Resumo: O tema proposto versa a fiscalização da discricionariedade da atividade administrativo-governamental no concernente à efetivação e à concretização das políticas públicas, a serem efetivadas não pelo Órgão (“Poder”) Executivo, mas, quando de sua recusa, retardamento ou insuficiente proteção, pelo Órgão Judiciário e, sobretudo, pelas Funções Essenciais à Justiça, como resultado direto e imediato da atuação institucional proativa, fiscalizatória e democrática da Defensoria Pública (DP). Há abordagem de temáticas variadas e uma interdisciplinaridade nas searas do Direito, como Direito Administrativo, Constitucional, Difusos e Coletivos e Institucional da Defensoria Pública e do Ministério Público (analisando basicamente as Leis Orgânicas dessas Instituições Autônomas, Permanentes e Essenciais à Justiça, isto é, à Ordem Jurídica Justa).
Palavras-chave: Defensoria Pública, Funções Essenciais à Justiça, Políticas Públicas, Discricionariedade Administrativa Governamental, Microssistema Coletivo.
Sumário: 1– Introdução. 2- Discricionariedade administrativa governamental. 3- Atuação preventiva, extrajudicial e resolutiva da Defensoria Pública. 4- Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Abordar-se-á o controle e a fiscalização preventiva, extrajudicial, proativa e resolutiva, pela Defensoria Pública, enquanto Função Essencial à Justiça (artigo 134 da Constituição da República), da efetiva concretização dos direitos fundamentais, máxime em se tratando de políticas públicas básicas e de atendimento essencial e fundamental pelo Poder Público.
Discorrer-se-á sobre o conceito de discricionariedade administrativa, respondendo a algumas indagações pertinentes ao tema em comento, tais como, se existe discricionariedade na realização de políticas públicas concretizadoras dos direitos fundamentais; se a faculdade de o Administrador Público escolher suas políticas públicas prioritárias de campanha não tornaria a Constituição ornamental, um museu de princípios, um mero ideário sem efetivação prática; qual o limite dessa discricionariedade; se há possibilidade de controle de juridicidade e do mérito administrativo pelo Poder Judiciário e pelas Funções Essenciais à Justiça ou implica excesso de exercício funcional, violação da Separação de Poderes.
Será demonstrada uma evolução histórica sobre a criação e a atuação da Defensoria Pública, demonstrando-se exemplos práticos em que a Instituição judicializou demandas coletivas econômicas e sociais, assim como as preveniu por meios e instrumentos hábeis de negociação política e jurídica.
Alfim consignar-se-á a real capacidade, com previsão infraconstitucional e orgânica, da Defensoria Pública em prevenir a judicialização de megaconflitos, solucionando harmônica e politicamente problemas socioeconômicos, isto é, dando soluções às demandas coletivas de interesse geral, sobretudo da população hipossuficiente, entendida não apenas aquela com vulnerabilidade econômica, mas também com hipossuficiência jurídica e organizacional, ou seja, de direitos coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.
2. DESENVOLVIMENTO
Introduzido o trabalho, mostrando-se o interesse geral e seu resultado prático, faz-se necessário analisar com mais precisão e objetividade o conceito de discricionariedade administrativa e a atuação da Defensoria Pública no controle da legalidade e da juridicidade das ações governamentais, nas escolhas das políticas públicas prioritárias e sua respectiva efetivação e concretização para a observância e o cumprimento das garantias constitucionais fundamentais, evitando-se a judicialização de megaconflitos e de demandas de interesses difuso ou coletivo, utilizando-se de instrumentos extraprocessuais jurídicos e políticos hábeis a sanar a omissão estatal.
2.1. Discricionariedade administrativa governamental
Políticas públicas são ações governamentais destinadas à concretização de direitos humanos fundamentais e básicos, como direito à saúde, à educação, à assistência social, à moradia digna, à segurança (pública e jurídica), à proteção especial do Estado aos Grupos Sociais Vulneráveis (idosos, crianças e adolescentes, consumidores, mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar e outros), à assistência aos desamparados e necessitados não apenas economicamente, mas jurídica e organizacionalmente, ao trabalho, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao patrimônio público, histórico, turístico, cultural, paisagístico e estético, à transparência, moralidade administrativa e legalidade, dentre outros.
Entendidas as políticas públicas como direitos fundamentais previstos expressa ou implicitamente na Constituição da República Federativa do Brasil-CRFB devem ser concretizadas como decorrência do dever-poder do Estado no exercício de sua atividade administrativa governamental, sob pena de, não o fazendo, tornar a Constituição ornamental, um museu de princípios, um mero ideário sem efetivação de suas normas.
