Sempre que quisermos conhecer de fato uma questão, temos que, desde logo, começar por entender todo o universo que circunscreve nossa curiosidade. O tema de nosso trabalho é bastante claro e objetivo, muito embora, seu título guarde para nós um certo eufemismo.
Conquanto, ainda que o título nos pareça inadequado, ao mesmo passo, é insignificante a forma com que nomeamos o evento factual em si, quando o que realmente nos interessa é compreender melhor e com propriedade toda a dimensão dessa conduta, bem como, a propagação de seu resultado. O resultado ao qual nos referimos não se restringe ao delito de homicídio, estando no leque desta análise, a lesão corporal e moral.
Nos parece extremamente impossível tecer qualquer tipo de comentário sobre os delitos passionais, sem antes, entender o que significa o termo “paixão” inserido neste contexto. E, este nosso intuito tem uma tendência epistemológica. Sim, neste primeiro momento devemos compreender o que é a paixão. De sorte, paixão e amor não se confundem, diferem em seu objeto de desejo, distam em suas motivações.
Contudo, surge-nos um ponto antecedente, àquele que precede as causas e os sentimentos humanos, que é o próprio sujeito titular da ação. Quem é o homem? Quem é este ser capaz dos mais diversos sentidos e antagônicos sentimentos?
Nos parece propício dizer que, nossa análise não pode lançar mão do princípio da causalidade, porque na observação empírica do elemento humano não há margem para previsibilidade, tampouco, para prognósticos.
E mesmo sob o enfoque jurídico, nunca haverá como encartar no rol de nossas certezas a forma pela qual se empreenderão os atos e atitudes que perfazem a conduta humana, pois, é elementar que haja uma orientação pessoal, intrinsecamente concebida e observada por seu titular, e, nisto consiste todo o grau de imprevisibilidade. Embora, por inúmeras vezes nos defrontamos com certas ilações convencionadas ao homem médio (homo medius[1]), que ganha significância por retratar o conhecimento, sentimento e comportamento da maioria que compõe a sociedade. Todavia, já percebemos ser impossível criar ou delimitar um “homo medius” quando se tem como elemento direcional e coordenador uma sociedade constituída por indivíduos distintos e únicos. As pessoas não se confundem essencialmente umas com as outras, as personalidades não se repetem, portanto, os critérios não podem ou não conseguem ser os mesmos. Daí porque, não haverá como afirmar a existência de uma propensão no agir humano. Haverá sempre algo latente ou velado, porém, inerente à introspectividade de sua natureza, pois, cada indivíduo é universo único e pessoal.
E, é dentro desta órbita de singularidade, Hanna Arendt, com muita propriedade, nos revela a distinção entre a “aparência e a realidade”, demonstrando a impossibilidade de se conhecer o íntimo de uma pessoa, a menos que se pudesse empreender um processo de desprivatização ou desindividualização, noutras palavras, haverá sempre uma obscuridade, uma espécie de incerteza quanto às forças da vida íntima, as paixões do coração, os pensamentos da mente e os deleites dos sentidos.[2]
A paixão é um sentimento, que segundo François Fourier, se compõe por uma força matricial tríplice: aprimoramento, competição e mudança. Razão pela qual, o reconhecimento do sujeito “apaixonado” é o que possibilita vislumbrar a forma pela qual se expõem seus afetos, o modo pelo qual se exteriorizam e ganham a dinâmica dos acontecimentos no mundo dos fatos. Embora, de acordo com o sentido filosófico encontrado nas enciclopédias, a paixão possa ser descrita como um sentimento despertado por desejos veementes, nos parece mais cabível descrevê-la como uma energia sinestésica que tende ao esgotamento, esvaindo-se sucumbente.
De acordo com a mitologia grega, conhecida também através da narrativa de Homero, vemos na “Odisséia de Ulisses”[3] uma reflexão sobre as emoções, sentimentos e afetividades. E, mais precisamente, no Canto XII, vemos o heróico protagonista vivenciar a sujeição quase que torturante à própria vontade, a par de uma imensurável vulnerabilidade de suas razões. Ou seja, Homero nos ilustra a circunstância em que o próprio Ulisses perde a direção e o comando de seu agir, rendendo-se à supremacia de suas paixões.
