Wilson Feitosa de Brito Neto[1]
Resumo: Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma análise crítica acerca da democracia representativa e uma possível crise de representatividade. Portanto, propõe-se realizar, uma verificação sobre aspectos basilares da democracia representativa para que possamos compreender o tratamento concedido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Em seguida, contrapor as perspectivas da crise de representatividade. A distância entre representantes e representados é assunto que vem gerando controvérsias no âmbito público e privado, despertando para a necessidade de um debate jurídico-social sobre o tema.
Palavras-chave: Democracia. Crise de Representatividade. Exercício Político. Movimentos Sociais.
Abstract: This paper aims to establish a critical analysis about representative democracy and a possible crisis of representativity. Therefore, it is proposed to carry out a verification on the basic aspects of representative democracy so that we can understand the treatment granted by the Brazilian legal system. Then counter the prospects of the representativity crisis. The distance between representatives and represented is a subject that has been generating controversies in the public and private spheres, awakening the need for a legal-social debate on the subject.
Keywords: Democracy. Representativity Crisis. Political Exercise. Social Movements.
Sumário: INTRODUÇÃO; 1. O PAPEL DO REPRESENTANTE – REPRESENTAÇÃO EMINENTE E REPRESENTAÇÃO-MANDATO; 2. CRISE OU VÍCIO DE REPRESENTAÇÃO; 2.1. ASPECTO TERMINOLÓGICO; 2.2. VÍCIO DE REPRESENTATIVIDADE E FALTA DE IDENTIFICAÇÃO PARTIDÁRIA; 3. A DISTÂNCIA ENTRE REPRESENTANTES E REPRESENTADOS; 4. NECESSIDADE DE DEMOCRATIZAÇÃO DO EXERCÍCIO POLÍTICO, DEMOCRACIA SEMI-DIRETA E MECANISMOS JÁ DISPONÍVEIS NO MODELO BRASILEIRO; 5. O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO ACESSO AO CENTRO DEBILERATIVO PELO POVO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Tem-se como dado adquirido o argumento de que a política brasileira se acha marcada por uma crise de representatividade, ideia que surge nos mais variados ambientes onde a fala não se pauta pela profundida da análise acadêmica. Basta sentar em uma mesa de café para ouvir alguém falando sobre a crise de representatividade que macula a política brasileira.
Muito embora seja esta uma ideia que permeia os mais diversos debates na sociedade, a verdade é que o tema demanda uma análise mais cuidada, de modo que se possa saber se efetivamente há uma crise de representatividade; se esta crise atinge a política brasileira; e se há meios que viabilizem uma maior compatibilidade entre políticos representantes e sociedade representada.
Para se fazer tal abordagem, releva questionar as razões para a descrença da população na qualidade da representação política e o papel que os movimentos sociais ligados a grupos minoritários da sociedade exercem no fomento da identidade das minorias representadas de modo a se buscar uma representação compatível. Ou seja, é importante questionar como as minorias da sociedade se colocam em relação à identidade com aqueles que serão eleitos como seus representantes.
Partindo de tais questionamentos é que se poderá concluir se há ou não uma crise de representação ou se há uma efetiva compatibilidade entre pautas defendidas pelos representantes e anseios buscados pelos representados.
Inicialmente, antes de discutir se há ou não uma crise de representação – ideia que passa pelo atendimento de anseios dos representados por parte dos seus representantes – é necessário entender qual o papel dos representantes. O representante deve buscar o atendimento dos objetivos concretos dos seus eleitores, atuando como mandatário da vontade destes ou deve se ocupar das grandes questões da nação, visando o benefício da sociedade como um todo e não somente do grupo que o elege. Em outras palavras, o representante o é em relação a toda a nação ou somente em relação aos seus eleitores?
Dominique Leydet[2], aborda a temática com peculiar detalhe, apresentando dois modelos distintos de conceituação da representação. Trata a pesquisadora canadense de distinguir a representação eminente da representação-mandato, como se vê do seu artigo que coloca (nas suas palavras) o modelo republicano em questão.
