O período de vacatio legis da Lei 11.232/05 esvai-se no dia vinte e três de junho próximo quando então o Código de Processo Civil passará a viger com o Livro I, Título VIII acrescido do Capítulo X, Do Cumprimento da Sentença (art. 475-I a 475-R) que regula o procedimento inicial da execução de sentença condenatória em obrigação pecuniária, enquanto o cumprimento daquela relativa à obrigação de dar e à de fazer continuará sob a égide do Capítulo VIII, Da Sentença e da Coisa Julgada. Isto porque o art. 475-I preceitua que “O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-A desta Lei ou, tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais artigos deste Capítulo”. Aliás, cumprimento de sentenças que a nova lei, art. 475-N, afrontando a idéia de que título só enseja execução autônoma, qualifica como “títulos executivos judiciais”.
A mudança justifica-se pela intenção de dar maior efetividade ao processo e, por conseqüência, como dever do Estado, melhor prestar a tutela jurisdicional. Mas, o processo legislativo, há que se convir, não conseguiu disfarçar a “cirurgia” e o resultado é que teremos uma execução de sentença ainda truncada – enquanto não se consolidar adequada aplicação da nova lei e quiçá novo remendo – quando comparada aos procedimentos executivos que as reformas anteriores dedicaram às demais espécies obrigacionais. Aliás, enquanto este texto estava rascunhado, Sérgio Souza de Araújo, com perspicácia, já articulava no Espaço Vital (www.espaçovital.com.br) diversos questionamentos acerca da aplicação da nova lei.
O cumprimento da sentença de obrigação de dar e de fazer ocorrerá por verdadeiro processo sincrético porquanto, além de desenvolver-se na mesma relação jurídica processual, instalará a fase de satisfação sem depender de novo pedido se o cumprimento não se der em juízo no prazo do trânsito em julgado ou de outro estabelecido na decisão, com os traços da actio officium iudice, sem possibilitar, ordinariamente, nova defesa. No entanto, ao tratar de obrigação por quantia certa a nova redação do código também estabelece prazo para cumprimento da sentença em juízo sob pena de multa (ou coerção?), mas, de forma diversa e anômala, atribui ao vencedor requerer a execução (o que não difere de pedir) – deixando de tratá-la como ato de impulso oficial – e, ao devedor, embora a penhora e avaliação se dêem inaudita altera pars, impugnar a pretensão executiva (o que não difere de responder). A nova provocação também é requisito para a liquidação de sentença e à execução provisória, como decorre dos arts. 475-A § 1º e 475-O inciso I, respectivamente.
A nova lei estabelece no art. 475-J que caso o “condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação”. Deduz-se, daí, que o devedor por sentença líquida ou liquidada – ainda que sejam verbas de sucumbência – estará onerado pela multa ato contínuo ao termo do prazo fixado na lei, de incidência automática, pleno jure, dispensando qualquer outro ato processual que não seja a intimação de uma daquelas decisões (a condenatória ou a integrativa), se não pagar em juízo; tanto é assim que o art. 570 foi revogado, eliminando o preceito da execução às avessas que se aplicava quando o credor não queria, extrajudicialmente, dar quitação ao título judicial. Portanto, a pena incidirá independentemente do pedido de execução o qual poderá ser formulado a partir daquele momento e no prazo de seis meses para evitar que os autos sejam arquivados administrativamente, como dispõe o § 5º.
O vencedor ao requerer a execução, também de acordo com o art. 475-I, deverá atender ao contido no art. 614, inciso II e instruir o pedido com demonstrativo atualizado do débito que inclua aquela multa, os juros e a correção monetária, ainda que se trate de sentença liquidada, apresentando os acréscimos que incidiram até a data de requerimento de execução. Pelo mesmo dispositivo caberá ao credor (antes autor ou réu e a partir de então exeqüente) requerer a expedição de mandado de penhora e avaliação de bens – que de acordo com o § 3º poderá “indicar desde logo” – que somente estará cumprido com a intimação do executado, como estabelece o § 1º. A redação não foi objetiva o suficiente para aclarar se o “desde logo” refere-se a uma faculdade para o credor a priori auxiliar o Estado na busca de bens ou a um momento que antecede o a posteriori, ocasião em que lhe caberia suprir a diligência negativa do meirinho. Esta dedução tem por pressuposto a idéia de que o credor (ou seu advogado) não deva atuar como “sombra” do meirinho durante as diligências de cumprimento do mandado – como as regras do Livro II permitem seja sustentado por vigorosa doutrina – mas sim com a mesma igualdade de tratamento que leis especiais dão aos credores de execução fiscal, trabalhista ou do Juizado Especial; a mesma igualdade que o § 2º concedeu ao atribuir ao meirinho o encargo de avaliar o bem penhorado quando ditou que o ato será realizado por perito apenas quando “o oficial de justiça não possa proceder à avaliação, por depender de conhecimentos especializados”.
