Impressão geral do problema.
Quem percorrer, no Brasil, os repertórios de Jurisprudência, certamente ficará um tanto desconcertado, quanto aos valores — para cima ou para baixo — fixados a título de “dano moral”, nas sentenças e acórdãos. Mais nas sentenças que nos acórdãos, porque os juízos coletivos, só por serem coletivos, normalmente são mais cautelosos, atentos no moderar eventuais e quase inevitáveis surtos emocionais — das vítimas, seus parentes, e dos próprios julgadores — no que se refere a transformar em cifra algo dificilmente quantificável, por ser abstrato e inerente à esfera moral. Além do mais, felizmente, pesa nos ombros do julgador de segundo grau a consideração de que eventual erro seu na avaliação do dano não poderá ser corrigido em novo julgamento, consideração que não atormenta o juiz de primeira instância. Os Tribunais Superiores só se atreverão — com elogiável esforço hermenêutico —, a corrigir exageros quando estes são teratológicos, vez que a matéria de fato, tecnicamente, deve ser decidida nas instâncias anteriores. O Superior Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos, vem confirmando essa orientação saneadora. No REsp. 265.133/RJ, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, acórdão de 19-9-2000, DJU 23-10-2000, pág. 145, ficou expresso que “Em face dos manifestos e freqüentes abusos na fixação do quantum indenizatório, no campo da responsabilidade civil, com maior ênfase em se tratando de danos morais, lícito é ao Superior Tribunal de Justiça exercer o respectivo controle”.
O componente emocional.
Falei atrás em “quase inevitáveis surtos emocionais” porque o sentimento — tanto quanto a fria razão — ainda exerce forte pressão no âmbito da “responsabilidade”, seja a civil seja a penal. Desde que o homem passou a viver em grupo — isto é, sempre, porque foi gerado por duas pessoas e coabitava pelo menos com parentes — o sentimento da “responsabilidade”, ou da relação de “causa e efeito” o acompanhou. Algo, por sinal, imprescindível ao desenvolvimento da civilização. A Ciência não é mais que uma infindável pesquisa da relação de causa e conseqüência, do encadeamento objetivo dos fenômenos, o quê causando o quê.
Todavia, se essa tendência inata do cérebro humano em buscar “a causa” dos fenômenos o fez chegar aonde chegou — compreendendo e até mesmo controlando boa parte dos fenômenos naturais, criando novos seres vivos, atrevendo-se na conquista espacial, etc — não há dúvida que o inato instinto de retribuição, a busca da “responsabilidade a qualquer custo” — “alguém tem que ser responsável por isto!” — produz algumas distorções, pelo menos quantitativas, com reflexos óbvios na justiça estatal. Temos, como seres humanos — de qualquer país —, dificuldade no “administrar” a emoção oriunda da visão de um dano, qualquer dano, sem instintivamente vasculhar na mente um “responsável”. A reação do tipo “crime e necessário castigo” ou, “se há um castigo, deve haver um crime!” E, com a vedação da justiça pelas próprias mãos, a Justiça estatal é cada vez mais solicitada em assuntos de responsabilidade, principalmente a civil. Daí a necessidade de crescente regramento, de estabelecer limites — mecanismos “auto-limitadores”, falaremos disso mais adiante — para o “dano moral” e sua mais recente exaltação, a “indenização punitiva”, ou “exemplar”, tão utilizada pela Justiça dos Estados Unidos da América do Norte. Como esse país, em razão de seu desenvolvimento econômico, tecnológico e organizacional influencia outros países — entre os quais o Brasil — será útil extrair algumas lições dos seus erros e acertos quanto à conversão, em dinheiro, da chamada “dor moral” e conseqüente (quando cabe), “punição”, coisa distinta, a nosso ver.
A discutível rotulação da “alegria” compensatória.
Para início de consideração, não nos parece apropriado, em um país de formação cristã, fundamentar a quantia fixada pelo juiz, a título de “dano moral”, como uma “alegria” que contrabalançaria a “tristeza” causada, por exemplo, pela perda de um filho, como aparece em alguns textos de justificação do dano moral. Sugerir, por exemplo, que com o dinheiro da indenização a vítima — ou seu cônjuge, ou parente — sairá em eufórica excursão turística, filmadora a tiracolo, esquecendo a tragédia, é materializar demais, vulgarizar demais, a fundamentação essencialmente moral da indenização. Quantias são fixadas a título de “dano moral” porque não há como o juiz, que não é Deus, repor as coisas no estado anterior. Se ele pudesse, faria isso. Não podendo, no exemplo dado, ressuscitar o filho da vítima, ou restabelecer totalmente a honra denegrida por um repórter de má-fé, tenta o juiz contrabalançar, de alguma forma, o dano causado. À falta de outras formas mais práticas e disponíveis, usa-se a indenização pecuniária porque a moeda é um valor de permuta universal, tanto para valores concretos quanto abstratos (qualquer pintura abstrata, se assinada por Picasso, imediatamente adquire altíssimo valor), e seria absurdo que o dano moral ou a dor física passassem em brancas nuvens, de certo modo estimulando a impunidade. O juiz converte a dor física ou moral em dinheiro como que “sob protesto”, uma vez que não pode fazer milagres. Não quer, propriamente, “alegrar” o autor da ação, quer fazer a justiça humanamente possível. Reconhecemos que é mais uma questão de semântica, mas fica aqui a observação. A propósito, e pedindo aqui a necessária licença ao sisudo leitor, no caso de réus doentiamente apegados ao dinheiro, poderia um psicólogo brincalhão afirmar que a “dor moral” do desembolso da indenização seria na verdade algo físico, conforme o velho refrão: “mexam na minha alma, mas não mexam no meu dolorido bolso” —, havendo, portanto, equivalência real, e não simbólica, de sofrimentos.
Todavia, não podemos esquecer que se o homem tem sede de justiça tem também sede de lucros.
