses. Assim, o Estado (notadamente
o Executivo) deveria se abster a cumprir apenas as funções públicas essenciais
(e.g., poder de polícia). Sem embargo, apesar de pregar a liberdade e a
igualdade e de defender a democracia, apenas podiam votar aqueles que
preenchessem requisitos relativos à fortuna pessoal, isto é, o Parlamento,
provavelmente um dos maiores símbolos institucionais dessa nova fase, não
apenas era formado quase que somente por grandes burgueses, mas também estes
eram escolhidos praticamente apenas por seus pares.
Numa tal
conjuntura, decorreu logicamente que as leis, bem como toda a estrutura estatal
estavam a serviço dessa nova elite; o grande campo “privado” significava não
apenas liberdade de ação mas, de fato, como observamos com Jürgen Habermas
(supra), significava exclusão de participação política e de quaisquer
benefícios públicos. “O Direito é a limitação da liberdade de cada um à
condição da sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível
segundo uma lei universal” (KANT, Immnanuel. apud, CATTONI DE OLIVEIRA,
2002, p. 58).
“Público” e
“privado”, estavam bem delimitados, pois, no Estado Liberal. O Direito Público
garantia que o Estado, através das leis do Parlamento burguês, não retornasse
ao Absolutismo. O Direito Privado, por seu turno, possuía aquelas verdades
racionalmente dadas, positivadas com o intuito inicial de “codificá-las”, isto
é, reuni-las em um documento legal que, além de completo, poderia organizar
toda a atividade dos indivíduos em suas interrelações (privadas) e protegidos
da ingerência estatal (as leis possuíam esse sentido de apenas fornecer os
limites mínimos da liberdade de cada um e limites “máximos” à atuação do
Estado). Ou, como se expressa o Prof. Menelick, nessa época há uma separação
bem nítida entre a sociedade civil (esfera privada) e a sociedade política
(esfera pública). “A sociedade civil é o terreno dos Direitos naturais, onde
todos, por nascimento, a integram, onde todos são livres, iguais e
proprietários. No entanto, nem todos são membros da sociedade política. (…) O
privado é visto como egoísmo e o público como estatal” (CARVALHO NETTO, 2001,
p. 16).
Com a crise
desse modelo, provocada principalmente por distorções internas às suas próprias
premissas, reclama-se para o Estado que deixe seu papel abstencionista e passe
a agir com o intuito de efetivar materialmente aqueles direitos: liberdade,
igualdade e mesmo propriedade.
As novas
Constituições que surgem sob este novo paradigma possuem, além do tradicional
elenco de direitos individuais, uma outra relação de direitos a que se
convencionou chamar de “sociais”, que, como dissemos, não se constituíam a
rigor em novos direitos, mas na releitura que se fez dos “anteriores”.
Essas Constituições são documentos extensos, “programáticos” e elaboradas por
sujeitos que possuíam consciência de que o mero elenco de direitos não possuía
o condão de fazer com que os mesmos fossem observados. Por isso criam-se
mecanismos processuais de reivindicação cidadã dos mesmos e de proteção à
Constituição (à parte o caso americano, é a partir da Constituição de Weimar
que surge/desenvolve o controle de constitucionalidade).
Para tentar
cumprir todas as obrigações sociais e econômicas assumidas na Constituição, o
Estado passa a intervir nas mais diversas áreas da sociedade (saúde, educação,
transportes, economia, etc.) não apenas disciplinando exaustivamente cada uma
dessas áreas, mas participando diretamente através de empresas ou fundações
criadas e mantidas por ele.
A relação entre
o “público” e o “privado” é redesenhada. A esfera pública é ampliada pois que o
Estado (que abarca toda o público), também aumentou suas funções; enquanto que
à privada, agora reduzida, concentra-se no egoísmo de cada indivíduo da
sociedade de massas. Há uma publicização de institutos de Direito Privado (por
exemplo, no que toca à função social da propriedade, ou às relações
trabalhistas); ao mesmo tempo, não se pode perder de vista que se desenvolve
nessa época a noção de que todo direito é público, pois feito por um
órgão público de representação popular (o Parlamento). Logo, de uma distinção
ontológica, parte-se para uma distinção didática. De fato,
“os conflitos,
até então contidos na esfera privada, estouram agora na esfera pública;
necessidades grupais, que não podem esperar serem satisfeitas por um mercado
auto-regulativo, tendem a serem reguladas pelo Estado; a esfera pública que,
agora, precisa mediatizar essas exigências, torna-se campo de concorrência de
interesses nas formas mais brutalizadas da discussão violenta” (HABERMAS, 1984,
p. 58).
