Resumo: O presente artigo pretende discutir brevemente o alcance e os efeitos da declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, da inconstitucionalidade do art. 20, §3º, da Lei 8742/1993. Objetiva-se, em síntese, averiguar em que medida se verifica afetação da política pública de assistência social em decorrência da declaração de inconstitucionalidade do critério objetivo fixado pelo legislador para seleção dos destinatários do benefício assistencial. Para tanto, analisa-se como o critério em questão era utilizado para concessão da benesse pela Administração Pública e no bojo de demandas judiciais. Com isso, pretende-se evidenciar que a decisão do STF, ao afastar a concretização do direito à assistência social pela norma legal, confiando na capacidade do julgador de, diante de cada caso concreto, definir o que seja e se foi comprovada a miserabilidade, transferiu para o Poder Judiciário uma verdadeira tarefa de proferir, em cada caso, uma decisão política.
Palavras-chave: Benefício assistencial – Supremo Tribunal Federal – miserabilidade – subjetivismo.
Abstract: This article intends to discuss briefly the scope and effects of the declaration of unconstitutionality of art. 20, §3, of Law 8742/1993 by the Supreme Court. The aim is, in essence, to determine whether there is affectation of public policy on social assistance as result of the declaration of unconstitutionality of the objective criteria set by the legislator to select recipients of the social assistance benefit. For this, we consider how the criteria has been used for granting the benefit by the Public Administration and in lawsuits. It is intended to demonstrate that the decision of the Supreme Court, when panning away the realization of the social assistance right by legal rule, relying on the ability of the judge, facing each case, define what is and if miserability has been proved, transferred to the Judiciary the real task of taking, in each case, a political decision.
Keywords: Social assistance benefit – Supreme Court – miserability – subjectivism.
Sumário: 1. Introdução. 2. O critério objetivo para concessão do benefício assistencial na Loas. 3. O critério objetivo para concessão do benefício assistencial em juízo. 4. Afinal qual o critério para concessão do benefício assistencial 5. Considerações finais.
1 INTRODUÇÃO
A Lei Orgânica da Assistência Social – Lei 8.742, que trouxe os requisitos legais para a concessão do benefício assistencial ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição Federal, conquanto remonte a 07.12.1993, tem ensejado, desde então, inúmeras controvérsias quanto à sua aplicação. Em especial, o requisito objetivo a ser implementado para gozo da benesse, a saber, aquele contido em seu artigo 20, §3º, e consistente na renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, sempre teve posição proeminente: a questão foi apreciada pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, tendo sido declarada sua constitucionalidade no julgamento da ADI n.º 1232-DF, ainda em 27.08.1998. Ainda assim, houve ulterior edição e cancelamento, em 24.04.2006, da Súmula 11 da Turma Nacional de Uniformização, que dispunha em sentido contrário. Depois disso, a mesma questão foi objeto de um sem número de reclamações e recursos extraordinários manejados pelo INSS perante o STF, com julgamentos num e noutro sentido. Por fim, a mesmíssima questão foi novamente analisada pelo STF, desta feita em julgamento conjunto de reclamação (Rcl 4.374-PE) e recurso extraordinário com reconhecida repercussão geral (RE 567.985-MT), tendo sido, alfim, declarada a inconstitucionalidade incidenter tantum do dispositivo.
Nesse recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, do artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 8.742/1993, reconhecendo que os parâmetros legais sofreram processo de inconstitucionalização e que, por conseguinte, seriam admissíveis outras formas de comprovação da situação de miserabilidade em cada caso concreto.
Os impactos imediatos da decisão nas milhares de ações que versam sobre o tema são evidentes. É que, ausente qualquer pronúncia de nulidade do critério legal de ¼ do salário mínimo e no silêncio do legislador, seguirá ele sendo a baliza para a atividade administrativa de concessão ou não do benefício. De outra parte, todo indeferimento administrativo fundado no não-preenchimento do requisito objetivo de aferição da miserabilidade poderá ser objeto de revisão judicial, quando, porém, este critério será desconsiderado por inconstitucional, podendo o juízo deferir a benesse quando entender, por qualquer meio de prova, comprovada a miserabilidade. Dito de outro modo, ao legitimar o profundo distanciamento entre o entendimento administrativo e o judicial, mantendo, porém, sua concomitância, na medida em que não se afastou nem se alterou o critério legalmente previsto para a atividade vinculada da Administração, a decisão do Supremo Tribunal Federal permitiu a interferência direta do Poder Judiciário na execução desta política pública de assistência, outorgando ao juízo de primeiro grau o papel de, em cada caso concreto, analisar o ato administrativo de indeferimento com base em parâmetros próprios do que seja miserabilidade. Daí o problema objeto deste breve estudo.