Utilizando desses dizeres, asseverou o Superior Tribunal de Justiça que (RMS n. 24.197/PR, T1, Min. Luiz Fux, DJe 24/08/2010):
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HEPATITE C. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. (…) 2. Sobreleva notar, ainda, que hoje é patente a ideia de que a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana.” (grifo nosso)
Discorrendo sobre o Direito Fundamental à Efetivação da Constituição e sobre a Eficácia Dirigente dos Direitos Fundamentais, Dirley da Cunha Jr. (2009, 609-10) assevera que:
“Outra importante consequência da dimensão objetiva valorativa dos direitos fundamentais reside na eficácia dirigente que eles produzem em relação aos órgãos do Estado. Com base nela, podemos sustentar que os direitos fundamentais impõem ao Estado o dever permanente de concretizá-los e realizá-los. É nessa perspectiva que se vislumbra com mais exatidão o direito fundamental à efetivação da Constituição que encarrega todos os órgãos do Estado do dever-poder de concretizar e realizar, não só os direitos fundamentais, como toda a Constituição.” (g. nosso)
Desta feita, cabe pontuar que não há discricionariedade do Administrador Público na efetivação dos direitos fundamentais constitucionais, aqui incluídas todas as políticas públicas básicas, essenciais às pessoas, à sociedade vista como um todo, enquanto amparo do interesse público primário, pois o Brasil adota o modelo de Estado Democrático de Direito, subordinando-se o Estado ao Direito, isto é, “no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu” (STJ, REsp n. 736.524/SP, Relator Ministro Luiz Fux, T1, DJ 03/04/2006).
Sabe-se que na condução da atividade administrativa governamental existe uma discricionariedade quanto à preferência, às prioridades de aplicação da verba pública, do orçamento estatal, muitas vezes ecoadas em épocas de campanhas e propagandas políticas.
Entrementes, isso não implica defender a ideia de que o Administrador Público escolherá quais são as políticas públicas adequadas para o momento e para a realidade de um território, enquanto espaço geográfico-político de atuação de governo, pois a própria Constituição Republicana elegeu políticas prioritárias, ainda que de maneira implícita e sistemática, as quais devem ser cumpridas com destinação preferencial.
Discricionariedade significa a possibilidade de examinar a oportunidade e a conveniência na prática de um ato quando houver uma variedade de opções para sua realização. É dada ao sujeito competente para o ato uma margem de liberdade na escolha do que seja oportuno e conveniente. Não significa dizer liberdade absoluta para a prática ou não do ato, mas a análise da maneira de sua concretude, de “como” concretizar o ato.
Lecionando sobre o tema em comento, preceitua C. A. Bandeira de Mello (2010, pág. 973):
“Discricionariedade é a margem de “liberdade” que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.
Discricionariedade não implica liberdade arbitrária (arbitrariedade) na escolha do ato e na forma de realização, de acordo com conveniências individuais, pessoais, devendo estar lastreado em fundamento legal e constitucional idôneo para sua efetiva regularidade, juridicidade e constitucionalidade, sob pena de reduzi-la a verdadeiro arbítrio, negador de todos os postulados do Estado de Direito e do sistema positivo brasileiro.
Tendo em vista essa limitação, consubstancia claramente um “poder demarcado, limitado, contido em fronteiras requeridas até por imposição racional, posto que, à falta delas, perderia o cunho de poder jurídico” (B. de Mello, 2010, p. 973).
Em se tratando de ações governamentais de políticas públicas, a limitação é ainda maior. A Constituição determina a prática de atos, de ações de interesse público, social e econômico, de políticas concretizadoras de direitos e garantias fundamentais, configurando a omissão estatal uma ofensa, uma contumélia inaceitável aos ditames constitucionais, passíveis de fiscalização e de controle pelas Funções Essenciais à Justiça (Defensoria Pública e Ministério Público) e pelo Órgão Judiciário.
Dissertando sobre a política pública da educação infantil e básica, o Supremo Tribunal Federal-STF, julgando Recurso Extraordinário (AgReg no RE n. 410.715/SP, 2.ª Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 03/02/2006), assim se posicionou:
“A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à 'reserva do possível'. Doutrina.” (grifo nosso)
Como mencionado alhures, “a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios”, não prevê meras recomendações e programas de realização facultativa, de acordo com uma interpretação pessoal e conveniente dos Governantes, Administradores Públicos (STJ, RMS n. 24.197/PR, T1, Min. Luiz Fux, DJe 24/08/2010).
A Constituição Republicana exige efetivação de suas normas, concretização de seus preceitos, a fim de que a sociedade – os administrados e cidadãos como um todo – tenham seus direitos e garantias cumpridos, fazendo da Lei Maior não uma letra morta, mas lhe dando concretude necessária, exigida de um Estado Democrático de Direito (artigo 1.º, caput, da CRFB).
Em atenção ao Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, do Acesso à Justiça, em sentido formal e material (artigo 5.º, inciso XXXV, da Constituição da República), “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Desta feita, não apenas condutas comissivas ilegais são passíveis de controle e apreciação jurisdicional, mas também a desídia, a omissão, a inércia ou a proteção insuficiente ou incompleta de um direito individual ou coletivo pelos Órgãos Públicos.