O Estado Social
não consegue cumprir, contudo, aquilo que havia sido sua grande promessa, “o
pleno acesso à cidadania”, na qual apostaram os maiores publicitas do século
XX. Foi com o objetivo de formar indivíduos que pudessem agir politicamente de
forma plena (já que agora “todos” podiam votar), que pudessem definir seu
destino comum; que se outorgou ao Estado a missão de materializar os
antigos direitos individuais, isto é, na crença de que, a partir do momento em
que se concedesse saúde, educação, trabalho, lazer, (etc.) aos indivíduos,
gerar-se-ia, logicamente, cidadania.
O que se viu, ao
contrário, foi uma burocratização do Estado a tal ponto que em muitos lugares o
tornou inoperante e simplesmente voltado para si mesmo. Doutro lado, os
indivíduos se tornaram clientes de um Estado Paternalista.
A proposta do
Estado Democrático de Direito parte de pressupostos bem distintos dos que o
sucederam. Defende-se que o reconhecimento daqueles direitos individuais
representou um avanço para a época; que a busca por sua materialização é
importante; mas percebe que, se o mero reconhecimento formal não é suficiente
para garantir a autonomia privada dos cidadãos, sua materialização pura e
simplesmente em direitos “sociais” não garante a construção de uma autonomia
pública plena.
Cidadania não é
algo dado e nem conseguida alimentando-se a população; antes, ela é um processo
(de participação política) e, tal qual a democracia, um aprendizado. No Estado
Democrático de Direito, pois, a distinção entre “público” e “privado” não é
absoluta. Ocorre que, com a crise do Estado Assistencialista, organismos da
sociedade civil passam a (cada vez mais) representar o interesse público não
apenas a favor do cidadão, mas, ato contínuo, contra o Estado.
Nesse sentido
bem observa Evelina Davigno — ainda que sob outros pressupostos — que a nova
configuração da “cidadania” possuiria duas dimensões: a emergência de
movimentos sociais (e sua luta pelo reconhecimento tanto da igualdade
quanto da diferença) e a ênfase crescente na construção da democracia.
“A nova noção de cidadania expressa o estatuto teórico e político que assumiu a
questão da democracia em todo o mundo, especialmente a partir da crise do
socialismo real” (DAVIGNO,1995, p. 104).
A autora possui
o mérito de mostrar que a cidadania (autonomia pública) é algo construído
historicamente, por outro lado, como exemplo dessa nova atuação cidadã, aponta
o funcionamento dos Conselhos Populares como espaços (públicos) onde o conflito,
ao invés de ser tido como algo ruim, ao contrário, é visto como necessário,
legítimo e irredutível, onde o Direito está sob
constante reinterpretação, devido ao debate sempre e aberto (DAVIGNO, 1995, pp.
114-115). De fato, em sociedades hiper-complexas como a nossa, a possibilidade
do conflito é algo imanente a partir do momento em que os sujeitos não apenas
não são mônadas, mas, necessariamente, entabulam relações intersubjetivas a
todo tempo, o que gera, potencialmente, a possibilidade de estranhamento.
Esse risco (DE GIORGI, 1998) deve de ser assumido pelos cidadãos e não
simplesmente desconhecido, o que agravaria uma solução satisfatória (solução
esta sempre precária, isto é, circunscrita a um tempo e lugar
específicos).
Além do
desenvolvimento de associações na defesa dos cidadãos, outra característica do
novo paradigma é que aquelas agem também na defesa dos novos direitos que vêm
surgindo nos últimos tempos; direitos sem um titular específico, que
transcendem o âmbito individual e, ao mesmo tempo, não são simplesmente
“sociais” ou “coletivos”. São os interesses difusos que ainda causam
perplexidade a boa parte da doutrina, e.g., quanto à extensão de decisões
judiciais que versam sobre os mesmos.