Onde há um dano deve haver um “culpado”…
No distante passado, cataclismos e mesmo tragédias menores “só poderiam” ser conseqüência dos “pecados”, a exigir o “preço” de um sacrifício qualquer, seja de animais ou de seres humanos. A divindade local — bondosa e justa, mas enérgica —, não permitiria, claro, tanta desgraça, se a comunidade não a merecesse, certo? A justa ira dos deuses precisava ser apaziguada com um sacrifício quantitativamente proporcional ao grau da culpa — verdadeira ou imaginada, individual ou coletiva. “Bruxas” foram queimadas vivas porque, aparentemente — difícil garantir o que se passava nos escaninhos da mente dos acusadores e juízes — o espetáculo da fogueira satisfazia o anseio de punição (“justiça”?) da comunidade.
Não li os autos nem conheço todos os argumentos, de um lado e outro, relacionados com o derramamento de 41 milhões de litros de óleo do petroleiro Exxon Valdez, em 1989, na costa do Alasca, em área de vida selvagem. Todavia, as fotos de aves, focas, lontras e animais aquáticos, moribundos ou mortos, impregnados de petróleo — no derramamento citado ou em qualquer outro desastre ecológico no mar —, comovem qualquer pessoa, seja ela leiga ou profissional do Direito. E essa emoção certamente terá o potencial de estimular a fixação de uma cifra (“castigo”) talvez impagável porque, ao lado do dano material o revoltado instinto de justiça terá dificuldades no fixar um limite, se de milionário a reputação econômica do causador do dano. Mesmo que, eventualmente — reitero que não conheço todos os argumentos apresentados — a proprietária do navio demonstrasse não haver culpa sua nem na construção do petroleiro, nem na contratação do comandante e tripulação — cabendo, portanto, apenas a indenização pelos danos físicos — a instintiva sede de justiça, exaltada pelas fotos e relatos, exigiria algo bem mais contundente e satisfatório que os danos puramente materiais, mesmo se elevados.
O problema nos EUA.
Exageros vários — para mais e para menos — rondam essa algo recente tendência norte-americana, com influência em vários países, de se buscar, sempre, uma indenização por qualquer dano, grande ou pequeno, material ou moral. Nos EUA, um país conhecido por sua exuberante tendência à inovação, de uns anos para cá cresceu enormemente a chamada indenização punitiva ( “punitive or exemplary damages” ), freqüentemente traduzida, com certa imprecisão, por “danos punitivos” (os danos não são punitivos; punitiva é a indenização).
Como mera especulação, não é absurdo imaginar a alegria que invadirá o coração de um cidadão americano comum, atormentado com a falta de dinheiro — e poucos não o estão —, ao saber que seu atropelador é um famoso astro do “show business”, acionista principal de uma grande corporação ou milionário por qualquer outra causa. A dor da ferida, quando não excessiva, desaparecerá quase instantaneamente, substituída por grande euforia. O acidente se tornará a grande oportunidade de sua vida. Se não morrer, nem ficar aleijado, com dolorosas seqüelas, o acidente será encarado como intervenção divina, a tal “escrever direito com linhas tortas”. Se ateu, dirá que “há males que vêm para bem”.
Mesmo quando não alta a indenização por dano moral, vez por outra a imprensa daquele país apressa-se a denunciar raras e esporádicas decisões de primeira instância que afrontam o senso comum. Tais denúncias como que alertam a nação para perigo latente de algum juiz local valorizar estranha ou exageradamente o dano moral. Não esquecer que, não havendo apelação, a aberração se revestirá com o manto sagrado da coisa julgada, gerando um perigoso precedente judicial — perigo muito menor no Brasil porque aqui a jurisprudência não possui a força vinculante existente no direito anglo-americano.
Três casos bem discutíveis.
Três casos que nos ocorrem neste momento, referidos na revista “Reader’s Digest” (seção “It’s Outrageous!”) mostram bem o perigo do exagero. No primeiro, um ladrão penetrou numa residência quando os moradores saíram de férias. Após escolher os bens que lhe pareceram mais valiosos, dirigiu-se à garagem, talvez em busca de um carro que pudesse transportar os objetos furtados. Ao penetrar nesse recinto, a porta de acesso, com trinco só de um lado, fechou-se, prendendo o ladrão. E o portão da garagem funcionava com controle remoto, de modo que o marginal não tinha como sair. Ficou “aprisionado” na garagem por oito dias. Só não passou fome nem sede porque nesse local havia, por coincidência, alguns sacos de ração de cachorro e um engradado de refrigerantes, salvo engano Pepsi-Cola. Quando os moradores voltaram das férias, perceberam que a garagem havia se transformado em ampla cela individual. Chamaram a polícia e o ladrão foi preso. Não sei o que ocorreu com relação ao furto, ou sua tentativa, mas o certo — e isso é que seria “ultrajante!” para o indignado redator do artigo — é que o ladrão pediu indenização pelo sofrimento moral de ter ficado oito dias comendo ração de cachorro. E a indenização foi concedida na primeira instância. Certamente o dono da casa apelou.
Outro caso, igualmente grotesco, foi o seguinte, relatado na mesma revista americana: um cidadão entrou no seu automóvel sem olhar o que se passava no outro lado do carro. Provavelmente apressado, ligou o motor e saiu rapidamente, esmagando a mão de um ladrão que tentava roubar uma das rodas traseiras. O marginal pediu indenização. O dono do carro teria, por desatenção, imposto ao bandido uma “pena” cruel e desumana, “inconstitucional”, deixando-o parcialmente inutilizado para o trabalho braçal.
Finalmente, um outro exemplo do desnorteamento que pode, por vezes, ocorrer em matéria de uso e abuso da responsabilidade civil, foi o caso do cidadão americano que soube estar com câncer do pulmão. Seu caso era gravíssimo, sem nenhuma perspectiva de cura. Teria tantos meses de vida, mesmo submetendo-se à quimioterapia. Foi o que disseram os médicos. Com base nessa negra (e cientificamente correta) perspectiva, pediu demissão do emprego e ficou aguardando o fim de seus dias, tratando-se com quimioterapia. Acontece que, findo o prazo máximo prognosticado pelos médicos, o câncer desaparecera. Estava curado. Um quase milagre quimioterápico. Aí, com radical mudança de ânimo, o paciente processou o hospital exigindo uma indenização. Isso porque, em razão do “erro” do prognóstico de vida, pedira demissão, deixando de ganhar e de progredir na firma. Os médicos teriam “errado”, não no diagnóstico, mas ao afirmar que ele morreria dentro de “x” meses. E ele não morreu nesse prazo. Um erro, portanto, a exigir reparação. O interessante é que, enquanto seu processo caminhava o câncer retornou, passando o paciente a alegar que seu novo câncer fora provocado pela quimioterapia.
