1. Introdução

O instituto da delação premiada, de evidente notoriedade nos dias atuais, não é produto de criação recente no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo assim demorou até que o legislador pátrio se embrenhasse na regulamentação normativa, e quando assim passou a proceder, novamente se descuidou de certas cautelas das quais não poderia olvidar.

Embora a legislação esteja sujeita a críticas variadas, a intenção revelada é positiva, não obstante a só adoção da delação premiada já exponha o reconhecimento da incapacidade do Estado frente as mais variadas formas de ações criminosas, e demonstre a aceitação de sua ineficiência ao apurar ilícitos penais, notadamente os perpetrados por associações criminosas, grupos, organizações criminosas, quadrilha ou bando, alicerçados em complexidade organizacional não alcançada pelo próprio Estado.

Em si mesma, premiada ou não, a delação dá mostras de ausência de freios éticos; pode apresentar-se como verdadeira traição em busca de benefícios que satisfaçam necessidades próprias em detrimento do(s) delatado(s), conduta nada recomendável tampouco digna de aplausos.

Em relação à delação premiada, o que se vê é seu surgimento quando há desajuste entre os envolvidos; quando um se sente prejudicado pela persecução penal (em sentido amplo) e desamparado pelo(s) comparsa(s). O desespero, a simples intenção de beneficiar-se, ou ambos, constitui o mote da delação. Não há qualquer interesse primário em colaborar com a Justiça; não há qualquer conversão do espírito e do caráter para o bem; não há preocupação com o que é realmente justo e verdadeiro; não há, enfim, motivo de relevante valor moral para a conduta egoísta. Porém, dela se vale o Estado na busca da verdade real; dela se utiliza a Justiça na busca de sua finalidade mediata: a paz social.

Além das questões éticas, outros problemas podem ser identificados, e dentre eles podemos citar, por exemplo, a possibilidade do instituto gerar a “acomodação”, a apatia da autoridade incumbida da apuração, pois, passando a contar com a possibilidade de delação não poderá deixar de dedicar-se com mais afinco na realização de seu ofício; é possível que a delação proporcione de forma proposital o desvio no rumo das investigações, ainda que temporário, porém, com reflexos negativos à apuração da verdade etc.

Com suas vantagens e desvantagens, a delação premiada vem sendo usada largamente, e muitas vezes com pouco ou nenhum critério técnico, tanto que se tem notícia de vários casos em que houve delação premiada, porém, nada ficou documentado visando a “segurança do delator”, e exatamente por isso nada foi comunicado nos autos do processo criminal a que se vê submetido, apesar do êxito das investigações realizadas a partir da delação. Em conseqüência, muitos delatores acabam colaborando com as investigações e depois não recebem os benefícios inicialmente apresentados na barganha que envolve a pretensão punitiva, a revelar, mais uma vez, condenável violação ética patrocinada pelo Estado; verdadeiro estelionato. De tal situação também decorre a necessidade de se pensar sobre a incidência dos efeitos da delação em sede de execução penal.

É necessário destacar ainda o espetáculo midiático absolutamente reprovável que já se proporcionou com a exposição de personalidades políticas envolvidas em delação premiada, com inegável streptus, quando a cautela recomendava caminho diverso até mesmo em razão do disposto no art. 20 do CPP, a determinar que o inquérito policial é sigiloso.

A propósito do tema é interessante frisar ainda que muitos dos envolvidos em investigações que passam por delitos extremamente graves, se dizendo inocentes, postulam a delação premiada, situação que está por impor profunda reflexão.

2. Hipóteses reguladas

Não há uma única lei regulando as hipóteses de delação premiada, e não há padronização no tratamento do instituto, do que decorrem inúmeros questionamentos, os quais obviamente não podem ser enfrentados neste trabalho de contornos reduzidos, daí limitarmos as rápidas reflexões a apenas alguns pontos escolhidos, inclusive em razão do conhecimento geral que se presume quanto ao cerne da questão, a dispensar outras considerações além daquelas lançadas acima.

A Lei 8.072/90, denominada “Lei dos Crimes Hediondos”, foi quem abriu o caminho para a introdução da delação premiada no ordenamento brasileiro, e isso em razão do disposto no parágrafo único do seu art. 8º, que assim dispõe: “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”.

A hipótese regula causa especial de diminuição de pena, reclamando que algum integrante de quadrilha ou bando (art. 288 do CP), aceitando sua responsabilidade penal, apresente informações à autoridade (policial, judiciária, ou ao representante do Ministério Público), de forma a possibilitar seu desmantelamento (da quadrilha ou bando).

