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Democracia: tipologia, relações e expressões contemporâneas

Resumo: O presente texto apresenta reflexões  sobre  algumas questões que envolvem a construção democrática no Brasil através da participação da sociedade civil em espaços institucionais de participação. Inicialmente, serão  apresentados alguns pontos de reflexão sobre democracia, com ênfase na democracia representativa e democracia participativa, a partir de autores clássicos e contemporâneos. O objetivo é visualizar estes modelos de democracia não como duas formas  alternativas, mas como formas que podem se integrar. Neste trabalho a participação será considerada quanto à  possibilidade de fortalecer e aprofundar a democracia, com vistas a uma  cidadania integral. Abordaremos alguns pontos essenciais sobre sociedade civil e esfera pública, através das contribuições de importantes autores sobre este debate.


Palavras-chave: Democracia. Participação. Sociedade Civil. Conselhos.


Abstract: This paper presents reflections on some aspects of democratic construction in Brazil, through the participation of civil society in institutional spaces for participation. Initially, this will present some points for reflection on democracy, with emphasis on representative democracy and participatory democracy, from classic and contemporary authors. The goal is to visualize these models of democracy not as two alternative forms, but as forms that can be integrated. In this paper,  the participation will be considered in its ability to strengthen and deepen democracy, and only a full citizen. Discuss some key points about civil society, public space and public sphere, through the contributions of major authors on this debate.


Keywords: Democracy. Participation. Civil Society. Councils.




Introdução

Analisar algumas das questões que envolvem a construção  democrática no Brasil, através da participação da sociedade civil em espaços institucionais de participação, é um dos objetivos deste trabalho. Como ponto de partida, consideramos que  a participação da sociedade civil em espaços de gestão instituídos no Brasil a partir da CF de 1988, ao mesmo tempo em que democratiza o Estado e expande as condições para o exercício de cidadania,  também supõe conflitos e contradições entre os sujeitos que compõe  as relações estabelecidas entre as partes. Portanto, um espaço desafiante de construção de preceitos democráticos e de ocupação dos segmentos sociais para inscrever suas lutas e demandas.


Neste trabalho, será realizada uma apreensão  destes espaços no interior do aparelho estatal, em especial a partir da promulgação  da Constituição Federal  em 1988, que marca um novo direcionamento social e político brasileiro e abre  perspectivas para uma nova relação entre  o Estado e a sociedade civil.


Num primeiro momento, através de revisão bibliográfica, abordaremos alguns pontos essenciais sobre  democracia,  sendo que para interpretar a teoria e a prática da democracia, seria necessário situá-la no período que cobre desde a Grécia antiga, com seus ideais políticos de igualdade entre os cidadãos, liberdade, respeito pela lei ou pela justiça, até os dias atuais. Pela delimitação deste estudo,  focaremos nas faces do fenômeno na atualidade.


Os modelos de democracia podem ser divididos em dois tipos, como concebe Held (1987): democracia direta ou participativa (um sistema de tomada de decisão sobre assuntos públicos no qual os cidadãos estão diretamente envolvidos) ou a democracia liberal ou representativa – um sistema de governo que envolve oficiais eleitos que tomam para si a tarefa de representar os interesses e/ou pontos de vista dos cidadãos.


Num segundo momento, apontamos o caminho da  participação da sociedade civil nos espaços públicos e sua interlocução com o Estado. O debate contemporâneo sobre a democracia participativa emerge como resposta às características elitistas e excludentes das democracias eleitorais, a articulação entre mecanismos de representação prevê uma  nova perspectiva de gestão democrática baseada na inserção dos cidadãos nas questões de interesse público. Este processo social, ainda em construção, é possível ser denominado de gestão participativa, a qual está estreitamente relacionada com a sociedade civil como espaço de ampliação da democracia, Duriguetto (2007).


A participação social é, entre outros, tema da democracia brasileira nesses vinte e dois anos de promulgação da Constituição Federativa do Brasil, de 1988. Nesse sentido, mecanismos tradicionais de democracia representativa não tem respondido às demandas sociais cada vez mais crescentes, e neste contexto, os conselhos gestores podem apresentar como uma importante alternativa para  resposta a essa demanda, ampliando a participação social e consequentemente a democracia, assim os conselhos enquanto instrumentos de valores democráticos  merecem especial reflexão.