A autora associa cada um dos dois modelos de representação a um modelo de exercício da política, sendo a representação eminente ligada ao modelo republicano, com foco na sociedade como totalidade; enquanto a representação-mandato se associa ao modelo liberal, no qual os interesses individuais devem prevalecer por serem parte integrante (e conformadora) da sociedade. Vejamos trecho do elucidativo trabalho.
“A representação eminente e a representação-mandato constituem, assim, dois eixos opostos que permitem situar diferentes modelos possíveis da representação, segundo deem mais importância a um desses conceitos que a outro, ficando entendido que não se poderia encontrar nenhum modelo que se constituísse apenas a partir de um desses eixos”.[3]
Com efeito, parece clara a ideia de que os modelos de representação acabam por ser complementares e, pelo menos em certa medida, o papel do representante é discutir as grandes questões nacionais, mas também, atender aos interesses do grupamento social por ele representado. Tal significa dizer, em termos mais pragmáticos, os seus eleitores.
Abordando o tema de representação democrática em sentido material, Gomes Canotilho esclarece que:
“A representação democrática, constitucionalmente conformada, não se reduz, porém, a uma simples delegação de vontade do povo. A força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos seus actos, pois só quando os cidadãos (povo), para além de suas diferenças e concepções políticas, se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo justo destes actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação democrática material”[4].
Segue o Autor identificando três ideias integrantes da representação democrática material, a saber: a) representação como cuidado; b) representação como disposição para responder; e c) representação como processo dialético entre representantes e representados com o propósito de atualização dos anseios populares.[5]
Por via de consequência de tal ideia, é possível ter como ponto de situação o fato de que haverá uma divergência, incompatibilidade ou baixa qualidade de representação na medida em que haja o distanciamento entre o trabalho do representante – seja na elaboração de projetos de lei, nas votações ou nos debates – e o atendimento dos interesses do povo representado. A inexistência (ou mesmo a impossibilidade) de relação dialógica entre representantes e representados por questões identitárias, como se verá, apresenta, pois, um desvio da representação democrática material.
Os meios de comunicação e alguns cientistas sociais dão conta da existência de um mal-estar no modelo representativo formal tal como se acha concebido, identificando que algo está errado – seja no formato, seja na prática – do exercício do poder político por representantes. Tal situação de fato demanda a identificação quanto à existência real de um cenário de crise, como se verá no presente tópico.
2.1 ASPECTO TERMINOLÓGICO
A expressão mais comumente adotada quando se faz referência ao tema é a “crise de representação” e o vocábulo “crise” é normalmente utilizado para indicar que algo vai mal no modelo representativo e na atuação dos representantes. Vale, portanto, uma nota, ainda que breve, sobre o real sentido de tal expressão e a sua substituição por outra que seja mais adequada.
Em consulta ao significado de “crise” em dicionário online, se vê que a noção de crise está associada a um evento particularmente grave que se mostra decisivo, vindo a pôr termo ao que antes existia ou a devolver a sua estabilidade. Não se trata, portanto, de algo rotineiro, que se repete ciclicamente. Veja-se a definição do dicionário Priberam.
Com efeito, cabe o questionamento se o que presenciamos na representatividade no Congresso Nacional é efetivamente uma crise ou um mal estar, um desgaste ou um vício de representatividade passível de correção para a manutenção do modelo hoje vigente. Admitir que se trata de uma crise implicaria em reconhecer a falência do modelo representativo ou vislumbrar a possibilidade de plena correção dos seus erros de modo a se estabelecer uma estabilidade funcional do sistema.
Portanto, não parece acertada a adoção do vocábulo “crise de representatividade”, se mostrando mais adequada a expressão “vício de representatividade”. Isto porque este outro vocábulo se traduz como um defeito ou imperfeição e, por isso mesmo, corrigível ou passível de coexistência com o formato instituído.