Há uma reflexão que se deve fazer em relação ao reclamado desmantelamento: não há necessidade de comprovação futura no sentido de que a quadrilha ou bando deixou de atuar, se desfez completamente.

Não seria razoável exigir que para a redução de pena o delator tivesse que contar com a comprovação de evento futuro e incerto, e sendo assim, para usufruir o benefício basta que as informações apresentadas sejam aptas à elucidação do emaranhado criminoso investigado, com resultado exitoso em termos de tornar possível a responsabilização penal.

Também a Lei 9.034/1995, conhecida como “Lei de combate ao crime organizado”,[1] assim como a Lei 9.613/1998, “Lei de lavagem de capitais”, e a Lei 9.807/1999, intitulada “Lei de proteção das vítimas e testemunhas”,[2] cuidaram de regular a matéria.

Por fim, mais recentemente, a Lei 10.409/2002, a “Nova Lei Antitóxicos”, também procurou tratar do assunto, o fazendo em seu art. 32, que segundo entendemos não têm eficácia jurídica.[3]

Conforme seu § 2º: “O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça”.

Infere-se de sua complexa redação que, para a obtenção dos benefícios elencados não é necessário que o indiciado revele a existência de organização criminosa à qual pertença.

A revelação poderá referir-se a qualquer organização criminosa.

A conclusão decorre da análise comparativa que se deve fazer com as disposições contidas no § 3º do art. 32, que se refere à revelação, eficaz, “dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando…”.

Para os fins do disposto no § 2º, a revelação deve ser feita pelo indiciado antes do oferecimento da denúncia, pois, “se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação”, a regra aplicável será a do § 3º.

No § 3º do mesmo art. 32 há outra hipótese de delação premiada. Segundo o texto legal: “Se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão”.

 Ao contrário do que dispõe o § 2º, o § 3º pressupõe que o destinatário dos benefícios elencados deve fazer parte da quadrilha, do grupo, da organização ou bando que delata (“dos demais integrantes”). Por outro lado, também para os fins do § 3º, fazendo-se uma interpretação gramatical de seu texto, não há necessidade de que os produtos, as substâncias ou drogas ilícitas sobre as quais venha a recair a apreensão causem dependência física e psíquica.

Verificados os requisitos legais (“revelação eficaz”), o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão.[4]

3. Considerações finais

Observadas as variações no regramento, e por considerar a delação premiada um verdadeiro “mal necessário”, o que se espera é o aprimoramento das estruturas normativas, tanto quanto possível, buscando evitar resultados danosos à eficácia da justiça e proporcionar benefícios verdadeiros à sociedade.

Notas
[1] “Tendo os réus fornecido à polícia dados fundamentais relativos às pessoas que os haviam contratado para transportar a droga, como nomes, endereço e número de telefone, o que propiciou a identificação de alguns dos integrantes da quadrilha, resta caracterizada a chamada ‘delação premiada’, devendo os réus serem beneficiados com a causa especial de diminuição da pena, prevista na Lei n. 9.034/95” (TRF, 2ª Região, Ap. 98.02.43451-5-RJ, 2ª T., j. 23-11-1999, rel. Juiz Cruz Neto, DJU de 10-2-2000, RT 776/706).
[2] “O reconhecimento de réu colaborador, nos termos do art. 14 da Lei n. 9.807/99, somente se dará se o mesmo, efetivamente, colaborar na polícia ou em juízo, e não quando flagranteado à vista de informações coletadas pela autoridade policial” (TJAC, Ap. 02.000923-2, Câm. Crim., j. 2-8-2002, rel. Des. Eliezer Scherrer, v.u., RT 808/652). “O perdão judicial e a causa de diminuição da pena, previstos, respectivamente, nos arts. 13 e 14 da Lei n. 9.807/99, decorrem da delação contra os demais partícipes ou co-autores do crime, feita de maneira voluntária pelo co-réu, de modo a dispensar a espontaneidade, mas somente têm aplicação quando o crime é praticado por três ou mais agentes” (TJMG, Ap. 178.113-7/00, 1ª Câm., j. 22-8-2000, rel. Des. Zulman Galdino, DOMG de 18-10-2000, RT 786/699).
[3] Renato Marcão. Tóxicos – Lei 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 589.
[4] Renato Marcão. Ob. Cit., p. 589.

Informações Sobre o Autor

Renato Flávio Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).


Equipe Âmbito Jurídico

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