O novo rito ao autorizar o requerimento e a expedição do mandado executivo afasta a aplicação subsidiária do art. 652 suprimindo a citação do devedor para que pague ou nomeie bens à penhora. Tanto é assim que o art. 475-N, parágrafo único, impõe o ato citatório apenas quando o título executivo judicial for sentença penal condenatória (inciso II), sentença arbitral (inciso IV) ou sentença estrangeira homologada pelo STJ (inciso VI), porquanto nestas hipóteses ainda não há relação jurídica processual formada perante o juízo cível competente. Não é expresso, mas sendo o caso de prévia liquidação o mandado será de citação para instaurar a nova relação jurídica processual e instar o acompanhamento de seus atos, e quando for execução direta, por tratar-se de título líquido, o mandado será de penhora, avaliação, citação e intimação. Citação para instaurar a relação jurídica processual, e intimação para ensejar a oportunidade do executado oferecer impugnação ao cumprimento da sentença, no prazo de quinze dias (art. 475-J, § 1º), igualando-se aos casos em que o título é sentença proferida no processo civil (inciso I), sentença homologatória de conciliação, transação ou acordo extrajudicial (incisos III e V) ou formal e certidão de partilha (inciso VII).
A intimação da penhora e avaliação, segundo o art. 475-J, § 1º, se dará ao executado “na pessoa de seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por mandado ou pelo correio”. A ciência por representante legal, embora a redação, terá que se admitir possa se dar da mesma forma que a pessoal, por mandado ou pelo correio, enquanto que, através do advogado, por nota de expediente, pessoalmente ou por carta registrada, conforme as situações previstas nos artigos remissivos. A regra, portanto, é a intimação na pessoa do advogado, providência que o legislador vem ampliando – quiçá reconhecendo a importância que constitucionalmente lhe é atribuída à administração da justiça – ao lhe conferir, ope legis, outros encargos além daqueles necessários às atividades gerais do foro (art. 38), como no caso dos prazos recursais (art. 242), reconvenção (art. 316), agravo (art. 527, V) e liquidação de sentença (arts. 603 e 475-A), sem contar a prática de intimar-se o embargado, por seu patrono na execução, para impugnar a ação incidental, sem que haja determinação expressa no art. 740. No particular, espera-se que ao menos nos casos em que a citação é exigida pelo art. 475-N, parágrafo único, não se pretenda cumpri-la na pessoa do profissional que representou o vencido na ação penal, no tribunal arbitral ou no órgão jurisdicional alienígena; e no geral, que se passe a admitir ao patrono o mesmo benefício que o art. 302, parágrafo único, dá ao dativo, ao curador e ao Ministério público, pois, convenhamos, dar a ele a responsabilidade de em quinze dias localizar o seu constituinte para obter e desenvolver elementos de defesa que não lhe é dado conhecer – veja-se a matéria sobre a qual pode versar a impugnação – constitui verdadeira norma kafkaniana ou de simulação de processo democrático.
A impugnação, cuja matéria está limitada no art. 475-L, pode ser à pretensão executiva por ilegitimidade de partes (inciso IV), falta ou nulidade da citação (inciso I), inexigibilidade do título (inciso II), excesso de execução (inciso V), causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação (inciso VI) ou aos atos da execução por penhora incorreta ou avaliação errônea (inciso III). Regra particular foi dada no § 2º ao estabelecer que quando na impugnação o executado alegar excesso de execução “cumprir-lhe-á declarar de imediato o valor que entende correto, sob pena de rejeição liminar”. O legislador aplicou à Impugnação ao Cumprimento (ou execução) de Sentença o que se defende como melhor orientação para os Embargos do Devedor quando a execução é instruída com memória discriminada do débito; perdeu, entretanto, a oportunidade de aclarar a providência deixando de usar a expressão “demonstrar o valor que entende correto”, evitando a celeuma que se estabelece quanto aos embargos.
Por outro lado, diferentemente dos embargos que pelo art. 739, § 1º têm efeito suspensivo, a impugnação somente será recebida desta forma se, como dispõe o art. 475-M, forem “relevantes seus fundamentos e o prosseguimento da execução seja manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação”. Portanto, a regra é o efeito não suspensivo, cabendo ao executado, fundamentadamente, requer o suspensivo, como se depreende da combinação do caput com o § 2º que fala em deferimento. É deste parágrafo, também, a regra de que a impugnação é defesa direta nos autos e que sua autuação em separado ocorrerá quando “indeferido” o efeito suspensivo. A regra de autuação, neste caso, é correta porque evita que a instrução tumultue os autos e o prosseguimento da execução. Ocorre, entretanto, que ao ser “deferido” o efeito suspensivo “é lícito ao exeqüente requerer o prosseguimento da execução, oferecendo e prestando caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz e prestada nos próprios autos” (§ 1º), caso em que os autos da execução serão conturbados pela peça de impugnação, pelo pedido de prosseguimento da execução e pela instrução da impugnação. Portanto, a menos que por racionalidade seja determinada a autuação em separado, haverá o risco de que a impugnação somente fique nos autos quando o executado não requerer o efeito suspensivo, o que raramente ocorrerá, pois quem argumenta um pedido sempre entende que seus fundamentos são relevantes. Ademais, a generalidade das expressões “causar grave dano de difícil e incerta reparação” – que constituíam motivo para os excepcionais provimentos acautelares e que as reformas do CPC estenderam à antecipação de tutela de direito material, à decisão monocrática no agravo e agora à execução provisória e à defesa contra a execução – é por demais subjetiva, não só às partes, emocionalmente envolvidas, mas ao próprio julgador que tem que decidir, de plano ou sumariamente, premido pela particularidade de cada caso e pela urgência da decisão e volume de processos.