2.2 VÍCIO DE REPRESENTATIVIDADE E FALTA DE IDENTIFICAÇÃO PARTIDÁRIA
Ao se referir à crise de representatividade, expressão que, pela razão acima exposta, será substituída no presente trabalho, é comum se adotar como ponto de partida o sentimento popular segundo o qual o trabalho dos representantes não se coaduna com a vontade dos representados. Tal ponto de partida, porém, é insuficiente e depende de uma análise de dados.
Neste aspecto, o Instituto Data Folha divulgou em abril de 2019 pesquisa pela qual se conclui que 65% dos brasileiros não se identificam com nenhum partido político[7]. Já ao pesquisar a satisfação dos brasileiros com a atuação do Congresso, identificou que 32% da população acha que a atuação é ruim ou péssima, 22% avalia a atuação como ótima ou boa e 41% vê como regular a atuação dos seus representantes[8].
Vale destacar que este resultado é o de maior grau de aprovação desde 2007 e que, se somando o grupo de ótimo/bom e o de regular, o total dos entrevistados que tem como, pelo menos, aceitável a atuação dos seus representantes é de 63% do total. Os dados parecem não dar conta de um cenário desastroso na qualidade da nossa representatividade nem dos representantes.
Por outro lado, a ciência política tem identificado outros fatores que indicam a existência de um vício na representatividade, como apresenta Jaime Barreiros Neto em sua tese de doutorado, fazendo referência ao trabalho de Hannah Arendt sobre o tema. Diz o Autor:
“Uma redução cada vez mais crescente do espaço público, aliada a um domíniocada vez mais amplo da política pelos interesses socioeconômicos privados e pelo saberburocrático, apresenta-se, na visão de diversos pensadores sociais, a exemplo de HannahArendt, como diagnóstico desta suposta crise de representatividade” […][9]
Dominique Leydet aponta concretamente três sintomas do mal-estar de que padece o sistema representativo formal, indicando como primeiro deles a “reivindicação de direitos específicos de representação em favor de grupos historicamente marginalizados”[10]. Assim, ao lado da redução do espaço público, há a necessidade de compatibilizar esse espaço público com as diferenças sociais existentes, como bem aponta Nancy Fraser[11] em trabalho no qual apresenta suas críticas ao modelo de esfera pública proposto por Junger Habermas.
Com efeito, é de se concordar com a existência de um mal-estar no modelo representativo formal e na necessidade de correção de suas imperfeições, não sendo adequado, porém, se falar de uma crise. Isto porque, os sintomas apresentados por Leydet – apresentados com particular clareza se afastando do domínio das sensações – admitem correção sem demandar a substituição do sistema tal como ele se apresenta estabelecido.
Como referido em momento anterior, o modelo representativo tradicional apresenta os seus vícios, entre outros sintomas, por não conseguir acompanhar as demandas dos grupos minoritários e tradicionalmente excluídos do espaço de decisão. Tal se verifica, no caso brasileiro e tomando por referência o último pleito eleitoral geral (2018) pela discrepância identitária que existe entre representados integrantes de minorias e representantes que não originam de tais grupos sociais.
O serviço de estatística do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aponta os dados das candidaturas cadastradas, restando clara uma predominância de candidaturas de homens brancos. No que se refere ao gênero, 68,4% das candidaturas foi de homens, contra 31,6% das candidaturas femininas. Já no que se refere à cor/raça, os brancos titularizaram 52,4% das candidaturas enquanto todas as outras variações étnicas ocuparam 47,6%[12].
A distância aumenta quando se confronta o resultado do pleito com a composição da sociedade. O total de homens eleitos são 84,9% da composição da Câmara dos debutados, enquanto as mulheres representam 15,1%. No que se refere ao critério de raça/cor, os brancos correspondem a 75% enquanto todas as demais etnias reunidas correspondem a 25% da Câmara[13].
