Resumo: O presente trabalho tem como desígnio discutir as bases constitucionais que fundamentam a tutela dos direitos do consumidor no Brasil, bem como analisar sua evolução histórica e desvendar sua natureza jurídica.
Palavras-chaves: Direito do Consumidor. Tutela. Natureza Jurídica
Sumário: Introdução. 2. Bases Constitucionais do Direito do Consumidor. 2. Breve Evolução Histórica do Direito do Consumidor no Brasil. 3. Natureza jurídica do Direito do Consumidor. 4. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
A proteção jurídica do consumidor iniciou-se na Europa a partir da segunda metade do século XVIII, após a Revolução Industrial.
O liberalismo econômico, com o desenvolvimento do capitalismo, perdeu espaço para grupos, como as sociedades comerciais e os monopólios, que passaram a dominar o mercado de consumo.
Com a produção, o consumo e a contratação massificados, o consumidor ficara em desvantagem diante de um fornecedor fortalecido técnica e economicamente. Assim, houve a eliminação do poder de escolha da parte hipossuficiente.
A sociedade de consumo, portanto, justifica a existência do direito consumerista, destinado a regular as trocas econômicas massificadas, protegendo a parte vulnerável, qual seja, aquela que adquire produtos ou utiliza serviços.
Consoante Sérgio Cavalieri Filho[1], a proteção do consumidor passou assim a ser um desafio da nossa era e o Direito não poderia ficar alheio a tal tarefa. Cavalieri, inclusive, aduz que a finalidade do Direito do Consumidor é justamente eliminar essa injusta desigualdade entre fornecedor e o consumidor, restabelecendo o equilíbrio entre as partes nas relações de consumo.
A análise proposta aqui se situa na tutela dos direitos do consumidor pela Constituição Federal quanto à segurança comercial do consumidor, mais especificamente quando este efetua compras por meio eletrônico. Todavia, para empreender tal tarefa, faz-se necessário, inicialmente, perquirir como se dá a mencionada defesa dos interesses consumeristas pela norma fundamental do Estado Brasileiro.
Ab initio, a proteção constitucional do consumidor é um fenômeno recente que somente foi inserida em algumas Constituições a partir da década de 70.
Adolfo Mamoru Nishiyama[2] aponta, inclusive, que não há referências a esse respeito nas Constituições dos Estados Unidos, da França e do Japão. O autor esclarece, ainda, que a Constituição espanhola de 1978 foi a primeira a prescrever a matéria, em seu art. 51[3].
Em contraponto, José Afonso da Silva[4] afirma que a Constituição Portuguesa de 1976 teria sido a primeira a acolher, em seu art. 110, normas de natureza consumeristas:
“ARTIGO 110.º (Comércio externo)
Para desenvolver e diversificar as relações comerciais externas e salvaguardar a independência nacional, incumbe ao Estado:
a) Promover o controlo das operações de comércio externo, nomeadamente criando empresas públicas ou outros tipos de empresas;
b) Disciplinar e vigiar a qualidade e os preços das mercadorias importadas e exportadas.”[5]
No Brasil, as Constituições anteriores sequer previam o tema “proteção ao consumidor”. Nishiyama[6] esclarece que foi com a promulgação da Constituição de 1988 que essa figura jurídica passou a ter destaque no campo do direito.
A Carta Magna de 1988, de forma explícita em alguns artigos e implícita em outros, não só inovou o ordenamento jurídico interno ao consagrar a proteção ao consumidor, como também a tratou com importância ímpar, uma vez que, se antes as relações de consumo eram regidas por leis civis e comerciais, a partir dela o legislador constituinte acabou por construir um novo ramo do direito nas relações de consumo, conforme ensinamento de Nishiyama[7].
De fato, como apregoa Bruno Miragem[8], o legislador constituinte não apenas garantiu os direitos do consumidor como direito e princípio fundamental, mas também determinou a edição de um sistema normativo que assegurasse a proteção estabelecida pela Constituição. Destarte, as relações de consumo passaram a ter autonomia própria, com regulamentação distinta do direito comum.
