Resumo: O presente texto, de maneira crítica e não conclusiva, pretende fazer uma breve desconstrução da ciência jurídica que, por vezes, torna o seu cientista mero objeto da pesquisa ao obriga-lo a ser neutro, insensível, desumano. Ao reduzir as questões humanas a expressões numéricas e ao quantificar o sofrimento humano, a ciência jurídica ignora a complexidade humana, inclusive a dos próprios juristas. Com a ousadia e a irreverência típica de quem estuda criminologia cultural, sob luz dos escritos de Jock Young, Jeff Ferrell e Ruth Gauer, propõe-se como solução para essa ciência jurídica a aplicação de uma metodologia etnográfica que permite a expressão de dúvidas, de incertezas, de erros, de sensibilidade do seu pesquisador ao permitir que o humano seja humano.
Palavras-chaves: Criminologia cultural. Etnografia. Ciência jurídica crítica. Experiência. Sensibilidade.
Abstract: This text, in a critical and not conclusive way, intends to make a brief deconstruction of legal science, sometimes makes its scientist mere object of research at the same time as a neutral, insensitive, inhuman. By reducing human questions to numerical expressions and quantifying human suffering, a legal science ignores a human complexity, including that of the jurist themselves. With the boldness and irreverence typical of those who study cultural criminology, under the light of the writings of Jock Young, Jeff Ferrell and Ruth Gauer, it is proposed as a solution to legal science, an application of a methodology and literature that allows an expression of doubts, uncertainties, errors, and sensitivity of the researcher to allow the human to be human.
Keywords: Cultural criminology. Ethnography. Critical legal science. Experience. Sensitivity.
Sumário: Introdução. 1. Tempos modernos, tempos de criminologia. 2. Ciência: um lugar para incertezas. 3. Criminologia cultural: para não morrer de tédio. 4. A etnografia e o pesquisador: o método do jurista humano. Considerações finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Embora os padrões metodológicos da Ciência Moderna oriente que na introdução de um texto deve-se revelar ao leitor como se estruturará o trabalho, no presente escrito isso não ocorrerá. Convida-se o leitor à uma aventura, não entediante, pelo angustiante desconhecido.
1. TEMPOS MODERNOS, TEMPOS DE CRIMINOLOGIA
Ferrell[1], ao citar Vaneigem[2], contextualiza a modernidade ao retrata-la como:
“Um mundo que nos condena a uma morte sem sangue é naturalmente obrigado a propagar o gosto pelo sangue… o desejo de viver é apoderado espontaneamente pelas armas mortíferas; assassinato sem sentido e sadismo florescem. A destruição da paixão renasce como paixão pela destruição.”
Ao abordar a modernidade tardia, Young[3] trata de fronteiras culturais, construídas e cruzadas, de modo que essas parecem, em um primeiro momento, serem firmes, no entanto, estão carregadas de contradições, incoerências e incertezas. O projeto moderno foi pautado para ser um lugar:
“Where all that is solid melts into air, in contrast to the high modernity of the port-war period where the stolid, weighty, secure work situations of Fordism, undergirded by the stable structures of Family, marriage, and community, presented a taken for granted world of stasis and seeming permanency.”[4]
No entanto, a modernidade tornou-se fluída, caótica, incerta, descontrolada em razão da migração em massa e turismo, da flexibilização do trabalho, da desagregação da comunidade, da instabilidade da família, do surgimento de realidades virtuais e pontos de referência em que a mídia é parte do processo de globalização, do impacto do consumo e da idealização do individualismo, bem como da escolha e da espontaneidade.[5]
Se antes as pessoas buscam o conforto, no pós-guerra percebe-se uma mudança de perfil em que o sujeito esforçado da modernidade tardia depara-se com um desmembramento da vida cotidiana, uma consciência de um pluralismo de valores e um individualismo pautado na realização dos seus desejos. De acordo com Young[6], esse desmembramento da vida cotidiana pode ser percebido em dois âmbitos: o social e o individual. Na esfera individual, o sujeito, embora interaja com a sua cultura e com o meio em que está inserido, torna como ideal dominante a sua auto realização. No viés social, encontram-se o mercado de trabalho e a família.