Os dados acentuam a distância identitária entre representantes e representados quando se vê o perfil do eleitorado brasileiro. As mulheres são 52,5% do eleitorado apto a votar, enquanto os homens são 47,5%. No critério cor/raça, os dados se referem ao total da população brasileira, e não somente ao seu eleitorado, mas também denotam um discrepância entre representantes e representados, já que os negros (pretos e pardos) são 56,1% da população brasileira[14].
Vale destacar que no presente artigo apenas se trata de dois parâmetros de identidade social (sobretudo por uma questão de adequação ao formato do trabalho e espaço para tal abordagem), sendo necessária a reflexão acerca de outros grupamentos sociais. É importante questionar, entre outros, qual a proporção de adeptos de religiões de matriz africana no grupo de representados e entre os representantes; quantos são ligados aos movimentos sindicais em cada lado; qual é a correspondência entre representantes e representados nos movimentos ligados à reforma agrária; questão indígena; militares; servidores públicos civis; comunidade LGBTQ, entre outros critérios.
Em uma palavra, os dados expostos e que denotam a distância existente entre o povo e os seus representantes reflete apenas a parte mais superficial do vício de representatividade por falta de identificação. O modelo ideal – portanto, a ser constantemente perseguido, mesmo que nunca atingido – deve passar por uma perfeita identidade na representatividade, de sorte que o parlamento apresente o mesmo perfil que a sociedade ostenta.
Ou seja, essa distância identitária entre representantes e representados provenientes de grupos sociais tradicionalmente marginalizados está demonstrado pelos dados estatísticos apresentados e configura um vício de representatividade que faz com que os representados não se sintam efetivamente representados. Tal cenário, que reduz o grau de qualidade da nossa democracia demanda uma democratização do exercício ativo da política.
No que pese a construção de ideias que passam por uma esfera pública não institucionalizada baseada no discurso como meio de tomada de decisões na sociedade[15], mesmo quando consideradas as críticas apresentadas (merecendo destaque o já referido trabalho do Nancy Fraser), a ideia de participação direta não parece ser viável sob o aspecto prático, como sustenta Mill.[16]
Contrariando a ideia de democracia direta (ao menos como regra), Néviton Guedes defende que:
[…] “a estrutura territorial e social, a acentuada complexidade nas expectativas e valores sociais, a multiplicidade e especificidades dos problemas a resolver, os riscos aí envolvidos, assim como a exigência de crescentes e específicos conhecimentos técnicos para a sua solução, tudo isso acabou conformando a base das atuais sociedades (complexas de risco e de massa), inviabilizando por completo a possibilidade de que os negócios do Estado fossem geridos permanentemente por deliberações de todo o povo reunido em assembléia”.[17]
Longe de se pensar na substituição de um modelo de exercício do poder político por outro, equilibrada é a posição de Denise Cristina Vitale, para quem:
“A modernidade deve afirmar o resgate democrático que estabeleceu a partir do constante aprofundamento dos princípios elementares da democracia ateniense – liberdade, igualdade e participação no poder. Assim, a idéia de um resgate da vida democrática poderia significar não propriamente uma oposição entre a democracia dos antigos e a democracia dos modernos, mas uma relação de aperfeiçoamento e adaptação da primeira à realidade encontrada a partir de fins do século 18”.[18]
O que parece ter grande acolhida entre diferentes autores de diferentes correntes é a necessidade de ampliação do exercício do poder político pelo povo, titular exclusivo do poder político em cujo nome tal poder deve ser exercido. Ora, se não se chega àquilo que Canotilho chamou (v. nota 2) de representação democrática material, a verdade é que o exercício do poder político não está sendo exercido em nome do povo e, desta forma, exsurge a necessidade de ampliação de tal exercício pelo seu próprio titular, e não por seus delegados.
Diante desta observação, importa pontuar que, além de novos mecanismos propostos – Leydet, por exemplo, refere a possibilidade (não testada) de a sociedade civil organizada vir a exercer uma representação mais qualitativa do que os parlamentos[19] – outros tantos mecanismos já estão formalmente instituídos no sistema brasileiro. A lista de mecanismos é extensa, mas importa indagar o grau de utilização de tais instrumentos pela sociedade brasileira e os resultados de tal mobilização.
