Decisões do júri e subjetividade jurídica: Uma análise comparativa sobre o sistema jurídico brasileiro e o sistema norte-americano

Resumo: Na atual perspectiva de transnacionalização e internacionalização, espécies do gênero globalização, deve-se buscar um modelo ideal que sirva de parâmetro para que possamos entender quais as falhas do rito procedimental do júri existente no Brasil. Com o passar dos anos, se tornou cada vez mais evidente no Brasil as consequências que levam ao desastroso de retrocesso ao processo penal revanchista, ou, nos moldes da teoria do doutrinador alemão Günther Jakobs, o retorno do “Direito penal do inimigo” e quais as consequências deste dito retrocesso no corpo social, direta e indiretamente. Assim sendo, nesse trabalho, toma-se por parâmetro o sistema jurídico norte-americano no tocante ao júri, seus ritos procedimentais e possibilidades recursais, comparando o sistema jurídico-penal existente e objetivando a identificação e proposição um caminho de reestruturação do sistema vigente em terrae brasilis, de modo a limitar a subjetividade jurídica das decisões e reforçar o status de segurança jurídica das decisões. [1]

Palavras-chave: júri. direito comparado. subjetividade jurídica. segurança jurídica.

Abstract: Nowadays, with the globalization process, we must research an ideal model to work as a parameter in order to understand the failures of the jury procedure in Brazil. We aim to analyze and understand the factors that leads us back to a chaotic scenario of the “Criminal Law of the enemy”, theory presented by Gunther Jackobs. So, in order to analyze the consequences of this retrocess, we use as a parameter the north American law system on jury and the possibilities of appeals of the sentences. Doing that, we aim to present a way for identify and propose a way to rehabilitate and develop Brazilian’s legal system aiming, mostly of all, to limit the juridical subjectivity on the decisions and to reinforce the status of judicial security of these decisions.

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Keywords: jury. compared law. judicial security. judicial subjectivity. Appeals.sentences.

Sumário: 1. Introdução; 2. Os sistemas jurídicos no Brasil e nos Estados Unidos; 3- A evolução do júri no Brasil; 4- O tratamento legal do júri norte-americano; 4.1– As diferenças entre a competência do júri no Brasil versus nos Estados Unidos; 5-A subjetividade jurídica no júri brasileiro; 6- Das proposições e provocações necessárias para a evolução do júri no brasil; 7 – Conclusão; 8- Referências Bibliográficas

1. Introdução

Este trabalho vem com o escopo de tratar da instituição basilar que é o Tribunal do Júri no processo penal. Este sistema de julgamento traduz-se na representação inequívoca da democracia, ou seja, o poder verdadeiramente emana do povo. O poder de libertar ou condenar à reclusão este ou aquele acusado da prática de um dos tipos penais previstos nos artigos 121 – 128 do Código Penal.

Contemporaneamente, vivemos um momento delicado no tangente a aplicação das medidas punitivas da seara penal, visto que, por conta dos altos índices de criminalidade e pela ineficácia do Poder Público em desenvolver políticas de segurança pública para contornar essa problemática, os cidadãos buscam cada vez mais a justiça com as próprias mãos e veem como solução o enrijecimento do sistema penal, que por sua vez já se encontra fragilizado.

Como já dito em momento anterior, o sistema de julgamento através do júri traduz-se na representação inequívoca da democracia, e sendo assim, as sentenças advindas desse rito procedimental serão reflexo dos valores sociais contemporâneos. E é exatamente por isso que se faz necessário entender como a subjetividade jurídica impacta nas decisões do júri.

Portanto, é de salutar pertinência que façamos uma análise do sistema do tribunal do júri em suas minúcias, trazendo uma abordagem de direito comparado com o sistema anglo-saxão para que assim possamos apontar as fragilidades e verificar a efetivação do princípio da soberania das decisões dos jurados, além a subjetividade presente nas decisões do júri, para por fim, fornecer subsídios para a audaciosa tarefa de deliberar sobre a eficácia ou possível necessidade de reestruturação desse sistema.