O prosseguimento da “execução definitiva”, quando indeferido o efeito suspensivo à impugnação, não a transformará na “execução provisória” regulada no art. 475-O, porquanto o art. 475-I, § 1º, renovou a regra do art. 587 ditando que é “definitiva a execução da sentença transitada em julgado e provisória quando se tratar de sentença impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo”. No mesmo sentido, quando a impugnação for decidida e rejeitada, agravando de instrumento o executado-impugnante, ou decidida e acolhida, apelando o exequente-impugnado (art. 475-M), e o relator não lhes dê efeito suspensivo. Neste caso, a execução deverá prosseguir do mesmo modo daquela regulada no Livro II quando a sentença que rejeita os Embargos do Devedor é atacada por recurso recebido no efeito só devolutivo – hipótese em que se prefere classifica-la como “qualificada ou condicionada” – embora a nova lei não tenha alterado o art. 520 para lhe agregar mais esta hipótese de efeito não suspensivo.
Não há maior detalhamento do iter do Cumprimento (ou Execução) de Sentença, nem da Impugnação à Execução (ou ao Cumprimento) de Sentença, regulados no Livro I. No entanto, quanto ao primeiro, o art. 475-R prevê que se aplicam “subsidiariamente”, e “no que couber, as normas que regem o processo de execução de título extrajudicial” (sobra a primeira expressão já que se trata de verdadeira indispensabilidade; equivocada a última já que limitando a aplicação ao que couber deveria referir-se à execução do Livro II) como aquelas relativas à responsabilidade patrimonial, penalidades por atos atentatórios à dignidade da justiça, insolvência civil, ao depósito, à intimação do cônjuge, à arrematação, ao pagamento, à suspensão, à extinção, à remição, às custas e aos honorários advocatícios posto que o procedimento do novo Capítulo X esgota-se com a intimação do auto de penhora e da avaliação; quanto ao segundo, por força da complementaridade prevista no art. 475-R há que se aplicar, no que couber, as regras do Livro II, Título III, Capítulos I, IV e V, porquanto integrativos daquela que a lei referiu-se como execução de título extrajudicial, notadamente quanto à sumariedade do rito (combinação dos arts 330 e 740), aos Embargos à Arrematação, aos Embargos à Adjudicação e aos Embargos na Execução por Carta.
Finalmente, é interessante ressaltar que o art. 475-P, que traça regra de competência, estabelece anômala concorrência de foros executivos porquanto, após definir nos seus incisos o órgão apto a realiza-las, estabelece no parágrafo único que quando for o juízo que processou a causa no primeiro grau de jurisdição (inciso II) o “exeqüente poderá optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem”. Por ser matéria de organização judiciária a competência atende a critérios de interesse da administração da justiça e, no caso da modificação em comento, a lei concede ao credor a alternativa de buscar o cumprimento da sentença no juízo que a proferiu, naquele onde o devedor tenha bens ou no do seu atual domicílio, se diversos, conforme sua conveniência, substituindo a precatória executiva pela de solicitação de autos. A requisição de autos, diferente da carta precatória, e que se assemelha à ordem por carta já que a lei está conferindo jurisdição, em sentido lato, àqueles juízos, dependerá, inequivocamente, da instrução do pedido com documentos que o abonem e justifiquem a requisição e, por certo, implicará em despesas perante o juízo requisitante (distribuição, taxa judiciária, custas de oficiais de escrivania e de justiça) e o requisitado (custas de baixa e remessa). A hipótese não está prevista para os demais incisos daquele artigo, v.g., competência originária dos Tribunais (inciso I) e sentença penal, arbitral ou estrangeira (inciso III), mantendo os foros especiais, ignorando a eficácia das sentenças homologatórias e minimizando a qualificação judicial que foi dada aos laudos arbitrais; quando aos efeitos civis da sentença penal, ao menos é possível sustentar-se que a sentença de liquidação estará dando-lhe o mesmo status daquela indicada no inciso II e, por conseqüência, idêntico benefício.
Advogado – OAB/RS nº 7.497; Professor de Direito Processual Civil da Fundação Universidade Federal de Rio Grande; Doutor em Direito Processual pela Universidad de Buenos Aires.
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