A reação da indústria, médicos e seguradores.
Tais exemplos, colhidos na imprensa comum — o leitor deve ter lido casos semelhantes —, são aqui mencionados apenas para ressaltar que a responsabilidade civil tem uma base conceitual essencialmente movediça, a exigir contínuos esforços dos estudiosos, legisladores e juízes, para que não descambe em exageros de toda ordem. A propósito, a indústria farmacêutica americana vinha há tempos solicitando ao governo George W. Bush providências limitadoras do valor das indenização punitivas quando um remédio apresenta efeitos colaterais perigosos longo tempo depois de lançado no mercado. A indústria argumenta que se o medicamento foi testado e aprovado segundo os órgãos de fiscalização americanos — considerados rígidos ou pelo menos respeitáveis — não seria justo que os imprevisíveis efeitos colaterais, surgidos anos depois, ensejassem danos punitivos — “exemplary or punitive damages” —, fixados em milhões de dólares, tendência cada vez mais comum nos pedidos de indenização. E o governo Bush, sensível a tais reclamos — embora pouco sensível a reclamos internacionais quanto ao uso unilateral do poderio militar —, providenciou legislação transferindo para a Justiça Federal as “class-actions” (ações coletivas, ou populares), com pedidos indenizatórios acima de determinado valor ( cinco milhões de dólares). O fundamento da reforma é evitar a enorme variação de critérios, de Estado para Estado, na fixação de danos morais e punitivos.
Argumentavam os laboratórios que os organismos variam de pessoa para pessoa e que é impossível prever se um determinado medicamento, provado como útil, causará algum prejudicial efeito colateral em algumas pessoas, após alguns anos de uso ( note-se que o efeito colateral também pode ser benéfico, como foi o caso da aspirina, inicialmente apenas como analgésico e anti-térmico e agora também como prevenção de enfarte). A se indenizar com milhões de dólares cada caso desses, argumentavam os laboratórios, melhor seria que eles fechassem suas portas, ou parassem de pesquisar novos remédios ( mal maior), ou mudassem de país. Certamente, tais laboratórios não se rebelam contra a obrigação de pagar aos prejudicados os danos materiais e morais, mesmo surgidos anos depois do lançamento do produto no mercado, porque se uma atividade dá lucro, quando dá prejuízo esse deve ser indenizado. O que eles temem é o grande “fantasma” da indústria americana: o dano punitivo, ou exemplar, por vezes verdadeiros prêmios máximos de loteria.
As condenações milionárias das fábricas de cigarro.
A indústria do fumo tem ensejado pedidos de indenizações fabulosas. Alegam suas vítimas que foram enganadas pela propaganda, dizendo, por exemplo, que o cigarro “light” não era prejudicial, ou não viciava. Mesmo que isso tenha ocorrido, o censurável da indenização vultosa está apenas na quantificação, não na procedência da ação. Uma senhora americana que foi aquinhoada com indenização milionária, por estar com câncer do pulmão, decorrência do fumo, certamente terá pouco tempo de vida. Quem desfrutará da imensa fortuna que caiu do céu — ou melhor, do pulmão da mãe, avó ou tia — serão seus herdeiros, “premiados”, eles e também seus respectivos herdeiros, com a dispensabilidade de trabalhar pelo resto da vida. Se a justiça americana pretende, eventualmente, com indenizações exageradas, extinguir a indústria do fumo, que pelo menos a sentença condenatória estabeleça que a maior parte do “punitive damage” seja encaminhada a entidades de pesquisa ou tratamento do câncer. As vítimas, ou seus herdeiros, nesse caso, receberiam apenas os danos materiais e morais, e pequena parte dos “punitive”. Talvez a justiça americana não tenha como, legalmente, direcionar a hospitais ou centro de pesquisas os excessos financeiros aqui mencionados. De qualquer forma, causam estranheza, em outros países, esses exageros, fixados, preponderantemente, ao que sei, por jurados, pessoas leigas e empolgadas por “santa revolta” contra uma indústria que — inicialmente sem o saber — enraizou um hábito malsão. Pessoas que ingressaram no vício quando já difundidos seus maus efeitos provavelmente não acorrem, hoje, aos tribunais, em busca de indenização, a não ser alegando propaganda enganosa quanto ao cigarro “light”.
“Exemplary damages”.
É sabido que a justiça norte-americana, refletindo a mentalidade prática daquele país, criou os “punitive damages” como um mecanismo de dissuasão. Política judicial altamente elogiável — ressalvados os exageros. A diretoria, por exemplo, de uma grande fábrica de pequenas escadas de abrir, utilizadas por donas de casa, pode, visando diminuir despesas, liberar sua produção sem o devido controle de qualidade. Raciocinaria assim: “Por que gastar tanto com o controle de qualidade? Se alguma dona de casa se machucar, por defeito da escada, pagarei as despesas do hospital e os dias parados. Sairá, para nós, mais barato do que testar cada uma das milhares de escadas que fabricamos”.
Para desestimular esse egoísta cálculo de “custo/benefício” a justiça americana condena o industrial do exemplo a pagar uma soma (“punitive damages”) que excede o real prejuízo material e mesmo moral da vítima (a dor e outros fenômenos subjetivos). A condenação “punitiva” funciona como um alerta àquele fabricante e aos demais fornecedores de bens e serviços. Convence-os que mesmo sob o ângulo estritamente financeiro, é compensador gastar com a qualidade e segurança do produto, antes da saída da fábrica. Fica mais barato. Com isso, o judiciário americano se poupa de centenas ou milhares de futuras ações individuais indenizatórias. O “medo” de uma reprimenda financeira — superior ao dano individual — previne inúmeros acidentes, beneficia o público e previne uma sobrecarga dos tribunais. Uma política inteligente. O que não é inteligente é o excesso.