O Código de Defesa do Consumidor constitui esse microssistema de direitos e deveres relativos às relações de consumo e surgiu por expressa determinação constitucional:
“Art. 48 do ADCT. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.” [9]
O prazo do supracitado artigo não foi cumprido, vez que a Carta Magna foi promulgada em 05.10.1988 e o Código somente entrou em vigor quase três anos depois, em 11 de março de 1991.
O art. 1º do CDC[10] também faz remissão expressa à Constituição, mais especificamente ao art. 5º, XXXII[11], regulamentando, consoante comando constitucional, através da Lei nº. 8.078/90, a defesa do consumidor como direito fundamental.
A Constituição Federal, em seu art. 170, V[12], do Título VII da Ordem Econômica e Financeira, ao traçar os princípios gerais da atividade econômica, a qual se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social, também instituiu, como princípio, a defesa do consumidor, proporcionando a este certa segurança.
José Afonso da Silva arremeta acerca do supracitado dispositivo constitucional:
“Realça de importância, contudo, sua inserção entre os direitos fundamentais, com o que se erigem os consumidores à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais. Conjugue-se a isso com a consideração do art. 170, V, que eleva a defesa do consumidor à condição de princípio da ordem econômica. Tudo somado, tem-se o relevante efeito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. Isso naturalmente abre larga brecha na economia de mercado, que se esteia, em boa parte, na liberdade de consumo, que é a outra face da liberdade do tráfico mercantil fundada na pretensa lei da oferta e da procura”.[13]
O art. 24, incisos V e VIII da CF[14], por sua vez, atribui competência concorrente à União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre produção e consumo e a responsabilidade por dano ao consumidor.
Outros dispositivos constitucionais também devem ser mencionados, como o art. 150, § 5º, segundo o qual “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.
O art. 175, parágrafo único, inc. II, da CF determina que a lei disporá sobre o direito dos usuários de serviços públicos.
Já o art. 220, § 4º[15], prescreve que “a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso”.
O art. 221[16], da CF, por seu turno, dispõe sobre as diretrizes a serem observadas na produção e difusão de programas e rádio e televisão.
No tocante aos dispositivos constitucionais implícitos referentes à proteção ao consumidor, Nishiyama[17] cita o direito à igualdade, o direito de resposta, o direito ao acesso à informação, ao devido processo legal, entre outros.
O legislador constituinte não prescreveu o conceito de consumidor, mas, como demonstrado, conferiu à lei ordinária – o Código de Defesa do Consumidor- sua proteção. A definição de consumidor, desta forma, encontra-se no art. 2º do CDC:
“Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”[18]
Logo, em interpretação literal, o consumidor pode ser pessoa física, pessoa jurídica ou coletividade de pessoas (consumidor por equiparação), desde que adquira produto ou serviço como destinatário final.
Apesar desta definição legal aparentemente simples e objetiva, o conceito de consumidor é de difícil identificação no caso concreto, tanto que a doutrina estabeleceu duas correntes para orientar a aplicação do Código do Consumidor: a maximalista e a finalista.
Para a doutrina finalista (ou subjetiva), consumidor é aquele que retira definitivamente de circulação o produto ou o serviço do mercado.
Já a doutrina maximalista entende que, para ser considerado consumidor, basta que este utilize ou adquira produto ou serviço na condição de destinatário final, não interessando o uso particular ou empresarial do bem.
Cláudia Lima Marques resolve aderir à interpretação finalista:
“Correta a corrente finalista, pois há verdadeiro perigo que a interpretação extensiva da norma do art. 2º, transforme o CDC em lei de proteção ao consumidor-profissional, do comerciante ou do industrial, quando destinatário final fático do produto e, de regra, destinatário final fático do serviço. Observando os princípios positivados no CDC, parece-me hoje que uma interpretação maximalista estaria realmente em desacordo com o espírito da tutela e o fim visado pelo Código, mas caberá a jurisprudência brasileira dar uma palavra decisiva sobre o assunto.”[19]
Nesse diapasão, Leonardo de Medeiros Garcia aponta que o Superior Tribunal de Justiça consolidou a Teoria Finalista como a que melhor apreende o conceito de consumidor, mas admitiu o abrandamento da mesma quando verificada a vulnerabilidade no caso concreto.[20]
Em seguida, é preciso expor o conceito de fornecedor, pois este é a parte contrária da relação de consumo, como também a noção de produto e serviço, todos assim definidos pelo CDC:
“Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.[21]
Segundo Garcia, o CDC optou por estabelecer a máxima amplitude ao conceito de fornecedor, mas somente contemplou aquele que participa do fornecimento de produtos e serviços no exercício habitual do comércio, excluindo da tutela consumerista, destarte, os contratos firmados entre dois consumidores não profissionais ou com comerciante que não atue em sua atividade-fim, por não estar caracterizada a habitualidade, aplicando-se a estes o Código Civil[22].