2. Os sistemas jurídicos no Brasil e nos Estados Unidos

Para adentrarmos ao mérito deste artigo, é imprescindível que estabeleçamos a diferença entre os sistemas jurídicos que balizam o rito procedimental do tribunal do júri tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.

No Brasil, o sistema jurídico adotado é o Civil Law. Decorre do ordenamento jurídico romano-germânico e tem como centro do direito, a lei. Nesta senda, há a utilização do códex de lei como ponto de partida do raciocínio jurídico, tendo ainda, à disposição do magistrado, as fontes secundárias.

O advento do Civil Law e a sua difusão, sobretudo após a Revolução Francesa, visava retirar do juiz o papel da interpretação legal, ou de criação legislativa, cabendo a este tão somente a aplicação dos instrumentos normativos, visando sempre a certeza jurídica, que até hoje vige em nosso ordenamento como o princípio da segurança jurídica.

Já o Common Law (lei comum) é uma estrutura mais utilizada por países de origem anglo-saxônica como Estados Unidos e Inglaterra. Uma simples diferença é que lá o Direito se baseia mais na Jurisprudência que no texto da lei. Ou seja, a fonte sumária de aplicação do Direito são os precedentes normativos do Poder Judiciário.

É mister ressaltar que, em que pese a adoção oficial do sistema Civil Law no ordenamento jurídico brasileiro, as decisões das instâncias superiores do Poder Judiciário, cada vez mais adquirem força normativa. Este fenômeno é nomeado por alguns doutrinadores como “Common Law à brasileira”.

Ademais, em âmbito processual penal, o ordenamento jurídico brasileiro adota o sistema penal acusatório, isto é, o sistema no qual as funções de acusar e julgar são exercidos por órgãos distintos. Contudo ressalta-se, que até antes da reforma do Código de Processo Penal em 2008, o sistema jurídico brasileiro tinha fortes traços remanescentes do sistema inquisitivo, a exemplo da figura do mutatio libelli, contida na antiga redação do art. 384 do Código de Processo Penal, que trazia a hipótese de alteração da acusação pelo próprio juiz. Estes traços marcantes foram amenizados, porém não extintos, por isso não raro encontrarmos passagens no diploma normativo que remontam a este sistema.

Já no sistema processual penal norte-americano, conforme as lições de Pacelli (2008, p. 125), temos um sistema jurídico de partes, ou “adversary”, em que o juiz se afasta completamente de quaisquer funções probatórias, limitando-se ao controle de legalidade na instrução judicial

3. A evolução do júri no Brasil

A doutrina vacila em determinar a origem do instituto do Tribunal do Júri em âmbito mundial, mas no Brasil este procedimento surgiu em junho de 1822, pouco antes da independência, ainda sob o manto das Ordenações Filipinas, e tendo por competência tão somente o julgamento do crime de opinião ou de imprensa. O corpo de jurados ao tempo era composto de vinte e quatro cidadãos, “honrados, inteligentes e patriotas”. Assim diz Nucci (2010, p.43), quando descreve que em nosso País, “o júri era composto por 24 cidadãos ‘bons, honrados, inteligentes e patriotas’, prontos a julgar os delitos de abuso da liberdade de imprensa, senso suas decisões possíveis de revisão somente pelo Príncipe Regente”.

 A despeito da origem estrangeira, o instituto do Tribunal do Júri no Brasil se desenvolveu a tal ponto que tornou único o seu procedimento, dissociando-se, em grande parte, da influência estrangeira e se tornando um instituto tão basilar, que sobreviveu às mudanças históricas ocorridas no Brasil ao longo do tempo.

A tribuna do júri é o palco de um dos maiores exercícios de democracia, pois nela, efetivamente, todo o poder emana do povo e por ele é exercido. Os integrantes do Conselho de Sentença são cidadãos em pleno gozo dos seus direitos, que vão julgar acusações de crimes essencialmente humanos.