Reconhecendo o controle dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, bem como defendendo uma postura ativa deste Órgão na fiscalização do cumprimento desses direitos pelo Estado, Dirley da CUNHA (2009, p. 601) pontua que:
“O Poder Judiciário, como a última trincheira de defesa dos direitos fundamentais, também está, evidentemente, vinculado à observância das posições jurídicas que esses direitos consagram. A vinculação do Judiciário aos direitos fundamentais manifesta-se de forma especial, haja vista que ela não só impõe o respeito deste Poder aos direitos fundamentais, como dele exige uma atividade efetiva e ativa de controle da atuação abusiva dos outros Poderes que afetam os direitos fundamentais, contrariando-os ou não os realizando total ou parcialmente. O Judiciário, portanto, tem o dever de conferir aos direitos fundamentais a máxima eficácia possível. É neste contexto que se defende a postura ativa do Judiciário na defesa dos direitos fundamentais, notadamente na defesa daquele direito fundamental à efetivação da Constituição, que o legitima, até mesmo, a substituir provisoriamente os demais Poderes, no exercício da jurisdição constitucional, sob pena de perder a justificativa histórica que lhe confere a condição de Poder mediador dos conflitos e do controle da efetividade constitucional.” (grifo nosso)
Dessarte não há violação à Cláusula da Separação dos Poderes (artigo 2.º, CRFB) quando da análise dessas questões pelo Órgão Judiciário, na medida em que a determinação judicial é mero reflexo dos preceitos da Constituição Republicana que foram descumpridos, não significando administração e governo exercidos pelo Poder Judiciário, mas apenas controle da política pública não concretizada pelos demais Poderes Públicos, primeiros destinatários do comando constitucional, de maneira regular, satisfatória e efetiva.
A própria Suprema Corte brasileira reconhece a legitimidade constitucional da intervenção do Órgão Judiciário em casos de omissão estatal na implementação de políticas públicas previstas na Constituição (STF, ARE n. 639.337/SP, Relator Celso de Mello, T2, Julgado em 23/08/2011). Em assim sendo, uma inação ou atuação estatal que não se destine à proteção de políticas prioritárias, mas apenas políticas insignificantes decorrentes de promessas de campanha, com parcos gastos dos cofres públicos, são aptas a ir às prateleiras judiciais.
Denota-se que não existe qualquer disceptação quanto à apreciação judicial das políticas públicas descumpridas pela Administração Pública e seus Governantes. É pacífica, pois, a possibilidade de intervenção jurisdicional no controle da omissão estatal na concretização das políticas públicas, implementando-as a partir de comandos provenientes do Órgão Judiciário, que nada mais faz que “neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas”, como pontuado pelo Supremo Tribunal Federal no já citado julgado (ARE n. 639.337/SP).
Entrementes, este trabalho visa a demonstrar um controle extrajudicial, preventivo e resolutivo da atividade administrativa governamental das políticas públicas, seja de atividades discricionárias, controlando o limite e a extensão da liberdade, seja de atividades vinculadas, como as políticas públicas preceituadas constitucionalmente, mas que os Governantes as interpretam como facultativas, não prioritárias, sem caráter cogente, de concretização compulsória.
As Instituições principais para a concretização das políticas públicas quando da omissão e inércia do órgão responsável pela primeira atitude são a Defensoria Pública e o Ministério Público, caracterizadas como Instituições Permanentes e Autônomas, na inteligência de suas Leis Orgânicas Nacionais (LC n. 80/94, LC n. 75/93 e Lei n. 8.625/93) e Essenciais à Justiça, entendida esta não apenas como Poder Judiciário, mas sim como Ordem Jurídica Justa, na proteção do regime democrático, dos interesses sociais, individuais, disponíveis e indisponíveis, de grupos sociais vulneráveis, dos necessitados, a primazia da dignidade da pessoa humana, ou seja, na proteção dos usuários efetivos e potenciais das políticas públicas que devem ser efetivadas compulsoriamente pelos Poderes Públicos, sem margem de discricionariedade quanto ao fazer ou não.
Desta feita, devem essas Instituições agir de maneira prioritária, preventiva, evitando judicialização dos conflitos sociais e públicos, efetivando-se os direitos fundamentais e as políticas públicas correspondentes. Nesse sentido, o Defensor Público Paulista Tiago Fensterseifer em artigo-capítulo na obra “Uma nova Defensoria Pública pede passagem” (2011, pág. 347) sustenta que:
“A atuação do Poder Judiciário, é bom frisar, tem se dado sempre de forma subsidiária e excepcional, ou seja, somente diante da verificação no caso concreto de omissão ou atuação insuficiente dos demais poderes no sentido de implementarem políticas públicas minimamente satisfatórias na área dos direitos sociais.” (grifo nosso)
Nessa ordem está a Defensoria Pública-DP na fiscalização e na concretização das políticas públicas quando da proteção dos “necessitados” do ponto de vista da hipossuficiência organizacional. Lecionando sobre a legitimação da DP e a necessidade de ampliação do conceito de necessidade para a respectiva efetivação do direito fundamental do acesso substancial à justiça, pontua Frederico R. V. de Lima (2010, p. 234):
“A hipossuficiência organizacional justifica a atribuição atípica da Defensoria Pública nas demandas coletivas. Como salienta Ada Pellegrini Grinover, a vulnerabilidade social dos consumidores, dos usuários de serviços públicos, dos usuários de planos de saúde, dos que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente, caracterizam a hipossuficiência do ponto de vista organizacional.”
Em assim sendo, é preferível uma atuação preventiva e fiscalizatória da Defensoria Pública nos megaconflitos sociais, evitando-se a judicialização das demandas coletivas, haja vista que muitas das vezes os provimentos jurisdicionais são inefetivos, inócuos do ponto de vista prático, em face da desobediência dos Administradores Públicos em cumpri-los ou da impossibilidade orçamentária e estrutural do Estado Brasileiro. A atuação negociadora, mediadora e resolutiva dessas Funções Essenciais à Justiça alcança um resultado prático mais frutífero, em consonância com as necessidades e possibilidade dispostas no momento político.