Vale frisar que a Constituição Federal prevê expressamente o exercício da política diretamente pelo povo, como se vê do parágrafo único do seu art. 1º, que estabelece como formas intercomplementares de exercício do poder político por representantes ou diretamente.
Jaime Barreiros Neto, em sua tese doutoral, aborda a temática da democracia semidireta apontando e analisando os resultados de institutos existentes. O elenco de mecanismos é extenso, contemplando:
“a possibilidade de realização de plebiscitos, referendos, iniciativas populares de lei, audiências públicas, orçamento participativo, participação de amici curiae em processos de controle de constitucionalidade de leis e atuação popular em conselhos gestores de órgãos públicos”.[20]
Considerando os riscos de serem, porém, os instrumentos de participação direta, pontualmente o plebiscito e o referendo, utilizados em desfavor da própria sociedade, Néviton Guedes aponta o privilégio dado pela CF à representação em relação à participação direta, e aponta que
[…] “o medo de que a vontade popular pudesse ser manipulada, seja por líderes carismáticos, na forma de algum cesarismo ou bonapartismo (veja-se o exemplo de Hitler e do Partido Nacional Socialista – NSDAP), seja pela possibilidade de os meios de comunicação atuarem, nas sociedades de massa, como agenda-setter, isto é agendarem os temas que acabam ganhando a atenção e a preferência popular (agenda setting theory), tudo isso acabou por justificar, lembra o mestre de Coimbra, uma recorrente hostilidade contra os procedimentos de democracia semidireta”.[21]
O receio demonstrado pelo Autor merece, porém, certa ressalva. Se por um lado parece ser certo o poder de manipulação de vontades pelos meios de comunicação – o que ocorre inclusive nas redes sociais em que somente é aparente a livre escolha dos destinatários das mensagens disparadas por robôs – por outro parece ser um argumento redutor da capacidade eletiva do povo. Por via de consequência, se há o risco de manipulação do povo na participação direta, não parece que a escolha dos representantes esteja blindada contra tal manipulação e nem que os próprios representantes não tenham também os seus atos manipulados (seja pela mídia, seja por setores do capital ou quaisquer outros segmentos da sociedade não afinados com o pluralismo democrático).
Desta forma, não somente pela previsão do art. 1º p.ú. e do art. 14, caput, da CF, mas pelo princípio democrático em toda a sua tradição e construção ao longo dos séculos, não parece haver caminho que não contemple a participação direta, ao menos em certa medida. Nem mesmo no plano puramente conceitual e hipotético em que os representantes atendam plenamente os interesses da nação e do grupo de representados ao qual se vinculam, se pode conceber um modelo que não preveja a participação direta – o exercício do poder diretamente por seus titulares e em favor dos quais ele deve ser exercido.
No que se refere aos plebiscitos, referendos e a iniciativa popular de lei, a CF traz previsão específica na cabeça do art. 14, dispositivo que veio a ser regulamentado pela Lei 9.709/1998. O diploma legal trata de questões conceituais, matérias em que a consulta plebiscitária é obrigatória e procedimentos para os três institutos, disciplinando (mas não estimulando) a participação direta.
No caso específico da iniciativa popular de lei, merece destaque que o percentual do eleitorado nacional para que se apresente tal projeto é de apenas 1% do eleitorado nacional, distribuído em 5 estados com 0,3% do eleitorado nacional em cada um deles. Efetivamente, tal quantitativo é pequeno e viabiliza o exercício da participação direta, havendo como principal dificuldade para tal modo de exercício do poder político, a coleta de assinaturas no vasto território nacional e o risco de fraude nas assianturas.