A família também se torna uma seara de conflitos, sendo o início e o fim de um dia entediante e frustrante.[7]
A modernidade recente se caracteriza pela existência de um fosso crescente entre os que estão no mercado de trabalho primário e os que estão nos mercados secundário ou simplesmente fora do mercado de trabalho.[8] O trabalho passa a ser visto como uma caminho a ser guiado pela meritocracia, no entanto, essa perspectiva é falha em decorrência de as recompensas não existirem e o consumo oportunizado pelo trabalho ser uma felicidade transitória que acaba em um grande vazio.[9]
“Os padrões de emprego mudaram, a família e o casamento foram inapelavelmente alterados, o papel das mulheres foi transformado, culturas jovens floresceram, o uso de drogas ilícitas se disseminou, comunidades se desintegraram, os meios de comunicação em massa assumiram um papel chave nas nossas vidas.”[10]
Essa fluidez e desmembramento acabam impedindo a aproximação da justiça social e impedem a construção da identidade, de modo que, ao mesmo tempo em que barreiras são destruídas e ultrapassadas, novas barreiras são erguidas sob a expectativa de criar-se rigidez e assegurar a diferença.[11]
Young[12] ainda discorre sobre othering, que são maneiras de se compreender o outro na modernidade tardia. Na perspectiva conservadora, que consiste na demonização do outro para confirmar os seus próprios atributos, enquanto que no viés liberal percebe-se no outro as virtudes que não falta em si.
Desse dualismo (inclusão e exclusão do outro) pode-se perceber linhas que demarcam fronteiras que são atravessadas apenas por sujeitos de um dos lados. Tendo em vista que ocorreu uma expansão do mercado de trabalho secundário (caracterizado pela insegurança e instabilidade de relações indiretas e informais de trabalho), legitima-se que os trabalhadores que moram nas margens da cidade atravessem as suas fronteiras para servir e manter o estilo de vida e o conforto da comunidade mais favorecidas através do desempenho do seu labor.[13]
Essa transição social do excluído é aceita pelos incluídos em virtude de o trabalho ser colocada como a única forma milagrosa capaz de resolver todos os problemas dos excluídos.[14] Embora essa “subclasse” integre parte do processo econômico, é considera como um fardo, um perigo, merecedora de exclusão, controle, estudo, ajuda, manipulação e padronização para que sigam os ditames da sociedade dominante, caso esses queiram um dia ser incluídos através do trabalho.[15]
É justamente o ressentimento e a insegurança que ocasiona o sentimento de vertigem evidenciados por ansiedades, obsessões, raiva e antipatia na vida contemporânea.[16] Por isso, Young[17], pontua que:
“Vertigo is the malaise of late modernity: a sense of insecurity of insubstantiality, and of uncertainty, a whiff of chaos and a fear of falling. The signs of giddiness, of unsteadiness, are everywhere, some serious, many minor; yet once acknowledged, a series of separate seemingly disparate facts begin to fall into place. The obsession with rules, an insistence on clear uncompromising lines of demarcation between correct and incorrect behavior, a narrowing of borders, the decreased tolerance of deviance, a disproportionate response to rule-breaking, an easy resort to punitiveness and a point at which simple punishment begins to verge on the vindictive.”
A paixão pela destruição é tamanha que muitos sonâmbulos preferem saborear uma morte lenta oportunizada pela incapacitante vida entediante do que se atrever a sair do fundo da cartola do coelho.[18] Embora seja sutil, a modernidade é marcada pela procurada desesperada de vida em meio ao mortificante tédio, a fronteira entre o prazer e a dor, entre o crime e a comodidade, motivo pelo qual o tédio constitui, na prática, o insuportável símbolo da modernidade.[19]
A modernidade tardia, com o caos da recompensa e da identidade, ao ocasionar a inclusão e exclusão, concomitantemente, ainda há o fenômeno da bulimia do sistema social que, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, releva a integração de alguns sujeitos considerados da subclasse ao mesmo passo em que pratica a sua exclusão ao torna-lo um “perdedor” porque a sua ascensão é falaciosa.[20]
Outro antagonismo a ser explanado pela modernidade tardia coloca justiça e comunidade em polos diferentes. Ambas provêm das bases da legitimação do sistema e são, ironicamente, uma fonte primordial de descontentamento.