2.2. Atuação preventiva, extrajudicial e resolutiva da Defensoria Pública
A Defensoria Pública é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5.º da Constituição Federal”, nos exatos termos do artigo 1.º da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública-LONDP (LC n. 80/94) e à semelhança do artigo 134 da Constituição da República.
A Defensoria Pública enquanto Instituição organizada, regulamentada e estruturada, só veio a ser criada na Constituição Cidadã, em 1988. Antes, sua atividade era exercida pela Advocacia Pública (Procuradorias Públicas, setor de Procuradoria de Assistência Judiciária), restringindo-se a uma mera assistência judiciária individual.
Não havia, antes, uma atuação extrajudicial dos Entes responsáveis por exercer o atual papel incumbido constitucional e legalmente à Defensoria. Ademais, essa atuação era exclusivamente individual, não abrangendo proteção de interesses difusos e coletivos (metaindividuais), sem mencionar o fato de o público-alvo restringir-se aos hipossuficientes econômico-financeiros, pobres na forma da lei (Lei n. 1.060/50 – Lei da “Assistência Judiciária Gratuita”).
A Constituição da República trouxe a previsão da Instituição em seu artigo 134 como Função Essencial à Justiça e a Emenda Constitucional n. 45/04, conhecida como Reforma do Judiciário, assegurou expressamente às Defensorias Estaduais Autonomia Institucional, Funcional, Administrativa e Financeiro-Orçamentária, nos termos do § 2.º do indigitado artigo, norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, cuja independência e desvinculação da ideia de Poder Republicano (falsa percepção de vinculação das Defensorias Públicas ao Poder Executivo) fora explicitada recentemente em julgados com eficácia erga omnes e vinculante no Supremo Tribunal Federal (ADI n. 3569/PE, Tribunal Pleno, Julgamento em 02/04/2007), após julgamentos passados em sede de controle incidental de constitucionalidade (RE n. 599.620/MA, T2, Julgamento em 27.10.2009), senão vejamos um deles:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. LEIS DELEGADAS N. 112 E 117, AMBAS DE 2007. 1. Lei Delegada n. 112/2007, art. 26, inc. I, alínea h: Defensoria Pública de Minas Gerais órgão integrante do Poder Executivo mineiro. 2. Lei Delegada n. 117/2007, art. 10; expressão “e a Defensoria Pública”, instituição subordinada ao Governador do Estado de Minas Gerais, integrando a Secretaria de Estado de Defesa Social. 3. O art. 134, § 2º, da Constituição da República, é norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata. 4. A Defensoria Pública dos Estados tem autonomia funcional e administrativa, incabível relação de subordinação a qualquer Secretaria de Estado. Precedente. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.” (STF, ADI 3965/MG, Relator Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, Julgamento em 07.03.2012). (grifo nosso)
É importante destacar a autonomia institucional da Defensoria Pública em relação ao Poder Executivo, tendo em vista que o presente trabalho objetiva exatamente demonstrar a atuação daquela Instituição em face da omissão e da inércia deste Poder, indo de encontro aos seus interesses (interesse público secundário), o que não seria lógico se houvesse vinculação e subordinação, por questões estruturais e de hierarquia na organização administrativa.
Atualmente, além da previsão constitucional da Defensoria Pública no artigo 134, malgrado com emprego de conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas abertas e explicitude normativa baixa (diferentemente do Ministério Público, com muitos artigos constitucionais abordando suas atribuições institucionais e divisão administrativa), há a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública-LONDP (Lei Complementar-LC n. 80/94), com recentes e importantes alterações feitas pela LC n. 132/09, verdadeiro divisor de águas na história da Defensoria Pública, em termos de norma infraconstitucional, enfatizando uma atuação extrajudicial, preventiva, mediadora, resolutiva e coletiva, modificando velhos conceitos, já ultrapassados doutrinariamente.
A Defensoria já apresentava alguns trabalhos coletivos, conquanto com algumas dificuldades de reconhecimento de legitimidade ad causam para atuar na proteção de interesses supraindividuais. Em decisões anteriores, já se reconheceu que sua legitimidade decorreria do Princípio do Acesso à Justiça (art. 5.º, XXXV, CRFB), da interpretação sistemática do art. 134 da Constituição com o todo constitucional (Princípio da Unidade da Constituição) e do Código de Defesa do Consumidor-CDC, artigo 82, inciso III, como decorrência do Sistema Integrativo Aberto, ou Microssistema Processual Coletivo, decorrência direta do Diálogo das Fontes, teoria internalizada no Brasil por Cláudia Lima Marques, não sendo coerente legitimá-la a demandar individualmente, e na seara coletiva, muito mais proveitosa e frutífera, vedá-la.