Após as devidas conceituações, é evidente que o Código de Defesa do Consumidor tem por finalidade defender aquele que se encontra em situação de hipossuficiência frente ao fornecedor do produto ou serviço.
Interessante diferenciar vulnerabilidade de hipossuficiência, uma vez que os dois institutos de direito do consumidor são confundidos por muitos. Bruno Miragem assim os distingue:
“[…] No caso da hipossuficiência, presente no art. 6º, VIII, do CDC, a noção aparece como critério de avaliação judicial para a decisão sobre a possibilidade ou não de inversão do ônus da prova em favor do consumidor. Refere a norma em comento, indicando direito básico do consumidor: “A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência.
[…] A noção de vulnerabilidade no direito, associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica”.[23]
Em síntese todo consumidor é vulnerável, por ser a parte frágil da relação consumerista. No entanto, a hipossuficiência é característica restrita a determinados consumidores, que além de presumivelmente vulneráveis são também, em sua situação individual, no caso concreto, carentes de condições culturais ou materiais, condições estas que dependem da discricionariedade do juiz.
Ademais, é necessário ressaltar que a defesa do consumidor decorre do princípio da dignidade humana, isto porque o legislador constituinte a inseriu no capítulo dos direitos e garantias fundamentais.
Assim, integrando a defesa do consumidor à dignidade humana, com o fito de que a dignidade daquele seja preservada em todas as relações de consumo, sob pena de ferimento a preceito constitucional fundamental, temos que o mencionado princípio, embora distinto, está estreitamente ligado ao princípio da igualdade humana, vez que, segundo Ronaldo Alves de Andrade, o tratamento igualitário é apto a fazer preservar a dignidade humana e, havendo esse tratamento, será observado o princípio da solidariedade, pois se determinado tratamento jurídico é digno para uma pessoa, também será para os demais[24].
Ante essas reflexões, observam-se duas importantes conseqüências, quais sejam, que o Código de Defesa do Consumidor surge como instrumento para dar efetividade, no plano ordinário e no âmbito das relações de consumo, ao princípio da dignidade humana, e que sua edição representou um passo relevante para a concretização desse princípio constitucional.
Ademais, a Constituição Federal de 1988 consagrou os direitos e garantias individuais como cláusula pétrea em seu art. 60, §4ª, inc. IV[25]. Logo, qualquer proposta de emenda tendente a prejudicar ou abolir direitos dos consumidores será inconstitucional. Em suma, o princípio da proteção ao consumidor, por caracterizar-se como norma fundamental, não pode ser abolido.
Diante de uma proteção constitucional tão abrangente, o sistema judiciário, portanto, tem que se adaptar ao novo ramo do Direito, qual seja, o Direito das Relações de Consumo, criado pela CF/88, de maneira a acompanhar a evolução da sociedade.
O juiz deve, de tal modo, adaptar-se à nova realidade, especialmente quanto aos interesses e direito difusos e coletivos, como o meio ambiente e o consumidor, visto que esses novos direitos, diante de uma sociedade massificada e informatizada, exigem novas soluções e o abandono dos institutos jurídicos ortodoxos e individualistas.
O Direito do Consumidor, como já destacado, é obra relativamente recente na Doutrina e na Legislação. Seu surgimento, como ramo do Direito, deu-se, principalmente, na metade do século passado. Entretanto, indiretamente, podem ser encontrados seus contornos, de forma esparsa, em diversas normas, jurisprudências e costumes dos mais variados países. Porém, o direito consumerista não era concebido como uma categoria jurídica distinta e, também, não recebia a denominação que hoje se apresenta.