A metáfora do bom “camaleão”.
A praticidade da justiça norte-americana — salvo mais recentes exageros — lembra-nos, por vezes — e no melhor sentido possível —, os olhos do camaleão, que funcionam autonomamente. Nesse lagarto, enquanto um olho observa a presa, o outro inspeciona o ambiente, verificando se não há algum predador nas imediações. Parece-nos — é uma impressão toda pessoal, friso — que enquanto um olho da justiça daquele país estuda atentamente o caso em si, o outro olho, preocupado com o possível “predador” — o emperramento da justiça e dos negócios —, gira em volta, verificando a repercussão que sua decisão provocará no ambiente legal e econômico, estimulando ou desestimulando demandas e comportamentos. Talvez porque o juiz, de certo modo, ao decidir, age como um legislador, tendo em vista a força do precedente na “common law”. O que decidir quase certamente será seguido por outras decisões.
Esse outro “olho” — aquele que não está lendo os autos — preocupa-se em evitar o congestionamento da justiça, fator muito nocivo no que se refere à uma economia extremamente dinâmica e que não pode ficar parada, aguardando sucessivos recursos, como ocorre em certos países menos desenvolvidos. Se algumas poucas decisões, como as mencionadas acima, exageraram na obrigatoriedade de indenizar os dois ladrões, certamente o alerta foi disparado, despertando o sistema, tanto assim que tais sentenças foram fustigadas pela imprensa. Se o americano típico, que já gostava de demandar — filmes e livros sobre júris abundam naquele país — passar a enxergar, no litígio por dano moral, quando vítima, um caminho para o ganho fácil, logo os tribunais estarão inundados com u’a massa de litígios muito superior à possibilidade de atendimento — mesmo se parcialmente aliviados pela “justiça privada” das ADRs (“alternative dispute resolutions”).
Cada justiça tem seu mal particular.
Se a política judiciária americana não moderar — nas suas decisões sobre o dano moral e o “punitive” —, a sede de lucros de quase todo cidadão, é previsível o futuro desprestígio da justiça daquele país. Primeiro, pela lentidão, pois o computador ainda não pode ser nomeado juiz. Todo cidadão, em vários momentos de sua vida, sente-se ofendido, ou melindrado, por ato alheio, de pessoa física ou jurídica. Se eles procurarem os tribunais, sob os mais frívolos pretextos, é de se imaginar o imenso congestionamento. Ressalte-se que nos EUA não há sucumbência em honorários, tática processual que restringe um pouco as ações temerárias ( nisso levamos vantagem sobre eles). A justiça brasileira foi desprestigiada pela morosidade oriunda do recurso protelatório. A americana, se não reagir, o será pela exagerada concessão de indenizações a título de dano moral e punitivo. As grandes corporações procurarão migrar, pelo menos parcialmente, para países com visão mais modesta sobre o montante de tais danos.
Um ponto que merece reflexão e sobre o qual não temos ainda uma opinião formada, por falta de informes confiáveis, é o seguinte: quando os tribunais americanos impõem indenizações milionárias (“punitive damages”) em favor de fumantes, ou ex-fumantes, qual será a real intenção dos juízes? Será a de “indenizar”, “castigar exemplarmente” ou forçar o desaparecimento da indústria do fumo, que gera um vício prejudicial à saúde e onera o governo com despesas de saúde pública? Se esse for, eventualmente, um dos fundamentos das pesadas indenizações, cabe a pergunta seguinte: será atribuição do Judiciário, ou do Congresso, estabelecer políticas públicas de incentivo ou de desaparecimento de determinadas atividades? Tenho para mim que cabe ao Congresso, e não ao Judiciário — por mais bem intencionado que esteja — a missão de abolir determinadas atividades. As presentes indagações, todavia, ficarão no ar porque será sempre difícil avaliar o quanto a intenção moral de apressar o desaparecimento de um hábito prejudicial esteve presente numa decisão judicial. Uma coisa, porém, é certa: se o Judiciário americano, como um todo, decidir acabar com a indústria do cigarro, mediante indenizações pesadíssimas, difícil será impedir que isso ocorra.
A sofisticação da nomenclatura.
O crescimento dos processos relacionados com os “damages”, em geral, criou, naquele país, uma nomenclatura cada vez mais sofisticada. Basta dar uma olhada na relação abaixo:
“Compensatory damages”, ou “actual damages”, que cobrem danos, prejuízos, ofensas, ferimentos ou perdas econômicas, incluindo despesas médicas, perda de salário e reparo ou substituição de propriedade;
“General damages”, que cobrem danos e ofensas nos quais uma quantidade exata de dólares não pode ser calculada. Equivale ao nosso “dano moral”, abrangendo dor física e o sofrimento moral, e pode incluir compensação por uma diminuição de expectativa de vida, sofrimento pela perda de um companheiro/a, perda de reputação, etc.
“Nominal damages”, termo usado quando um juiz ou júri encontra, de fato, alguma ofensa que a lei manda indenizar, mas entende que nenhum dano sério foi provocado. Nesse caso, aplica uma condenação simbólica, só para comprovar que a lei foi cumprida. Um caso muito citado ocorreu quando um autor, Louis Adamic, escreveu que Winston Churchill estava bêbado em um jantar na Casa Branca. A indenização imposta foi de um “shilling”, mais ou menos 25 cents. O juiz considerou que houve, realmente, um ofensa, mas considerando o alto prestígio do estadista inglês, a notícia não chegou a abalar a sua reputação.
“Punitive damages”, ou “exemplary damages”, quando o réu agiu de má-fé, ou enorme desprezo pelo público ou vítima em particular. Sobre isso já falamos.
“Special damages”, como no caso de acidente automobilístico: reparos no carro, despesas médicas, gastos com locação de outro carro enquanto se aguarda o conserto do danificado, perda de salário ou outras rendas relacionadas com a privação do automóvel, etc. Seria o nosso equivalente dos danos materiais.