2 O CRITÉRIO OBJETIVO PARA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL NA LOAS
A Constituição Federal de 1988 trouxe uma seção dedicada à Assistência Social, erigindo-a como direito social e política pública a encargo do Estado. À vista dessa conformação constitucional e levando em conta ser ela integrante do conceito maior de Seguridade Social, pode-se afirmar que a assistência social consiste em “política pública que se ocupa do provimento de atenções para enfrentar as fragilidades de determinados segmentos sociais, superar exclusões sociais e defender e vigiar os direitos mínimos de cidadania e dignidade[1].” Está-se, pois, a falar em política de atenção e defesa de direitos, cujos moldes, em cada sociedade, se dão pela definição do conteúdo do que sejam padrões mínimos de dignidade e pela forma de inclusão e cobertura desses padrões.
Ao fixar seus objetivos específicos, afastando-a, assim, da mera filantropia ou assistencialismo e, de outra parte, incluindo-a no rol das políticas públicas regularmente desenvolvidas pelo Estado, a Constituição assim dispôs em seu artigo 203, V:
“A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: (…)
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.”
Com isso, delineou-se um benefício assistencial de prestação continuada que, somado aos demais benefícios hoje existentes, compõe a política de assistência social e é prestado de forma articulada pela Política de Assistência Social com o fito de ampliar a proteção social e promover a superação das situações de vulnerabilidade e risco social.[2]
Não obstante tenha garantido a percepção de um salário mensal aos deficientes e idosos sem meios de prover sua subsistência, a Constituição delegou para lei ordinária a fixação dos requisitos necessários à concessão do benefício, haja vista ter sido ele previsto em norma de eficácia limitada. A regulamentação do dispositivo adveio com a Lei n.º 8.742/93 – LOAS, que, em seu artigo 20, estabeleceu os critérios para concessão da benesse e, especificamente em seu §3º, assentou que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.
A partir daí, para a concessão do benefício assistencial passou-se a exigir o cumprimento concomitante de dois requisitos: um, de ordem subjetiva, consistente na comprovação da condição de idoso ou de pessoa portadora de deficiência; outro, de ordem objetiva, relativo à comprovação de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo. Desde seu advento, portanto, a renda familiar individual inferior a ¼ do salário mínimo tem sido o critério balizador para aferição da situação de miserabilidade pela Administração e, assim, para a concessão ou não do benefício naquela esfera. De notar que, ao tempo do advento da LOAS, este critério significava que, para obtenção do benefício, a renda mensal de uma família de quatro pessoas deveria ser inferior a CR$18.760,00, hoje equivalente a R$51,59 (final do ciclo de baixa no poder de compra do salário mínimo nacional). Atualmente, esta mesma renda, para uma família de quatro pessoas, não pode ser superior a R$678,00, atual valor do salário mínimo nacional.
O legislador, portanto, ao concretizar preceito constitucional cuja finalidade específica é de transferência direta de renda ao beneficiado, não como complemento, mas exatamente como substrato único para sua manutenção, fixou como objetivo alcançar algumas pessoas ou famílias hipossuficientes economicamente. Por isso, exigiu, para o benefício assistencial, a comprovação da renda inferior a ¼ do salário mínimo per capita, assim como, relativamente aos demais benefícios permanentes de caráter financeiro do Governo Federal, à vista da finalidade específica de cada um, fixou renda de até R$60 per capita para o Bolsa Família e ½ salário mínimo per capita para o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.