Para isso, já se trabalha hoje com a possibilidade da coleta de assinaturas digitais e até mesmo com a possibilidade de coleta das impressões digitais cadastradas no TSE por meio do recente movimento de cadastro biométrico. Tal é o posicionamento de Jaime Barreiros Neto, para quem este procedimento acabaria por fazer superar um grande obstáculo para a inciativa popular de lei.[22]
Há que se observar, no que se refere à iniciativa popular de lei, que a sua aprovação ou a manutenção do seu conteúdo original não estão assegurados, já que a participação direta é para a iniciativa, não para a sua aprovação – tal etapa cabe aos representantes eleitos. O que está garantida é a tramitação e validação do projeto mesmo quando haja vícios formais (art. 13, §2º da lei 9.709/1998).
Existe um grande questionamento me torno de saber se o poder que se diz ser emanado do povo e exercido em seu nome efetivamente reside no seio popular ou se tal ideia é uma abstração teórica. Raymundo Faoro tem posicionamento bastante pessimista quanto a tal questionamento, entendendo haver um estamento formado pelos verdadeiros donos do poder, que não é exercido verdadeiramente em nome do povo.[23]
Apesar de tal questionamento, lastreado inclusive por uma ideia de dominação, manipulação e cooptação da política e dos políticos por interesses particulares alheios aos negócios do Estado, a verdade é que é necessária a busca permanente pelo robustecimento da democracia material. Para tanto, os movimentos sociais assumem relevância singular na promoção e debate de ideias e na intermediação dialógica entre sociedade e estruturas institucionalizadas. Neste sentido, veja-se o elucidativo trecho de trabalho de Sérgio Costa:
“Ora, a contribuição dos movimentos sociais para a democratização certamente não será aquela que cabe a atores como sindicatos ou partidos políticos. Os movimentos sociais apresentam perfis organizativos próprios, uma inserção específica na tessitura social e articulações particulares com o arcabouço político-institucional. Ainda que não se pretenda reacender a chama antiinstitucionalista que orientou muitos dos trabalhos sobre movimentos sociais nos anos 80 (ver, por exemplo, Evers, 1984), parece necessário reconhecer que as contribuições democratizantes desses movimentos não podem ser enxergadas unicamente a partir das instâncias institucionais, esperando-se deles o aperfeiçoamento dos mecanismos de intermediação de interesses ou a renovação da vida partidária, minada em países como o Brasil pelas velhas práticas autoritárias e pelos novos casuísmos. Suas possibilidades residem precisamente em seu “enraizamento” em esferas sociais que são, do ponto de vista institucional, pré-políticas. E é no nível de tais órbitas e da articulação que os movimentos sociais estabelecem entre estas e as arenas institucionais que podem emergir os impulsos mais promissores para a construção da democracia”.[24]
Com efeito, o papel dos movimentos sociais – categoria na qual hoje se insere uma infinidade de movimentos e siglas de diferentes matizes ideológicos e com as mais variadas pautas – é o tradicional de luta social e busca por visibilidade, mas não só. Conforme referido por Sérgio Costa no trecho acima transcrito, os movimentos sociais assumem uma outra função, qual seja, a de interagir com os centros decisórios estabelecendo o diálogo necessário. Se prestam, portanto, à intermediação entre o povo ligado à sua pauta e os representantes.
Porém, se vislumbra a possibilidade de um outro exercício ainda mais profundo dos movimentos sociais como meio para a condução dos anseios populares ao centro de poder. Muito embora não se possa esperar a renovação partidária como um fenômeno natural que deveria resultar de uma natural evolução da sociedade com maior e melhor acesso à informação, o certo é que existem demandas sociais que precisam ser representadas e atendidas nas estruturas institucionalizadas.
Assim, um papel relevante dos movimentos sociais para a ser a formação de novos quadros políticos, alinhados com a pauta do movimento em questão e, desta forma, a penetração na estrutura política. Naturalmente, tal acesso dependeria da vinculação aos movimentos sociais a partidos políticos, já que a representação no Brasil se dá exclusivamente por meio dos partidos políticos.