Na esfera da justiça encontram-se ideias meritocráticas que compreende como justa a recompensa oriunda do esforço e da habilidade, de modo que há necessidade de se decidir que essa recompensa será dividida com todos ou herdada por uma única pessoa.
Enquanto a sociedade moderna vive constantes conflitos, a ciência parece querer ser a concretude e a certeza para toda a liquidez e fluidez desses tempos de tanta incerteza. Por esse motivo, a seguir se tecerá uma pequena crítica à ciência moderna.
2. CIÊNCIA: UM LUGAR PARA INCERTEZAS
Na modernidade, a vinculação do conhecimento ao modelo galilaico-newtoniano e a consideração da ciência como campo privilegiado para a revelação da verdade fundam a matriz de conhecimento mais relevante da tradição ocidental moderna.[21] De acordo com Gauer[22],
“O pensamento moderno se impõe como diferença, deve então reconhecer-se que a diferença que configura esse pensamento está circunscrita pela comprovação de uma nova verdade, precisamente a que é ditada pela ciência. O que quer dizer que os cientistas dessa época, ao tentarem compreender os fenômenos cósmicos desvinculando-os da crença religiosa, não impediram que se sacralizasse uma nova crença, justamente a crença na verdade científica”.
O método experimental científico tem por intuito definir os seus objetos e, principalmente, delimitando-os e sustentando-os como uma crença num futuro passível de ser planejado e construído pelo método científico.[23] A respeito da história da ciência, Gauer[24] lembra que:
“Conforme tem assinalado a história da ciência, esta última foi-se afastando da experiência vivida; e, em paralelo, o Devir sobrepujou o Ser, tornando-se numa categoria (talvez mesmo na categoria) fundamental do pensamento ocidental moderno. Não se estranha, por isso, que a filosofia da história, principalmente após o século XVIII, se concentre no conceito de progresso, circunscrito pela verdade científica e pretensamente destinado a substituir a interpretação do teologismo cristão por uma visão profana da história. Embora a linearidade estivesse presente em ambas as visões, a evolução não levaria agora à cidade de Deus, mas à cidade ideal criada pelo homem racional.”
A crença de que a lógica dos sistemas científicos pode ser transferida e utilizar para todos os domínios do conhecido, tendo por característica o distanciamento do saber científico e da subjetividade. O conhecimento que pretendia ser utilitário e funcional tornando-se uma capacidade de transformar e de dominar.[25]
“A visão de uma ciência “distanciada” (em virtude da sensação de menor apreço pelo elemento subjetivo) deve considerar-se um desenlace previsível do modo como o cientificismo passou a ideia de que a subjetividade pertencia ao mundo da ilusão, só o saber científico se revelando apto a expressar a verdade.”[26]
Pautada em ideologia do determinismo nos assuntos humanos, “o tempo do mundo, ao tornar-se incerto, torna-se, por consequência, diferente do tempo das ciências modernas, onde era definido pela possibilidade de definir leis universais e eternas da natureza”.[27] Por isso, a produção do conhecimento, sem a busca pela verdade universal, está relacionada à consciência de que o conhecimento é provisório, mutável, instável e humano.
Ao abordar ciência, inevitavelmente, há que se contextualizar as noções de progresso e de conhecimento.[28] São esses fatores que determinarão qual Ciência teremos, se a queremos para criar ou manter dogmas ou se a queremos para propor mudanças e não perpetuar erros e injustiças.