A opção do legislador relativamente à parcela da população destinatária da benesse não parece ter sofrido alterações ao longo do tempo. Com efeito, quando da recente revisão da LOAS pelas Leis n.º 12.435 e 12.470, ambas de 2011, houve profunda alteração tanto no conceito de família como no critério subjetivo atinente à condição de pessoa com deficiência; o requisito objetivo da renda inferior a ¼ do salário mínimo, no entanto, se manteve com a redação original. Na prática, portanto, o Instituto Nacional do Seguro Social, quando do requerimento do benefício por qualquer cidadão, leva em conta a composição do núcleo familiar e a renda mensal declarada, formal ou informal, do postulante e de cada membro da família, bem assim verifica em seus sistemas informatizados a presença de renda formal registrada. Acaso superado o parâmetro de ¼ do salário mínimo por cabeça, presume-se a ausência de miserabilidade para os fins específicos deste benefício, que é, por conseguinte, indeferido.
3 O CRITÉRIO OBJETIVO PARA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL EM JUÍZO
Em juízo, o critério objetivo de renda inferior a ¼ do salário mínimo sempre foi objeto de questionamentos. Nesse sentido, a argumentação contrária à sua utilização, em geral, se embasa na tese de que o critério legal fixo de renda individual como sinalizador da miserabilidade seria demasiado estreito, e que outras situações em que houvesse renda per capita superior a este patamar, mas se atestasse a impossibilidade de o cidadão prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, deveriam ser incluídas na norma.
Esta foi a tese aventada na ADI 1232-DF e que, na ocasião, foi rechaçada pelo STF: a de que o §3º do art. 20 da LOAS estabelecia uma presunção juris et de jure, a qual dispensava qualquer tipo de comprovação da necessidade assistencial para as hipóteses de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, mas que não excluía a possibilidade de comprovação, em concreto e caso a caso, da efetiva falta de meios para que o deficiente ou o idoso pudesse prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família.
No julgamento da referida ADI, porém, a Corte firmou o entendimento de que apenas o critério objetivo de ¼ do salário mínimo seria parâmetro para concessão do benefício assistencial, não havendo falar em qualquer outro critério de aferição da miserabilidade. Ao levar a ação ao Plenário para julgamento, o Relator, Min. Ilmar Galvão, votou no sentido de que “não se pode vislumbrar inconstitucionalidade no texto legal, posto revelar ele uma verdade irrefutável, qual seja, a de que é incapaz de prover a manutenção de pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo”. O Relator, assim como seus pares, votou pela constitucionalidade do §3º do art. 20, da Lei 8.742/93; diversamente, porém, seu voto dava provimento à ação direta, ainda que apenas para conferir à norma interpretação conforme a Constituição. No particular, restou ele vencido, porque a Corte, por maioria, acompanhou o voto do Min. Nelson Jobim, que julgava improcedente a ação direta. Concluiu-se, assim, que não havia interpretação conforme à Constituição cabível ao caso. É o que se extrai do voto vencedor do Min. Nelson Jobim, relator para o acórdão:
“(…) data vênia do eminente Relator, compete à lei dispor a forma da comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma. Portanto não há interpretação conforme possível porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da lei, da definição.”
À vista da declaração de constitucionalidade do critério a ser observado pelo aplicador da lei, o §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 seguiu sendo aplicado pela Administração. Em outro viés, porém, e a despeito de a constitucionalidade do art. 20, §3º, da LOAS ter sido posição reafirmada pelo STF na Rcl – AgR 2.303/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 1.4.2005, e na Rcl 2.323/PR, Rel. Min. Eros Grau, DJ 20.5.2005, no âmbito dos juizados especiais federais tornou-se iterativa a condenação da autarquia à concessão da benesse ainda que ultrapassado o patamar legalmente previsto. Como resume o Min. Gilmar Mendes em voto a ser publicado e que norteou o julgamento da Reclamação n.º 4.374-PE, “a inventividade hermenêutica passou a ficar cada vez mais apurada, tendo em vista a necessidade de se escapar dos comandos impostos pela jurisprudência do STF. A diversidade e a complexidade dos casos [judiciais] levaram a uma variedade de critérios para concessão do benefício assistencial”.