Nesse espaço de tempo, antes mesmo das alterações vindouras (2007 e 2009), doravante mencionadas, o STJ já entendia, não em todos os casos e com certa margem de limitação, pela legitimidade ad causam da Defensoria na proposição de Ação Coletiva e, como consequência, na utilização de instrumentos-meios hábeis a evitar a judicialização dos megaconflitos sociais, econômicos e jurídicos (pela ilegitimidade: STJ, REsp n. 734.176, T1, DJ 27/03/2006; AgRg no Ag 500.644/MS, T2, DJ 18/04/2005). Nessa trilha de pensamento, reconhecendo a legitimidade ativa da Defensoria, confira-se:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA COLETIVA DOS CONSUMIDORES. CONTRATOS DE ARRENDAMENTO MERCANTIL ATRELADOS A MOEDA ESTRANGEIRA. MAXIDESVALORIZAÇÃO DO REAL FRENTE AO DÓLAR NORTE-AMERICANO. INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ÓRGÃO ESPECIALIZADO VINCULADO À DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO. I – O NUDECON, órgão especializado, vinculado à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, tem legitimidade ativa para propor ação civil pública objetivando a defesa dos interesses da coletividade de consumidores que assumiram contratos de arrendamento mercantil, para aquisição de veículos automotores, com cláusula de indexação monetária atrelada à variação cambial. II – No que se refere à defesa dos interesses do consumidor por meio de ações coletivas, a intenção do legislador pátrio foi ampliar o campo da legitimação ativa, conforme se depreende do artigo 82 e incisos do CDC, bem assim do artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, ao dispor, expressamente, que incumbe ao “Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”. III – Reconhecida a relevância social, ainda que se trate de direitos essencialmente individuais, vislumbra-se o interesse da sociedade na solução coletiva do litígio, seja como forma de atender às políticas judiciárias no sentido de se propiciar a defesa plena do consumidor, com a consequente facilitação ao acesso à Justiça, seja para garantir a segurança jurídica em tema de extrema relevância, evitando-se a existência de decisões conflitantes. Recurso especial provido.” (STJ, REsp n. 555.111/RJ, Min. Castro Filho, T3, DJ 18/12/2006) (grifo nosso)
Ato contínuo, em 2007 foi publicada a Lei n. 11.448/07, alterando o inciso II do artigo 5.º da Lei da Ação Civil Pública-LACP (Lei n. 7.347/85), conferindo legitimidade à Defensoria para propor ação principal e cautelar no âmbito coletivo.
Essa alteração veio facilitar o reconhecimento da legitimidade da Instituição para demandar na proteção de interesses da coletividade, embora com algumas dificuldades práticas (STJ, REsp n. 912.849/RS, T1, DJe 28.04.2008). Nessa senda, confira-se:
“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. ART. 5º, INCISO II, DA LEI N. 7.347/85 (REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 11.448/2007). DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 557, § 2º, CPC. 1. A Defensoria Pública tem legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública com o objetivo de defender interesses individuais homogêneos de consumidores lesados em virtude de relações firmadas com as instituições financeiras.” (STJ, AgRg no REsp n. 1.000.421/SC, Relator Min. João Otávio de Noronha, T4, DJe 01/06/2011). (grifo nosso)
Como ato finalizador, pondo cobro a toda e qualquer discussão, surgiu a LC n. 132/09, que alterou a LONDP (LC n. 80/94), trazendo princípios novos, motivação a uma atuação preventiva, extrajudicial, resolutiva e coletiva da Defensoria, não permanecendo qualquer entrave ao reconhecimento de sua legitimidade processual.
Já decidindo sobre esse tema, assim se manifestou o Tribunal da Cidadania (STJ, AgRg no AREsp n. 53.146/SP, T2, DJe 05.03.2012):
“PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE. DEFENSORIA PÚBLICA. TEORIA DA ASSERÇÃO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INEXISTÊNCIA. 1. A Defensoria Pública tem autorização legal para atuar como substituto processual dos consumidores, tanto em demandas envolvendo direitos individuais em sentido estrito, como direitos individuais homogêneos, disponíveis ou indisponíveis, na forma do art. 4º, incisos VII e VIII, da Lei Complementar n.º 80/94. Precedentes. 2. À luz da Teoria da Asserção, não se vislumbra a impossibilidade jurídica do pedido, tendo em vista o que foi asseverado na petição inicial. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido.”
A Defensoria deixou um exclusivo modelo individualista e passou a ter voz coletiva, atuação transindividual, atuando na proteção não apenas de pobres (necessitados econômicos – vulnerabilidade financeira), mas também de grupos sociais vulneráveis, de consumidores, usuários de serviços públicos, idosos, crianças e adolescentes, mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, de pessoas investigadas, representadas ou acusadas de infração penal ou ato infracional, ou seja, necessitados organizacionais ou jurídicos.
Nessa senda, Ada Pellegrini Grinover, em Parecer escrito a pedido da ANADEP-Associação Nacional dos Defensores Públicos, anexo aos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade-ADI n. 3943, ajuizada pela CONAMP-Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, e publicado no Livro “Uma nova Defensoria Pública pede passagem” (SOUZA, 2011, págs. 483-4), manifesta que:
“Em estudo posterior, ainda afirmei surgir, em razão da própria estruturação da sociedade de massa, uma nova categoria de hipossuficientes, ou seja, a dos carentes organizacionais, a que se referiu Mauro Cappelletti, ligada à questão da vulnerabilidade das pessoas em face das relações sociojurídicas existentes na sociedade contemporânea.
Da mesma maneira deve ser interpretado o inc. LXXIV do art. 5.º da CF: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (grifei). A exegese do termo constitucional não deve limitar-se aos recursos econômicos, abrangendo recursos organizacionais, culturais, sociais.