O júri no Brasil se assenta nos pilares constitucionais, e, desta Magna fonte exsurgem os princípios basilares desse rito procedimental, quais sejam: A plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. (inteligência do art. 5º, XXXVIII, a, b, c). Esse rito procedimental, no que concerne ao sistema de apreciação das provas, se pauta no sistema da íntima convicção, ou certeza moral do juiz. Esse sistema é uma exceção no ordenamento jurídico brasileiro, visto que a própria Constituição Federal obriga a motivação dos atos decisórios em seu artigo 93, inciso IX.

Acerca desse sistema de valoração da prova, temos na doutrina que uma vez que os jurados decidem de acordo com sua íntima convicção, podendo decidir por fatores completamente exógenos ao processo, é necessário que a defesa possa utilizar todos os meios possíveis para sustentar sua tese, não encontrando sua fundamentação atrelada aos argumentos jurídicos, como no caso do procedimento comum (BANDEIRA, 2007, p. 475).

É perceptível da leitura do trecho em destaque que, inexistindo a necessidade de fundamentação jurídica, e a inexigência de motivação dos atos decisórios, os julgamentos no Tribunal do Júri são dotados de ampla subjetividade, e, portanto, é mais que necessária a análise minuciosa desse sistema e a busca pelo aprimoramento do rito procedimental e do sistema recursal, observando os princípios norteadores e tomando por objeto de comparação o sistema norte-americano.

Atualmente no Brasil, a Constituição Federal, no seu art. 5º, XXXVIII, d, garante exclusividade ao Tribunal do Júri no julgamento de crimes dolosos contra a vida.

O Tribunal do Júri no Brasil será composto por um juiz-presidente mais vinte e cinco jurados, sorteados aleatoriamente pelo juiz entre todos os candidatos alistados, sendo sete desses designados a participar do Conselho de Sentença, como bem informa o art. 433 do Código de Processo Penal. O jurado que houver participado de Conselho de Sentença nos últimos doze meses, fica proibido de ser alistado no ano seguinte.

4. O tratamento legal do júri norte-americano

Nesse momento, se faz necessário que tratemos a respeito do procedimento no júri norte-americano, o qual dispõe a doutrina que:

“A instituição do Júri norte-americano desenvolveu-se, historicamente, de forma coerente com o espírito e os princípios da common law, que é uma tradição jurídica que possibilitou as condições e o contexto adequados para o aparente sucesso do júri.

[…] Já as características da tradição política do povo americano possibilitaram o surgimento de um espírito cívico e de uma consciência jurídica comum que tornam materialmente exequível o júri como regra e não a exceção” (BARBOSA, 1950, p.28-35).

Em âmbito criminal, o sistema norte-americano possui dois órgãos jurisdicionais: o Grand Jury (Grande Júri) e o Petit Jury (Pequeno Júri).

Grand Jury tem previsão constitucional na quinta emenda e é destinado somente para as causas criminais. Na esfera federal a instituição do Grande Júri é obrigatória para os crimes graves, em especial para aqueles apenados com a pena capital, ou outro infamante, o que não ocorre no âmbito da jurisdição estadual.

Trata-se de um procedimento sigiloso, composto, de acordo com as regras de cada Estado, de dezesseis a vinte e três membros, que pode ser convocado para duas finalidades: acusar os possíveis autores de crimes, ou, em outras palavras, receber a acusação feita pelo promotor de justiça (indictment) quando entender serem suficientes as provas apresentadas; ou investigar o possível cometimento de um crime e apresentar a acusação. 

Nesta senda, o papel do Grande Júri é desempenhar o judicium accusationis, numa fase preliminar (before trial) ao juízo da culpa, de modo que uma acusação a ele submetida será aceita se obtiver um quórum de maioria simples, quando então a causa será submetida ao Pequeno Júri.

