Resumo: O artigo trata da questão do controle judicial das políticas públicas de direitos sociais, avaliando as suas possibilidades e limites de acordo com as disposições constitucionais. Inicialmente tratamos brevemente de aspectos gerais sobre políticas públicas, judicialização da política e as objeções ao processo, para em seguida fazer referência ao conceito e a caracterização dos atos discricionários e a sua conexão com a execução das políticas públicas. Depois enfrentamos os questionamentos relacionados ao papel do Poder Judiciário no controle dos atos de governo e, por último, situamos o debate em relação à judicialização da política e à efetividade dos direitos sociais, com a discussão sobre suas possibilidades e limites, principalmente em relação ao controle das políticas públicas.
Palavras-chave: Controle judicial; políticas públicas; direitos sociais; judicialização da política; atos de governo.
Abstract: The article deals with the issue of judicial control of policy on social rights, assessing the possibilities and limitations in accordance with constitutional provisions. Initially, we briefly treat the general aspects of policy, legalization of politics and the process objections, then, to make reference to the concept and characteristics of discretionary acts and their connection with the execution of policy. After facing the questions surrounding the role of the judiciary in control of government action and, finally, we have placed the debate over the legalization of politics and the effectiveness of social rights, with discussion of its possibilities and limits, especially in relation to policy’ control.
Keywords: judicial Control; policy; social rights; politics judicialization; Government acts.
Sumário: 1. Introdução; 2. Políticas públicas e a judicialização da política; 3. Separação de Poderes e a judicialização da política; 4. Discricionariedade e atos de governo; 5. Controle judicial dos atos de governo; 6. Eficácia dos direitos sociais e o problema da escassez de recursos; 7. Referências
1. Introdução
Há algum tempo a doutrina tem alertado para a situação de crise evidenciada no Poder Judiciário, o debate despertou o interesse de análises nos mais variados países e passa por uma série de estudos e avaliações sobre o papel do Poder Judiciário e de aspectos que visam o aperfeiçoamento e eficiência da prestação jurisdicional e da própria instituição, reconhecidamente importante para a configuração do Estado democrático de Direito.
No Brasil, a crise do Poder Judiciário pode ser encarada por uma série de fatores, alguns reflexos podem ser observados na imagem veiculada pela imprensa e pela opinião pública de um Poder moroso e inepto na prestação de um serviço público essencial. O Poder Executivo, através dos agentes responsáveis pela preparação do Orçamento Geral da União, engrossam o coro daqueles que criticam a atuação do Judiciário ao considerá-lo uma instituição com pequena eficiência gerencial, perdulária e insensível ao equilíbrio das finanças públicas, devido aos gastos vultosos com obras, os elevados gastos com a folha de pagamento e as próprias sentenças proferidas, comprometem o ajuste fiscal, a política econômica que visa a estabilidade monetária e a “reforma do Estado”. O Congresso Nacional também não poupa nos ataques e acusa o Poder Judiciário de ir além de suas prerrogativas, de interferir no processo legislativo e de obstaculizar a execução de políticas provenientes de órgãos representativos eleitos democraticamente, deixando de agir tecnicamente na aplicação da lei, o que conduz à judicialização da política e a “tribunalização” da economia.[1]
Frente a onda de insatisfação quanto à atuação do Poder Judiciário em especial diante do processo crescente de judicialização da política, tão questionado pelos demais Poderes do Estado e pela própria sociedade, cumpre rever o papel atribuído ao Judiciário.
O presente estudo tem por objetivo tratar da questão do controle judicial das políticas públicas de direitos sociais e procurar avaliar as suas possibilidades e limites de acordo com as disposições constitucionais.
Inicialmente tratamos brevemente de aspectos gerais sobre políticas públicas, judicialização da política e as objeções ao processo, para em seguida fazer referência ao conceito e a caracterização dos atos discricionários e a sua conexão com a execução das políticas públicas. Depois enfrentamos os questionamentos relacionados ao papel do Poder Judiciário no controle dos atos de governo e, por último, situamos o debate em relação à judicialização da política e à efetividade dos direitos sociais, com a discussão sobre suas possibilidades e limites, principalmente em relação ao controle das políticas públicas.
2. Políticas públicas e a judicialização da política
O debate sobre o controle judicial de políticas públicas não pode ser processado meramente com compreensões de ordem jurídica porque basicamente a questão enverada por searas marcadas pela multiplicidade de saberes (interdisciplinariedade e transdiciplinariedade). A complexidade fica ainda mais evidente quando se constata que nenhuma das matérias específicas que caracterizam o estudo das políticas públicas se encontra definida com exatidão e de modo unívoco, a começar pela própria definição de políticas públicas ou policy.
As políticas públicas compõem um conjunto heterogêneo de medidas do ponto de vista jurídico, pois envolvem discussão em diversos ramos do direito, tais como as leis que tratam do regime das finanças públicas, leis que regem as concessões de serviços públicos, leis de zoneamento urbano etc.
Além disso, as políticas públicas as vezes respondem a problemas, a pedidos, a exigências; algumas vezes, elas próprias configuram problemas, levantam questões, dão origem a exigências. Nem sempre há um problema por resolver quando existe uma política pública, da mesma maneira que nem sempre existe uma política pública para resolver cada problema.
Entretanto, um grande obstáculo na análise destas está na falta de estudos comparativos que conduzam a modelos analíticos capazes de ir além dos sistemas e das políticas individuais. E mesmo que se conseguisse chegar à elaboração de modelos comparativos fiáveis, duas grandes questões continuariam em aberto:
a) complexidade – dificuldades inerentes à visão de conjunto de processos pouco estruturados, pouco previsíveis, difíceis de reconduzir a percursos certos ou de se repetir e que se caracterizam pelo caráter episódico e fragmentário;
b) democraticidade – os processos de produção de políticas públicas são habitualmente controlados por intervenientes singulares e coletivos que não receberam nenhum mandato eleitoral e que certamente não responderão pelas suas escolhas e pelos seus atos perante os cidadãos.
Quanto maior é o número de intervenientes na produção destas políticas mais difícil, ou impossível, se torna atribuir responsabilidades concretas em matéria de decisão de cunho político. O problema diz respeito aos próprios processos de produção das políticas, à sua estabilidade, à sua previsibilidade e à sua eficácia. A maior parte seria formulada, escolhida e posta em prática essencialmente de forma episódica e ocasional.
Face aos obstáculos expostos tem pertinencia questionar se as matérias referentes às políticas públicas estariam sujeitas ao controle judicial. Não seriam tais matérias objeto de escolhas discricionárias do Poder Executivo (Administração Pública especialmente), cujo controle judicial se circunscreveria ao exame da forma, mas não do mérito?