Saliente-se, ainda, que a necessidade de comprovação da insuficiência de recursos se aplica exclusivamente às demandas individuais, porquanto, nas ações coletivas, esse requisito resultará naturalmente do objeto da demanda – o pedido formulado. Bastará que haja indícios de que parte ou boa parte dos assistidos sejam necessitados. E, conforme, já decidiu o TRF da 2.ª Região, nada há nos artigos 5.º, LXXIV e 134 da CF que indique que a defesa dos necessitados só possa ser individual. Seria até mesmo um contrassenso a existência de um órgão que só pudesse defender necessitados individualmente, deixando à margem a defesa de lesões coletivas, socialmente muito mais graves.
Conforme bem observou Boaventura de Sousa Santos, daí surge “a necessidade de a Defensoria Pública, cada vez mais, desprender-se de um modelo marcadamente individualista de atuação”.
Assim, mesmo que se queira enquadrar as funções da Defensoria Pública no campo da defesa dos necessitados e dos que comprovarem insuficiência de recursos, os conceitos indeterminados da Constituição autorizam o entendimento – aderente à ideia generosa do amplo acesso à justiça – de que compete à instituição a defesa dos necessitados do ponto de vista organizacional, abrangendo portanto os componentes de grupos, categorias ou classes de pessoas na tutela de seus interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.”
Como se denota das proposições supraindicadas, a Defensoria Pública deixou um modelo de trabalho voltado exclusivamente ao atendimento individual do seu público, sem mencionar uma atividade tão somente judicial, sem capacidade e idoneidade de resolução dos conflitos previamente (sem necessidade de provocar a atuação do Órgão Judiciário).
Com o reforço da LC n. 132/2009, a LONDP passou a prever uma atuação da Instituição mais voltada à prevenção e à solução dos conflitos socioeconômicos coletivos, na proteção de grupos sociais vulneráveis e outros necessitados em sentido amplo, dotando-a de instrumentos hábeis a solucionar as demandas, além de incentivá-la à resolução extrajudicial dos problemas que lhe chegam. Algumas alterações relevantes, além de previsão infraconstitucional orgânica anterior, devem ser pontuadas:
“Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009). Art. 3º-A São objetivos da Defensoria Pública: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009); II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009); III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009); VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009); VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009); X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009); XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009); § 5.º A assistência jurídica integral e gratuita custeada ou fornecida pelo Estado será exercida pela Defensoria Pública.” (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
A Defensoria Pública atua na proteção de problemas socioeconômicos, independentemente da área de atuação, seja na seara da educação, saúde, assistência social, planejamento básico, meio ambiente sadio, serviço público regular e adequado, relação de consumo harmônica, ou seja, independentemente do setor de atuação, a Instituição intervém sempre que houver um conflito coletivo ou individual que de alguma maneira atinja seu público-alvo previsto constitucionalmente e à luz de uma interpretação conforme a Constituição.
As políticas públicas, sobretudo as relacionadas aos temas acima descritos, devem ser alvo de fiscalização constante da altruísta Instituição, haja vista a proteção insuficiente ou desídia e omissão estatal no efetivo cumprimento da Constituição, concretizando os mandamentos, as ordens e as determinações constitucionais (direito fundamental à efetivação da Constituição).
Decidindo sobre a legitimidade da Defensoria na proteção da educação, enquanto direito constitucional fundamental, assim se posicionou o STJ (REsp n. 1.264.116/RS, Min. Herman Benjamin, T2, DJe 13/04/2012):
“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À EDUCAÇÃO. ART. 13 DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. DEFENSORIA PÚBLICA. LEI 7.347/85. PROCESSO DE TRANSFERÊNCIA VOLUNTÁRIA EM INSTITUIÇÃO DE ENSINO. LEGITIMIDADE ATIVA. LEI 11.448/07. TUTELA DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.1. Trata-se na origem de Ação Civil Pública proposta pela Defensoria Pública contra regra em edital de processo seletivo de transferência voluntária da UFCSPA, ano 2009, que previu, como condição essencial para inscrição de interessados e critério de cálculo da ordem classificatória, a participação no Enem, exigindo nota média mínima.Sentença e acórdão negaram legitimação para agir à Defensoria.(…)4. A Defensoria Pública, instituição altruísta por natureza, é essencial à função jurisdicional do Estado, nos termos do art. 134, caput, da Constituição Federal. A rigor, mormente em países de grande desigualdade social, em que a largas parcelas da população – aos pobres sobretudo – nega-se acesso efetivo ao Judiciário, como ocorre infelizmente no Brasil, seria impróprio falar em verdadeiro Estado de Direito sem a existência de uma Defensoria Pública nacionalmente organizada, conhecida de todos e por todos respeitada, capaz de atender aos necessitados da maneira mais profissional e eficaz possível.5. O direito à educação legitima a propositura da Ação Civil Pública, inclusive pela Defensoria Pública, cuja intervenção, na esfera dos interesses e direitos individuais homogêneos, não se limita às relações de consumo ou à salvaguarda da criança e do idoso. Ao certo, cabe à Defensoria Pública a tutela de qualquer interesse individual homogêneo, coletivo stricto sensu ou difuso, pois sua legitimidade ad causam, no essencial, não se guia pelas características ou perfil do objeto de tutela (= critério objetivo), mas pela natureza ou status dos sujeitos protegidos, concreta ou abstratamente defendidos, os necessitados (= critério subjetivo).6. "É imperioso reiterar, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a legitimatio ad causam da Defensoria Pública para intentar ação civil pública na defesa de interesses transindividuais de hipossuficientes é reconhecida antes mesmo do advento da Lei 11.448/07, dada a relevância social (e jurídica) do direito que se pretende tutelar e do próprio fim do ordenamento jurídico brasileiro: assegurar a dignidade da pessoa humana, entendida como núcleo central dos direitos fundamentais" (REsp 1.106.515/MG, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 2.2.2011). (…)” (grifo nosso)
Desta feita, consubstanciando as políticas públicas ações governamentais de concretização de direitos fundamentais, não existe discricionariedade no seu efetivo cumprimento, na realização administrativa de uma atividade garantidora de direitos da sociedade. Em sendo assim, não havendo cumprimento de determinações, de comandos constitucionais, deve a Defensoria Pública, enquanto Órgão de proteção de direitos humanos, do Estado Democrático de Direito, e na proteção coletiva da sociedade vulnerável, agir e intervir no controle das políticas públicas.