No âmbito
privado, este deixa de ser o reduto do egoísmo, pois, as relações privadas
passam cada vez mais a sofrer a ingerência pública. Assim, agora “o público não
mais pode ser visto como estatal ou exclusivamente como estatal e o privado não
mais pode ser visto como egoísmo” (CARVALHO NETTO, 2001, p. 18).
É importante
salientarmos que, desde o atual paradigma constitucional, não é mais possível
concebermos um modelo de sociedade centrada no Estado, como o fazem tanto
autores republicanos quanto liberais (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 49 e segs)[2].
Tal posicionamento é fundamental se queremos compreender a relação
público-privado, não mais como oposição Estado-Sociedade (ou Estado-indivíduo),
mas como tensão e co-originalidade das autonomias pública e privada.
Da perspectiva
da Teoria do Discurso o conteúdo normativo surge não de um pretenso
“substrato ético” de dada comunidade (como defendem os republicanos), nem de
“direitos humanos universais” (segundo os liberais), mas da estrutura da ação
comunicativa. Ela valoriza a “institucionalização dos procedimentos e das
condições comunicativas”, ou seja, “uma soberania popular procedimentalizada
e um sistema político ligado às redes periféricas da esfera pública política
andam de mãos dadas com a imagem de uma sociedade descentrada” ( HABERMAS, 1995, p. 117 grifos nossos).
Habermas observa muito bem a necessidade crescente de busca pelo consenso nas
atuais sociedades, em que seus membros não podem mais resolver isoladamente
seus problemas e anseios, mas, ao contrário, necessitam do “outro”, isto é, as
formas de vida atuais formam-se intersubjetivamente.
A referida
relação que se dá entre os sujeitos é possibilitada pela comunicação,
através da qual os mesmos suscitam pretensões de validade suscetíveis à
crítica. Ademais, é através dela que “los actores, en el papel de hablantes y
oyentes, tratan de negociar interpretaciones comunes de la situación y de
sintonizar sus respectivos planes de acción a través de procesos de
entendimiento, es decir, por vía de una persecución sin reservas de fines
ilocucionarios” (HABERMAS,1998, pp. 79-80). Segundo o autor, os sujeitos envolvidos nessa interação têm assumir a
posição performativa de alguém que quer se entender sobre “algo no mundo”,
para que a comunicação possa liberar sua “energia de vínculo”. No epílogo
da citada obra, ele completa: “el derecho sólo puede mantenerse como legítimo
si los ciudadanos salen de su papel de sujetos jurídico-privados y adoptan la
perspectiva de participantes en procesos de entendimiento acerca de las reglas
de convivência” (p. 660).
Percebe-se que
aquela separação que isolava indivíduo e Estado não faz mais sentido a partir
do momento em que este último, para se legitimar, deve agir em conformidade com
os consensos (ou compromissos) formados intersubjetivamente, seja no âmbito da
Casa Legislativa, seja em qualquer outro foro (sem qualquer relação de
hierarquia entre eles).
Velasco Arroyo
na introdução à edição espanhola do livro “A Inclusão do Outro” de Habermas,
aponta que, segundo este, os pressupostos da democracia são gerados fora do
Estado e as instituições estatais funcionam apenas como canais desses. De fato, “la
gésenis de la formación de la voluntad política se encuentra en los procesos no
institucionalizados, en las tramas asociativas multiformes (partidos políticos,
sindicatos, iglesias, foros de discusión, asociaciones de vecinos,
organizaciones no gubernamentales, etc.) que conforman la sociedad civil”
(VELASCO ARROYO, 1999, p. 17).
Os Tribunais,
por outro lado, devem não apenas estar sensíveis a isso, mas também devem se
posicionar (se auto-reconhecer) como loci próprios para que aqueles
debates possam se dar de forma discursiva, onde a prevalência do melhor
argumento seja garantida procedimentalmente pelo contraditório e pela
neutralidade do juiz — que não é mais entendida como afastamento visando a uma
pretensa objetividade lógica, mas, ao contrário, como uma garantia de que o
magistrado, para tomar sua decisão, deve se colocar no lugar de cada parte,
levando a sério as pretensões levantadas por cada uma. Esclareça-se, contudo,
que o que as normas de Direito Processual devem fazer não é garantir a
argumentação como tal, mas criar o ambiente que a possibilite ocorrer de
forma livre (HABERMAS, 1998, p. 307).