O certo é que o exame judicial das políticas públicas está longe de ser uma matéria pacificada na doutrina e na jurisprudência e, inclusive, o problema tem contribuído para acentuar o coro das reclamações movidas pela sociedade e meios de comunicação sobre a atuação do Poder Judiciário, principalmente em relação a crise de legitimidade da sua atuação e na cobrança de respostas mais adequadas aos anseios e demandas sociais sob o seu exame.
Admitir a hipótese de exercício do controle judicial das políticas públicas não soluciona os impasses porque perdurará tensões em relação ao momento em que o controle deverá ser exercido e sobre a extensão em cada caso, se em caráter preventivo, concomitante e sucessivo à implementação dos programas públicos sociais e econômicos, ou seja, em três momentos disitintos: na formulação, na execução ou na avaliação das políticas públicas.
Um dos obstáculos para aceitação do controle é que a título de controlar a execução de uma política pública os juízes não só anulam os atos administrativos praticados, como também alteram o seu conteúdo, através de uma atividade substitutiva, promovendo medidas de cunho prático a partir de direitos previstos de modo genérico na Constituição. A intervenção judicial deixa de ter uma natureza invalidatória exclusiva, passando a assumir uma função substitutiva.
Deste modo, desperta interesse discutir doutrinariamente as questões políticas sem se contrapor a ideia de que os limites da intervenção judicial na formulação e execução das políticas públicas dependerão da concepção que o próprio Judiciário irá adotar sobre a extensão de sua própria jurisdição, a partir da interpretação da Constituição como um todo. Não menos relevante é o emblemático debate em torno do controle judicial das políticas públicas e o Princípio da Separação dos Poderes.
A solução não é simples, pois as consequências da adoção de um modelo ilimitado de jurisdição dos direitos sociais e de implementação das políticas econômicas pelo Judiciário é inconstitucional e produz resultados políticos, tais como: a) legitimidade, uma vez que legislador e administrador (Executivo) foram eleitos; b) Judiciário não possui aparato técnico para identificar prioridades na implementação de políticas sociais e econômicas; c) Judiciário deve rever atos dos outros poderes e não substituí-los; d) a substituição desgasta o Judiciário; e) decisões do Judiciário equivocadas estariam imunes a uma revisão pelos outros poderes; f) a invasão sobre demais Poderes resultaria na possibilidade de controle político do próprio Judiciário.
A própria expansão das ações do Poder Judiciário é um fenômeno que aconteceu em larga escala no final do século passado e despertou o interesse das ciências sociais sobre o papel do Poder Judiciário. O Poder Judiciário ocupa cada vez mais um lugar estratégico no controle dos demais Poderes, principalmente do Poder Executivo.
A ampliação do Poder Judicial é avaliada por fatores diversos, alguns afirmam que as condições políticas para o surgimento da judicialização são: a expansão da democracia como condição necessária, embora não suficiente para o surgimento da judicialização; a separação dos Poderes como modelo de estruturação funcional do Estado; a existência de direitos políticos formalmente reconhecidos; o uso dos tribunais pelos grupos de interesse; o uso dos tribunais pela oposição e a inefetividade das instituições majoritárias. Todas estas condições estão presentes no caso brasileiro.
As relações entre o sistema judicial e o sistema político atravessam um momento de tensão cuja natureza pode ser resumida numa frase: a judicialização da política pode conduzir à politização da justiça.
A recente atuação dos tribunais constitucionais e cortes supremas põem em relevo a questão problemática dos princípios da separação de poderes e da neutralidade política do Poder Judiciário, e também introduz um tipo original de espaço público, não vinculado as clássicas instituições político-representativas.
Nota-se que uma intensa pressão e mobilização política da sociedade provoca a expansão do poder dos tribunais ou daquilo que designa como “ativismo judicial”. Nos países da common law este ativismo judicial é mais favorecido em face das práticas de criação jurisprudencial do direito e da influência política do juiz. Já nos países de sistema continental, os novos textos constitucionais, quando incorporam princípios, estabelecem Estados democráticos de Direito, edificam objetivos e fundamentos do Estado, acabam por assegurar o espaço necessário para interpretações construtivistas por parte da jurisdição constitucional.
Há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afetam de modo significativo as condições da ação política. Tal pode ocorrer por duas vias principais: uma, de baixa intensidade, quando membros isolados da classe política são investigados e eventualmente julgados por atividades criminosas que podem ter ou não a ver com o poder ou a função que a sua posição social destacada lhes confere; outra, de alta intensidade, quando parte da classe política, não sendo capaz de resolver a luta pelo poder pelos mecanismos habituais do sistema político, transfere para os tribunais os seus conflitos internos através de denúncias cruzadas, quase sempre através da comunicação social, a espera que a exposição judicial do adversário, qualquer que seja o desenlace, o enfraqueça ou mesmo o liquide politicamente.[2]
No momento em que ocorre, não é fácil saber se um dado processo de judicialização da política é de baixa ou de alta intensidade. Só mais tarde, através do seu impacto no sistema político e judicial, é possível fazer tal determinação. Enquanto a judicialização de baixa intensidade retira a sua importância da notoriedade dos investigados, a de alta intensidade retira-a da natureza dos conflitos subterrâneos que afloram judicialmente. É, por isso, que só esta última tende a provocar convulsões mais sérias no sistema político.
À luz destas considerações, conclui-se que a “operação mãos limpas”, desencadeada pelo Ministério Público italiano, no início da década de noventa, constituiu uma judicialização da política de alta intensidade, enquanto a que ocorreu ao longo da década na Espanha, Bélgica e França foi de baixa intensidade.[3]
A judicialização é apontada como um processo que ocorre em dois sentidos por Vallinder:[4] como uma reação do Judiciário à provocação de terceiro e que tem por finalidade revisar a decisão de um poder político com base na Constituição (mediante o controle jurisdicional de constitucionalidade). Ao fazer a revisão, o Judiciário ampliaria o seu poder frente aos demais poderes; e como a utilização do aparato judicial na administração pública; portanto, juntamente como os juízes vão os métodos e procedimentos judiciais que são incorporados pelas instituições administrativas que eles ocupam.
Várias são as ferramentas interpretativas do processo de judicialização da política que podem, inclusive, ser empregadas para análise da ampliação do poder judicial tanto nos países centrais como nos periféricos: a intensificação da normatização de direitos, principalmente em face de sua natureza difusa e coletiva; as transições pós-autoritárias e a edição de constituições democráticas, seja em países europeus ou latino-americanos, com a preocupação com o reforço das instituições de garantia do Estado de Direito, dentre eles a magistratura e o ministério público; as diversas investigações voltadas para esclarecimento dos casos de corrupção a abranger a classe política, fenômeno já descrito como criminalização da responsabilidade política; as discussões sobre a instituição de algum tipo de poder judicial internacional ou transnacional; e, finalmente, a incidência de discursos acadêmicos e doutrinários, vinculados à cultura jurídica, que percebem a expansão do poder judicial como reforço da lógica democrática.