Tal porém não representa um obstáculo intransponível. Isto porque o Brasil apresenta atualmente uma lista de 33 (trinta e três) partidos políticos[25] com as mais variadas nomenclaturas e agendas. Isso sem falar na possibilidade de criação de novos partidos políticos, igualmente se admitindo a mais vasta temática e direção ideológica. Nada impede que a militância dos movimentos sociais aceda aos quadros partidários para aceder aos órgãos de representação política.
Ou seja, os mecanismos formais de acesso à participação ativa do poder pelo povo existem, mas a ideia de que cada cidadão traz consigo um traço identitário, um conjunto de características e de demandas que precisam ser escutadas somente pode resultar de um fortalecimento das bases sociais, o que é papel dos movimentos sociais. A partir da capilaridade que os movimentos sociais apresentam é que se pode empoderar a população e, com isso, buscar dela os seus anseios e, em primeiro plano, levá-los às estruturas institucionalizadas e, em momento posterior, formar nas bases sociais os próximos quadros políticos.
Importa ter em vista que os movimentos sociais tenderão a obter melhores resultados na definição e defesa de sua agenda quanto mais especializada for a sua abrangência temática. É dizer, diante dos diversos grupamentos sociais, será melhor vocacionado para o exercício de suas funções o movimento social cuja temática seja mais bem definida, resultando em uma maior identidade e adesão por parte dos integrantes da base social. É àquilo que se denominará (ao menos neste artigo e por ainda não se conhecer terminologia melhor trabalhada) de hiperespecialização dos movimentos sociais.
A imposição de mecanismos formais para uma representação plenamente identitária não só não parece uma ideia aplicável, como chegaria a limitar a soberania da escolha popular. O ponto central é o fortalecimento de pautas sociais para que a vontade popular coincida com uma representação mais próxima do perfil da sociedade. Ou seja, não se propõe a criação de mecanismos, mas se aponta o relevante papel dos movimentos sociais (de todos os direcionamentos ideológicos e temáticos) na formação de uma representatividade mais qualitativa, mais alinhada com os anseios populares e, num grau maior de robustecimento democrático, numa representação que seja o espelho da sociedade representada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da abordagem feita no curso do presente trabalho, é possível concluir que a atividade representativa na democracia deve contemplar tanto uma representação eminente como uma representação-mandato, de modo a estarem representados tanto os grandes temas da nação quanto os interesses dos cidadãos representados. Um sistema puro em relação a qualquer dos dois modelos tende a ser insatisfatório por não atender a um ou a outro grupo imprescindível de interesses.
Neste sentido, deve haver uma constante busca por uma representação democrática em sentido material, sem a qual resta evidenciado um vício de representação que precisa ser corrigido. Tal vício de representação pode ser identificado, entre outros fatores, por uma reivindicação de grupos tradicionalmente marginalizados por uma representação identitária.
Diante do mal-estar relativo à atuação dos representantes, uma via que vem sendo apresentada é a ampliação da participação popular no processo deliberativo, seja com as teorias de formação de consenso a partir do discurso, formato que parece ser inviável sob diferentes aspectos – não é praticável e nem apresenta formato que prestigie o discurso na conformidade do pluralismo que a democracia exige –, seja por meio do manejo de instrumentos de participação direta em uma democracia semi-direta.
A conclusão mais relevante, porém, é relativa ao papel dos movimentos sociais, ao fortalecimento das bases sociais através deles e à busca do atendimento da agenda social por meio do acesso de tais movimentos às estruturas institucionalizadas de exercício do poder político. Neste particular, a atuação dos movimentos sociais deve ser no sentido de definição da sua pauta a partir das demandas da base social, fomento e luta social em prol desta pauta, intermediação entre as demandas expostas pela base social e o centro deliberativo do poder e, em momento de maior desenvolvimento democrático, formação pelos movimentos sociais de novos quadros políticos.
Muito embora não se defenda a criação de medidas impositivas para a representação plenamente identitária, é necessária uma constante atuação para que a identidade entre representantes e representados ocorra como consequência do fortalecimento das bases sociais. Tal somente pode ser feito com o fortalecimento da atuação dos movimentos sociais em constante diálogo com a sua base, com os partidos políticos e com os representantes.