O processo deve garantir não apenas a possibilidade do
contraditório, mas que, efetivamente, as partes participem da formação do
provimento jurisdicional; de forma que, caso isso não ocorra em um processo
específico de forma satisfatória, o mesmo seja tido como nulo. Nesse sentido o
Professor Aroldo Plínio, “há processo sempre onde houver o procedimento
realizado em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na
‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento,
daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão
seus efeitos” (GONÇALVES, 1992, p. 115). Como um processo que é, também
o sistema de controle de constitucionalidade deve garantir “a participação ou a
representação, nos processos ordinários cíveis, penais e nos processos
especiais de garantia de direitos constitucionais e de controle jurisdicional
de constitucionalidade, dos possíveis afetados por cada decisão, através de uma
interpretação construtiva que compreenda o próprio processo jurisdicional como
garantia das condições para o exercício da autonomia jurídica dos
cidadãos”. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 155).
Para que o espaço
público tenha de fato condições de produzir consensos (ou ao menos acordos
racionais) abrangentes, inclusivos, todos os mais variados argumentos
devem ter tido a oportunidade de terem sido postos em discussão, para que possa
prevalecer o melhor (e todos os afetados pela decisão do Estado devem ter tido
oportunidade de se manifestar). Logo, não deve haver limitações quanto aos
grupos que devem participar[3]
— o que não significa que se possa incluir todos, pois, toda inclusão implica
sempre exclusão, contudo, mesmo aqui a democracia fica assegurada na medida em
que os excluídos de hoje terão oportunidade de se manifestarem futuramente,
isto é, o consenso não é definitivo.
De outro lado, é
incompatível com o Estado Democrático de Direito a limitação quanto aos foros
de discussão, por implicar diretamente na desconsideração das pretensões daqueles
que deles participaram. Referimo-nos em ambos os casos, especificamente, a
decisões como a que o Supremo Tribunal Federal proferiu ao decidir pedido de
liminar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, em que sua decisão
implicou a desconstituição de decisões judiciais já tomadas e a suspensão dos
processos que, no caso, estavam decidindo incidentalmente a
inconstitucionalidade de determinada lei.
2.2.
Autonomias pública e privada no estado democrático de direito
Antes de
entrarmos na questão específica do estudo do controle de constitucionalidade no
Brasil, vamos mostrar como, no atual paradigma se relacionam o público e o
privado de que já temos feito referência. Falávamos da Teoria do Discurso de
Habermas e como este valoriza os procedimentos que visam ao entendimento
intersubjetivo.
Contudo,
falta-nos definir como se pode dar a relação entre uma reconhecida autonomia
privada dos indivíduos e um Direito que lhes é imposto coercitivamente, isto é,
a questão mesma da legitimidade deste Direito; a partir disso poderemos
visualizar o sentido co-original entre as autonomias pública e privada.
Com o recurso do
conceito de Ação Comunicativa mostramos como pressupostos contrafáticos dos
atores sociais ganham relevância para a manutenção da integração social, pois,
numa sociedade pós-tradicional (em que não há mais referenciais absolutos), a
ação comunicativa fica livre de amarras, podendo tematizar sobre qualquer
ponto. Sem embargo, ao mesmo tempo pode se desenvolver no seio desta comunidade
um outro tipo de ação orientada não à busca intersubjetiva de entendimento, mas
ao êxito individual.
É a ação
estratégica, que parte do da linguagem desde uma racionalidade instrumental,
onde um — ou ambos — dos falantes se vale dos pressupostos contrafáticos da comunicação
assumidos pelo outro; trata-se do uso pernicioso, parasitário da comunicação,
que apenas é possível justamente pela crença generalizada na própria linguagem
como dimensão que visa ao entendimento.
Como uma
comunidade como essa, que diferencia as ações comunicativa e estratégica, e em
que não se pode confiar nas certezas do Mundo da Vida (haja vista que há várias
certezas, muitas vezes contrárias), pode se manter unida? O que faz com que
cada membro reconheça o outro como seu igual e respeite sua liberdade? O que
faz dela uma comunidade e não um aglomerado de pessoas? Todas estas questões
são pressupostos para o entendimento do que sejam os espaços público e o
privado.