A judicialização da política, segundo alguns críticos do processo, está a conduzir à politização da justiça. Esta consiste num tipo de questionamento da justiça que põe em causa, não só a sua funcionalidade, como também a sua credibilidade, ao atribuir-lhe desígnios que violam as regras da separação dos Poderes dos órgãos de soberania. A politização da justiça coloca o sistema judicial numa situação de stress institucional que, a depender da forma como for gerido, tanto pode revelar dramaticamente a sua fraqueza como a sua força. É cedo para saber qual dos dois resultados prevalecerá, mas não restam dúvidas sobre qual o resultado que melhor servirá a credibilidade das instituições e a consolidação da nossa democracia: que o sistema judicial revele a sua força e não a sua fraqueza. Revelará a sua força se atuar celeremente, se mostrar que, mesmo em situações de stress, consegue agir segundo os melhores critérios técnicos e as melhores práticas de prudência e consegue neutralizar quaisquer tentativas de pressão ou manipulação.[5]
3. Separação de Poderes e a judicialização da política
Na discussão sobre a judicialização da política sempre vale a pena debater a responsabilidade democrática dos juízes. Dúvidas não pairam sobre a importância da atuação do Poder Judiciário no que diz respeito à garantia da concretização dos direitos de cidadania, contudo, é fundamental que o seu atual protagonismo seja compatível com as bases do constitucionalismo democrático.
No passado, as críticas ao processo de judicialização da política partiam de setores comprometidos com a defesa de uma hermenêutica constitucional restritiva, uma vez que vinculados a uma cultura jurídica positivista e privatística. O que agora se ouve são vozes que invocam a vontade de domínio dos tribunais e a conseqüente restrição da soberania popular e dos direitos fundamentais.
Uma das objeções mais recorrentes ao fenômeno de judicialização da política consiste na referência de que o processo conduz a fratura da separação dos Poderes, tendo em vista que o Poder Judiciário, através de suas decisões, atinge o Poder Legislativo através do controle de constitucionalidade ou pelo exame ou reexame de atos afeitos a sua competência (p. ex.: exames dos atos das Comissões Parlamentares de Inquérito, dos processos de cassação de parlamentares por falta de decoro), e também atinge o Poder Executivo através do controle jurisdicional dos atos administrativos, principalmente das políticas públicas.
Cumpre acentuar que o alargamento do âmbito de atuação do Poder Judiciário não pode representar qualquer incompatibilidade com um regime político democrático, ainda que a incidência política da justiça possa variar segundo os países. Se o atual protagonismo do Poder Judiciário pode ser visto positivamente, essa expansão deve ocorrer sem violar o equilíbrio do sistema político e de maneira compatível com as duas bases da democracia constitucional: garantir os direitos dos cidadãos e limitar cada poder político e assegurar a soberania popular. Afinal, ainda que o ativismo judicial transforme em questão problemática os princípios da separação de poderes e da neutralidade política do Poder Judiciário, isto não significa que os processos deliberativos democráticos devam conduzir as instituições judiciais e transformar os tribunais em regentes republicanos das liberdades positivas dos cidadãos.[6]
Vários autores entendem que os tribunais exercem a função de estabelecer uma síntese interpretativa dos valores constitucionais forjados pelo povo e, por isso, não manifestam temor de que o processo de judicialização da política venha a atuar em desacordo com o império da lei e seus fundamentos democráticos.
Cabe indagar se a conexão entre ativismo judicial e reforço da lógica democrática que subjaz ao processo de judicialização da política pode induzir a quebra de limites normativos à soberania popular, por mais legítimo que seja o movimento político a defender-lhes.
As constituições das democracias contemporâneas demandam uma interpretação construtivista das normas e dos princípios que as integram e as decisões dos tribunais – especialmente diante dos conflitos entre direitos fundamentais – têm necessariamente o caráter de decisões de princípio. Apesar da dimensão “criativa” da interpretação constitucional – dimensão presente em qualquer processo hermenêutico e que não ameaça a separação de poderes -, os tribunais constitucionais, ainda que recorram a argumentos que vão além do direito escrito, devem pronunciar decisões corretas e não se perder na tarefa de “criação do direito” a partir de valores preferencialmente aceitos. A decisão de princípios emanada pelas cortes supremas não podem ser equivalentes a emissão de juízo que ponderam objetivos, valores e bens coletivos, pois, a interpretação constitucional deve decidir qual pretensão e qual conduta são corretas em um dado conflito e não como contrabalançar interesses ou relacionar valores.
Como bem alerta Gisele Cittadino, uma interpretação constitucional orientada por valores, que opta pelo sentido teleológico das normas e princípios constitucionais, com evidente descuido em relação ao caráter vinculante do sistema de direitos constitucionalmente assegurados, desconhece não apenas o pluralismo das democracias contemporâneas, mas a lógica do poder econômico e do poder administrativo. A concepção de comunidade ética de valores compartilhados parece desconhecer as relações de poder assimétricas inscritas nas democracias contemporâneas. Por isso, num Estado democrático de Direito, a corte constitucional deve entender-se como protetora de um processo legislativo democrático e não como guardiã de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais.[7]
Uma cidadania ativa acontece quando os cidadãos vêem a si próprios não apenas como destinatários, mas também como os autores do seu direito e se reconhecem como membros livres e iguais de uma comunidade jurídica. Daí a estreita conexão entre a plena autonomia do cidadão, tanto pública como privada, e a legitimação do direito. É precisamente do fato de que são autores e destinatários do ordenamento normativo que decorre, portanto, o direito dos cidadãos de tomarem parte na interpretação constitucional, ampliando o círculo de intérpretes da Constituição (Häberle), ou de outra forma contribuindo para o favorecimento do processo de judicialização da política. O processo de judicialização da política pode ser desvinculado das concepções valorativas de uma comunidade de intérpretes, pela via de um amplo processo hermenêutico, que procura dar densidade e corporificação aos princípios abstratamente configurados na constituição.