De posse destas colocações, vemos surgir uma coerência, mas nunca, uma justificativa, que talvez nos reporta à compreensão da conduta delitiva no campo passional, porque pudemos verificar que o sentimento da paixão é indominável, e se revela no ser como uma ebulição febril, capaz de desnortear, e porque não, surpreender.
Mais recentemente, a Lei 11.340/2006, veio tratar da violência doméstica e familiar, e por utilizar-se destas palavras demonstra-se abrangente. Porém, vê-se que a atividade legiferante voltou-se uma vez mais a coibir a violência praticada, principalmente, contra a mulher. A letra da lei nos aponta que o agente não possui qualquer qualidade especial a destacá-lo, podendo a prática do delito advir de qualquer elemento da entidade familiar. Lembrando que, familiar é tudo que participa de nossa intimidade, que desfruta de nosso convívio, com quem temos elo de afetividade, afinidade ou ligação profunda. Melhor dizendo, estão abrangidos pelo termo ‘familiar’ todos aqueles com quem, de certo modo, temos ou deveríamos ter, uma cumplicidade afetiva.
Mas, se é certo que a preocupação legislativa é com as maiores necessidades sociais, posto que, se o estado não pode de pronto atender a todas, algumas se mostram prioritárias, e ensejam a atenção de um atendimento imediato. Portanto, a violência que suplanta ou ignora sentimentos e afeições, hoje, continua sendo uma problemática atual, e mais, permanece em caráter progressivo.
Em tempos passados, os crimes passionais alcançaram notoriedade e ganharam a mídia através de capacidade inventiva de grandes juristas, capazes de desnaturar traços de um caráter egoísta e covarde presentes no agente delitivo, permutando-os pela comoção propositadamente angariada àquele vitimado por uma violenta emoção. Sim, em sua maioria, as teses defensivas pautaram por questões de um momentâneo descontrole emocional, desequilíbrio desencadeado por um comportamento reprovável do “ser amado”. Tão reprovável, a ponto de torná-lo merecedor de um castigo, embora, o castigo desejado ensejasse ser tão gigantesco quanto à desonra e a indignidade sofrida, e para tanto, em equivalente proporção, só mesmo a morte.
Hoje, caem por terra as grandes teses que apontavam o criminoso passional como alguém que perdeu seu referencial de autocrítica e censura, ou, que tenha sofrido uma queda considerável em sua racionalidade, daí porque, agiria como um auto-justiceiro na prática de sua defesa, ou na pior das hipóteses, como vítima de sua própria vingança. Razão pela qual, uma vez desconsideradas as defesas fundadas em teses de privação dos sentidos ou da inteligência, nossos Tribunais têm visto o crime passional como hediondo, ou seja, crime sem atenuantes, sem diminuição de pena, ou ainda, sem qualquer fiança. Assim, a jurisprudência tem dado ao assassino passional as sanções atribuídas aos criminosos da pior espécie, vislumbrando-o como um assassino vingativo, frio e cruel, eqüidistante do ser que pode ser compreendido como apaixonado.
E segundo o Antonio de Pádua Serafim[4], “todo mundo tem um grau de periculosidade”. E, embora haja muitos perfis, dois são mais comuns aos assassinos passionais, são eles: o dependente e o possessivo. Conquanto, seja tão patológico um quanto o outro, no dependente há traços que assinalam uma projeção de vitalidade do agente com relação à vítima, onde esta atua como força motora. Enquanto no caso do possessivo, há um exercício de controle e autoridade do agente sobre a vítima, sendo esta um objeto do comando e domínio. Contudo, em ambos os casos; vemos que há uma estreita representação da relação de causalidade entre o sentimento e o sentido experimentado pelo agente, ambos vinculados ao papel que a vítima desempenha em sua vida.