Já o Petit Jury, tem por competência o estabelecimento de um juízo de culpa (trial), devendo, em procedimento público, julgar o acusado, declarando-o culpado ou inocente, ou ainda, a recomendação ao juiz presidente acerca do quantum da pena a ser aplicada, tal como ocorre em alguns estados, nos quais havendo a condenação em razão de crime gravíssimo os jurados podem recomendar a aplicação da pena de morte ao condenado.

 A composição e o funcionamento variam dependendo da esfera da federação, bem como de estado para estado. Os júris federais são compostos por doze jurados e o veredicto deverá sempre ser unânime. A constituição dos júris estaduais pode variar entre seis, oito e doze jurados, sendo que a decisão é, em regra, unânime, contudo, pode haver condenação pelo quórum de 2/3 ou 3/5, dependendo do número de jurados.

4.1 – As diferenças entre a competência do júri no Brasil versus nos Estados Unidos

O primeiro ponto de dissidência entre os dois sistemas procedimentais, até o ponto aqui abordado, é a competência: No Brasil, o júri é competente para julgar os crimes de homicídio, auxílio, instigação ou induzimento ao suicídio, infanticídio e o aborto. Aqueles cujo objeto principal é a vida. Já no ordenamento jurídico norte americano, a Constituição traz, em seu artigo III, seção 2 (parte final) que o julgamento de todos os crimes, exceto em casos de impeachment, será feito pelo júri, tendo lugar o julgamento no mesmo estado em que houverem ocorrido os crimes; e, se não houverem ocorrido em nenhum dos estados, o julgamento terá lugar na localidade que o Congresso designar por lei.

Outro ponto de dissidência encontra-se no que diz respeito ao quórum de votação. Enquanto nos Estados Unidos, em regra, a votação deve ser unânime (já que pode haver quórum diverso nos estados); já no Brasil elas se darão sempre por maioria, seja para a absolvição seja para a condenação.

Temos ainda que, enquanto nos Estados Unidos a formação da culpa é feita por um Júri, chamado de Grand Jury, após receber a acusação, aqui em terrae brasilis ela é feita perante um juiz togado, quando este prolata a sentença de pronúncia. No que toca ao juízo da causa, pode-se dizer que as figuras são semelhantes, já que é o corpo de jurados que irá decidir sobre a absolvição ou condenação do acusado. E, além disso, aos jurados brasileiros não cabe a aplicação da pena no caso de sentença condenatória. Esta função é exclusiva do juiz-presidente, ao passo em que no júri norte-americano, mesmo esta função pode ser exercida pelo corpo de jurados.

O sistema de relação de jurados também diverge bastante. Enquanto nos Estados Unidos a escolha dos jurados é feita aleatoriamente por escriturários dos sistemas dos tribunais pela compilação de listas a partir do cadastro de eleitores, cadastro de licenciamento de veículos ou mesmo de carteiras de motoristas, no Brasil, o juiz presidente do Júri elabora uma lista anual de possíveis jurados com base na indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado feita por autoridades, e algumas entidades e associações locais.

Por fim, é oportuno explicitar grande peculiaridade do sistema norte-americano diz respeito aos institutos do guilty plea (admissão da culpa) e do plea bargaining (barganha da culpa – onde a acusação oferece ao acusado a opção da guilty plea em troca de uma pena mais branda), inexistentes no Brasil. Pela aplicação do plea bargaining (onde o acusado se auto declara culpado em troca de uma acusação mais branda) o processo não deixará de existir, já se iniciando com o acusado declarado culpado.

5. A subjetividade jurídica no júri brasileiro

 Antes da imersão nessa seara, é imprescindível que seja feito um questionamento: A sociedade brasileira possui o “espírito cívico” e a “consciência jurídica” necessária para proferir uma decisão que irá privar um semelhante de um dos seus maiores bens imateriais, que é a sua liberdade? Através da resposta deste questionamento, poderemos analisar até que ponto a subjetividade jurídica – que é elemento indissociável do júri – influi nos atos decisórios, e quais as consequências deste fator.