Segundo Gisele Cittadino, esse é o caso brasileiro. Se hoje podemos discutir o processo de judicialização da política é porque fomos capazes de superar o autoritarismo e reconstruir o Estado de Direito, ao promulgar uma constituição que, nesse processo, representa um consenso, ainda que formal, em torno de princípios jurídicos universais. Se a constituição brasileira não pode ser tomada como uma ordem particular de valores, é preciso, portanto, implementar e inscrever os seus princípios em nossa história política. Para isso, o processo de judicialização da política não precisa invocar o domínio dos tribunais, nem defender uma ação paternalista por parte do poder Judiciário. A própria constituição instituiu diversos mecanismos processuais que buscam dar eficácia aos seus princípios, e essa tarefa é de responsabilidade de uma cidadania juridicamente participativa que depende da atuação dos tribunais, mas, sobretudo do nível de pressão e mobilização política que, sobre eles, se fizer.[8]
A questão da judicialização da política freqüentemente esbarra na discussão sobre a separação de Poderes, por esta razão cabe esclarecer sucintamente o significado do princípio da separação de Poderes com o intuito de melhor compreender este tipo de crítica.
O princípio da separação dos Poderes tem gerado, ao longo dos seus mais de dois séculos de existência constitucional, a maior controvérsia doutrinária e dogmática, que vai da total rejeição à defesa incondicional. As acepções em torno da compreensão da separação de Poderes variam muito, pode-se enumerar, a título de exemplo, algumas abordagens:[9]
a) Distinção entre os conceitos de legislativo, executivo e judicial, para designar quer funções estaduais distintas quer os órgãos que respectivamente as exercem.
b) Independência ou imunidade de um órgãos estadual, quanto ao(s) seu(s) titular(es) ou quanto aos seus atos, perante a ação ou interferência de outro.
c) Limitação ou controle do poder de um órgão estadual mediante o poder conferido a outro órgão de anular ou impedir a perfeição dos atos do primeiro, ou mediante a responsabilização de um perante o outro.
d) Participação de dois ou mais órgãos, independentes entre si, da mesma função estadual, em ordem à prática de um ato imputável a todos.
e) Incompatibilidade de exercício simultâneo de cargos em diferentes órgãos estaduais.
O Princípio da Separação de Poderes (art. 2º da Constituição brasileira de 1988) é uma peça chave da democracia representativa, que procura impedir a concentração de todas as funções do Estado num único órgão ou em órgãos submetidos a um único centro.[10] O objetivo consubstanciado na sua criação é a repartição, a limitação e o controle do poder político ao que se somou, posteriormente, a especialização das funções e a eficiência no desempenho das funções estatais.
Enquanto instrumento de repartição, limitação e controle do poder; o princípio da separação de Poderes fortalece a democracia porque visa a evitar dentre outras coisas a suplantação da representação e a arbitrariedade. Elementos estes que uma vez alijados do Estado comprometeriam a efetividade democrática do mesmo.[11]
O princípio pressupõe uma distinção material das funções estaduais, cujo o desempenho de cada uma delas cabe a um órgão ou grupo de órgãos específico, independente dos demais; esta distinção material das funções estaduais e a separação orgânico-pessoal nela fundada se pautam não só por preocupações de ordem jurídico-dogmática, mas também por preocupações garantísticas: a visão desenvolvida consiste na idéia de que nenhum desses órgãos chegue a controlar, por si só, a totalidade do poder do Estado; a entrega de cada uma das atividades do poder político seja destinada a diversos órgãos de maneira que cada constitua perante o outro um freio e um contrapeso, prevenindo-se a concentração e o abuso do poder, a favor da liberdade individual.
Como uma separação orgânico-funcional rígida não é viável na prática, a independência entre os vários órgãos não pode ser absoluta, antes deve existir entre eles mecanismos de coordenação e interdependência – o que, em última análise, reforçará a fiscalização e o controle recíproco.
Na sua dimensão orgânico-funcional, o princípio da separação dos Poderes deve continuar a ser visto como princípio de moderação, racionalização e limitação do poder político-estadual no interesse da liberdade. Tal constitui seu núcleo imutável, mas deixou, no entanto, de pressupor necessariamente uma classificação material das funções estatais, com aspiração a uma validade científica universal e intemporal. Não é um dogma, mas apenas parte integrante de uma concreta constituição, a partir de cuja distribuição de competências se constrói, o princípio pretende ainda, assegurar atualmente uma estrutura orgânica funcionalmente justa, como princípio de organização ótima das funções de um Estado ativo como o hodierno.[12]
No âmbito do princípio da separação de Poderes ganha cada vez maior relevância a variedade de meios recíprocos de controle inter-orgânico, dentre os quais avultam diversas modalidades de fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos, postergado, aonde chegou a triunfar, o dogma de raiz iluminista da intangibilidade da lei.
A isto se juntam outras maneiras de separação de Poderes, para além das que se processam entre órgãos estaduais supremos – as quais, de todo o modo, continua a constituir a modalidade fundamental do princípio – de que se destaca a chamada separação territorial ou vertical dos poderes.
Enfim, progressivamente ocorreu uma complexificação do princípio da separação de Poderes e o seu tratamento dogmático ganhou contornos mais densos.
O perfil contemporâneo do princípio da separação de Poderes desautoriza qualquer mensuração do mesmo em caráter absoluto, ou seja, para designar uma total separação. O controle do poder foi o objetivo principal, o fundamento de toda essa construção e não pode ser esquecido ou abandonado em nome de concepções meramente dogmáticas. Com isso também não se pretende afirmar que qualquer intervenção proveniente do Poder Judiciário, acobertada com o suposto manto de controle recíproco, seja devida ou mesmo necessária.
Os limites entre controles recíprocos e invasão de competência nem sempre são muito claros e as dificuldades perduram em estabelecer até onde o Poder Judiciário pode exercer o controle dos atos de Governo sem exacerbar suas funções. Contudo, também não é correto utilizar o princípio da separação de Poderes como um instrumento inviabilizador do controle do Poder Judiciário sobre as políticas públicas sob a alegação de que acarretaria uma indevida judicialização da política, principalmente quando o exame procedido pelo Judiciário tem por propósito conferir a compatibilidade dos atos com as normas constitucionais que vinculam todos os poderes, inclusive a administração. Há que se buscar a moderação, o equilíbrio na atuação dos três Poderes, apesar de se reconhecer a presença de inúmeros obstáculos para alcançar esta finalidade.
4. Discricionariedade e atos de governo
A objeção suscitada sobre a Separação de Poderes e suas conseqüências no processo de judicialização da política materializa-se na questão do controle jurisdicional dos atos da administração em confronto com a discricionariedade do administrador identificada como uma característica inerente a determinadas espécies de atos administrativos, principalmente relacionados ao desenvolvimento das políticas públicas. Daí a importância de esclarecer determinados elementos da relação entre os atos de governo e a discricionariedade do administrador antes de propriamente adentrar na temática do controle jurisdicional das políticas públicas.