Em face das decisões contrárias àquela proferida pelo STF na ADI 1232-DF, inúmeras foram as reclamações e os recursos extraordinários aventados pela autarquia previdenciária, tendo havido, já em 2006, revisão de anteriores posicionamentos em sede de decisões monocráticas, ora negando seguimento às reclamações ao argumento da impossibilidade de reexame fático-probatório, ora afirmando que se estava diante de interpretação do dispositivo conjuntamente com legislação posterior, a qual não fora objeto da ADI. Em 02.08.2008, outrossim, o Tribunal reconheceu, no âmbito do RE 567.985-MT (Rel. Min. Marco Aurélio), a existência de repercussão geral da questão constitucional.
Enfim, em 18 de abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, negou provimento ao RE 567.985-MT, julgou improcedente a Reclamação 4.374-PE e declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93, vencidos, parcialmente, o Ministro Marco Aurélio, Relator do extraordinário, que apenas negava provimento ao recurso, sem declarar a inconstitucionalidade da norma referida, e os Ministros Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski, que davam provimento ao recurso. Não foi alcançado o quorum de 2/3 para modulação dos efeitos da decisão para que a norma tivesse validade até 31.12.2015.
Especialmente da leitura dos votos dos relatores, Min. Marco Aurélio e Min. Gilmar Mendes, faz-se possível depreender os fundamentos pelos quais a Corte, revendo posicionamento anterior, reconheceu que o parâmetro legal de renda mensal inferior a ¼ do salário mínimo sofreu processo de inconstitucionalização e que, portanto, os benefícios assistenciais podem ser concedidos acaso comprovada a situação de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes, ainda que não preenchido o requisito legal.
Em síntese, entendeu o STF que a norma seria limitadora de garantia constitucional ilimitada, porque restringe à renda inferior a ¼ do salário mínimo o conceito de miserabilidade, ou seja, de quem necessita deste auxílio. Para o Min. Gilmar Mendes, se estaria, aqui, diante de violação, pelo legislador, da proibição da proteção insuficiente do direito fundamental, ensejando, por conseguinte, uma omissão inconstitucional, passível de controle pelo STF. O que se afirmou, pois, é que a lei editada, no tocante ao §3º do art. 20, cumpriria apenas de forma parcial o comando constitucional, ou seja, que o critério em questão seria insuficiente para a efetividade do direito fundamental à assistência.
Nessa linha, chegou-se a propor, e efetivamente o fez o Min. Luiz Fux, que se estabelecesse uma margem de flexibilidade de 5% sobre o limite legal para que os juízes concedessem a benesse. Alfim, não se aventou qualquer parâmetro substitutivo para o critério legal tido por inconstitucional; decidiu-se, em síntese, pela possibilidade de o juiz, diante de cada caso concreto, aferir a existência ou não de miserabilidade passível de preenchimento do contorno constitucionalmente previsto para percepção do benefício.
4 AFINAL, QUAL O CRITÉRIO PARA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL?
A recente decisão do STF poderia ser analisada por diferentes vieses. No que importa para este trabalho, cumpre averiguar em que medida se verifica afetação da política pública com a declaração de inconstitucionalidade do critério objetivo fixado pelo legislador para seleção dos destinatários do benefício assistencial. Tal análise, porém, implica, antes, perquirir e questionar os fundamentos utilizados pela Corte para a já relatada guinada em sua jurisprudência, o que, via reflexa, permite se verifique também as decorrências de tal decisão à vista dos milhares de processos hoje existentes e que discutem o tema.
Confrontando-se o julgamento proferido na ADI nº 1232 com o julgamento ora em questão, vê-se nitidamente que, naquela primeira ocasião, a Corte se conteve à vista do princípio da separação dos poderes e da expressa delegação da tarefa de fixação dos requisitos para concessão do benefício do constituinte originário para o legislador ordinário. Assentando que a estipulação de um benefício deve levar em conta, de um lado, a necessidade do beneficiário e, de outro, a possibilidade de quem arca com o encargo, e que, no caso, o legislador ordinário havia estabelecido um parâmetro, o STF expressamente afirmou que caberia ao legislador, e não ao juiz, na solução do caso concreto, a criação de outros requisitos para a aferição do estado de pobreza daquele que pleiteia o benefício assistencial. A prevalecer esta linha de raciocínio, forçoso seria então concluir que, como a regulamentação inicial do benefício de prestação continuada foi conferida pela Lei 8.742/93, qualquer alteração do requisito de ¼ do salário mínimo também exigiria lei específica, atribuição, pois, afeta ao Congresso Nacional.