Um dos primeiros instrumentos de que se tem conhecimento em relação à tutela do consumidor, foi o Código de Hamurabi (2300 a.C.) que protegia o consumidor nos casos de serviços deficientes e procurava evitar o enriquecimento sem causa dos vendedores. Também o Código de Manu, vigente na Mesopotâmia, no Egito Antigo e na Índia do século XII a.C., protegia os consumidores indiretamente ao tentar regular as trocas comerciais.
A Lei das XII Tábuas, por sua vez, já exigia do vendedor uma obrigação de transparência, exigindo que ele definisse as qualidades essenciais dos produtos e proibindo-o de fazer publicidade mentirosa:
“Tábua VI – Da propriedade e da posse
1. Se alguém empenhar a sua coisa ou vender em presença de testemunhas, o que prometeu terá força de lei.
2. Se não cumprir o que prometeu, que seja condenado em dobro.”[26]
Vigentes no Brasil Colônia, as Ordenações Filipinas (1603) puniam a usura.
Letícia Canut aponta que, desde os primórdios, havia manifestações que pretendiam “proteger” os compradores dos abusos cometidos pelos vendedores[27]. No entanto, todas essas manifestações consistiram em iniciativas fragmentadas.
No século XIX e nas primeiras décadas do século XX, os ideais do Estado Liberal e da sociedade capitalista impregnaram o referido período com os princípios da livre concorrência, da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, trazendo reflexos na área jurídica, a qual continuava não reconhecendo o consumidor como categoria.
Como já dito, foi a partir da década de 70 do século XX que as relações de consumo se tornaram objeto de um ramo jurídico autônomo, em decorrência das grandes alterações provocadas pelas revoluções industriais, urbanização, concentração capitalista, massificação social e dos contratos.
Em virtude da inadequação evidente dos sistemas jurídicos quanto às novas relações de consumo, da supremacia econômica do fornecedor sobre o consumidor e da crítica vulnerabilidade deste, deu-se início a uma série de manifestações que trouxeram a consciência de que era necessário proteger aquela emergente categoria.
Com a união dos países em blocos para reduzir barreiras tarifárias e desenvolver o comercio internacional com o fito de competir no mundo globalizado e a sedimentação do comércio eletrônico, os consumidores passam a ter facilidade de adquirir produtos e serviços originários de qualquer parte do mundo.
Todavia, esta facilidade também veio acompanhada de uma série de dificuldades, entre as quais os métodos agressivos de marketing e a hiperssuficiência do fornecedor, que demonstraram a fragilidade do consumidor diante desta nova realidade
Foi através do crescimento de grupos de defesa do consumidor e um longo período de mobilização da opinião pública que os legisladores passaram a adotar medidas protetivas e a considerar o consumidor como sujeito de direitos.
Importante lembrar que, consoante Bolson, “os Estados Unidos foi reconhecido como berço do Direito do Consumidor e do movimento consumerista”.[28]
É cediço que o Sherman Antitrust Act de 1890[29] foi a primeira manifestação moderna de necessidade de proteção do consumidor.
Entretanto, o marco histórico na defesa do consumidor foi a mensagem do Presidente Kennedy ao Congresso dos Estados Unidos da América em 15 de março de 1962, conhecida como “Declaração dos Direitos Essenciais do Consumidor”.
Faz-se necessário averiguar a evolução histórica do direito do consumidor em outros países porque o Código de Defesa do Consumidor foi inspirado em textos estrangeiros, a exemplo da Resolução nº. 2542 de dezembro de 1969, em seus arts. 5º e 10º, que reconheceu os direitos do consumidor internacionalmente, da Organização das Nações Unidas.
Em Genebra, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em sua 29ª Sessão, em 1973, defendeu os chamados Direitos Fundamentais do Consumidor, quais sejam, o direito a segurança, a integridade física e a dignidade humana dos consumidores.
A Carta de Proteção dos Consumidores, elaborada pela Assembléia Constitutiva do Conselho da Europa, em sua resolução número 543 de 1973, serviu de base para a resolução do Conselho da Comunidade Européia em abril de 1975, introduzindo os primeiros passos para a prevenção e reparação dos danos causados aos consumidores. Essa resolução do Conselho da Comunidade Européia dividiu os Direitos do Consumidor em cinco categorias fundamentais: proteção da saúde e da segurança, proteção dos interesses econômicos, reparação dos prejuízos, informação, educação e representação (direito de ser ouvido).