A constituição, enquanto estatuto jurídico do fenômeno político, apresenta uma série de finalidades a serem cumpridas pelos agentes estatais de modo obrigatório. A relação estabelecida na realização destas finalidades possui um caráter de dever, antes de um “poder”, que caracteriza uma função em termos jurídicos.
As lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, ressaltam a importância de se dimensionar o eixo metodológico do Direito Público em torno da idéia de dever e não com base na visão mais convencional articulada em torno da idéia de poder. Isto porque no exercício da função pública o sujeito exercita um poder, entretanto o faz em proveito alheio, e age não porque queira ou não queira, mas porque tem o dever de fazê-lo. Assim conclui: “o chamado “poder discricionário” tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal. Só assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado, compreendendo-se, então, que o que há é um dever discricionário, antes que um “poder” discricionário.”[13]
A discricionariedade consiste em certa margem de liberdade, expressa no conteúdo do ato praticado pelo administrador, no cumprimento estrito da lei, que decorre da hipótese prevista na norma, e/ou no comando nela inserido e/ou na finalidade por ela pretendida. Nestas situações cabe um juízo subjetivo do administrador no que diz respeito: a) à determinação ou reconhecimento, dentro de certos limites, da situação fática; b) ao agir ou não agir; c) à escolha do momento para fazê-lo; d) à forma jurídica do ato; e) à escolha de medida considerada adequada, perante a situação de fato, para cumprir a finalidade legal.[14]
Cumpre ressaltar que a discricionariedade permitida no comando da norma tem por objetivo requerer do administrador o cumprimento do dever de adotar a melhor solução, ou seja, a conduta a ser adotada deve ser capaz de satisfazer de forma excelente a finalidade legal. Assim, a liberdade administrativa é maior na norma de Direito, do que perante a situação concreta. De maneira que, as circunstâncias fáticas limitam a discrição que está abstratamente tratada na norma. Caso o administrador adote alguma medida que conflite com a finalidade da norma, o Judiciário deverá exercer o controle jurisdicional do ato, ou mesmo da omissão do ato, quando for o caso.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, discricionariedade consiste na margem de liberdade pertencente ao administrador para escolher, de acordo com critérios substanciais de razoabilidade, um, dentre pelo menos duas opções de comportamentos admissíveis, perante cada caso concreto, com o intuito de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da abertura das expressões contidas na lei ou da liberdade expressa no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.[15]
Após apresentar sucintamente a noção de discricionariedade, passaremos a abordar a questão do controle dos atos de governo pela jurisdição.
5. Controle judicial dos atos de governo
Na Constituição encontram-se as opções políticas fundamentais de uma determinada comunidade; portanto, esta sujeita-se às variações temporais e espaciais identificadoras, em cada caso, do povo e da época histórica que visa regular.
O fenômeno político encontra-se em grande medida normativamente disciplinado no estatuto constitucional. As constituições não têm a pretensão de esgotar a ordenação do aspecto político de um povo, inclusive porque seria impossível atender tamanha empreitada e, ainda que fosse possível responder favoravelmente a este esforço, seria problemático, visto que a Constituição tornar-se-ia um entrave às mudanças que caracterizam a dinâmica social.
A Constituição, como estatuto jurídico do político, define os princípios políticos constitucionalmente estruturantes, estipula a configuração e disposição organizacional do Estado e do governo, estabelece as atribuições e competências constitucionais dos órgãos de direção política, e determina os princípios, formas e processos fundamentais da formação da vontade política e das tomadas de decisões pelos órgãos político-constitucionais.[16] Assim, a Constituição versa sobre as feições e meio de construção e exprime o poder como instrumento de vontade e decisão, é uma expressão normativa das forças políticas e sociais e estabelece medidas e fins ao processo político.
É fato que a política e o direito estão mais próximos; inclusive, a discussão em torno da judicialização da política cresce dia após dia e acrescenta novos estudos dedicados a discutir esta questão.[17] Um dos fatores apontados como justificativa para explicar o maior entrelaçamento entre política e direito se deve ao processo de expansão da democracia como forma de governo predominante nos países. Com isso, os componentes básicos de articulação do processo democrático ganham destaque nos textos constitucionais. Há uma verdadeira interação da ordem política com todos os elementos que tomam parte na Constituição.
O controle do poder político não é de fácil realização, a dinâmica política é avessa ao controle e restrição, contudo para assegurar as pessoas em relação ao arbítrio das autoridades surgiram as primeiras doutrinas sobre o tema e toda a construção do Estado de Direito, culminando hodiernamente no Estado democrático de direito que prima pelo aperfeiçoamento das instituições políticas em torno da democracia formal e substancial, bem como pelo aprimoramento e garantia das prerrogativas do Estado de direito e do Estado social. O Estado democrático de direito demanda o controle recíproco entre os poderes estatais e sobre seus agentes e também o controle exercido pela sociedade com vistas a fiscalizar as instituições políticas e seus agentes, responsáveis pela concretização dos objetivos, metas e finalidades consignados na ordem constitucional.
A atividade controladora do poder pela jurisdição envolve: a) o controle de constitucionalidade da ação estatal; b) o controle de conformidade dos atos governamentais com a Constituição (legalidade compreendida em seu sentido amplo) – voltado à função de governo e da administração, bem como da omissão estatal.
Os atos governamentais concretizam em grande escala os comandos constitucionais, por isso torna-se necessário o estabelecimento de técnicas de controle de conformidade destes atos com relação à Constituição, pois este controle também alcança a omissão da administração e do governo e o poder normativo secundário.
De acordo com Oswaldo Luiz Palu, o controle de conformidade constitucional ou de supralegalidade ou de legitimidade funda-se em princípios constitucionais que constrangem o governo e a burocracia e atuar em conformidade com a constituição e tem como conseqüência as injunctions, isto é, determinações de obrigação de fazer ou não fazer ao agente estatal, além da nulidade dos atos desconformes. Assim, entende que o controle de conformidade dos atos estatais à constituição é mais abrangente que o controle de legalidade, é requer a conformidade dos atos de governo, administrativos e normativos secundários as determinações constitucionais. A relevância particular desse controle reside principalmente na tutela dos direitos fundamentais, materializados sob a ótica metaindividual, na via da ação civil pública.[18]
A proporção em que a vinculação dos atos de governo for mais tênue, mais intensa será a sua conexão com a constituição, nomeadamente com os direitos, liberdades e garantias. Deste modo, quando a administração pratica atos no exercício de um poder discricionário, está obrigada a agir conforme com os direitos, liberdades e garantias, à constituição e ao Direito. Tais direitos são parâmetros imediatos que vinculam o poder discricionário da administração e a violação dos mesmos pode originar a invalidade dos atos administrativos.