Como reverberado alhures, direitos fundamentais são de cumprimento compulsório pelo Poder Público, não havendo margem de liberdade para que os Administradores Públicos cumpram ou não as garantias constitucionais. Nesse viés, manifesta-se Dirley da Cunha Jr. (2009, p. 600):
“O Poder Executivo, por óbvio, também se encontra vinculado aos direitos fundamentais. Todos os atos administrativos e toda a atividade administrativa (compreensiva da atividade material de prestação de serviços públicos e das atividades jurídicas de exercício do poder de polícia administrativo, de fomento e de intervenção) devem ter por parâmetro os direitos fundamentais, de modo que inexiste discricionariedade administrativa quando se está diante de um direito fundamental”. (g. n.)
É recorrente na prática que o Órgão Executivo, encarregado maior de efetivar a Constituição, tendo em vista ser o primeiro destinatário da efetivação de garantias constitucionais, alegue discricionariedade governamental na condução administrativa de sua política, não podendo qualquer outro “Poder” ou Instituição intervir no seu modo de administrar a política pública e o orçamento público, pena de violar a Separação dos Poderes (artigo 2.º, CRFB) e de imiscuir-se em seara de competência ou atribuição constitucional que não lhes são apropriadas.
Inequivocamente descabida tal alegação, tentativa manifesta de furtar-se das obrigações constitucionais, já que a Constituição apresenta comandos que são de cumprimento obrigatório, não apenas recomendando e sugerindo uma atuação governamental, mas determinando seu cumprimento imediato e efetivo (normas constitucionais de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, na inteligência do artigo 5.º, §§ 1.º e 2.º, da CRFB).
Caracterizado o “Poder” Executivo, na clássica divisão tripartite de Poderes Republicanos de Aristóteles (artigo 2.º, CRFB), como Poder Constituído, terá clara limitação político-jurídica em decorrência da positivação constitucional dos direitos fundamentais, devendo efetivo respeito às suas previsões, concretizando suas normas cogentes. Discorrendo sobre o tema, preceitua CUNHA Jr. (2009, pág. 599) que:
“Enfim, a constitucionalização desses direitos torna-os referência imediata, obrigatória e vinculada de organização e de limitação dos poderes constituídos. Isso tem especial relevo quando se evidencia que todos os atos destes poderes devem conformar-se aos direitos fundamentais, expondo-se, caso contrário, à invalidade jurídico-constitucional.”
Como forma de evitar e prevenir a judicialização de relações sociais, máxime aquelas envolvendo megaconflitos econômico-sociais, nada mais útil, eficaz e producente do que se utilizar de instrumento e expressão do regime democrático (artigos 1.º e 3.º-A da LC n. 80/94) chamado Defensoria Pública, enquanto Função Essencial à Justiça (artigo 134, CRFB).
Atento às funções e atribuições institucionais da Defensoria, resta evidente a pertinência temática na proteção dos direitos fundamentais ligados às políticas públicas, tendo em vista a repercussão social, econômica, política e jurídica dessa atuação protetiva, preventiva e resolutiva.
Como outrora indicado, configura função institucional dessa Instituição, nos moldes do artigo 4.º da LONDP (LC n. 80/94, com alterações da LC n. 132/09), “promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos” (inc. II), “promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes” (inc. VII), “exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal” (inc. VIII), “promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela” (inc. X) e “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado” (inc. XI).
Mais ligadas à concretização das políticas públicas, exercendo um controle preventivo, proativo e extrajudicial da aparente e mal interpretada discricionariedade administrativa governamental, estão as funções institucionais estatuídas nos incisos X e XI do artigo 4.º da LONDP.
Desta feita, fiscalização de efetivação de políticas públicas significa “defesa dos direitos fundamentais”, máxime “direitos coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais” (inc. X), assim como defesa de “grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado” (inc. XI).
Essa atuação preventiva e extrajudicial da Defensoria Pública abarca negociação política, marcação de audiências públicas e agendamento, no âmbito da Defensoria, das Secretarias e Conselhos Estaduais e Municipais, de reuniões, realização e celebração de TACs-Termos de Ajustamento de Condutas (compromisso de ajuste das condutas às previsões legais e constitucionais), de Termos de Cooperação Técnica, de Procedimentos Preparatórios, ou seja, de todo e qualquer instrumento, de toda e qualquer ação capaz de diligenciar no sentido de resolver um conflito social, econômico, político, jurídico, antecipando sua solução antes mesmo de encaminhar à penosa, onerosa e desgastante via judicial.