“Statutory damages”, danos previstos em determinadas leis. Em alguns Estados americanos a lei prevê que se o locador, terminada a locação, não devolveu ao inquilino o depósito em garantia, sem fundamentar devidamente o motivo da retenção, o juiz pode condenar o locador a pagar o dobro ou triplo da quantia retida indevidamente.
“Treble damages”, ou danos em triplo. Algumas leis dão ao juiz o poder de conceder, à parte vencedora num processo, não só o que esta perdeu com o procedimento do réu, mas também um acréscimo de três vezes aquele montante.
Outras variantes dos “damages” poderiam ser ainda mencionadas, mas a pequena relação acima já dá uma idéia do desenvolvimento que atingiu o uso (ou abuso) da ação de responsabilidade civil, individual ou coletiva, naquele país.
A agressividade no site dos lesados pelos exageros.
Quando escrevia este artigo, consultando vez por outra a Internet, deparei-me, por acaso, com o site da “ATRA – American Tort Reform Association” ( “tort” significa dano, prejuízo) e fiquei surpreso com a incandescência — é essa a palavra certa — que atingiu o debate entre os adeptos do amplo uso da indenização punitiva e aqueles atingidos por ela. Industriais, médicos e seguradoras, principalmente, sentem-se acossados por uma febre indenizatória que os deixam extremamente preocupados com o futuro. Por isso, reuniram-se, formaram “lobbies” e lutam agressivamente para evitar o que chamam de um evidente abuso dos postulantes e da própria justiça. A ira volta-se, obviamente, contra os advogados especializados em indenizações (cada vez mais conhecedores das minúcias dos procedimentos médicos e industriais,”) e os próprios juízes e júris, “propensos demais”, segundo eles, a punir firmas e médicos com indenizações altas e injustas.
Espantosamente — para nós, brasileiros — a referida “ATRA” publica, no seu site (www.atra.org), acessível a qualquer interessado, uma espécie de “lista negra” dos condados e mesmo Estados inteiros a seu ver benevolentes demais para com os postulantes de indenização milionária. Rotula tais júris ou tribunais como “Judicial Hellholes” ( ao pé da- letra “buracos do inferno judiciais”; menos literalmente “tribunais desprezíveis, de segunda categoria”). E dão “notas” anuais sobre a “decadência” desses órgãos julgadores. No ano de 2004 figuraram na lista dos “Judicial Hellholes” dois condados de Illinois, outro da Carolina do Sul, o inteiro Estado da Virgínia Ocidental, um condado do Texas, uma “paróquia” de Louisiana, o sul da Flórida, Filadélfia e Los Angeles. Em posição um pouco menos atacada (“Dishonorable Mentions”, menção desonrosa, não exagero) figuram Oklahoma, a Corte Suprema de Utah, o District of Columbia e a New México Appellate Courts. Finalmente, menciona como em “Judicial Recovery”, em “recuperação” de prestígio, “pondo a mão na consciência”, nesse campo, o Estado do Mississippi.
Como só fiquei sabendo da furiosa polêmica americana dois dias antes do prazo máximo para entregar o presente artigo à Revista do IASP, e considerando que precisaria ler talvez centenas de páginas da Internet para poder emitir um juízo pessoal sobre o polêmico assunto, abstenho-me, no momento, de emitir um juízo. Fá-lo-ei, com mais vagar, em outro espaço.
Posso adiantar, porém, que as acusações são pesadas. As indústrias e médicos americanos alegam que as vítimas, propriamente ditas, pouco recebem das polpudas indenizações, ficando a maior parte do dinheiro com os advogados. Estes, segundo alguns ataques — difícil de acreditar, no Brasil isso não acontece — dariam aos clientes apenas os “tickets-refeição” entregues pela ré como parte da indenização. As vítimas seriam praticamente “usadas” por alguns advogados, que visam apenas enriquecer. Como conseqüência da “chuva de dinheiro” a taxa de crescimento dos advogados excede o crescimento populacional. E a proporção de advogados, por Estado, varia conforme a liberalidade na concessão de altas indenizações. “Personal injury litigations” corresponde a cerca de 25% da carga de trabalho legal em muitos Estados, é o que nos informa o referido site.
Alegam ainda as auto-intituladas vítimas da onda de indenizações que o “sistema” não prejudica apenas os réus, geralmente companhias de seguro (a utilização do seguro é muito difundida). A seguradora, percebendo, à distância, os vagalhões indenizatórios, cobrem-se do futuro prejuízo aumentando desmesuradamente o prêmio. O médico, por exemplo, vê-se obrigado a trabalhar três ou quatro meses, por ano, só para poder pagar o seguro de responsabilidade civil. Ou recusa-se a fazer partos ( aconteceu no Texas), ou a praticar intervenções cirúrgicas mais arriscadas. O industrial, ou prestador de serviço, onerado com o prêmio alto que paga à seguradora, acrescenta ao preço de seu produto o aumento do prêmio. Resultado: é toda a comunidade que acaba sendo prejudicada, saqueada, por causa da ambição de alguns profissionais do direito, cada vez em maior número. Os jovens procuram a advocacia na ânsia de enriquecer.
A defesa dos advogados americanos, especializados nas ações indenizatórias.
Por sua vez, os advogados contra-argumentam dizendo que durante largo tempo, no passado, o povo sofreu nas mãos dos industriais e médicos descuidados. Realmente, a imprensa noticia inúmeros casos de descuido com a vida e integridade física de pacientes. Há até desdobramentos tragicômicos como o ocorrido em um determinado hospital, onde foi amputada a perna errada de um paciente (o que implica em perda das duas pernas, porque a outra precisaria, também, salvo engano verificado na última hora, ser amputada). Apurada a causa da falha, novos pacientes com necessidade de amputação entravam na sala de operações com um enorme aviso amarrado na perda boa. Dizia o aviso: “No!” E vários casos de negligência médica vão parar na justiça, mensalmente. Alegam os médicos que nenhum jornal noticia os milhares de operações bem sucedidas. E os erros, nas outras profissões, pouco são mencionados na imprensa.
Extraindo lições de alguns exageros.