A Resolução 39/248 de 1985 da ONU também previu normas acerca da proteção ao consumidor que cuidaram detalhadamente do tema, de forma a reconhecer a vulnerabilidade daquele diante dos desequilíbrios de aspectos econômicos, educacionais e de poder aquisitivo.
A supracitada resolução reconheceu, também, direitos básicos do consumidor, no âmbito mundial, estabelecendo objetivos, princípios e normas para que as nações aplicassem políticas firmes de proteção ao consumidor.
No Brasil, as primeiras normas de cunho protecionista surgiram na década de 30, a exemplo do Decreto 22.626/1933, que previa a repressão da usura e dos arts. 115 e 117 da Constituição de 1934[30], que versavam sobre uma ordem econômica voltada para existência digna de todos.
Outras normas nesse sentido foram a Lei de Economia Popular de 1951, a Lei de Repressão ao Abuso do Poder Econômico (Lei nº. 4.137/1962), que visava intervir no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo, e a Lei da Ação Popular (Lei 4.717/1965).
Na década de 70, emergiu de forma mais enfática a preocupação com o tema, através dos discursos pioneiros do deputado Raimundo Nina Ribeiro que cobravam a necessidade de atuação mais enérgica no setor. Nesta época foi criado o primeiro PROCON, em 1978, no Estado de São Paulo.
Em âmbito federal, foi criado o Conselho Nacional de Defesa o Consumidor em 1985, o qual foi extinto no governo Collor e substituído pelo Departamento Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor.
Todavia, a conquista mais relevante para a proteção do consumidor no Brasil ocorreu com o advento da constituição de 1988, a qual inclui dispositivos específicos sobre o tema, conforme descrito no tópico 2.1 supra.
Seguindo esta tendência, após o supracitado comando constitucional do art. 48 do ato de Disposições Transitórias, empreenderam-se estudos e discussões que culminaram com a edição da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor.
O CDC é, hodiernamente, reconhecido como uma legislação das mais avançadas na defesa e proteção dos direitos dos consumidores, além de ter sido um instrumento que trouxe mudanças repentinas nas relações de consumo, tutelando assim, a hipossuficiência do consumidor na relação de compra e venda.
Vale mencionar, ademais, o Decreto nº. 2.181/97 que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, estabelecendo normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas no CDC.
Verifica-se que, diante da impossibilidade de proteger os consumidores em todas as situações através de leis, especialmente no comércio eletrônico, o Código de Defesa do Consumidor representa uma valiosa fonte de diretrizes, ou, nas palavras de Canut, um “conjunto normativo flexível, composto por normas genéricas, suscetíveis de valoração e adaptação ao sistema fático” [31].
Em relação às leis específicas sobre contratos eletrônicos, importante mencionar a UNCITRAL[32], órgão das Nações Unidas, criado em 1966 com o objetivo de regulamentar o comércio eletrônico, que forneceu uma Lei Modelo para as legislações nacionais. A Medida Provisória nº. 2.200/2001 inseriu a UNCITRAL no Brasil.
No mais, a Comissão Especial de Informática Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de São Paulo elaborou o Projeto de Lei nº. 1.589/99, apresentado pelo Deputado federal Luciano Pizzato, que dispõe sobre comércio eletrônico, validade jurídica do documento Eletrônico e assinatura digital. O citado projeto ainda está em tramitação[33].
Segundo Cláudia Lima Marques, os dispositivos contidos no Código de Defesa do Consumidor são normas imperativas, uma vez que a autonomia da vontade perde a condição de elemento nuclear na nova concepção de contrato no Estado Social, pois interesse social surge como um elemento estranho às partes, mas nuclear básico para a sociedade como um todo[34].
O art. 1º do CDC confirma a natureza jurídica de suas normas:
“Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias”.[35]
A simples leitura deste artigo aponta que o Código de Defesa do Consumidor está imbuído de princípios imperativos e de magnitude ímpar, sobretudo por ancorar-se na própria origem constitucional do código.
Uma vez estabelecido que as normas inseridas no CDC sejam de ordem púbica e de interesse social[36], conforme supracitado artigo, o diploma consumerista passa a deter natureza de norma cogente, provocando sua incidência independentemente da vontade das partes, o que permite sua aplicação de ofício pelo julgador, além de impossibilitar, no caso concreto, a alteração das situações jurídicas regulada por tal Código.