Muitos são os exemplos em que a Defensoria Pública atuou no âmbito coletivo prevenindo judicialização de megaconflitos, sobretudo com a drástica e negativa possibilidade de atomização judicial, pondo cobro à omissão e inércia estatal no cumprimento de obrigações constitucionais de caráter cogente.
Exemplos simbólicos, todos retirados de uma leitura mais ampla e interpretativa do sítio eletrônico da Associação Nacional dos Defensores Públicos-ANADEP, envolvem: a) Reintegração de posse em casas populares invadidas; b) Acompanhamento escolar de crianças com deficiência, inclusive assegurando-lhe acessibilidade com matrícula em escola próxima à residência; c) Isenção de taxa em concurso público para hipossuficientes; d) Segurança, salubridade, higienização e acompanhamento médico, jurídico, educacional e profissional de detentos no sistema penitenciário e presidiário; e) Erradicação do consumo de drogas nos estádios de futebol; f) Adequação dos municípios à Lei da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (Lei do “Lixo”); g) Difusão do conhecimento jurídico na prevenção do endividamento de consumidores; h) Fornecimento gratuito de medicamentos de lista obrigatória à população necessitada e a todo e qualquer usuário da saúde pública; i) Restabelecimento no fornecimento de energia elétrica; j) Prestação de serviço público contínuo, eficiente e adequado (transporte público, saúde, educação, saneamento básico, iluminação pública, políticas públicas em geral); k) Recomendação de construção de unidades de ensino adequadas nos estabelecimentos prisionais para efetivo cumprimento da Lei de Execução Penal (p. ex., remição de pena por estudo, socialização e reinserção social do apenado).
Há exemplos, também, que a Defensoria Pública levou o conflito coletivo-social até o Órgão Judiciário, inclusive chegando às altas instâncias do país, mas que poderia, em tese, ser solucionado administrativa e extrajudicialmente, sem levar em conta as variadas dificuldades encontradas na prática para a efetivação de direitos fundamentais, mormente em se tratando de desinteresse e desconhecimento de Gestores Públicos. Casos assim, com teórica possibilidade de prevenção extrajudicial: a) Proteção do direito à educação, contestando regra de edital de processo seletivo (REsp n. 1.264.116/RS, T2, DJe 13.04.2012); b) Proteção de direitos dos consumidores contra Instituições Financeiras, alegando que os clientes permaneciam nas filas bancárias por tempo maior do que o previsto em Lei Municipal, não havia disponibilização de senhas individuais para controle nem eram expostas informações sobre o tempo de atendimento (AgRg no Ag n. 1.226.699/RS, T2, DJe 06.09.2011); c) Proteção de pessoas com deficiência física, mental ou sensorial – hipervulnerabilidade (REsp n. 931.513/RS, S1, DJe 27/09/2010).
Desta feita, denota-se a real capacidade, com previsão infraconstitucional e orgânica, da Defensoria Pública em prevenir a judicialização de megaconflitos, solucionando harmônica e politicamente problemas socioeconômicos, isto é, dando soluções às demandas coletivas de interesse geral, sobretudo da população hipossuficiente, entendida não apenas aquela com vulnerabilidade econômica, mas também com hipossuficiência jurídica e organizacional, ou seja, de direitos coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais (inciso X do artigo 4.º da LONDP).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após tudo quanto exposto, deve-se reiterar que o Artigo versou a fiscalização da discricionariedade da atividade administrativo-governamental no concernente à efetivação e à concretização das políticas públicas, a serem efetivadas não pelo Órgão (“Poder”) Executivo, mas, quando de sua recusa, retardamento ou insuficiente proteção, pelo Órgão Judiciário e, sobretudo, pelas Funções Essenciais à Justiça, como resultado direto e imediato da atuação institucional proativa, fiscalizatória e democrática da Defensoria Pública (DP).
Ficou demonstrado que não existe discricionariedade administrativa quando se trata do cumprimento de normas constitucionais, mormente aquelas relacionadas a políticas públicas, não havendo margem de liberdade para cumprir ou não os mandamentos constitucionais pelo Administrador Público.
Pontuou-se que atualmente não há qualquer divergência relevante quanto ao controle judicial da inércia e da desídia do Poder Público na concretização desses direitos fundamentais (direito fundamental à efetivação da Constituição).
Entrementes, a eficiência no controle preventivo, resolutivo e extrajudicial é muito maior quando feito pela Defensoria Pública, evitando a judicialização dos megaconflitos, retardando a solução de demandas coletivas e, até mesmo, trazendo um provimento jurisdicional inefetivo, inaplicável do ponto de vista prático ou descumprido criminosa e improbamente pela Administração Pública.
Desta feita, fora isso que ficara pontuado por todo o trabalho, registrando a habilidade e a atribuição institucional da Defensoria Pública de intervir preventiva e extrajudicialmente nesses conflitos econômico-sociais.
Defensor Público na Defensoria Pública do Estado de Pernambuco DPE/PE desde outubro de 2015. Foi Defensor Público no Estado do Maranhão DPE/MA entre 23/04/2012 e 30/09/2015. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG. Aprovado Defensor Público no 1. concurso público da Defensoria Pública do Estado da Paraíba DPE/PB 2014/5. Professor-orientador de curso preparatório para concursos públicos das Carreiras Jurídicas. Criador-moderador da página social “Defensoria Pública Modo de fazer”
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