No mais recente julgamento, chegou a ser brevemente sopesado o fato de que compete ao legislador, e não ao julgador, o estabelecimento dos critérios para concessão do benefício. De efeito, no corpo de seu voto o Min. Gilmar Mendes refere, modo expresso, que, em caso similar, o Tribunal Constitucional Alemão, em atenção ao princípio de que o estabelecimento do benefício é atribuição do legislador, manteve aplicáveis dispositivos por ele tidos por inconstitucionais até que nova legislação fosse elaborada. No entanto, assentou-se, na linha da manifestação do Min. Celso de Mello, que seria legítima, embora excepcional, a possibilidade de intervenção jurisdicional dos juízes e tribunais na conformação de determinadas políticas públicas, quando o próprio Estado deixasse de adimplir suas obrigações constitucionais, sem que isso configurasse transgressão ao postulado da separação de Poderes.
Por um lado, vê-se que, na linha do voto do Min. Gilmar Mendes na Rcl 4.374-PE, a tese da inconstitucionalidade por omissão parcial do art. 20, §3º, da Lei 8.473/93 se calcou na idéia de que os direitos fundamentais contêm um postulado de proteção, do qual decorreria a proibição da proteção insuficiente. Este seria, pois, o parâmetro de estruturação da aplicação do dever de promoção de um fim, qual seja, do direito fundamental à assistência, tal como constitucionalmente configurado. Daí decorreria, per se, a diminuição da discricionariedade do legislador (ou, para se valer de Dworkin, os direitos fundamentais condicionariam a legitimidade das políticas públicas).
De outra parte, a declaração de inconstitucionalidade fundou-se também na tese de inconstitucionalização em decorrência de alterações fáticas e jurídicas da realidade, o que Humberto Ávila denominaria de análise de razoabilidade como congruência. Por este prisma, o STF teria reconhecido o anacronismo da norma, ou seja, teria concluído que a regra, tendo sido concebida para ser aplicada em determinado contexto socioeconômico, não mais teria razão de ser aplicada.[3] Nessa linha, a conclusão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que o critério de renda inferior a ¼ do salário mínimo, porque não mais condizente com a realidade socioeconômica do país, teria se tornado um critério distintivo inadequado, o que, em última análise, violaria o princípio da igualdade, na medida em que duas situações de miserabilidade, uma enquadrável no critério legal, outra não, teriam tratamento distinto pela lei.
Diante dessas duas linhas de fundamentação, imperioso é ponderar, em sentido diverso, que, com a consagração da possibilidade de adoção de critérios subjetivos para aferição da miserabilidade no caso concreto, o juízo sobre o alcance desta política pública foi transferido da Administração, que se valia de um conceito objetivo, para o julgador. Não foram, porém, traçados quaisquer parâmetros para tanto; o que se definiu foi tão-somente a atual insuficiência ou inadequação da norma e, por conseguinte, a possibilidade de sua superação. Daí que foi retirado o único parâmetro igualitário para concessão da benesse (o que fundamentou a manutenção na lei na primeira decisão), substituindo-o, porém, pelo mero casuísmo/subjetivismo.
Aí se encerra, pois, a problemática da decisão. O voto do Min. Gilmar Mendes, ao qual aderiu a maioria da Corte, previa a declaração da inconstitucionalidade atrelada à manutenção plena do critério do §3º do art. 20 da LOAS por mais dois exercícios financeiros, a fim de que, como ele mesmo refere, pudessem “os Poderes Executivo e Legislativo atuar no sentido da criação de novos critérios econômicos e sociais para a implementação do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição.” No ponto, aliás, conquanto em descompasso com a solução final por ele dada à questão, o Ministro reconhece que
“É certo que não cabe ao Supremo Tribunal Federal avaliar a conveniência política e econômica de valores que podem ou devem servir de base para a aferição de pobreza. Tais valores devem ser o resultado de complexas equações econômico-financeiras que levem em conta, sobretudo, seus reflexos orçamentários e macroeconômico e que, por isso, devem ficar a cargo dos setores competentes dos Poderes Executivo e Legislativo na implementação das políticas de assistencialismo definidas na Constituição.”