Cláudia Lima Marques assim analisa as mencionadas normas:
“As normas de ordem pública estabelecem valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica, são normas de direito privado, mas de forte interesse público, daí serem indisponíveis e inafastáveis através dos contratos”. [37]
Logo, sendo uma norma de natureza cogente, de ordem pública e interesse social, o CDC tem caráter de comando ou proibição e objetiva preservar a segurança jurídica, além de ser inderrogável.
Destarte, quando o art. 1º do CDC dispôs que as suas normas são de ordem pública e de interesse social, demonstra, claramente, que a Lei 8.078/90 é uma lei de função social.
Interessa esclarecer que os preceitos da Lei 8.078/90 devem ser interpretados de acordo de acordo com a finalidade daquela, qual seja, restabelecer ou garantir o equilíbrio entre as partes (consumidor e fornecedor)
Registre-se que o CDC, como lei de função social, nasceu com o intuito de transformar uma realidade social e de conduzir as relações consumeristas a um novo patamar de harmonia.
Cláudia Lima Marques cita Otto Von Gierke que clamava por:
“um novo direito privado com função social, e mais influenciado pelas funções típicas do direito público, justamente quando o Código Civil Alemão, o BGB de 1866, estava para ser aprovado”.[38]
A doutrina constitucional alemã prega, consoante a autora, que os direitos fundamentais, os quais são direitos subjetivos dos cidadãos, também influenciam as relações privadas[39].
A autora lembra que o jurista alemão Robert Alexy propôs a dupla função dos direitos fundamentais:
“[…] são ao mesmo tempo direitos subjetivos (subjektive Rechte) e são normas objetivas (objetktive Normen); isto é, esta dimensão objetiva dos direitos fundamentais como norma em vigor (Geltung) significa que eles impõem uma ordem objetiva de valores (objetktive Wertordnung), um sistema de valores (Wertsystem) a todo direito, sistema que representa as grandes decisões da Constituição (verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts) para todos os ramos do direito, inclusive o Direito Privado.”[40]
Esses direitos fundamentais, para Marques, mais especificamente os direitos fundamentais do consumidor, deteriam um efeito horizontal (Dritwirkung em alemão), ou seja, aqueles não só devem ser respeitados pelo Estado (efeito vertical), mas também devem ser observados nas relações entre dois iguais ou dois privados[41].
Marques reitera que a força normativa, termo este cunhado pelo jurista alemão Konrad Hesse, do Direito Constitucional no Direito Privado “não mais pode ser negada, assim como é evidente o efeito horizontal, entre privados, dos direitos fundamentais (Dritwirkung).”[42]
Assim, a tutela dos interesses dos consumidores pelo Estado é um direito fundamental, como também um direito subjetivo público geral, pois aquele deve atuar positivamente neste sentindo em todos os seus poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo).
No ordenamento jurídico brasileiro, o Dritwirkung, ou eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, passou a ser desenvolvido propriamente com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor em 1990, justamente por ser lei infraconstitucional, reguladora das relações jurídicas privadas entre o fornecedor e o consumidor.
Em outro momento, Marques ensina que o contrato, sob uma nova concepção mais social, consistiria numa instituição jurídica flexível, tornando-se, consoante expressão atribuída ao jurista alemão Dieter Schwab, um “ponto de encontro de direitos individuais” (Treffpunkt Von Individualrechten)[43].
Neste diapasão, os contratos de consumo estariam enquadrados neste ponto de encontro de direitos individuais constitucionais, uma vez que a Carta Magna, como já explicado supra, elegeu os consumidores como agentes vulneráveis a serem tutelados pelo Estado e foi ainda mais longe ao ordenar o aperfeiçoamento desta proteção ao legislador infraconstitucional, através da elaboração do Código de Defesa do Consumidor.
Em suma, a Constituição Federal de 1988, ao incluir a defesa do consumidor como direito fundamental, estabeleceu uma garantia constitucional deste Direito Privado, vinculando o Estado e os operadores do direito a reconhecer sua existência e efetividade.