A saída
encontrada por Habermas (desde uma perspectiva de Estado Democrático de Direito)
está no Direito Positivo, um sistema que seja tal que suas normas possuam
coerção fática e, ao mesmo tempo, numa relação de tensão, seja tido como
legítimo pelos destinatários das mesmas (HABERMAS,1998, p. 89). Habermas parte
da concepção de Direito Liberal desde Hobbes e Kant. Este último explica a
tensão acima exposta em termos de que a coerção estatal do Direito (Faticidade)
pode ser exercida desde que para “impedir um impedimento à liberdade”
(Validade) (HABERMAS,1998, p. 91)[4],
ou seja, a partir do momento em que os indivíduos não podem mais fazer valer
suas pretensões diretamente contra o seu próximo, mas, apenas indiretamente, já
que o Estado toma para si esta função (o que confere um — novo — direito ao
indivíduo: o de requerer do Estado a prestação jurisdicional), ao mesmo tempo,
porém, os indivíduos estão indistintamente garantidos contra a ingerência
estatal em sua liberdade e propriedade (direitos subjetivos).
Segundo Kant, o
Direito, diferentemente da Moral, não dependeria da convicção íntima do sujeito
que age em conformidade com a norma. Contudo, objeta Habermas, a legitimidade
do Direito não pode recorrer só à legalidade, logo, ou as liberdades subjetivas
(que conferem ao sujeito um campo no qual pode afirmar sua vontade) ligam-se
novamente a um Direito Suprapositivo, ou precisarão ser completadas por
direitos doutro tipo, que se dirijam ao exercício próprio da autonomia
(pública) (HABERMAS,1998, p. 95). Este é um ponto determinante da relação entre
as autonomias pública e privada (e, logo, das esferas pública e privada).
O Direito
Positivo apenas pode impor suas normas e, ao mesmo tempo, ser legítimo, se “los
destinatarios de esas normas jurídicas puedan a la vez entenderse en su
totalidad como autores racionales de esas normas” (HABERMAS,1998, p. 96)[5].
Este paradoxo, a
que já fizemos referência — do Direito que cria a si mesmo — possui um outro
aspecto: é que, após toda refutação de fundamentos metafísicos ao Direito e com
a contribuição da dogmática tradicional, o sistema jurídico restou circunscrito
à “soberania popular e ”aos “direitos do homem”. Enquanto o primeiro faz
referência à autonomia pública dos cidadãos (intimamente ligado, pois, ao
processo de fazer leis), o segundo abrange os direitos civis, o Direito
Privado, enfim, o grande espectro no qual o indivíduo, livre, pode agir,
determinado tão só pelas normas que sobre ele incidem (autonomia privada).
A relação entre
ambas nos vai fornecer os contornos da relação entre o “público” e o “privado”:
os direitos do homem, o campo de sua liberdade subjetiva de ação, não
estabelecem uma prévia vinculação ao legislador, como se a autonomia privada se
sobrepusesse à pública (tal qual vemos em Kant); por outro lado, aqueles não
são algo livremente dado pelo Legislativo, como se este lhes pudesse atribuir
qualquer conteúdo (como em Rosseau), de forma que a autonomia pública
determinasse a privada (HABERMAS,1998, pp. 166-169).
Ao contrário, ambas
autonomias se co-originam, a partir do princípio da auto-legislação de que
falamos supra. Deste modo Habermas pode enunciar seu Princípio do Discurso:“válidas
son aquellas normas (y sólo aquellas normas) a las que todos los que puedan
verse afectados por ellas pudiesen prestar su asentimiento como participantes
en discursos racionales” (HABERMAS,1998, p. 172).
Em termos discursivos
teremos, pois, como autonomia privada as liberdades subjetivas
protegidas pelo Direito Positivo; ao mesmo tempo, a autonomia pública se
configura na liberdade comunicativa dos cidadãos. Na esfera privada, o sujeito
pode agir desonerado das obrigações — ilocucionárias — próprias da esfera
pública (nesse sentido, uma liberdade negativa), não importando se suas razões
poderiam ou não ser aceitas discursivamente por outrem, já que ele age na busca
de seu próprio êxito. Desde uma perspectiva pública, ao contrário, os atores
sociais fazem uso de sua liberdade comunicativa, assumindo a condição
performativa de interagir no sentido de recíproco entendimento sobre algo a
partir das pretensões de validade entabuladas por cada um (HABERMAS,1998, p.