1. Concepções[1] de  Democracia e suas Expressões Contemporâneas


Ao discutir a questão da democracia Held (1987) se pronuncia situando que a  democracia tem sido defendida com base na ideia de que ela atinge um ou mais   valores ou bens fundamentais: igualdade, liberdade, auto desenvolvimento moral,  interesse comum, interesses privados, utilidade social,  satisfação de necessidades, e ainda decisões eficientes. Para compreender as diferentes perspectivas de democracia, é importante  sistematizar os diferentes autores e concepções  que as envolvem  na sociedade contemporânea, assim os modelos de democracia podem ser divididos em dois tipos, como concebe Held (1987): democracia direta ou participativa (um sistema de tomada de decisão sobre assuntos públicos no qual os cidadãos estão diretamente envolvidos) ou a democracia liberal ou representativa – um sistema de governo que envolve oficiais eleitos que tomam para si a tarefa de representar os interesses e/ou pontos de vista dos cidadãos dentro do quadro de referência do governo da lei.


2.1 – Democracia  elitista ou representativa


Com base em Duriguetto (2007), temos que Max Weber  e  Joseph Schumpeter são os exemplos mais significativos no início do século XX para o debate sobre a democracia elitista ou representativa.


Inicialmente trazemos alguns traços do pensamento de Weber sobre democracia, o qual coloca que a crescente  racionalização da produção  capitalista e sua orientação para a eficiência transformaram  a democracia em uma forma de concentração do poder na mão de um corpo especializado de funcionários, e  que as massas seriam incapazes de realizar uma ação política por iniciativa própria. A partir do pensamento de Weber, temos que “[…] a participação política, como o ato do voto, não produz consciência política ou conduz as massas ao poder, mas revela apenas a identificação das massas com o carisma pessoal de um líder político” (DURIGUETTO, 2007, p.75). A partir do pensamento de Weber, a democracia seria um mecanismo de competição entre líderes políticos pelo voto do eleitor.


Um dos primeiros pensadores liberais a valorizar positivamente a expressão democracia foi Schumpeter (1984), que também  buscou responder teoricamente ao desafio da democracia,  mas  a posicionou   a  serviço da conservação da ordem existente. Para este autor a teoria democrática é dissociada de quaisquer  ideais ou fins, e sua definição do método democrático será que “ […] é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população” (SCHUMPETER, 1984, p. 336).


Nesta perspectiva, a competição pela liderança é a principal característica da democracia, e seus líderes precisam ser ativos, possuir iniciativa e decisão. Held (1987) quando se refere a Weber e Schumpeter, coloca que partilharam uma concepção de vida política na qual haveria pouco espaço para a participação democrática e o desenvolvimento coletivo, e onde qualquer espaço existente estava sujeito a ameaça de constante erosão por parte de poderosas forças sociais.


Um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, não importando o órgão de decisão. Em oposição a esse modelo, muitos autores dispostos a pensar  numa nova forma de controle democrático e qual deve ser a esfera de tomada de decisões, contribuíram para a reformulação das concepções sobre democracia e liberdade. 


2.2- Democracia direta ou participativa


Destacam-se como pensadores desta perspectiva os seguintes teóricos: Jean-Jacques Rousseau (2002), C.B. Macpherson (1978) e Carole Pateman (1992).  Rousseau fornece os alicerces da teoria da democracia participativa, e pode ser considerado um grande teórico da participação, ocupando lugar de destaque por seus estudos sobre democracia como participação direta do cidadão.


Em meados do século XVIII, Rousseau em O Contrato Social (1762), insiste na participação individual de cada cidadão na tomada de decisões políticas, e é neste pensador que se podem encontrar as hipóteses básicas a respeito da função da participação  no interior de um Estado democrático.


Rousseau (2002) defendeu que democracia significa participação de todos na formação do poder, a principal desigualdade deriva da propriedade privada e da divisão do trabalho, não havendo democracia efetiva onde existe excessiva desigualdade material entre os cidadãos.