Na doutrina alemã, Günther Dürig, mencionado por Marques, preconizou que a garantia dos direitos do consumidor a vincular o Estado-juiz, o Estado- legislador e o Estado-executivo tem básico caráter institucional de garantia de direito privado (seinen Charakter als Rechtsinstitusgarantie)[44].
Em relação à expressão força normativa de Hesse, conclui-se, através da mesma, que os direitos fundamentais previstos nas Constituições não constituem normas meramente programáticas, mas trata-se de dispositivos que têm força de norma executável e exigível.
Marques aponta a tendência de valorização dos direitos humanos fundamentais e dos novos papéis sociais e econômicos no direito privado brasileiro, o qual estaria se transformando no “direito privado solidário” ou Solidarprivatrecht, expressão esta que a autora atribui a Hanes Rösler e que simboliza o que a doutrina alemã entende como processo contemporâneo de re-construção do direito privado através do conjunto de valores e ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.[45]
Neste sentido a autora conclui:
“Se a expressão alemã “direito privado solidário” ainda parece utópica e contraditória com a realidade brasileira, esta instigante expressão simboliza uma perspectiva mais solidária, social e fraterna do direito privado nacional, agora fortemente guiado pelo direito constitucional”.[46]
O direito do consumidor, protetor deste sujeito mais vulnerável na relação consumerista, integra o mencionado novo direito privado, o qual está orientado pela função social emanada dos valores e das disposições constitucionais propagadores da eficácia dos direitos fundamentais lá prescritos.
Em outras palavras, restou evidente o interesse do legislador constituinte brasileiro em assegurar que o Direito do Consumidor, ramo do Direito Privado que é, seja moldado como direito fundamental humano.
Além do mais, a Carta Política de 1988 incluiu, como já explicitado, a defesa do consumidor no rol dos direitos e garantias fundamentais em seu art. 5º, inc. XXXII, Título II, Capítulo I, o qual enumera “os direitos e deveres individuais e coletivos”, possibilitando o exercício do direito do consumidor de forma individual ou coletiva.
De igual forma, o art. 81 do CDC estabelece que a defesa dos consumidores pode se dar individual ou coletivamente e define o que vem a ser direitos difusos, coletivos e individual homogêneos:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”[47]
O CDC, ao tratar os direitos e difusos e coletivos, acrescentou uma nova figura jurídica: os direitos individuais homogêneos. Essas três categorias pertencem ao gênero Direitos ou Interesses Metaindividuais ou Transindividuais.
Por sua vez Garcia[48] ensina que, doutrinariamente, os direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos são espécies do gênero direitos coletivos lato sensu.
Juliana Carlesso Lozer[49] aduz que os direitos metaindividuais são aqueles ligados às coletividades ou a um número indeterminado de pessoas, constituindo uma categoria específica de direitos, que está desvinculada do subjetivismo.
Há, assim, um caráter universal na mencionada categoria, que vem a ampliar o acesso à justiça, pois naquela, o direito não se limita ao indivíduo, mas afeta uma coletividade determinada ou indeterminada de pessoas.
Nesse sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso ensina que “o acesso à justiça não é só franqueado a quem se afirme a titularidade de um direito subjetivo resistido ou insatisfeito, bem podendo ser judicializado um interesse, desde que legítimo (direitos reflexamente protegidos)” [50].
Quanto ao art. 81 do CDC supra, observa-se que há três critérios para definir e distinguir os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, quais sejam, o critério subjetivo (titularidade do direito material), o objetivo (divisibilidade do direito material) e de origem (origem do direito material).
No tocante à titularidade, os direitos difusos envolvem uma coletividade que não pode ser identificada ou determinada. Em realidade, conforme aduz Garcia, “os titulares dos direitos difusos não são somente pessoas indeterminadas, mas também indetermináveis” [51].
Quanto ao critério objetivo, os direitos difusos têm como característica a indivisibilidade, uma vez que os mesmos pertencem a todos os titulares indistinta e simultaneamente.
Os interesses difusos, em relação à sua origem, diferentemente dos direitos interesses coletivos, não pressupõem uma relação jurídica-base, pois é a circunstância fática que unifica seus titulares.