O controle de conformidade atinge os atos da função governamental-normativa não retratados em leis (ações e omissões, formulações de políticas públicas, decisões orçamentárias) e os atos do poder regulamentador não consubstanciados diretamente em lei, trata-se de um controle de legalidade ampliado. É um controle casuístico e difuso, não é um controle abstrato. Em relação à função de governo, este controle refere-se à omissão, que permite a jurisdição emitir ordenação de agir, isto é, condenação consubstanciada em obrigações de fazer, de não fazer e de dar (injunctions) ou anulação de atos.[19]
Uma vez apresentada as justificativas de um controle de conformidade dos atos de governo e administrativos à constituição, abordar-se-á a questão do controle jurisdicional das políticas públicas no Brasil.
Uma pergunta que envolve a matéria consiste em saber diante de quais situações autoriza-se o controle jurisdicional das políticas públicas?
Segundo o Ministro Celso Antônio Bandeira de Mello, relator da ADPF n. 45/2004, a resposta a tal indagação reside naqueles casos em que o Poder Legislativo ou o Executivo agirem de modo irrazoável ou com manifesta intenção de inviabilizar ou comprometer a eficácia dos direitos sociais e com essa postura atingir “como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais a própria sobrevivência do indivíduo.”
Cumpre esclarecer que por políticas públicas entendem-se as ações estratégicas (de instituições ou pessoas de direito público) que visam a atingir fins previamente determinados por finalidades, objetivos e princípios de natureza pública. Tais ações são marcadas por níveis elevados de racionalidade programática, caracterizados por medidas organizacionais e de planejamento.[20]
As políticas públicas constitucionais vinculantes são as ações que a constituição atribui aos Poderes estatais como efetivadoras de direitos e garantias fundamentais, e todas as decorrentes delas, tendo em vista os níveis compartilhados de responsabilidade pró-ativa e de imediata implementação por parte dos poderes instituídos entre os entes federativos e a cidadania que permeia a matéria. Tais como as disposições previstas no art. 5°, XXXIV, XLVIII, XLIX, L, LV; art. 23, 170, 194, 196 e 197, 201, da Constituição brasileira de 1988, para todos estes casos existe a necessidade de produzir políticas públicas concretizadoras, operadas em níveis diferenciados de efetivação, como por exemplo: criação, constituição formal, execução e avaliação das ações indispensáveis, contando com a participação máxima da comunidade. As políticas públicas vinculantes independem da vontade ou discricionariedade estatal para acontecerem, pois condizem com direitos indisponíveis de da maior relevância e emergência comunitária, exigindo materialização imediata.[21]
Na República, tendo em vista as competências constitucionais das entidades federativas, em suas dimensões prestacionais em face dos direitos e garantia sociais, as funções institucionais específicas do Estado (legislativas, executivas e judiciais) condicionam-se ao cumprimento não facultativo do que lhes foi estabelecido, sob pena de fazê-lo coativamente, inclusive com a possibilidade de aplicar o dispositivo do art. 37, par. 6° da Constituição brasileira de 1988, de exigir que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público respondam pelos danos que seus agentes, nessa qualidade provocarem a terceiros.
A dificuldade reside em saber a medida e a intensidade da intervenção judicial neste âmbito.
A dimensão de Estado democrático de Direito passa pela avaliação da eficácia e legitimidade dos procedimentos utilizados no exercício de gestão dos interesses públicos e sua própria demarcação, a partir de novos comportamentos institucionais e novos instrumentos políticos de participação que expandam a dimensão democrática da construção social de uma cidadania contemporânea.
Algumas objeções são suscitadas, especialmente pelos norte-americanos, em relação à intervenção do Poder Judiciário nas questões relacionadas ao cotidiano do Poder Executivo e do Legislativo que são representantes legítimos da soberania popular. Contudo, essa preocupação não tem fundamento real porque a nossa democracia estrutura-se na idéia de participação política social por meios institucionais e não-institucionais.
O Poder Judiciário não tem o condão de fazer políticas públicas, mas pode e deve assegurar que as escolhas públicas já tomadas e inseridas na constituição, que demarcam os objetivos e finalidades da República Federativa sejam cumpridas. Porém, sem perder de vista que as políticas públicas relacionadas a concretização das prestações sociais são de caráter coletivo e universais na sua configuração, deste modo, a atuação do Judiciário deve ser cautelosa para não tornar individual o que na sua essência foi estruturado como coletivo, ou seja, quando ressaltamos a sindicabilidade das prestações sociais o fazemos acentuando seu caráter universalizante como o elemento prioritário, embora não exclusivo, posto que este melhor reflete os compromissos fixados na Constituição brasileira de 1988.
A visão de que os limites da ação do Poder Judiciário são impostos pela reserva do possível também não se sustenta na sua integralidade, porque não se pode transferir ao próprio agente estatal responsável pela obrigação descumprida a exclusiva e unilateral competência de definir o que é possível ou não em termos de efetivação dos direitos fundamentais, em face de sua não disponibilidade. Por isso, a cláusula da reserva do possível só se justifica quando aferida em face de motivo razoável que desculpe a autoridade, de forma fundamentada e ampla, em processo próprio, com transparência e contraditório, faça a prova de impossibilidade de cumprir com o estabelecido.
O Poder Executivo não somente executa as normas legislativas sobre direitos sociais. Ele cria as próprias políticas e os programas necessários para a realização dos ordenamentos legais. Essa função governamental planejadora e implementadora é decisiva para o próprio conteúdo das políticas e a qualidade dos mesmos parece estar concentrado na não-alocação de recursos suficientes nos orçamentos públicos, seja da União, dos Estados ou dos Municípios e, parcialmente também, da não-execução dos respectivos orçamentos pelos órgãos governamentais.
Segundo Andréas Krell, a essência de qualquer política pública é distinguir e diferenciar com o intuito de realizar a distribuição dos recursos disponíveis na sociedade. Essas políticas expressam escolhas realizadas pelos vários centros de decisão estatal e são limitadas pelas normas programáticas constitucionais. Onde o processo político (Legislativo, Executivo) falha ou se omite na implementação de políticas públicas e dos objetivos sociais nelas implicados, cabe ao Poder Judiciário tomar uma atitude ativa na realização desses fins sociais através da correição da prestação dos serviços sociais básicos.[22]
As políticas públicas constitucionais vinculantes garantem a sociedade civil como um todo ou aos particulares sujeitos de direitos (em condições excepcionais e sujeitas a ponderação), o direito subjetivo público de serem protegidos contra a ameaça ou lesão, utilizando todos os remédios jurisdicionais pertinentes, tendo em vista que a constituição outorgou aos objetivos, finalidades e direitos e garantias fundamentais à condição de títulos executivos de obrigação infungível de fazer do Estado, como espaço jurídico da processualidade, com a acolhida em seu âmago da efetividade destes direitos.