A partir de Duriguetto (2007), aprendemos  que  para Rousseau o  fundamento da ordem e da legitimidade sócio-política  repousa na noção de vontade geral, entendida como a tradução do que há de comum nas vontades individuais, ou seja, o substrato coletivo das consciências, e não a simples concordância das vontades particulares, o que dá suporte à vontade geral é o interesse comum, a partir do qual a sociedade deve ser governada. 


As concepções de  Macpherson (1978) sobre democracia participativa, se fundamentam na apatia política da maioria, mostrando como ela não é casual, portanto é produzida  pelo próprio sistema político, quando há desigualdade social. A desigualdade social cria a apatia política. Para  Macpherson (1978), a liberdade e o desenvolvimento individual  só podem alcançar-se plenamente com a participação direta e contínua dos cidadãos na regulação da sociedade e do Estado. 


A teoria da democracia participativa, segundo Pateman (1992) é construída em torno da afirmação de que a existência  de instituições representativas a nível nacional não basta para a democracia, pois a participação do máximo de pessoas precisa ocorrer em todos os níveis para propiciar o desenvolvimento das qualidades psicológicas, portanto:


“[…] para que exista uma forma de governo democrática é necessária a existência de uma sociedade participativa, isto é, uma sociedade onde todos os sistemas políticos tenham sido democratizados e onde a socialização por meio da participação pode ocorrer em todas as áreas”. (PATEMAN, 1992, p.61). 


Analisando esta proposta de participação como um elemento para a democracia, somos levados a pensar que  a participação no processo de tomada de decisões nos assuntos próximos do cidadão, como  aqueles relativos a sua comunidade ou ao seu trabalho, pode capacitar os indivíduos  a   participar  dos processos de tomada de decisões em níveis mais elevados quando surge a oportunidade para tal, pois:


“O argumento da teoria da democracia participativa é que a participação nas áreas alternativas capacitaria o indivíduo a avaliar melhor a conexão entre as esferas públicas e privadas […].  No contexto de uma sociedade participativa o significado do voto para o indivíduo se modificaria: além de ser um indivíduo determinado, ele disporia de múltiplas oportunidades para se educar como cidadão público.” (PATEMAN, 1992, p.146).


Em suma, se é verdade que a dimensão de nossas sociedades exige que a forma principal de democracia seja a representativa, no entanto, para garantir a efetiva soberania popular, é perfeitamente possível e desejável a presença de formas de democracia direta, articuladas com a democracia representativa. Somente a democracia participativa permite que o conjunto dos cidadãos decida os rumos da política. Porém, há que se exaltar que no estudo sobre diferentes tipos de democracia não podemos perder de vista que não pode haver verdadeira democracia se não houver  igualdade de condições sociais e econômicas.


Ao se referir aos direitos de liberdade como condição para a democracia Bobbio (2006), assim se manifesta:


Ideais liberais e método democrático vieram gradualmente se combinando num modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade foram desde o início a condição necessária para a direta aplicação das regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro  que, em seguida, o desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento   para a defesa dos direitos de liberdade (BOBBIO, 2006.p.44).


Numa perspectiva liberal, a democracia prevê um conjunto de regras para estabelecer quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Neste processo deverá participar o maior número de membros do grupo, ou seja, a regra fundamental da democracia é a regra da maioria, as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão.


A democracia moderna, entendida em seu significado jurídico-institucional, vista como “regras do jogo”[2], tem sua vinculação com o liberalismo, neste sentido  o Estado se apresenta:


“O  Estado, no melhor estilo do liberalismo, é essencialmente um organismo de caráter jurídico, laico, neutro, mínimo, em condições de garantir as regras do jogo, de proteger as liberdades das partes e de favorecer a igualdade de oportunidades” (SEMERARO, 1999,p. 201).


Do ponto de vista ético, para uma sociedade democrática não bastam as “regras do jogo democrático”, direitos de liberdade, ou ainda decisões da maioria, mas a   democratização das relações econômicas e sociais da sociedade. O próprio Bobbio, conforme indica Semeraro, (1999) percebe este desafio quando considera não mais o número de pessoas que tem o direito de votar, mas o número de lugares diferentes em que se exerce o direito do voto.