Partiremos do pressuposto que a resposta para a indagação acima seja negativa. Então deveremos admitir que as decisões hoje no júri se dão, na maioria das vezes, pelo destaque da atuação da acusação ou da defesa na tribuna; pela comoção com o caso concreto; pela repercussão do caso sub judice na mídia; ou mesmo pela empatia dos jurados com o réu. O que, não parecem ser fatores que deem ensejo suficiente para uma condenação no precário sistema penitenciário existente no Brasil, ou em qualquer outro sistema penitenciário, dado o inestimável valor que é a liberdade de um indivíduo.

Acresça-se que, quando tratamos de subjetividade jurídica, não deve ser abordado somente o poder decisório que emana do povo, mas também é objeto interessante de análise a influência de fatores do corpo social nas sessões de julgamento. Implica dizer que constitui-se objeto de estudo a mídia, os valores sociais clássicos e contemporâneos e o ambiente jurídico em geral.

A esse respeito, é certeira a lição de BECCARIA em “Dos delitos e das Penas” quando assevera que os homens sentem um nefasto prazer, quando postos a julgar o seu semelhante. E esse prazer, é descrito por tal autor nos seguintes termos:

“[…] homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgá-los criminosos, têm prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com solenidade, aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática que goza lentamente com suas dores. Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso será o culpado para evitá-los. Acumulará os crimes, para subtrair-se à pena merecida pelo primeiro.”

A ausência de empatia dos julgadores para com o acusado, fruto de uma cultura de espetacularização do cárcere, reflete negativamente na medida em que a sociedade se reveste de desejos revanchistas e a sede de vingança. Com a incidência desses elementos, temos uma cultura de ostentação do suplício, uma tentativa cega de aplicação de direito penal do inimigo e direito penal do autor, o que nos remete a um inevitável retrocesso ao que me atrevo chamar de “Idade média” do processo penal, onde todas as garantias e teorias que buscam a aplicação sóbria e proporcional da pena visando a consecução da sua finalidade caem por terra, nos deixando em um cenário macabro tal qual todo o retratado ao longo de “Vigiar e punir” de Michel Foucault.

É, ainda, de bom alvitre que se esclareça, que, se por um lado, como já dito em momento anterior, o júri representa o âmago da democracia, por outro, a má condução deste rito procedimental pode implicar em incentivo à aplicação do direito penal do autor, e não do fato, vilipendiando as garantias constitucionais que o próprio júri visa salvaguardar.

Nesta toada, é incisiva a crítica ao rito procedimental do júri, emanada por Aury Lopes Jr. (2005, p.145-146), jurista de grande renome e autoridade nas discussões acerca do processo penal brasileiro, senão vejamos:

“O conhecimento jurídico, com a mais absoluta certeza, é fundamental para que se possa fazer um julgamento mais acertado, ou no mínimo menos falho. A margem de erro com certeza é potencialmente muito maior no Tribunal Popular (o que não quer dizer que os magistrados não erram), mas é como comparar um obstetra a uma parteira”.

Tal crítica é assaz incisiva, porém, os crimes submetidos à competência do júri, que têm por bem jurídico a vida, acredita-se, será melhor julgado por um corpo de cidadãos, aleatoriamente selecionados, representando assim as mais diversas camadas da sociedade e efetuando um julgamento factual, atécnico, afinal o ataque ao bem jurídico da vida é um rompimento do contrato social, nos exatos moldes explicitados na obra de Jean-Jacques Rousseau.

Ainda nesta senda, comungando do entendimento de que os cidadãos depositam a sua liberdade nas mãos do Estado, pactuando um contrato social, gerando a obrigação do cumprimento de deveres em contrapartida à aquisição de direitos e segurança, saindo do estado animalesco retratado n’O leviatã de Thomas Hobbes, parece razoável que os integrantes deste pacto possam exercer atividade judicante em face daqueles que descumprem tal tratado.