A noção de progresso, que é aparentemente evidente, geralmente está atrelada ao crescimento econômico e, consequentemente, ao desenvolvimento social e humano, à qualidade de vida das pessoas, a facilidade para adquirir bens, produtos. Trata-se de uma ideia formada por fatores cumulativos e lineares, simultaneamente quantitativa (crescimento) e qualitativa (isto é, por um ‘melhor’)[29], fruto de uma lógica racional e exata de Ciência.
Conforme Morin[30],
“Estamos habituados a associar a ideia de progresso à de racionalidade, ordem e organização; o que deve progredir, para nós, é a ordem e não a desordem; a organização e não a desorganização. Em outras palavras, se o universo se decompõe, se a vida morre e a humanidade se afunda no caos, é evidente que a ideia de progresso deve dar lugar à de regressão”.
Embora mantenhamos em mente uma lógica linear, no universo físico, biológico, sociológico e antropológico, “o progresso é acompanhando por seu contrário”, uma vez que “não representa a dimensão total da sua realidade, sendo um aspecto devir, mas não o único”.[31] A ideia de progresso comporta incerteza, por isso, há a necessidade de se fazer o progresso da própria ideia de progresso da própria ideia de progresso, desvinculando-o da noção linear, simples, coesa, segura, irreversível e exata.
A Ciência prescinde conhecimento por comportar “informação” e “técnica”. O conhecimento, para ser crítico, não pode ser harmônico, pois deve inserir “diferentes níveis que se podem combater e contradizer”.[32] O conhecimento e a Ciência devem ser instrumentos filosóficos, ou seja, espaços típicos de diálogo, de questionamento constantes, de reflexões oportunas, de conclusões mutáveis.
Na contemporaneidade, “o excesso de informações obscurece o conhecimento; o excesso de teoria, entretanto, também o obscurece”.[33] O imediatismo típico dos tempos modernos não mais nos permitem ter tempo para pensar e, os que ainda possuem essa oportunidade, não a aproveitam pelo simples fato de desgostarem a reflexão.
“No século 20, o cidadão ou pretendente a tal categoria depara incrível número de informações que não pode conhecer e nem sequer controlar; suas possibilidades de articulação são fragmentárias ou esotéricas, ou seja, dependem de competências especializadas; sua possibilidade de reflexão é pequena, porque já não tem tempo nem vontade de refletir.”[34]
É justamente essa fragmentação e pulverização do conhecimento que nos torna suscetíveis a cegueira oriunda da crença em um conhecimento unidimensional e em uma ciência que equacione e promova a solução de todos os nossos problemas. Esse universalismo do conhecimento acarreta uma “destruição do conhecimento-sabedoria, ou seja, do conhecimento que alimente nossa vida e contribua para o nosso aperfeiçoamento”, simplificando a Ciência em mera teorização por afastar de si a sua capacidade de transformação em sabedoria (que, inevitavelmente, inclui a prática da teoria).
A falta de comunicação e de entrelaçamento entre os conhecimentos torna o cientista em um falso intelectual especialista em generalismos pelo ímpeto de se fazer pesquisa sem análise do contexto. Segundo aponta Morin[35],
“O progresso dos conhecimentos especializados que não se podem comunicar uns com os outros provoca a regressão do conhecimento geral; as ideias gerais que restam são absolutamente ocas e abstratas; temos, portanto, que escolher entre ideias especializadas, operacionais e precisas, mas que não nos informam sobre o sentido de nossas vidas, e ideais absolutamente gerais, que já não mantêm, entretanto, nenhum contato com a vida real.”
Ao fazermos uma intersecção entre progresso e conhecimento cria-se um novo diálogo entre ciência e técnica, de modo que essa última é a instrumentalização daquela, ou seja, o seu método de abordagem. Essa abordagem entre ciência e técnica também está sob influência do fenômeno progressivo/regressivo.
Na ciência, como conclui Morin[36], “as consequências dos progressos de conhecimentos não são necessariamente progressivas”, pois atrelado ao progresso dos conhecimentos está o progresso da incerteza e da ignorância.