Como contraponto da perspectiva de democracia como prolongamento do liberalismo (democracia como instituição jurídica e parlamentar), se apresenta a concepção gramsciana de democracia, que amadureceu no âmbito das lutas populares e adquire o significado de participação e exercício popular do poder. “Ainda que as liberdades individuais e as instituições democráticas sejam necessárias, para Gramsci não garantem por si só a existência da democracia” ( SEMERARO,1999,p.209).


Nas atuais democracias foram surgindo sujeitos políticos relevantes como associações, sindicatos, partidos, democracia aqui, é vista como pluralismo, com centralidade no indivíduo, sendo que o indivíduo não é para o Estado, mas o Estado é para o indivíduo. Este pluralismo, como lembra Semeraro (1999) se não for acompanhado pela participação popular pode ser o melhor e mais moderno instrumento para sacralizar ainda mais o privado, encobrir o corporativismo e alargar as desigualdades.


Gramsci, em seus estudos, aposta no máximo desenvolvimento da individualidade e da subjetividade, visa o despertar da consciência e a participação ativa, exige a responsabilidade e o espírito de iniciativa, não apenas dos setores privilegiados da sociedade mas de todos,  propõe uma leitura crítica sobre a política, uma inserção política voltada para o bom senso, com  mais participação  e elevação moral e intelectual das massas.


Por isso, a partir dos  princípios fundamentais ao seu sistema, o liberalismo nunca vai chegar a ultrapassar as fronteiras que abrem o acesso à democratização da sociedade. Gramsci, apontando outra perspectiva, universaliza a liberdade e a democracia e rompe com a lógica   individualista e mercantilista da visão liberal.


“Para Gramsci, essas distorções só podem ser superadas quando se conjugar a democracia como um sistema hegemônico realmente popular no qual se opere- seja na legislação seja na economia- a passagem (molecular) dos grupos dirigidos ao grupo dirigente. A realização dessa mudança revolucionária nunca vai ser possível no espaço circunscrito pelo liberalismo” ( SEMERARO, 1999, p.209).


Neste contexto o indivíduo é visto  por Gramsci, como um sujeito  articulado, componente de uma classe que, ao se fazer portadora de nova concepção de mundo e de sociedade, gera rupturas com a velha concepção do poder e poderá construir uma sociedade de homens realmente livres.


Ao se manifestar sobre democracia  Atílio Borón (1995) coloca que “a crença, teoricamente errônea e historicamente falsa de que a democracia é um projeto   que se esgota apenas na normalização das instituições políticas”. Democracia não é apenas a institucionalização das “regras do jogo” de uma ordem política, mas sim  “[…] democracia é a coagulação de um determinado resultado da luta de classes”  (BORÓN, 1995, p. 64- 65).


Desse modo, democracia não é vista apenas como método ou forma institucional, mas sim como democracia substantiva, democracia que advém das massas, com vistas a superação das desigualdades, com um novo projeto societário. Nesse sentido Borón propõe uma fórmula: “Democracia: método+substância” (BORÓN, 1995, p. 69).   Podemos aludir a essa fórmula que o método é expressão de democracia representativa e a substância é a expressão da democracia direta ou participativa.


A articulação destas duas formas de democracia (direta e representativa), e a concepção de público, (que  não se limita a esfera governamental,  ampliando-se  aos segmentos da sociedade civil  que  podem gestionar  a vida social), serão aspectos  que iremos desenvolver na sequência.


­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­3- Relação complementar entre Democracia Representativa e Democracia  Participativa


Se até então, a democracia participativa era vista como contrária à democracia representativa, atualmente ela vem associada ao  diálogo, capaz de gerar consensos para a tomada de decisões, tentando a superação do antagonismo entre representação e participação. Conforme propõe Nogueira (2004):


“[…] A tendência atual não mais pensa a participação como o reverso da representação ou como veículo privilegiado da  pressão popular, mas sim como expressão de práticas sociais democráticas interessadas em superar os gargalos da burocracia pública e em alcançar soluções positivas para os diferentes problemas comunitários” (NOGUEIRA, 2004, p. 121).