É certeiro o filósofo Jean-Jacques Rousseau (1999, p.44), em sua obra que trata do Contrato Social, quando assevera que:

“Qualquer malfeitor, atacando o direito social, torna-se por seus crimes rebelde e traidor da Pátria, de que cessa de ser membro por violar suas leis e à qual até faz guerra; a conservação do Estado não é compatível então com a sua”.

E arremata, em total consonância com o exposto até então, que a condenação de um criminoso é ato particular, não cabendo, contudo ao Soberano, de modo que este deve conferi-lo, e não executá-lo. E sendo assim, entendendo o Poder Judiciário como um membro que integra o Soberano (Estado), o júri seria uma atribuição legítima deste, delegando os atos decisórios aos pactuantes do contrato social, ao menos no concernente aos crimes contra a vida.

Contudo, para o pleno exercício de atividade tão importante, se faz necessária uma mudança do pensamento social no concernente ao cometimento de delitos e as penas cominadas, e essa mudança deve vir do ser humano e ser exteriorizada, incorporando-se ao campo axiológico-cultural do corpo social. Importante, neste momento, trazer o que disciplina Foucault (1977, p.72) quando aborda tal necessidade:

“Será uma transformação geral de atitude, uma “mudança que pertence ao campo do espírito e da subconsciência”? Talvez. Com maior certeza e mais imediatamente, porém, significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos […] O que se vai definindo não é tanto um respeito novo pela humanidade dos condenados — os suplícios ainda são frequentes, mesmo para os crimes leves — quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância penal mais atenta do corpo social.”

Ademais, para a aplicação eficaz e incólume do julgamento democrático perpetrado no júri, os cidadãos devem ter plena consciência de que punir por punir, de que a vingança por si só, não vai evitar o acontecimento de novos delitos e nem coibir a reincidência. Muito pelo contrário. Um julgamento baseado em fatores exclusivamente subjetivos, dissociados da realidade dos autos, trazem um cenário de insegurança jurídica, de horror e de absoluta inquisição, uma verdadeira caça às bruxas. É remontar a figuras que pensávamos terem sido extintas de há muito, remar contra a maré.

6. Das proposições e provocações necessárias para a evolução do júri no Brasil

Como já explicado no início deste escrito, toda a fundamentação teórica trazida até o presente momento objetiva analisar a necessidade e ofertar propostas de mudanças para que o júri no Brasil possa evoluir sem perder a sua essência. De nada adianta a busca pelo fator técnico-jurídico nas decisões proferidas pelos jurados leigos, tendo em vista que a soberania das decisões dos jurados pautadas pela íntima convicção vigora no nosso ordenamento jurídico, contudo, através da fórmula do júri de países que adotam esse sistema de modo mais ostensivo, pode trazer frutos bastante proveitosos, daí a imperiosa necessidade de problematizar e oferecer propostas com base no sistema legal norte-americano.

Primeiramente, questiona-se: será que a discussão entre os jurados buscando uma resposta unânime (ou mesmo com a maioria absoluta) não seria mais eficiente do que uma votação sigilosa por convicção íntima? É uma proposta ousada, pois modificaria radicalmente o próprio sistema processual em que se baseia o júri (sistema da convicção íntima), contudo, pode ser um fator que venha de modo a diminuir a subjetividade abstrata e prejudicial das decisões do júri no Brasil.

Neste sentido, válido trazer à baila a opinião do ilustre doutrinador Paulo Rangel (2010, p.144), que assevera, com grande maestria que:

“[…]as decisões devem ser fundadas e fruto do debate e da discussão, não sendo lícito excluir, desse imperativo constitucional, o Tribunal do Júri. (…) Decisão muda, emanada do Conselho de Sentença, e sem fundamentação, é ofensa ao Estado Democrático de Direito.”

Depois, é ainda de bom alvitre que se indague: será que não seria viável a adoção dos institutos do plea bargaining e do guilty plea (figuras jurídicas em que o acusado poderia “barganhar” com o titular da ação penal acerca da admissão da culpa buscando uma pena mais branda) em plagas brasileiras?

