Após inúmeras discussões judiciais, finalmente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a tese da prejudicialidade da ação penal na pendência de discussão administrativa do crédito tributário.
É que o crime definido no art. 1° da Lei n° 8.137/90 é de resultado, isto é, pressupõe a supressão total ou parcial do tributo, o que não acontecia no regime da Lei n° 4.729/65, conhecida como lei de sonegação fiscal, que tipificava crime de mera conduta, em que era possível sustentar a tese da independência das esferas fiscal e penal.
De fato, se o elemento nuclear do crime exige a supressão do tributo ou a sua redução não tem sentido algum condenar o contribuinte se a Administração Tributária, posteriormente, pode chegar à conclusão de que o tributo não era devido.
Por isso, o Plenário do STF considerou constitucional o art. 83 da Lei n° 9.430/96 que proibiu a representação fiscal para fins penais antes de ultimado o processo administrativo tributário onde se discute o crédito tributário constituído pelo auto de infração (ADI n° 1571-1/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 19-12-2003).
Para as ações penais em curso a Corte Suprema preconizou a suspensão do processo criminal e da prescrição até a finalização do processo administrativo tributário em que se discute o crédito tributário, em atendimento à natureza do crime do art. 1° da Lei n° 8.137/90, que é de resultado (HC n° 81.611, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 13-5-2005, p. 0006).
Por último, a Corte Suprema para encerrar a discussão de vez editou a Súmula vinculante nº 24: “Não se tipifica crime material contra ordem tributária, previsto no art. 1°, incisos I a IV, da Lei n° 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
Os antecedentes que ensejam a edição dessa Súmula vinculante estão a indicar que não pode haver instauração de processo penal antes do encerramento da discussão do crédito tributário na esfera administrativa.
Dessa forma, o enunciado da Súmula deve ser interpretado literalmente, pois é sabido que o lançamento definitivo ocorre com a notificação do sujeito passivo do ato do lançamento (auto de infração) quando, então, aquele ato de lançamento torna-se inalterável, salvo nos casos especificados (art. 145, incisos I, II e III, do CTN). Atendida a notificação mediante pagamento da importância exigida extingue-se o crédito tributário. Apresentada a impugnação, instaura-se o processo administrativo tributário para solução da lide. Enquanto não for ultimado o processo administrativo não pode haver denúncia criminal. Esse é o sentido da Súmula.
Entretanto, para a grande surpresa de todos os estudiosos da matéria a Primeira Turma do STF, por maioria de votos, afastou a tese sumulada sob o fundamento de que a questão do término do processo administrativo-fiscal para ter-se a persecução criminal mostrou-se construção pretoriana, e que a Lei n° 8.137/90 não exige a necessidade de esgotar-se a via administrativa para configuração da prática criminosa.
Transcrevamos a ementa do v. acórdão:
“Crime tributário – Processo administrativo – Persecução criminal – Necessidade. Caso a caso, é preciso perquirir a necessidade de esgotamento do processo administrativo-fiscal para iniciar-se a persecução criminal. Vale notar que, no tocante aos crimes tributários, a ordem jurídica constitucional não prevê a fase administrativa para ter-se a judicialização.
Crime tributário – Justa causa. Surge a configurar a existência de justa causa situação concreta em que o Ministério Público haja autuado a partir de provocação da Receita Federal tendo em conta auto de infração relativa à sonegação de informações tributárias a desaguarem em débito do contribuinte.” (HC n° 108.037/ES, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 1-2-2012)
Examinando o inteiro teor do v. acórdão verifica-se que se tratava de um caso em que, por representação fiscal foi instaurada a ação penal contra contribuinte que omitiu nas declarações de ajuste dos exercícios de 1999 a 2001, anos calendários de 1998 a 2000, diversos valores levantados pelo exame de extratos bancários conforme apontados nos autos de infração formalizados pela Receita Federal. O paciente havia sido condenado pelo Juízo da 8º Vara Federal Criminal de Vitória por prática do crime previsto no art. 1º, incisos I e II, da Lei nº 8.137/90. A denúncia ocorreu em 16-5-2003 e a inscrição na dívida ativa em 21-2-2004, quando estava em curso a instrução criminal e, portanto, antes da sentença condenatória que se deu em 4-8-2005, com trânsito em julgado em 2-12-2009.