O conhecimento científico tem caráter ambivalente: progressivo/regressivo, pois, conforme explicita Morin[37],
“O progresso está na especialização do trabalho, que permite o desenvolvimento dos conhecimentos; mas produz também regressão, no sentido de que conhecimentos fragmentários e não comunicantes que progridem significam, ao mesmo tempo, o progresso de um conhecimento mutilado; e um conhecimento mutilado conduz sempre a uma prática mutilante”.
Talvez a discrepância entre conhecimento científico e implementação do conhecimento científico se dê por causa do platonismo dos cientistas que “consideram realidade única as equações que se aplicam ao real, mas, nunca, não o real a que elas se aplicam”.[38] Essa tentativa de adequação do mundo real em mundo científico acarreta na perda de significado, de vida, de subjetividade, de complexidade.
A ciência não pode ser vista como uma erradicação da ignorância. Essa é mutável, incerta, relativa, permite o conflito de ideias e propõe reflexões, ao invés de conclusões incontestáveis. Como possibilidade para se ter uma nova ciência traz-se como exemplo a criminologia cultural que, além de atentar contra os paradigmas modernos, cria uma nova maneira de se fazer ciência, através da sensibilidade do pesquisador.
3. CRIMINOLOGIA CULTURAL: PARA NÃO MORRER DE TÉDIO
A origem da criminologia cultural é um tanto artística e está profundamente atrelada à uma crítica aos padrões, paralisantes e entediantes, da Modernidade. Através da música punk, do grafite com seus slogans subversivos, dos escritos dos críticos do tédio moderno (os situacionistas) e de movimentos de contracorrente que concretizaram um verdadeiro festival de resistência, contestava-se o mundo de prazer do “tédio mecanizado” Disney e a alienante e fraudulenta promessa moderna de progresso mediante trabalho.[39]
Destaca-se as atividades, consideradas ilícitas e (des)organizadas, de grupo Critical Mass e Reclaim the Streets, que tinham por intuito “salvar as ruas do tráfego de automóveis e restabelecer, como alternativa, uma vida pública baseada na ideia de fluidez e de encontros face to face”.[40] Esses se insurgem contra a regularidade da vida moderna ao ocupar as ruas para proporcionar momentos de criatividade e prazer com o intuito de “quebrar a rotina” do tédio diário ao realizar festivais comunitários espontâneos e, assim, reinstaurar no cotidiano a possibilidade do inesperado.[41]
Ferrell[42], ao citar Carlsson[43], ainda explica que:
“Ativistas destes e de outros grupos similares enfatizaram que o automóvel, na qualidade de problema fatal em si mesmo, era, na realidade, sintoma de um conjunto maior de problemas contemporâneos relativos ao extermínio da espontaneidade humana, à rotinização da existência cotidiana e ao enclausuramento da vida humana nos limites das relações de consumo (…0 [dentro de] uma teia de atividades de exploração e de atitudes ofensivas, de comportamentos que empobrecem a experiência humana e degradam a ecologia do planeta”.
A modernidade colocou o sujeito isolado de um mundo secularizado e fragmentado pelas perdas ou incertezas das tradições e, diante de tanta superficialidade, urge o tédio como uma política compatível à uma civilização mecanicista. A banalização que fomenta o desaparecimento da paixão e torna o significante em insignificante demonstra que há uma história política e econômica do tédio que pode ser percebida através da insistente “institucionalização coletiva do tédio nas práticas do dia a dia”.[44]
O trabalho torna-se um pretexto para submeter o sujeito à uma linha de montagem em que para ser útil, produtivo e bom é necessária a eliminação de todos os traços emocionais de uma pessoa. No entanto, a título de recompensa pela sua objetificação, podem, os que estão presos às ruínas do tédio moderno, encontrar um pequeno alívio no trabalho ou no consumo.[45] Nesse mesmo contexto,
“As escolas públicas emergem como centros de treinamento para o novo tédio, laboratórios para a sublimação da individualidade em eficiência disciplinar; e para aqueles insuficientemente socializados na nova ordem, o manicômio, a prisão e o centro juvenil são oferecidos como instituições dedicadas ao reforço do tédio.”[46]
O tédio é paralisante, alienante, contrarrevolucionário, tendo em vista que fortifica o sistema moderno, desumanizador, que padroniza as experiências e mercantiliza a emoção dos sujeitos. Por não admitir riscos e incertezas, todo ato de rebeldia é compreendido, pelas autoridades, como uma conduta ilícita.