O caso concreto possibilitará a concretização material do controle jurisdicional pelo não cumprimento daquelas políticas públicas. Para isso disporá dos meios de prova indispensáveis para aferir culpa e dano, com a aplicação de regras dogmáticas especiais (p.ex. cálculos periciais), como contar com utilização de princípios informativos de ponderação, da subsidiariedade etc.
6. Eficácia dos direitos sociais e o problema da escassez de recursos
Uma das razões da necessidade do Direito resulta da escassez relativa aos bens, que exige critérios de repartição, que não são os que derivam das regras de economia, mas sim aqueles que supõem razões morais que são assumidas pelo poder e transladadas a organização da vida social. A escassez amplia sua incidência sobre o jurídico, estendendo-a a dimensões de validade, de justificação da existência mesma do Direito, como também as dimensões de justiça e de eficácia.
Os problemas que relacionam escassez e direitos fundamentais centram-se principalmente no âmbito dos direitos econômicos, sociais e culturais e não afetam de forma equivalente e direta aos direitos civis e políticos, porque o problema coloca-se em relação às carências de bens de muitos indivíduos, ainda que indiretamente essas carências e essas insatisfações possam afetar a uma utilização insuficiente ou inadequada dos direitos civis e políticos, por falta de capacidade de seus titulares.
A discussão da problemática da escassez e os direitos fundamentais assume contornos relacionados a própria questão da justiça. Neste sentido, indaga-se se a escassez de bens ou a necessidade sem satisfação, as carências de muitas pessoas, pode ser resolvida com a intervenção do Direito na forma de direitos fundamentais ou não? Se cabe recorrer as razões clássicas para que a escassez dê lugar a aparição do Direito como forma de distribuição, para evitar violência e gerar segurança? Se é razoável estender a funções de redistribuição, substituindo ao indivíduo, para proporcionar-lhe desde fora, através do Direito, instrumentos para sair das carências com a satisfação de necessidades básicas, radicais, de manutenção ou de melhora?
Gregório Peces-Barba responde afirmativamente a tais questionamentos e sustenta que essa escassez e essas carências supõem: a) Um impedimento para que as pessoas que se encontram nessa situação desenvolvam plenamente os elementos que constituem a condição, capacidade do uso da razão humana construindo conceitos gerais, capacidade de eleição para decidir livremente seus planos de vida e concretizar suas idéias sobre o bem ou sobre a virtude, sua capacidade comunicativa para dialogar com os outros e para a transmissão oral ou escrita de sua própria semente de criação; b) Um impedimento para que possam usar em plenitude suas liberdades individuais e seus direitos civis e políticos, e ser, por conseguinte cidadãos que participam da vida comum e sejam capazes de entender em todas as suas dimensões o interesse geral. E é para afrontar esses problemas que se constrói um modelo político de Estado social e se ampliam às funções do Direito em uma nova função promocional, que gera obrigações positivas gerais, porém não exclusivamente dos poderes públicos.[23]
Segundo Amartya Sen, questiona-se o paradigma econômico que crê que todos os homens são apenas seres que competem na esfera do mercado, sendo certo que também são seres que cooperam como membros iguais de uma comunidade política. Acentua Sen a idéia de liberdade positiva, como inseparável da liberdade negativa, sendo este um ponto de partida para um uso dos direitos fundamentais como elementos retificadores da desigualdade, da escassez e da pobreza. Outro ponto de vista de Sen importante é que a causa de sua reflexão está no fato da pobreza que considera que a intervenção do Direito para conseguir uma igualdade na capacidade básica, ainda não esconde a dificuldade de estabelecer um índice dos grupos de capacidades básicas. Esta liberdade positiva e sua consecução da igualdade em capacidades básicas se conectam com a idéia de funcionamento e dignidade de uma pessoa, com dimensões mais elementares como a correta nutrição, a boa saúde, a moradia decente e outras mais como a instrução adequada, o estar socialmente integrado, dentre outras, daí se chega a liberdade de optar entre diversos tipos de vida, já que com isso consiste a capacidade de uma pessoa.[24]
O passo significativo é que aparecem desde a perspectiva econômica aliados para a liberdade positiva e para o Estado social, a legitimar os direitos econômicos, sociais e culturais como causa dessa liberdade positiva, desde uma reflexão ética da economia, que se separa dos fins da criação de riqueza, como fins exclusivos, para abrir-se a outros fins de independência ou autonomia moral do homem. A esses efeitos a escassez se converte em motivo de ação para resolver necessidades básicas através dos direitos.
A relação entre escassez e direitos fundamentais é antes de tudo um problema de eficácia. A questão não se relaciona diretamente com os direitos civis e políticos que criam um status protetor para a livre ação dos particulares no primeiro caso, ou para a ação comum e participação nas ações coletivas. Nesses âmbitos a escassez é reduzida. Contudo, um dos argumentos centrais a favor da redistribuição é que as pessoas que padecem da escassez e não tem as necessidades básicas cobertas carecem da capacidade plena para usar e desfrutar dos direitos civis e políticos. Este argumento é reconhecido pelos adversários quando sustentam que o direito de propriedade é básico, ainda que aceitem que o fato de que a escassez impeça a generalização desta, e ainda muito mais quando sustentam que só os proprietários, os que têm um nível de instrução e inclusive quem não estão obrigados a vender sua força de trabalho, estão capacitados como titulares de direitos.
A liberdade, valor central e raiz dos direitos humanos, têm três dimensões: protetora, participativa e promocional ou prestacional. As duas primeiras justificam os direitos individuais, civis e políticos e a terceira os direitos econômicos, sociais e culturais e são o instrumento adequado para afrontar o tema da escassez e a satisfação das necessidades. Estes direitos são instrumentos para capacitar a pessoa para que possa atuar, mesmo que os outros grupos permitam e protejam a atuação, porém não se incide sobre o funcionamento de uma pessoa. Os adversários desta tese se movem numa contradição insuperável ao sustentar ao mesmo tempo em que todos os homens nascem e permanecem livres em direitos e ao negar as ações positivas necessárias para converter essa afirmação em real e efetiva.