 Para esclarecer, é de mister importância asseverar, de pronto, que isso não implicaria em violação ao princípio da presunção de inocência, nem, à priori, caracterizaria coação, visto que seria faculdade do acusado, a barganha, e realizada somente com a intermediação do seu patrono legalmente constituído. Acresça-se, por oportuno, que o juizado especial criminal brasileiro já utiliza figura análoga (com as devidas ressalvas) aos institutos norte-americanos em comento, através do sistema de transação penal.

Outra proposta para coibir a ampla subjetividade das decisões do júri, seria uma possível implementação do júri escabinato, ou assessorado, que seria a presença de juízes togados no Conselho de Sentença. Tal sistema é adotado em países como a França, Itália, Portugal, e coaduna-se também com o sistema jurídico anglo-saxão, na medida em que traz uma atuação mais direta do magistrado nas decisões proferidas pelo júri e na condução dos ritos processuais de estilo.

Ressalte-se, no presente momento, que a reestruturação do sistema do júri no ordenamento político brasileiro, mesmo que encontre óbice nas garantias constitucionais que o balizam, devem ser ponderadas, visto que o devido processo legal possui o mesmo status quo e os fatores que possibilitem aos atores a margem que conduz à uma decisão equânime e justa devem ser observados, analisados e modificados, de acordo à necessidade.

Deste modo, a incorporação destas fórmulas no sistema brasileiro de júri, em teoria, poderia limitar a subjetividade, fazer com que os jurados pudessem analisar melhor as provas do processo e a discussão entre eles, poderia resultar em decisões mais justas e contundentes, proporcionando uma credibilidade ainda mais forte à maior expressão democrática em âmbito jurídico, que é o julgamento pelo Tribunal do Júri.

7. Conclusão

Diante de tudo quanto exposto, conclui-se, portanto, que o júri no Brasil, é acolhido por muitos como sendo expressão mais plena da democracia, e que exige dos julgadores espírito cívico e consciência democrática elevada, visto que ainda que não letrados nas artes jurídicas, os cidadãos escolhidos para atuarem no júri têm em mãos a liberdade de um par para dispor de acordo com a sua íntima convicção, diante das teses absolutórias e acusatórias levantadas em plenário e após rasa apreciação das provas colhidas.

Deste modo, as decisões do júri são movidas por ampla subjetividade, cujo controle se dá somente em sede recursal quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, o que dá margem a uma discricionariedade extremamente perigosa, acentuada ainda pelo sigilo das votações. Esta característica é adotada por poucos países, incluindo o Brasil, e, nos moldes atuais, mostra ser ineficaz, e, apontada por alguns doutrinadores, a exemplo de Paulo Rangel e Aury Lopes Jr., dentre outros doutrinadores críticos do sistema do júri como sendo até mesmo uma “norma constitucional inconstitucional”.

Por esta razão, é imprescindível que se discuta a adoção de institutos acolhidos no ordenamento jurídico norte-americano, para que as decisões proferidas no júri brasileiro possam ser mais equânimes e justas e que a ampla subjetividade jurídica dessas decisões seja tolhida, visto ser característica que não se coaduna com o garantismo penal e com o respeito ao devido processo legal, eliminando as reminiscências do processo inquisitório e aproximando ainda mais o nosso ordenamento jurídico de um processo acusatório.

Alavancadas as mudanças necessárias para a evolução do júri no Brasil, poderemos presenciar uma recepção mais calorosa deste instituto na sociedade civil, não sendo visto mais como uma obrigação imposta, mas sim um exercício de cidadania, e com cidadãos compromissados, teremos jurados dedicados, e decisões sóbrias, com a administração da justiça sendo exercida com a devida importância que esta enleva.