Para os críticos do tédio moderno e para os criminologistas culturais, urge-se o combate ao tédio moderno através de instantes de excitação, ou seja, de instantes com potencial para transgredir as fronteiras do cotidiano e tornar real uma “revolução do dia a dia que mantém a urgência humana e a excitação do desvio”.[47]
Para tal, a criminologia cultural propõe a integração entre os campos da criminologia e os estudos sobre a criminologia contemporânea. Utilizando-se de uma dinâmica sutil, os criminologistas culturais estudam as subculturas desviantes e criminosas, bem como a importância do simbolismo e do estilo na formação do significado e da identidade subcultural. Além disso, segundo Ferrell[48], “with its focus on representation, image, and style, cultural criminology incorporates not only the insights of cultural studies, but the intellectual reorientation afforded by postmodernism”.
Alguns estudiosos da criminologia crítica, como Cohen e Young, abordam nos seus trabalhos a influência das mídias de massa na construção da realidade do crime e do desvio, bem como nas formas de controle jurídico.[49]
A criminologia cultural opera a partir da proposição pós-moderna que forma é conteúdo. Para além do exame de sujeitos e de eventos criminosos e da mera análise da “cobertura” midiática desses, a criminologia cultural pretende fazer uma jornada ao espetáculo e ao carnaval do crime, ou seja, “a walk down an infinite hall of mirrors where images created and consumed by criminals, criminal subcultures, control agents, media institutions, and audiences bounce endlessly one off the other”.[50]
A criminologia cultural, originada da interação entre sociologia do desvio e criminologia, fez com que os estudiosos se atentassem para a interação existente entre criminosos, agentes de controle, produtores de mídia e o conceito de crime construído coletivamente. Assim, conforme Ferrell[51],
“In so doing, cultural criminologists attempt to elaborate on the “symbolic” in “symbolic interaction” by highlighting the popular prevalence of mediated crime imagery, the interpersonal negotiation of style within criminal and deviant subcultures, and the emergence of larger symbolic universes within which crime takes on political meaning.”
A criminologia cultural orienta os cientistas a tecer as suas produções com sensibilidade para mediar circuitos de significados diferentes daqueles produzidos pela mídia de massa, permitindo, inclusive, que os pesquisadores utilizem modelos enraizados em sociologia, criminologia, estudos culturais e antropologia para buscar respostas entre a interconexão de cultura e criminalidade.
Por esse motivo, “there remains within the broad framework of cultural criminology a significant Split between methodologies oriented toward ethnography and field work practice, and those oriented toward media and textual analysis”.[52] A pesquisa etnográfica em criminologia cultural consiste na análise, por parte dos pesquisadores, de estudos culturais, de nuances e de significado dentro de determinados meios culturais, ou seja, o referido método utilizado tem por característica a sensibilidade do investigador aos valores e significados subjetivos e do contexto em que pesquisa.
Esse método de pesquisa da criminologia cultural que inclui o pesquisador e suas experiências próprias na construção coletiva da realidade do crime é denominada, por Ferrell[53], de perspectiva etnográfica de Verstehen. Ao permitir que o pesquisador considere as suas experiências e as suas emoções, provoca-se o desmantelamento das hierarquias epistêmicas dualistas que coloca o pesquisador – e o jurista – sobre e além dos sujeitos de pesquisa, a mera análise abstrata imediatista sobre e além do conhecimento situado e o intelecto sanitário – e seletivo – sobre e além da experiência humana e da emoção, conforme pondera Ferrell[54]:
“From this view, the researcher’s own experiences and emotions emerge as windows into criminal events and criminal subcultures, and into the collective experiences and understandings of those involved in them. While certainly fraught with personal and professional danger, and limited by issues of individual and collective identity, this approach seeks to move deep inside the cultures of crime and crime control by dismantling dualistic epistemic hierarchies that position the researcher over and apart from research subjects, abstract analysis over and beyond situated knowledge, and sanitary intellect over and outside human experience and emotion.”