184 e segs.). Como se percebe, a relação entre ambas é recíproca e
complementar: apenas é legítimo o Direito que surge da formação discursiva da
opinião e da vontade de cidadãos que possuem aqueles mesmos direitos.“Una
autonomía privada asegurada sirve a ‘asegurar el surgimiento’ de la autonomía
pública, al igual que, a la inversa, la adecuada puesta en práctica de la
autonomía pública sirve a ‘asegurar el surgimiento y despliegue de la privada’”
(HABERMAS,1998, p. 491).
Assim, os
cidadãos apenas podem agir publicamente, isto é, participar politica e
democraticamente da feitura (ou do controle) das leis porque sua autonomia
privada foi previamente garantida, e, os direitos subjetivos que dão forma a
esta autonomia privada surgem justamente do processo legislativo democrático. A
tarefa do sistema de controle de constitucionalidade passa a ser, desde esta
perspectiva, o “exame e a garantia de realização das condições procedimentais,
das formas comunicativas e negociais, para um exercício discursivo da autonomia
pública” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 154).
Capítulo 3. A
construção de um espaço público plural
Como dissemos no
começo deste trabalho, há uma tendência no sentido de se centralizar a
apreciação da constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil. Doutro
lado, percebe-se a importância da linguagem para a integração social. Assim, a manutenção
de — e constituição de novos — foros de discussão é
fundamental como meio onde os cidadãos possam, desde uma posição
“performativa”, apresentar seus argumentos num procedimento discursivo, até que
se chegue a um consenso (ou ao menos a compromissos) onde prevaleça o melhor
argumento.
Nesse sentido o
sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis pode ser apontado
como um dos grandes mecanismos na manutenção de arenas de discussão
pública, descentralizada e dinâmica acerca da interpretação que se dá à
Constituição em épocas e lugares distintos (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002,
p. 137)
No Brasil, desde
a primeira Constituição Republicana, por influência direta de Rui Barbosa,
cristalizou-se a possibilidade de questionamento incidental da
inconstitucionalidade das leis. Apenas posteriormente foi o sistema de controle
concentrado sendo adotado aos poucos até que na década de 60 viríamos somar definitivamente
o controle concentrado ao difuso. A partir da Constituição de 1988 advoga-se
que o sistema principal de controle de constitucionalidade no Brasil torna-se o
concentrado (contrariando toda nossa história institucional). Dessa forma o
sistema de controle difuso, ainda que não eliminado, deve se posicionar
subsidiaria e subservientemente frente ao concentrado. Esse entendimento vem
corroborado pelas leis que atualmente regulam a Ação Direta de
Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, além da
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
O que se percebe
atualmente é que o órgão de cúpula do Judiciário do nosso país vem, desde já
algum tempo, em consonância com o Legislativo, referendando esta mudança no
sistema de controle de constitucionalidade no Brasil propugnada por uma boa
parte da doutrina.
Assim, conforme
dissemos no começo deste trabalho, a doutrina que informa a supra citada
decisão defende que o sistema de controle concentrado é superior ao difuso,
deve se sobrepor a este, já que a possibilidade de questionamento incidental da
constitucionalidade de lei ou ato normativo geraria insegurança jurídica.
Impressiona ver
que o próprio Supremo Tribunal Federal se reconhece como participante de um
processo de evolução segundo o qual ele se aproximaria cada vez mais
das Cortes Constitucionais Européias (vide, e.g., os votos dos
Ministros do STF na ADC-4). Nesse sentido, não há qualquer problema em se
suspender processos dos demais Tribunais em que se esteja questionando uma lei
sobre a qual o Supremo Tribunal emitiu um juízo provisório quanto à sua
constitucionalidade. Aliás há, ao contrário, um “ganho” em o Supremo Tribunal
Federal ordenar, sem apreciar nenhum dos casos concretos (nem as pretensões
levantadas), a suspensão dos efeitos de decisões já tomadas por juízes em todo
o País.
Perguntamos no
início se essa concentração da apreciação da constitucionalidade de leis/atos
normativos seria compatível com os princípios do Estado Democrático de Direito,
e, quanto a este, ressaltamos a concepção que se tem hoje de espaço público.