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[1] Aluno Especial de Mestrado do PPGD- UFBA, 2020.1. Possui pós-graduação lato sensu em Direito do Estado pela Universidade Católica do Salvador (2015), pós-graduação em Direito penal econômico e europeu pela Universidade de Coimbra – Portugal (2012) e graduação em Direito pela Universidade de Coimbra (2012).
[2] LEYDET, Dominique. Crise da representação: o modelo republicano em questão. In: CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao Republicanismo; 1 ed. p. 70, Belo Horizonte: UFMG, 2004.
[3] Ibdem.
[4] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. (16ª reimp.) Coimbra : Almedina. 2015. p. 294.
[5] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. (16ª reimp.) Coimbra : Almedina. 2015. p. 294.
[6]“crise”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/crise [consultado em 26-12-2019].
[7]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/65-dos-brasileiros-nao-se-identificam-com-partidos-diz-pesquisa-datafolha.shtml consultado em 26 de dezembro de 2019, às 9h56m.
[8]https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/13/32percent-nao-aprovam-e-22percent-aprovam-atuacao-do-congresso-diz-datafolha.ghtml consultado em 26 de dezembro de 2019, às 10h02m.
[9]BARREIROS NETO, Jaime. A engenharia institucional e o debate contemporâneo da reforma política no Brasil: análise crítica das propostas e tendências. 2017, p. 31. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
[10] LEYDET, Dominique. Crise da representação: o modelo republicano em questão. In: CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao Republicanismo; 1 ed. p. 67, Belo Horizonte: UFMG, 2004.
[11]FRASER, Nancy. Repensando la esfera pública : una contribución a la crítica de la democracia actualmente existente (Tema central). En: Ecuador Debate. Opinión pública. Quito: CAAP, (no. 46, abril 1999): pp. 139-174.
[12]http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais consultado em 26 de dezembro de 2019, às 14h43.
[13]https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/composicaocamara2019/index.html#text7 consultado em 26 de dezembro de 2019, às 16h14m.
[14]https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencia-negra-numeros-brasil/ consultado em 26 de dezembro de 2019, às 17h12m.
[15] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2013.
[16] MILL, J. S. Representative Government. In On Liberty and Other Essays. Nova York: Oxford University Press, 1998.
[17] GUEDES, Néviton. inComentários à Constituição do Brasil / J.J. Gomes Canotilho… [et al.]. – São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 674.
[18] VITALE, Denise. Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático. Rev. Kátal. Florianópolis, v. 10, n 2, p. 150, jul/dez, 2007. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rk/v10n2/a02v10n2 consultado em 27 de dezembro de 2019, as 11h07m.
[19][19] LEYDET, Dominique. Crise da representação: o modelo republicano em questão. In: CARDOSO, Sérgio (org.). Retorno ao Republicanismo; 1 ed. pp. 81 a 84, Belo Horizonte: UFMG, 2004.
[20] BARREIROS NETO, Jaime. A engenharia institucional e o debate contemporâneo da reforma política no Brasil: análise crítica das propostas e tendências. 2017, p. 553. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
[21] GUEDES, Néviton. In Comentários à Constituição do Brasil / J.J. Gomes Canotilho… [et al.]. – São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 674.
[22] BARREIROS NETO, Jaime. A engenharia institucional e o debate contemporâneo da reforma política no Brasil: análise crítica das propostas e tendências. 2017, pp. 560 e 561. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
[23] FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: formação do patronato brasileiro. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008.
[24] COSTA, Sérgio. Movimentos sociais, democratização e a construção de esferas públicas locais. Rev. bras. Ci. Soc. vol. 12 n. 35 São Paulo Feb. 1997. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091997000300008 consultado em 28 de dezembro de 2019, às 10h32m.
[25]http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse consultado em 28 de dezembro de 2019, às 11h10m.
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