A etnografia está atrelada à pesquisa de campo porque esse é o espaço oportuno para o pesquisador entrelaçar as suas experiências pessoais e políticas com os assuntos que estuda, permitindo assim uma imersão participativa profunda dos pesquisadores no contexto estudado – que no caso da criminologia consiste na pesquisa de mundos criminosos.[55]
Por esse motivo, faz-se jus um maior aprofundamento entre a relação do pesquisador e o método de pesquisa de campo etnográfico (que, conforme Ferrell, não é um método).
4. A ETNOGRAFIA E O PESQUISADOR: O MÉTODO DO JURISTA HUMANO
Por compreender que na modernidade há uma busca incansável pelo prazer, Ferrell[56], aponta que a excitação representa um meio para que se chegar a um fim, de modo que o envolvimento humano emerge como um antídoto ao tédio moderno. É essa procura pela excitação que alimenta o desejo daqueles que se rebelam contra a ordem jurídica e, consequentemente, contra a entediante vida moderna.
Os estudos realizados pela criminologia cultural são oportunos não apenas por compreender que alguns grupos criminosos ou criminalizados criam experiências para violar o projeto modernista do tédio. A criminologia cultural torna-se uma experiência antitédio – consistindo, assim, a revolução do cotidiano[57] – por tornar a experiência humana e a sensibilidade do pesquisador fatores imprescindíveis para a mudança, para a quebra da rotina de tédio e, também, para a superação dos padrões metodológicos da ciência moderna.
“A utilização de técnicas de sobrevivência cuidadosamente desenvolvidas em situações perigosas, a integração momentânea entre práticas artísticas e aventuras ilícitas, a adoção de rituais emotivos que antecedem a racionalidade pré-moderna – tudo isso sugere experiências antitédio precisamente porque recapturam, ainda que momentaneamente, a urgência da experiência humana autônoma.”[58]
No entanto, cabe destacar que há um universalismo antidiferencial na própria criminologia, pois ainda há criminólogos – clássicos e tradicionais – que reforçam as sistemáticas modernas ao tentar de alguma forma “eliminar a artesania criativa das investigações criminológicas alternativas”.[59]
Por isso, “a investigação criminológica é moldada conforme a eficiência científica, desumanizando os seus pesquisadores e aqueles aos quais se propõem investigar e controlar”.[60] Assim como nas fábricas, o mercado de trabalho e os pesquisadores da ciência também são conduzidos à uma racionalização que vai ao encontro do controle eficiente programado pelo projeto modernista.
E a criminologia, com a evolução da modernidade, acabou por colaborar com o fortalecimento do tédio coletivo, de modo que “a evolução da moderna criminologia produziu a uniformização do tédio entre os seus investigadores, seus estudantes e seus prisioneiros”.[61] Foi nesse contexto, com o intuito de combater a inércia proposta pelo pensamento criminológico dominante, criou-se as contracorrentes, estando dentre essas a criminologia cultural.
Embora insurgentes pesquisadores tenham, através do seu trabalho, colaborado para a ciência moderna desconstrua as suas tradições de pesquisa e torne-se algo menos entediante, há uma reprodução por parte das próprias Universidades em adotar metodologias de pesquisa racionalizadas sob a pressão da intensa e constante produção intelectual em massa.
No âmbito da criminologia acadêmica, o pensamento majoritário vai ao encontro do entediante projeto moderno, conforme aponta Ferrell[62]:
“Para os criminólogos norte-americanos, especialmente, esta máquina acadêmica tem sido cada vez mais associada, através das agências de justiça criminal e dos financiamentos públicos de pesquisa, a uma igualmente desumanizadora máquina estatal de vigilância, aprisionamento e controle.”