No entanto, não houve modulação dos efeitos, nem apelo ao legislador, tampouco se está diante de sentença aditiva. O que houve foi a pura e simples declaração da inconstitucionalidade do dispositivo, sem pronúncia de nulidade, criando para o Judiciário uma lacuna legislativa a ser preenchida por critérios criados pelo próprio Poder Judiciário, em cada caso concreto.
Aqui, pois, parece ser necessário trazer a lume a distinção de Dworkin entre argumentos de política e argumentos de princípio, bem assim sua posição quanto às decisões políticas importantes que tocam o Supremo Tribunal. É que a diferença entre argumentos de princípio e argumentos de política revela-se fundamental para a compreensão do papel e dos limites da atividade governamental diante do interesse dos cidadãos, os últimos se referindo à persecução de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passíveis de transações e compromissos; aqueles, fundamentando decisões que resguardam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo, assim, um papel de garantia contramajoritária.[4]. Ao STF, embora cumpra sopesar, com base nos preceitos da Constituição Federal, as concretizações efetuadas pelo legislador, não cabe atuar como legislador delegado, pelo que os argumentos de política não lhe podem estar à disposição. É dizer: não lhe toca a tarefa de maximização de objetivos econômicos ou sociais considerados relevantes, o que deve ser feito pelo ramo político do governo, detentor de informações sobre a faixa de pobreza condizente com a realidade econômica brasileira e as possibilidades financeiras da comunidade.
Não se olvida que o Legislativo é somente a porta de entrada de argumentos no sistema jurídico, e que o desenvolvimento e a aplicação desses textos são realizados ao longo do tempo pela própria sociedade, pela Administração Pública e, mediante provocação, pelo Judiciário, a quem caberia dirimir de forma vinculante esses conflitos e dúvidas. No entanto, quer parecer que, no caso específico, o STF, diante do sempre tormentoso problema da aplicação da norma geral e abstrata a situações particularizadas, determinadas e concretas, fez uma escolha levando em conta o próprio valor veiculado pelo dispositivo, sem atentar para a segurança jurídica e a isonomia. E assim procedendo, ou seja, ao preferir a justiça do caso concreto à segurança jurídica, findou por não dirimir a contento a controvérsia que lhe foi posta, na medida em que a decisão não trouxe a almejada pacificação dos conflitos. Cabível, por conseguinte, questionar-se até que ponto poderia a segurança jurídica, no caso, arredar em prol de um provável ou possível juízo de equidade.
Veja-se, a título de exemplo, que há casos em que o Judiciário exclui gastos mensais básicos do requerente (aluguel, medicamento, roupas etc.) quando do cálculo da renda familiar per capita. Outras vezes, retiram-se todos os gastos mensais, fazendo o cálculo da renda per capita a partir da renda líquida da família. Em outros, ainda, excluem-se somente os medicamentos, em outros somente o aluguel, e assim por diante. Todas estas decisões estão abarcadas pela decisão do STF, porque o que se permitiu foi justamente afastar o parâmetro objetivo estipulado no artigo 20, §3º, da Lei 8.742/93, abrindo-se a possibilidade de adoção, por cada juiz do país, de um critério diferente, e, portanto, subjetivo, para o deferimento do benefício em questão.