Em suma: o controle da subjetividade jurídica nas decisões do júri constitui um grande passo para uma reestruturação do processo penal na sociedade contemporânea, visto que o cenário hoje é de martírio para o acusado, espetacularização para a mídia, rigor punitivista para o órgão acusador, e uma luta solitária na trincheira da defesa na busca pela desmistificação do direito penal do inimigo, conforme retrata Francesco Carnelutti (2009, p.66):

“Infelizmente, a justiça humana está feita de tal maneira, que não somente faz sofrer aos homens porque são culpados, senão também para saber se são culpados ou inocentes. (…) mas o próprio processo é uma tortura.”

Esclareça-se, que o que se propõe não é a extinção do tribunal do júri no Brasil, haja vista ser tal instituto revestido de inegável importância, contudo, a reestruturação desse sistema, a começar pela consciência social, perpassando pela análise das propostas em sede de reforma jurídica do instituto, v.g. a adoção de medidas tais quais o plea bargaining, ou o escabinato, como medidas para tolher a subjetividade das decisões dos jurados, possam ser as soluções que há tempos estamos procurando.

Por fim, é necessário ainda que se explicite, que tais mudanças não devem surgir como soluções imediatistas e apressadamente implantadas, como muito temos visto nas atividades legiferantes no Brasil, sobretudo nos últimos dez anos, mas sim a implantação após um estudo dos impactos, dos efeitos e consequências de tais mudanças.

 

Referências
BECCARIA, Cesare. DOS DELITOS E DAS PENAS. São Paulo: Martin Claret, 2006.
CARLOTTO, Daniele. SOARES, Deise Mara. GRESSLER, Gustavo Artigo. UM OLHAR SOBRE O TRIBUNAL DO JÚRI NORTE-AMERICANO. Disponível em: Âmbito Jurídico: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=860> Acessado em. 26. Set. 2015.
CARNELUTTI, Francesco. AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL. Trad. Carlos Eduardo T. Millamn. São Paulo. 2009
ESTADOS UNIDOS. CONSTITUIÇÃO AMERICANA. Disponível em: < http://www.mspc.eng.br/temdiv/const_usa01.shtml#eme_6>. Acesso em: 03. Out. 2015
FERRAJOLI, Luigi. DIREITO E RAZÃO: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana Norberto Bobbio. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 2006.
FOUCAULT, Michel, VIGIAR E PUNIR. 1ª edição 1975. Petrópolis, Vozes, 1977.
LOPES JÚNIOR, Aury. INTRODUÇÃO CRÍTICA AO PROCESSO PENAL: (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005
MELO, Marcos Luiz Alves de. NA TRIBUNA DO JÚRI. Editora Casa Cultural Coronel Pita. 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. TRIBUNAL DO JÚRI. Editora Forense. 6ª ed. 2012
 OLIVEIRA, Marco Antônio. NOGUEIRA, Jessica Batelli. Artigo científico: O TRIBUNAL DO JURI: BRASIL X ESTADOS UNIDOS: As grandes diferenças e poucas similaridades. Disponível em: < http://www.eduvaleavare.com.br/wp-content/uploads/2015/10/tribunal.pdf > Acesso em: 03.out.2015.
RANGEL, Paulo. TRIBUNAL DO JÚRI: Visão Lingüística, Histórica, Social e Dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010
ROUSSEAU, Jean-Jacques. DO CONTRATO SOCIAL, São Paulo, 1999. Tradução por Martins Fontes, 3ª tiragem.
Nota
[1] Artigo orientado pelo Prof. Marcos Luiz Alves de Melo Especialista em Ciências Criminais; Especialista em Docência Universitária pela Universidade Católica do Salvador; Graduado em Direito na Universidade Federal da Bahia.


Informações Sobre o Autor

Jonata Wiliam Sousa da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador/BA. Pós-graduando em Ciências Criminais pela Universidade Católica do Salvador. Vice-presidente do Escritório Modelo Professor Manoel Ribeiro da UCSAL/BA no biênio 2014-2016


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Equipe Âmbito Jurídico

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