Chamberlain aduz que os interesses difusos indicam a idéia de pulverização, visto que é impossível aferir seus destinatários. A autora afirma que aqueles são pertinentes, por excelência, ao meio ambiente e às relações de consumo, mas “nada impede que um direito individual relativo à vida, à liberdade, assim como um social pertinente à educação ou à saúde, por exemplo, venham a se manifestar difusamente”.[52]
Nos chamados direitos coletivos, os interesses são indivisíveis e os titulares são indeterminados, mas determináveis, ligados por uma relação jurídica-base (origem do direito material), a qual pode se dar entre membros de grupo, categoria ou classe ou com a parte contrária, desde que anterior à lesão.
Por fim, nos direitos individuais homogêneos, os titulares do direito, que estão ligados entre si por uma situação de fato ou de direito comum, são determinados ou determináveis e os direitos são divisíveis.
Mancuso explica que os tutelados nos direitos individuais homogêneos não são os mesmos do interesse coletivo porque aqueles não são coletivos em sua essência, pois apenas são direitos metaindividuais na forma que são exercidos.[53]
O interesse de se delimitar o conceito dos direitos individuais homogêneos decorre da necessidade de se averiguar como se dá sua tutela, pois uma conduta lesiva pode causar dano tanto na esfera coletiva, como individual.
Ao lado desta discussão, a tutela dos consumidores reflete que a urgência e a globalização criam a necessidade da atuação estatal para a proteção não só do indivíduo, mas, conseqüentemente, da sociedade nas relações de consumo, já que a produção e a comercialização massificada de bens e serviços acarretam demanda de proteção também apta.
Marques assim analisa essa nova realidade:
“Interessante observar que as primeiras análises dos reflexos da crise da pós-modernidade na sociedade de consumo indicavam que a despersonalização das relações, iniciada com as relações massificadas de adesão e métodos mecânicos de contratação, levaria ao nascimento de “contratos sem sujeito” ou mesmo de uma decantada “morte do sujeito”, em uma desconstrução total deste sujeito. Certo é que as noções de indivíduo e sujeito mudaram, mas também mudou nosso direito e nossa maneira de ver o sujeito: o sujeito de diretos lá, não morreu, nem desapareceu, foi resignificado. Parece-nos que, ao contrário, este sujeito qualificou-se com direitos, multiplicou-se, hoje são muitos sujeitos individuais, sujeitos homogêneos, coletivos e difusos, em um novo pluralismo de sujeitos que não impedem que recebam e exerçam – diretamente ou através de representantes – seus direitos. (…)”[54]
Isto posto, o presente capítulo finda com o conclusão de que o enfoque dado aos interesses difusos pelo Código de Defesa do Consumidor é de extrema importância para o presente estudo, vez que a sua tutela vem responder à demanda da sociedade massificada, que necessitava de um instrumento legislativo para a solução dos novos conflitos advindos da Era da Informação.
4. Considerações Finais
O presente estudo procurou demonstrar que a tutela ao direito do consumidor surgiu como resposta à massificação social, denotando-se daí o seu caráter intervencionista, uma vez que busca proteger a parte hipossuficiente do fornecedor representado pelas grandes corporações.
Diante deste quadro de vulnerabilidade do particular, a defesa ao consumidor foi erigida pelo legislador constituinte à categoria de direito fundamental, com o fito de trazer equilíbrio à relação consumerista.
Conclui-se, portanto, que os dispositivos legais que prescrevem a defesa e a proteção ao consumidor são verdadeiras normas de ordem pública e interesse social, de forma que sua aplicação e observância são obrigatórias.
Advogada, formada em direito pela Universidade Federal de Sergipe (2008) e pós-graduanda em Direito do Consumidor pela Universidade Anhanguera – UNIDERP /REDE LFG. Atua na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial e do Consumidor.
O cálculo da falta injustificada no salário do trabalhador é feito considerando três principais aspectos:…
A falta injustificada é a ausência do trabalhador ao trabalho sem apresentação de motivo legal…
O artigo 473 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece situações em que o…
Quando se trata de faltas no trabalho, é importante conhecer a legislação para entender quais…
As biografias não autorizadas geram intensos debates jurídicos e sociais, especialmente no que tange aos…
O segredo industrial é um dos ativos mais valiosos de uma empresa. Ele consiste em…