O que há de correto no argumento dos inimigos da justiça distributiva em forma de direitos é que neste âmbito são relevantes as condições econômicas ou os meios e os instrumentos com conteúdo econômicos necessários para levar adiante muitos desses direitos. Precisamente tem como função canalizar a ação positiva dos poderes públicos para intervir na realidade econômica redistribuindo os meios escassos. Assim a escassez se converte em razão para que o direito exista, em possível causa de que alguns direitos não podem existir na realidade, não possam ser eficazes. O possível paradoxo da escassez consiste em que esse direito que potencia a necessidade histórica do Direito objetivo pode ser uma razão central para a impossibilidade de alguns direitos.[25]
Em que sentido é aqui relevante à escassez como limite dos direitos e que repercussão tem esse problema na teoria dos mesmos?
Em relação aos direitos individuais, civis e políticos não cabe a discriminação por razões econômicas e todos os homens e os cidadãos são titulares desses direitos. Em relação com os direitos econômicos, sociais e culturais, estes só poderão se afirmar plenamente quando situações de escassez ou de carência não impeçam o fato que o direito afetado seja atribuível a todos, sem discriminação. No primeiro caso o tema se coloca no âmbito da justiça e da moralidade, porque seria injusto e imoral que fatos econômicos pudessem ser alegados como argumentos de dever ser para excluir do exercício de direitos. No segundo caso o problema se coloca no âmbito da eficácia, se a carência impede que todos sejam titulares. Certamente que essa carência não frustraria que algumas dessas pretensões subjetivas sejam Direitos, porém que o sejam na categoria de direitos fundamentais.
Este argumento serve para todos aqueles direitos que repousem na existência de bens, se a escassez impede que tenham o traço da generalidade que caracteriza aos titulares dos mesmos. Quando a realidade escassa tornar possível um conteúdo igualitário, acessível a todos, podemos estar em uma categoria jurídica, de um direito subjetivo, porém não em um direito fundamental em qualquer das suas formas (direito subjetivo, liberdade, potestade e imunidade).
Para melhor compreender as dificuldades relativas a escassez e os direitos sociais é preciso enfrentar as questões: Escassez em que sentido e de que? Que aspectos de que direitos? A noção de escassez diz respeito a um conjunto de exigências e de restrições. Nada é escasso sem restrições, e restrições existem de muitos tipos: de recursos materiais e derivadas do puro passar de um tempo irreversível, da ausência de comunicação, de dificuldades de coordenação ou simplesmente da impossibilidade lógica de satisfazer vários requisitos simultaneamente.
Diante do fato de que existem restrições, perdura o enigma de saber como arbitrar entre objetivos múltiplos cujo cumprimento simultâneo torna-se complicado? Ainda a conjecturar que um direito pudesse ser garantido plenamente, isto muitas vezes não iria ocorrer em detrimento da satisfação de outros? E, em tal caso, como escolher entre eles? Neste caso realmente o problema existe? Não deveriam ser os direitos fundamentais mutuamente compatíveis e complementares?
Segundo Salvador Barberá, frente ao caráter inevitável de certas restrições uma atitude possível consiste em renunciar a alguns dos axiomas em benefício de outros. Se pensar que ditos axiomas, ou ao menos alguns deles, poderiam refletir a satisfação de direitos, isto equivaleria a renunciar a algum direito para garantir que outros possam satisfazer-se. Esta postura equivalente a ordenar os distintos requisitos é a que parece manter-se na maioria dos debates, por exemplo, entre distintos tipos de igualdade, e é a única possível se os direitos ou outros requisitos venham definidos em termos absolutos. Se vários requisitos só podem dar-se ou não, e são incompatíveis entre si, algum tem que ceder. Porém ao se admitir que existam diversos graus de cumprimento possíveis para cada um dos direitos poder-se-á matizar muito mais. Acaso a satisfação absoluta e simultânea de todos eles não possa lograr-se, porém se poderá estudar que combinações de níveis são mutuamente compatíveis e explicitar as diversas arbitragens possíveis, frente às restrições, entre ditos objetivos.[26]
Aumentos no número de opções abertas que não comportam melhoras qualitativas podem significar pouco desde o ponto de vista da liberdade. Aumentos de renda que não permitam alterar qualitativamente a composição do consumo podem ajudar a viver melhor, porém podem não representar mudanças importantes na liberdade de uma pessoa. As restrições pressupostas não permitem o consumo de todo tipo de bens: dão lugar a soluções de esquina, no que o consumo de determinados bens é zero. Isto unido à descontinuidade de certos bens, que só podem ser consumidos a certos níveis não divisíveis, pode fazer que determinadas mudanças qualitativas requeiram saltos quantitativos não graduais. O caráter dinâmico da liberdade, combinada com a idéia de que esta não é absoluta, mas relativa, permite apontar a importância, deste e de todos os demais direitos, de recordar que o que hoje podem ser níveis aceitáveis para estes, podem deixar de sê-lo por um passo de tempo, porque seu próprio desfrute pode altera nossas valorações deles e criar novas necessidades. Este aspecto dinâmico, que introduz exigências continuadas, reforça a importância de definir cada direito ou cada objetivo em termos absolutos, senão por seus níveis de satisfação.[27]
Assim, Salvador Barberá sustenta uma posição relativista, porém com mínimos sociais. Defende razões para abandonar posturas absolutas em relação a qualquer objetivo concreto que se formule com respeito a formas alternativas de organização social, e em favor de definir graus de cumprimento de cada um, incluídos os de satisfação de distintos direitos, o que permitiria arbitrar entre uns e outros em cada momento ou inclusive discutir as possibilidades de ir aumentando as cotas de satisfação de distintos direitos com o passar do tempo. Uma das dimensões empregadas como exemplo é a da necessidade de eleger entre igualdade, em distintas formas, contrapondo a necessidade de eleger entre igualdades absolutas em uma delas, ao preço quase já em outras. Porém flexibiliza a posição relativista aceitando a existência de mínimos absolutos, em relação aos quais a defesa das liberdades e demais direitos deveriam adquirir prioridade total, porque deixam de entrar em conflito. Se a desigualdade é um conceito relativo, e assim devem interpretar-se os distintos índices que procuram lhe medir, a pobreza é uma categoria que, ainda mutante em sua definição segundo épocas e sociedades, temem cada uma um sentido absoluto.[28]
A posição relativista no tratamento dos graus de cumprimento de uns direitos frente a outros, e em relação inclusive com outros objetivos como o crescimento e a eficiência, só pode sustentar-se em sociedades onde as cotas mínimas de satisfação de direitos estejam garantidas. Só uma vez solucionadas as situações de pobreza desesperada podem-se partir para políticas redistributivas sofisticadas. Só depois de garantidos direitos elementares pode-se permitir refinamentos acerca de quais deve ser mais satisfeitos que outros, e em que graus.
Pós-Doutora em Ciências Jurídico-Políticas. Doutora em Direito do Estado. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais. Pesquisadora em Direito. Professora Adjunta da UFRJ (Direito e Gestão Pública).
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