Ora, resgatando-se o conceito de integridade do direito de Dworkin, deveria o Supremo Tribunal Federal, na ocasião, ter-se atentado para a necessidade de critérios jurídicos que preservem a coerência e a igualdade de prestação da política pública, densificados pelo ramo político do governo e não caso a caso pelo Judiciário. No ponto, aliás, o Min. Marco Aurélio, que se pronunciou no sentido da não-declaração da inconstitucionalidade do critério legal, especialmente porque “à luz do salário mínimo em vigor, o critério pode ser considerado razoável, mas não diante do salário vigente quando o processo foi iniciado,” fez alerta fundamental:
“Sabe-se que a forma como os dispositivos constitucionais e legais são redigidos encerra decisões do poder constituinte e do Poder Legislativo. Tais atos cristalizam acordos sociais a respeito de dilemas morais ou questões práticas do cotidiano sobre as quais recaem disputas. Permitir que sejam reabertas à discussão a cada novo processo judicial é arriscado sob duas perspectivas. Primeiro, por viabilizar que o Juízo desconsidere soluções adotadas consoante o processo político majoritário e faça prevalecer as próprias convicções em substituição às adotadas pela sociedade. Sem que haja verdadeiro fundamento constitucional relevante, esse proceder acaba por retirar a legitimidade da função jurisdicional, calcada, conforme concepção clássica, no respeito às respostas moldadas de antemão pelo legislador. Segundo, por trazer grande margem de insegurança ao sistema. Com efeito, as regras têm o objetivo de reduzir a incerteza na aplicação do Direito, permitindo que as pessoas pautem as condutas pela previsão abstrata, além de assegurar que a solução do sistema jurídico seja observada de modo isonômico”.
Em última análise, a decisão do STF, sem sopesar o risco de arbitrariedades, ou de insegurança jurídica, levou em conta tão-somente o valor veiculado pelo dispositivo em face da proibição de insuficiência para o resultado do julgamento, a demonstrar, mais uma vez, que, como alerta Lenio Streck, “os tribunais e o STF fazem política quando dizem que não fazem; eles fazem ativismo quando dizem que não fazem; e judicializam quando sustentam não fazer. [5]”
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É árdua a tarefa de defesa das políticas públicas em juízo. Em feitos questionando esta ou aquela decisão do legislador à vista das limitadas possibilidades orçamentárias, especialmente em se tratando de direitos a prestações positivas do Estado, não raro se verifica o afastamento da norma aplicável em prol de uma decisão tida por justa no caso concreto. Em casos tais, resta latente a contraposição entre os valores fundamentais que a norma posta pretende proteger ou concretizar e a discricionariedade do julgador; resulta evidente o embate entre segurança jurídica e isonomia e a decisão com base nas especificidades de cada caso.
Não há solução a priori para as inúmeras situações de tensão, real ou aparente, entre a norma constitucional, a norma infraconstitucional e a realidade fática. Há, contudo, sempre a esperança de que as celeumas existentes sejam de algum modo dirimidas pelo Supremo Tribunal Federal, a quem, afinal, toca sopesar, com base nos preceitos da Constituição, as concretizações efetuadas pelo legislador.
No caso específico do critério de miserabilidade para concessão de benefício assistencial, contudo, o que se tem é que o STF não pôs fim à discrepância entre o entendimento administrativo e as decisões judiciais sobre a matéria; antes disso, decretou sua perpetuação: ausente a pronúncia de nulidade, o critério legal de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo vigerá para a Administração até e se trazidos novos critérios pelo legislador. Nada impedirá, porém, que, quaisquer que sejam os novos critérios porventura trazidos em legislação posterior, a mesma ratio decidendi do RE 567.985-MT e da Reclamação 4.374-PE seja aplicada a qualquer caso concreto pelo juiz da causa, ou seja, a de que a seu prudente critério poderá ele concluir pela comprovação ou não da miserabilidade, independentemente da existência de parâmetro objetivo ou limitação legal.
Quer parecer, pois, que a decisão em comento, ao afastar a concretização do direito à assistência social pela norma legal, confiando na capacidade do julgador de, diante de cada situação concreta de aplicação, definir o que seja e se foi comprovada a miserabilidade – conceito jurídico que, então, sofreu processo de indeterminação -, findou por transferir ao Poder Judiciário uma verdadeira tarefa de proferir, em cada caso, uma decisão política. Criou-se, enfim, uma lacuna para o Judiciário, a ser preenchida pelo Judiciário, mas que, no entanto, labora no sentido da insegurança e da possível iniquidade.
Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS. Especialista em Direito Previdenciário pela PUC-Minas. Procuradora Federal
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