É possível que o leitor esteja se perguntando: por que mencionar tanto os EUA em publicação destinada a profissionais brasileiros? A resposta é simples: porque o fenômeno pode se repetir em nosso país. Uma das poucas utilidades do Direito Comparado é tirar proveito dos “escorregões” de outros países. A mídia brasileira, com freqüência cada vez maior, menciona condenações de ações de indenização por dano moral com forte tempero “punitivo”. Os valores finalmente concedidos, entretanto, costumam ser bem inferiores aos requeridos.
Danos materiais, morais e “punitivos”. Conveniência da diferenciação no pedido e na sentença.
Cabe, agora, tecer algumas considerações sobre os tipos de indenização aplicáveis a cada caso.
Com respeito à indenização por dano material, o cálculo é fácil, e a subjetividade, mínima. Fotos, recibos de gastos, prova oral e pericial, geralmente bastam para comprovar ou estimar o prejuízo material com satisfatória aproximação da realidade. Por sinal — vai aqui uma sugestão — não seria injusto que em todos os casos de acidentes automobilísticos o autor pedisse uma quantia modesta — quinhentos, mil ou mil e quinhentos reais, por exemplo — a título de dano moral, para compensar os aborrecimentos inerentes a uma ação de cobrança dos prejuízos. O próprio fato de se envolver em um acidente, por culpa da outra parte, já justificaria um pequeno acréscimo ao dano material. A perda de tempo, as discussões no local, as pesquisas de orçamento nas oficinas, a necessidade de aconselhamento jurídico, etc, justificariam a concessão de um dano moral mínimo, mesmo que não havendo ferimentos graves.
Quanto aos danos morais e “punitivos” seria ideal que, tanto o autor, na petição inicial, quanto o juiz, na sentença, discriminassem expressamente as respectivas quantias, para que as instâncias superiores pudessem trabalhar no caso com mais precisão. O dano moral seria aquele correspondente à dor física ou moral, o acabrunhamento, o desestímulo, a sensação de infelicidade que não dá para quantificar, apenas estimar aproximadamente, e estimada também conforme a condição social e econômica das partes envolvidas. Se o causador do dano é pessoa física ou jurídica de avultado patrimônio, justo será que pague, para um mesmo dano, bem mais que um outro causador do dano de acanhado patrimônio. Não haveria nessa desigualdade de quantias, uma “punição”, mas mera proporcionalidade. Seria ainda assim apenas “dano moral”.
O “dano punitivo”, ou “exemplar” distingue-se do “dano moral” pela sua finalidade — o “outro olho” do metafórico camaleão. Visa castigar e advertir, “no bolso”, o causador do dano que agiu com desprezo pelos seus semelhantes. Adverte que seu procedimento é intolerável e que sofrerá financeiramente, no futuro, se não for mais cuidadoso.
Há muita diferença, em casos de autoria de atropelamento, entre um cidadão maduro, com vinte anos de carta de motorista — que nunca, antes, atropelou ninguém e pouco foi multado no trânsito — e um outro que, com cinco anos de carta, já atropelou várias pessoas e tem um longo prontuário de multas, inclusive por guiar embriagado. Este último, mesmo não sendo mais rico que o primeiro, obviamente merece uma punição financeira maior, por ser mais perigoso. Pobre, mas perigoso Aí teríamos a “indenização punitiva”. Nesse exemplo, o “velhote”, fiel obediente às leis de trânsito, mesmo sendo mais rico que o “atropelador serial”, pagaria uma indenização menor, por não lhe ser adequada a indenização punitiva, tendo em vista que não é um “perigoso ao volante”. O dano moral, apenas moral, no seu caso, poderia ser eventualmente alto se o acidente, — uma isolada e infeliz ocorrência — causasse na vítima dores atrozes e outros sofrimentos subjetivos. Mesmo nesse caso sendo alta a indenização do dano moral, esta não se confundiria com o “dano punitivo”. Essa discriminação do quanto corresponde ao dano moral e do quanto corresponde ao dano punitivo facilitaria a análise nas instâncias recursais.
Uma medida que ajudaria a diminuir exageros indenizatórios seria a obrigatoriedade de o autor mencionar, na petição inicial, qual o valor que pretende a título de dano moral e, eventualmente, punitivo. Tal providência permitiria ao réu defender-se com mais conhecimento de causa. O réu, citado, pode imaginar que o autor está pretendendo uma indenização algo modesta. Defende-se levando em conta essa presunção e é surpreendido com uma sentença de condenação milionária, caso o julgador tenha fortes preconceitos sobre o tipo de conduta atribuído ao réu. A condenação pode até surpreender o autor, que não contava com tanta generosidade.
A quase supressão de uma instância.
Surpreendido, o réu, com o alto valor da condenação, pode apelar, claro, mas, de certa forma, houve a supressão de uma instância de julgamento. O réu só ficou sabendo da força do raio que o fulminou quando encerrado o julgamento na primeira instância. Não pôde defender-se do raio antes dele cair. No céu havia apenas nuvens escuras. Uma coisa é saber que alguém quer uma condenação qualquer; outra, conhecer o peso específico dessa condenação. Embora a legislação processual vigente permita — segundo jurisprudência quase pacífica —, que o autor não mencione quantia específica a título de dano moral ou punitivo, a obrigatoriedade dessa menção, na inicial, obrigaria o autor a uma maior moderação, tendo em vista os riscos da sucumbência. Se ele pedir demais, na inicial, e receber menos na sentença, será sucumbente naquilo que perdeu.
Sucumbência, artigo de exportação.
A sucumbência, em honorários, por sinal, seria algo que poderíamos “exportar” para a prática americana de fazer justiça. Naquele país, ao que sei, não existe, formalmente, sucumbência (são 50 Estados, com específica legislação). O autor e seu advogado convencionam entre eles os honorários, se procedente a ação. O advogado assume o risco financeiro da demanda. Em compensação, ficará com entre trinta e quarenta por cento da condenação. Tal sistemática estimula a busca de indenizações milionárias, por parte do autor. Este não tem nada a perder, pois não gastou com custas, pagas por seu advogado, e, caso improcedente a ação não será afetado pelo ônus da sucumbência. Houvesse, sempre, a condenação em honorários, com base no pedido inicial, os advogados americanos e seus clientes não se arriscariam tanto.