Por este ângulo, nos vêm com clareza a percepção de que os crimes passionais possuem sempre uma essência patológica, bem como, há uma inclinação desta essência ao fator social. Decerto, os delitos sempre se originam no desequilíbrio, seja qual for sua ordem: social; política ou psíquica. Pois, qualquer situação delitiva vem sempre demonstrar o envolvimento desproporcional destas ordens umas nas outras. Ou seja, não haveria delitos se a atitude social fosse correta, se o acervo psíquico fosse perfeito, ou ainda, se a questão política fosse satisfatória. Porque não há como entender as razões de um crime subjugando a estrutura cênica do agente, seu ambiente e, seu envolvimento na sociedade.
Demarcando esta questão, temos que o elemento feminino tem sido culturalmente desprezado pela sociedade desde o início das civilizações. Assim também tem sido o relacionamento “homem e mulher”, no qual pouco sobressai ou se evidencia um sentimento de união de caráter real. Retomando o escorço do tempo, é possível verificar que as primeiras uniões, que hoje intitulamos como o instituto do casamento, já não eram afetivas, visava tão somente manter cordatos os guerreiros das tribos, deveriam sim guerrear por outros valores, outros interesses, mas, não deveriam lutar entre si, tampouco, disputarem a mesma fêmea, e, de tal modo, uma vez consolidada a união, aquela fêmea possuía um dono, e daí por diante, passava ser um objeto individual. Sim, o instituto do casamento surgiu com o fito de individuar o objeto de uso pessoal, a propriedade conquistada ou o bem adquirido.
Em conformidade com esta condição, Norberto R Keppe, nos diz:
“A sociedade foi organizada pouco a pouco de uma maneira machista, na qual os valores femininos foram completamente abafados. […]. A mulher como representação do belo, que é o elemento mais sensível e primário da existência; ela é formada diretamente pela ética, estética e verdade. […]. Estou dizendo que o fundamento da existência é a beleza, que é ligada ao sentimento (amor). E, vendo o representante do belo em plano totalmente inferior, pode-se compreender o motivo de toda a balbúrdia social; é fácil notar que quanto mais atrasado é um grupo ou um país, mais a mulher é desprezada”.[5]
E, neste mesmo sentido, Charles Sanders Peirce[6] com fulcro na lógica, sempre tentando dar um caráter científico às idéias filosóficas. Utilizando-se da fórmula do método pragmático, que visa conhecer o significado das idéias e conceitos intelectuais, estudou a estética como a primeira das ciências normativas, conseqüentemente, o belo, mas, sem desvirtua-lo de seu valor universal e absoluto. Conseguiu, porém, dentro da gama de valorações que possam culturalmente lhe ser atribuída, encontrar a mais adequada, ou seja, de que o belo retrata não só aquilo que pode ser percebido pelos sentidos humanos, tendo por isto, sua melhor expressão em algo plenamente admirável, que seria o bem comum. Assim, afirmativamente, leciona Peirce:
“À luz da doutrina das categorias, parece-me que um objeto, para ser esteticamente bom, possuirá um sem número de partes todas relacionadas de tal modo a produzir uma qualidade positiva, simples e imediata”.[7]
Com efeito, Peirce assinala que sua compreensão da estética traduz-se no ideal supremo, e a ética naquilo possível de ser buscado; de tal modo, nossas condutas voluntárias se detêm entre estes dois pólos: o do agir e o da responsabilização por nossos atos. Cabe salientar que, se correlacionarmos a argumentação de Keppe à explanação de Peirce, passaremos a compreender com exatidão os parâmetros analisados, e, chegaremos a conclusão de que dentro do contexto social: bem comum, justiça, igualdade, afeto, verdade, são representações do mesmo ‘belo’ quisto por todos.
Por estes fundamentos, concluímos dizendo que, os crimes passionais são em verdade, um mal cultural. E os males da cultura refletem doenças sociais. Daí porque, não basta que o legislador conceba normas como se a comunidade humana fosse sã, ou, doe diagnóstico àquele ferido de morte. Cumpre não olvidar que a fera humana jamais se tornará mansa, por via da sanção que a mantiver enjaulada.
Notas:
Funcionária Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC/SP e, em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP., pós-graduada em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura, também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP.
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