Diante de todo o exposto, podemos concluir que não. O paradigma do Estado
Democrático de Direito reclama para si um espaço público aberto, onde os
cidadãos possam desenvolver seus argumentos de forma livre. Em consonância com
isso, observamos que o poder que é disponibilizado aos cidadãos de
poderem vir a juízo e questionarem incidentalmente a constitucionalidade de lei
ou ato normativo representa um ganho democrático imenso às comunidades jurídicas
que adotam o sistema difuso.
Mostramos que o
sistema de controle difuso, ao invés de ser um inconveniente, um apêndice
do sistema de garantias processuais constitucionais, é fundamental à construção
de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. O sistema de controle
difuso de constitucionalidade no Brasil representa uma arena extremamente
importante para a formação discursiva da opinião e da vontade do Estado. E, ao
contrário do que é advogado por alguns, ele é o meio ordinário de
controle de constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil, mesmo
após a Constituição de 1988 (sendo o sistema concentrado modo “especial”), isto
“não somente por razões históricas, jurisprudencialmente assentadas, mas em
função da sistemática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis
e do processo legislativo, no quadro da Constituição da República” (CATTONI DE
OLIVEIRA, 2002, pp. 159-160)[6].
Parece-nos que é
desde instrumentos como esse, que possibilitam uma gama tão grande de
participação (ao contrário de qualquer um dos procedimentos em controle
concentrado) é que podemos vislumbrar que se possa colocar em prática a Teoria
de Häberle de que “todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e
que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete
dessa norma” (HÄBERLE, 1997, p. 15).
Logo, se desde
uma perspectiva pós-tradicional, os cidadãos são co-autores das normas feitas
sob a égide da Constituição e, se todos os que estão sob a mesma — e a aplicam
direta ou indiretamente no seu dia-a-dia — são legítimos intérpretes da mesma,
eles devem ter garantida a possibilidade de influenciar na compreensão que o
Estado possui daquela, isto é, eles devem poder “controlar” as leis/atos
normativos[7].
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[1] Aliás, um tal dispositivo como o analisado parece
tributário da teoria kelseniana acerca do estabelecimento de um “quadro de
intérpretes”. A respeito, ver o seu texto Sobre a Teoria da Interpretação,
principalmente p. 35 e segs. Para um estudo completo do tema, ver CATTONI DE
OLIVEIRA, 2001, p. 31 e segs.
[2] Enquanto os republicanos reclamam as virtudes cívicas
dos cidadãos que, politizados, chegariam ao nível de se apropriarem das
agências estatais, os liberais, ao contrário, não pensam no fim da oposição
entre Estado e indivíduo, mas tão só buscam um equilíbrio no qual a
Constituição, funcionando como medium, controle o primeiro para
assegurar a autonomia privada (e egoísta) do segundo (HABERMAS, 1995, p. 116);
interferindo, dessa forma, o mínimo possível no funcionamento ótimo do mercado.
[3] Nesse sentido, veja-se a valiosa contribuição de
ROSENFELD, 2000, p. 153 e segs., ao trabalhar com seu conceito de “pluralismo
compreensivo”, o autor reclama que, para o debate devem participar até mesmo
aqueles que não são tolerantes, que não estão dispostos ao mesmo.
[4] A legitimidade das regras positivas não está na
faticidade de usos e costumes, mas, em última instância, “atendiendo a si han
sido producidas en un procedimiento legislativo que quepa considerar racional o
si por lo menos hubieram podido ser justificadas desde puntos de vista
pragmáticos, éticos y morales” (p. 92).
[5] Habermas explica o paradoxo de como o Direito pode
garantir legitimidade através da legalidade. Supera tanto uma dogmática que
primeiro tentou fundar a legitimidade dos direitos civis em termos de autonomia
moral, sem contudo cair na justificação metafísica de num Direito Natural
Racional (ver pp. 151-154).
[6] E, completa o autor, “[t]al compreensão seria a única
que possibilitaria uma visão não excludente ou não incompatível dos dois modos
de controle” (p. 160).
[7] É claro que o sistema
difuso é completado pelo sistema de controle concentrado, desde que este
seja também revisto. O sistema concentrado possui a importante função de
“controle do risco”, isto é, da lesão ou o risco de lesão — que também já é em
si um dano. Todavia, a conformação que se tem dado a ele não condiz com o
paradigma do Estado Democrático de Direito, logo nossa crítica não a esta forma
de controle em si, mas à sua configuração atual no Brasil.
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