Colisão de interesses de parentes das vítimas.
Um aspecto interessante nos pedidos de dano moral é o relacionado com o número de pessoas que acodem aos tribunais, em razão do mesmo fato. Por vezes, um irmão da vítima, solteira, falecida em acidente, entra na justiça, é bem sucedido e recebe uma indenização pelo dano moral. Outros parentes, talvez financeiramente enciumados, sabendo do sucesso da ação, entram com ações próprias, alegando as mesmas dores morais oriundas do falecimento. Nesses casos, a justiça brasileira, sabiamente, tem indeferido a tardia manifestação de dor dos parentes do falecido, conforme se vê na Apelação sumária 814.738-4, da 6a Câmara do 1º TACivSP, RT-772/253 e RT-772/255 (jurisprudência obtida no ótimo livro “Dano Moral”, de Humberto Theodoro Júnior). A jurisprudência tem entendido que a indenização concedida nesses casos tem um caráter familiar, ou grupal, quando vários parentes ajuízam as respectivas ações. O juiz, na sentença, pode discriminar o que cabe ao eventual cônjuge e aos demais parentes da vítima, quando todos eles buscam, simultaneamente, a indenização pela dor moral.
A absolvição criminal autoriza a indenização pelo Estado?
Uma hipótese que pode despertar a cobiça indenizatória, na área de danos morais, está na de absolvição de réus que estiveram detidos por algum tempo, quer em flagrante, quer em razão de prisão preventiva ou pronúncia. Se, nesses casos, houvesse obrigação do Estado em indenizar o absolvido — só por ter sido absolvido —, seria um nunca acabar de indenizações, mesmo de empedernidos criminosos. A absolvição não implica em garantia da inocência. O “in dúbio pro reo” já devolveu à rua muitos infratores. A prescrição, idem. Nossa jurisprudência, salutarmente, só manda indenizar o réu absolvido quando comprovado que houve deliberada má-fé das autoridades na condução do inquérito ou processo, com supressão ou manipulação de provas. Se, pela leitura dos depoimentos no auto de prisão em flagrante verifica-se que havia razoável prova da ocorrência do delito, não há porque conceder, depois, findo o processo com a absolvição, a indenização por dano moral. Seria o cúmulo que o réu, após cometer um crime fossem ainda premiado com uma indenização do Estado só porque as testemunhas de acusação faleceram ou desapareceram (talvez com medo dele) antes de depor em juízo. A visão jurisprudencial mais restritiva, já prevalecente, é, no caso, elogiável.
Dano moral em casos excursão turística.
Danos morais relacionados com a indústria do turismo têm sido bem reprimidos. Do contrário, as agências prometeriam uma coisa e forneceriam outra, bem inferior. Caso pitoresco, relacionado com o dano moral nesse serviço, está na ação movida por um casal que decidiu fazer uma viagem marítima no Caribe. Somente em alto mar o casal percebeu que o navio havia sido fretado por um ou mais grupos “gay”. Tendo em vista a livre expansão de comportamento ( antes reprimido) de muitos elementos dessa minoria, o casal viu-se forçado a trancar-se no camarote, pouco saindo para as refeições e ainda menos desfrutando do passeio, assustado com as manifestações amorosas. O casal entrou na justiça e a agência de viagens foi obrigada a devolver o que cobrara. Como a notícia saiu na imprensa não especializada, desobrigada de fornecer maiores detalhes, fica aqui apenas a menção do fato, a demonstrar que a responsabilidade permeia nossas vidas e é, pode-se dizer, a raiz de todos os Direitos.
A responsabilidade civil como contra estímulo de represálias escandalosas.
Um campo novo da responsabilidade civil, pouco mencionado na jurisprudência, mas que precisa, por exceção, ser incentivado está na possibilidade do cônjuge — ou ex-cônjuge, principalmente —, ser responsabilizado civilmente quando, invocando injúrias e traições passadas, ofende em público o ex-companheiro, por simples ciúme ou por amor não mais correspondido. E o mesmo aplica-se às uniões estáveis desfeitas. De modo geral, o “desprezado” sente-se no direito de mover estridente campanha difamatória contra a ex-companheira, ou vice-versa. E o rancor chega ao desdobramento físico, com esposas ou ex-esposas arrebentando, a marteladas, o carro do marido, ou ex-marido, ou o da nova companheira deste. A polícia, nesses casos, evita interferir seriamente alegando que “em briga de marido e mulher não se deve meter a colher”.
Outras vezes é o homem que, atacado de amnésia seletiva, esquecidos das próprias falhas, passa a perseguir, enciumado, a ex-esposa, ainda atraente, atormentando-a no ambiente de trabalho e ameaçando eventuais pretendentes. Simplesmente não aceita o que manda a lei de seu país. Na cabeça dele, “aquela mulher foi minha e assim permanecerá!” Mas, se a mulher exigisse, na justiça cível, uma indenização moral (financeira) a consideração econômica esfriaria consideravelmente os arreganhos machistas, principalmente se o juiz concedesse, liminarmente, um desconto provisório em seu salário. Da mesma forma, se a mulher — em processo de separação, ou já separada —, perceber que sua conduta escandalosa poderá reduzir o montante da pensão que recebe ou receberá — pode diminuir, não tendo bens próprios, executáveis, quando condenada por dano moral — essa reflexão a levará a um comportamento mais cauteloso, evitando aquilo que o povo chama de “baixaria”.