O ínclito Relator asseverou que o “Ministério Público imputou a prática de omissão criminosa concernente à omissão de informações em Declaração do Imposto de Renda, citando o auto de infração que resultou em crédito tributário de R$ 9.837.113,32.”
Daí a denegação do habeas corpus nos seguintes termos:
“Diante desse contexto – a ausência de lei exigindo o processo administrativo para apuração do débito, não bastasse a existência do auto de infração – a ordem natural das coisas não está a direcionar à insuficiência de dados capaz de levar à necessidade de formalização do processo administrativo. Descabe potencializar a construção jurisprudencial a ponto de chegar-se, uma vez prolatada sentença condenatória, confirmada em âmbito recursal, transitada em julgado, ao alijamento respectivo, assentando a falta de justa causa.
Ante o quadro, indefiro a ordem. É como voto.”
Esse voto foi acompanhado pelos Ministro Luiz Fux e Cármen Lúcia. Votou contra o Min. Dias Toffoli.
Há na verdade, com a devida vênia, equívocos nesse julgado.
Primeiramente, a omissão de informações em Declarações do Imposto de Renda, por si só, não caracteriza crime tributário definido no art. 1°, I da Lei n° 8.137/90.
O tipo objetivo do art. 1°, da Lei n° 8.137/90 consiste na supressão ou redução de tributo e qualquer acessório, mediante as condutas descritas nos incisos I a V. Sem a redução de tributo ou a sua supressão não há que se cogitar de crime. Sustentar o contrário é o mesmo que raciocinar à luz do regime jurídico antecedente, a Lei n° 4.729/65.
É verdade que a Lei n° 8.137/90 não condiciona a instauração de ação penal ao prévio esgotamento da discussão administrativa do crédito tributário. E nem era preciso. Alterando-se a natureza do crime, antes crime de mera conduta, agora, crime de resultado, salta aos olhos a tese da prejudicialidade da ação penal, enquanto não ultimar o processo administrativo tributário, sob pena de condenação de um contribuinte que, mais tarde, o próprio fisco autuante pode vir a reconhecer a inexistência de crime por entender que era indevido o tributo exigido.
Em segundo lugar, suspensa a exigibilidade do crédito tributário, por força do disposto no inciso III, do art. 151, do CTN não há que se cogitar de ação penal por falta de pagamento daquele crédito tributário sob discussão.
Em terceiro lugar, o v. acórdão negou vigência ao art. 83, da Lei n° 9.430/96 que proíbe a representação fiscal para fins penais, como aconteceu no caso sob exame após ter sido declarado constitucional aquele art. 83 pelo Plenário da Corte Suprema (ADI n° 1571-1/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 19-12-2003).
Em quarto lugar, afronta a Súmula Vinculante n° 24 do STF, invocado pelo Min. Dias Toffoli para conceder a ordem. Essa Súmula, com certeza, vincula o órgão fracionário do STF.
Em quinto lugar, fez-se vista grossa à quebra do sigilo bancário levado a efeito pela autoridade fiscal, sem ordem judicial, o que se constata da análise da movimentação financeira do paciente constante da peça acusatória. E a Corte Suprema decidiu recentemente que a quebra do sigilo bancário está sob reserva de jurisdição (RE nº 389.808/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 10-5-2011).
Reabrir uma discussão sobre matéria já pacificada pelo Plenário da Corte Suprema, a pretexto de peculiaridade do caso sob exame, traz insegurança jurídica. Só serve para fomentar os meios de coação indireta na cobrança do crédito tributário decorrente de auto de infração formalizado, mediante representação fiscal indiscriminada, como acontecia antes do advento do art. 83, da Lei n° 9.430/96.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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