Essas interferências externas na pesquisa – de agentes financiadoras, por exemplo -, em regra, fomentam a utilização de metodologias que “visam explicitamente reduzir as questões humanas a categorias cuidadosamente controladas de quantificação e cruzamento de dados”, de modo a impor o uso de metodologias direcionadas capazes de excluir a ambiguidade, o inesperado e o “erro humano” de pesquisa.[63]
A vida acadêmica tornou-se apática, entediante, padronizadora, desumana pelo simples fato de condicionar a sua produção à rigores metodológicos com o objetivo de extrair dados objetivos do qual precisa para fortalecer a sua lógica quantificadora do sofrimento humano, além de afastar a possibilidade de se fazer uma produção acadêmica significativa.
Nesse “mundo intelectual no qual toda aventura foi, de fato, abolida”[64], a criminologia cultural desperta o interesse dos pesquisadores em razão “do seu envolvimento com os temas de investigação e de sua vontade de confrontar as condições socioculturais do tédio que permeiam a prática da criminologia oficial”.[65]
A criminologia cultural se propõe a atacar o tédio e os tradicionais padrões científicos modernos através da política da sua teoria e do seu método, bem como nos temas abordados em estudos. Ressalta-se que os criminólogos culturais têm por intuito reumanizar-se os processos de investigação e de análise metodológica ao mesmo tempo que se coloca como um grupo de resistência intelectual e de transgressão desorganizada.
Através das suas metodologias etnográficas, a criminologia cultural utiliza-se de uma via alternativa para analisar as dinâmicas do crime e da cultura, uma vez que permitem que o pesquisador seja humano, passível de se sensibilizar com os significados e com os valores da vida, bem como de expressar humildade e proporcionar momentos de vulnerabilidade, risco e profundo envolvimento com os temas estudados.[66]
Com a possibilidade de se fazer uma ciência impregnada de imprevisibilidade e de incerteza, os estudos etnográficos da criminologia cultural afastam-se de uma criminologia judicial de racionalização científica pautada na objetificação metodológica para contemplar questões que “incorporam o significado cultural das pessoas estudadas, e assim afirmam a sua complexa humanidade que, de outra forma, são reduzidas a resíduos estatísticos e às perigosas ambiguidades do crime e do controle social que desaparecem com a pseudocerteza da ‘ciência social’”.[67]
Os estudos e as sensibilidades etnográficas, segundo Ferrell[68], frequentemente produzem um nível de envolvimento e excitação ausente nas eficientes acumulações de dados da tradicional ciência moderna, pois as metodologias etnográficas não se constituem em métodos, mas em um estilo de vida.
Trata-se de uma revolução do dia a dia, concretizada por momentos de fuga dos padrões cinzas da vida moderna ao proporcionar, com o envolvimento humano, uma verdadeira satisfação e reflexão sobre a existência humana. Instantes de manutenção da urgência humana e de excitação do desvio como os proporcionados pelos grupos Critical Mass e Reclaim the Streets que “celebravam a vida através de prazeres espontâneos da interação furtiva ao recuperar as ruas da escravidão do tráfego e do comércio”.[69]
São esses instantes com potencial autonomia, que ocasionam a colisão de incertezas e de perigos, que o pesquisador, ao perder os limites metodológicos da ciência moderna, libera as suas habilidades e encontra resultados imprevisíveis ao romper com as fronteiras do cotidiano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao fundamentar a ciência em análises na experiência, abandonar a busca pela verdade e problematizar uma epistemologia da incerteza, pode-se permitir que a ciência jurídica tenha mais de ciência humana no seu âmago do que ciência social aplicada, possibilitando que o foco do seu estudo seja o sujeito e a sua relação com o mundo. E isso pode ser concretizado a partir do estímulo à desordem (que estimula a organização e renovação), da possibilidade de o pesquisador interagir com o seu objeto de pesquisa e de expressar a sua sensibilidade, da desconstrução da verdade científica a partir da valorização do relato do pesquisador.
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