A jurisprudência não tem visto com liberalidade algumas tentativas de busca de indenização por dano moral por parte de cônjuges ou ex-cônjuges, por entender que ofensas recíprocas, nesses casos, devem se vistas sob o ângulo do Direito de Família. É natural que o dilaceramento da união conjugal seja traumático. Os cônjuges se exaltam. O amor de transforma e ódio e dificilmente os cônjuges se separam num clima tranqüilo. É justo que se encare com certa tolerância algumas batalhas conjugais, principalmente quando as ofensas ocorrem na fase de separação. Mas, encerrado o processo, ou mesmo ainda não encerrado, se a agressividade desborda o tolerável, a tolerância estimulando a impunidade, não há porque não aplicar o contra estímulo da reprimenda financeira, o dano moral, para esfriar o ânimo excessivamente agressivo. E a jurisprudência tem aceitado coibir os exageros, tais como o desfiguramento da mulher, por ácido ou fogo, ou agressões que a deixaram total ou parcialmente paralisada. Mas decisões punindo o simples escândalo deliberado, a “gritaria” na frente da firma onde trabalho o outro cônjuge, ainda não vi — pode ser que existam. É previsível que um certo “endurecimento” do judiciário contra evidentes exageros escandalosos (há algum cálculo teatral no procedimento), mesmo de parte do cônjuge inocente, terá um efeito civilizador na área social. No julgamento de qualquer caso, não é muito difícil distinguir a intenção de humilhar — em público ou em particular — da reação espontânea , imediata, de um cônjuge ferido na sua confiança. “Baixarias”, mesmo de origem sentimental, deveriam ser reduzidas a um mínimo, graças aos tribunais.
Ofensas na imprensa.
Com respeito à injúria, calúnia ou difamação pela imprensa, nossa jurisprudência já suplantou o entendimento de que a condenação financeira máxima, a título de indenização, seria a prevista na Lei de Imprensa, de 1967, já defasada. Permitir uma indenização baixa, conforme essa lei, para punir a leviandade ou a deliberada vontade de prejudicar a honra alheia equivaleria à prática daquele abonado cidadão romano — não me ocorre, agora, seu nome — que passeava pelas ruas de Roma antiga acompanhado de um secretário. Este carregava uma bolsa com dinheiro. Como cada bofetão era punível com uma indenização fixa, referido cidadão esbofeteava quem lhe dava na veneta e mandava o secretário pagar, no ato, o “dano moral” do esbofeteado, livrando-se de qualquer outra conseqüência. No caso da imprensa, nos dias de hoje, um bom falso escândalo, com grande venda de exemplares, seria altamente compensador, mesmo pagando, o jornal, as indenizações previstas na referida lei.
Um aspecto da Lei de Imprensa que ainda provoca preocupação é saber se o dano patrimonial oriundo da ofensa moral deve ser suportado pela empresa ( jornal ou revista) ou pelo autor do artigo difamatório ou calunioso. A Lei de Imprensa diz que é a empresa que responde, com direito de regresso contra seu articulista. E tal entendimento tem prevalecido, tendo em vista a redação da lei. Todavia, tal orientação pode, por vezes, estimular e garantir a impunidade, quando o jornal ou revista não tem patrimônio suficiente para uma indenização mais elevada. Um jornal do interior, sem qualquer patrimônio, ou muito endividado, pode servir de via impune de difamação, mesmo que o articulista seja pessoa abonada, em condições de pagar a condenação. Deveria, a lei ou a jurisprudência, determinar que tanto o proprietário do jornal quanto seu articulista fossem citados, procedendo-se a execução inicialmente contra a empresa. Se esta, porém, não tivesse bens suficientes para a execução, esta prosseguiria, no que faltasse, sobre os bens do articulista. Somente assim se atenderiam os dois interesses a se preservar na imprensa: informar (sem medo excessivo de publicar algum eventual erro) e indenizar quando há patente vontade de prejudicar, ou indesculpável leviandade.
Dano moral contra pessoa jurídica?
Finalmente, quanto à possibilidade de dano moral contra pessoas jurídicas — problema já suplantado pela jurisprudência —, é impossível não perceber a sua pertinência. Se, de fato, um ser moral, abstrato, como a personalidade jurídica, não tem um “cérebro” que possa sentir um sofrimento psíquico, tem-no as pessoas que nela trabalham. A difamação de uma empresa acaba se refletindo nas pessoas que a dirigem, ou são titulares das quotas ou ações. E os danos econômicos oriundos da desmoralização não tardarão a aparecer no patrimônio das pessoas que nela trabalham. Muitas perderão o emprego, pela redução da atividade. O Direito não poderia desprezar essa realidade, apegando-se apenas a conceitos metafísicos sobre o que seja a “realidade” da pessoa jurídica. O Direito tem por missão regular conflitos de interesses e não solucionar charadas filosóficas.
A responsabilidade do advogado perante o cliente.
A presente dissertação está muito longe de abranger o vasto campo da responsabilidade civil, uma área de infinitos desdobramentos. Seria impossível, em um artigo, abordar todos os itens que acompanham o tema. No caso da responsabilidade do advogado perante o cliente — preocupação relativamente nova mas verdadeiro “campo minado” em razão da própria natureza complexa da advocacia — é recomendável a leitura do excelente artigo do Dr. Elias Farah, publicado nesta Revista do IASP, n. 13, janeiro-junho de 2004, pág. 181 e seguintes. De forma concisa e didática, o prestigiado articulista aborda as inúmeras facetas de um problema já antigo mas só agora rodeado de concretos perigos financeiros para a operosa, difícil e por vezes injustiçada categoria profissional.
A ubiqüidade da responsabilidade.
No Direito Penal o infrator responde para o Estado, não para a vítima. Numa tentativa de homicídio contra pessoa dormindo, com disparos de arma de fogo munida de silenciador, as balas podem não atingir a vítima, e nem mesmo assustá-la, por sequer ter ouvido os disparos. No entanto, o infrator será processado pelo Estado, por tentativa de homicídio, mesmo não sofrendo o alvo qualquer dano. Lesada foi a comunidade. Na responsabilidade civil exige-se sempre um dano qualquer, físico ou psíquico, sofrido por uma vítima. E como o homem vive em sociedade, com inevitáveis atritos, quase todo litígio cível poderia ser rotulado, genericamente, e sem absurdo, como uma particular forma de responsabilidade civil. Quem, por exemplo, não paga um título de crédito, causa um dano, merecendo uma “indenização”, o pagamento, com seus acréscimos legais.
A responsabilidade civil permanecerá como uma fonte de desafios para o jurista, tal a multiplicidade de fatores que compõem a estimativa do prejuízo sofrido por um ser humano, esta entidade de imprevisíveis facetas. Mas a sobrevivência e o prestígio desse instituto dependem muito da honestidade intelectual daqueles que a invocam como base de seu direito.
Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo
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