O debate contemporâneo sobre a democracia participativa emerge como resposta às características elitistas e excludentes das democracias eleitorais, como coloca Dagnino, Olvera  e Panfichi (2006). A teoria democrática convencional, baseada na democracia representativa, não admite o conflito social e limita o conceito de política à luta pelo poder através de eleições. A democracia participativa tem outra visão, amplia o conceito de política mediante a participação cidadã e a deliberação nos espaços públicos, sendo pensada a partir de  “[…]  uma noção de democracia como um sistema articulado de instâncias de intervenção dos cidadãos nas  decisões  que lhes concernem e na vigilância do exercício do governo” (DAGNINO, OLVERA  e PANFICHI, 2006, p. 17).


As experiências políticas que assumiram o nome de democracia participativa se opõem ou buscam complementar as formas de democracia representativa, neste sentido Sader (2002),  coloca  que estas  são as experiências de políticas de afirmação do Estado de direito, como responsabilidade social de empresas, participação de mulheres na luta política, e outras formas de afirmação de direitos sociais. Nas  palavras do autor:


“O mais significativo dessas experiências é a tentativa de levar a cabo uma reforma radical do Estado, fazendo da participação não apenas um elemento de maior transparência governamental, mas alavanca para a construção de um tipo diferente de Estado, que suponha uma outra forma de relação entre governantes e governados e, portanto, de cidadania e de democracia” (SADER, 2002,p. 668-669).


Novas formas de pensar o processo democrático foram surgindo, não como forma antagônica à democracia representativa, mas principalmente como forma complementar, visualizando um desenho democrático fundamentado na participação da sociedade[3], na construção dos direitos e na implementação da cidadania, assim:


“[…] surgem também novas formas de pensar a agência na luta pela democracia, a estrutura ou desenho de um regime democrático e os tipos de direitos e de cidadania necessários a um projeto democrático que não somente pede o cumprimento das promessas do Estado democrático de direito, mas que propõe  mudanças radicais na forma de pensar e exercer a política, isto é, o poder, a representação e a participação da sociedade “(DAGNINO, OLVERA  e PANFICHI, 2006, p. 21).


O conceito de participação[4], para Teixeira (2001), supõe uma relação em que os atores fazem valer seus interesses, aspirações e valores, construindo suas identidades e afirmando-se como sujeitos de direitos e obrigações, a partir dos recursos disponíveis nos espaços públicos. Consequentemente, a participação deve ser entendida como processo, a partir da interação entre os diversos sujeitos.


A articulação entre mecanismos de representação, prevê uma  nova perspectiva de gestão democrática baseada na inserção dos cidadãos nas questões de interesse público. Segundo Nogueira (2004), estas novas formas de gestão “promovem um novo vínculo entre representante e representado, tanto no sentido de que alarga e reformula a representação quanto no sentido de que dá novo valor e novo espaço à democracia participativa” (NOGUEIRA, 2004. p.146). 


A participação que se dedica a compartilhar decisões governamentais, a garantir direitos, a interferir na elaboração orçamentária ou a fornecer sustentabilidade para certas diretrizes é a verdadeira participação democrática, devendo mostrar-se capacitada para se responsabilizar  por seus atos e decisões, promovendo um novo vínculo entre o representante e o representado, assim: “A gestão participativa deve ser capaz de fundir participação com decisão, execução, avaliação e controle, fazendo com que suas operações básicas fiquem articuladas, alimentando-se umas às outras” (NOGUEIRA, 2004,p. 151).  


Nesta mesma direção, lembramos da concepção de participação de Ammann[5] (1978) também discute a participação e concebe-a na qualidade de um processo dialético que depende das relações sociais de produção e das orientações políticas e ideológicas do Estado, assim a verdadeira participação  democrática (expressão utilizada por Nogueira)  também tem vínculo com a medida  em que as camadas populares  tomam parte na produção e na gestão da sociedade a que pertencem.  Neste sentido Ammann propõe a seguinte noção de participação: “Participação social é o processo mediante o qual as diversas camadas sociais tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente determinada” (AMMANN, 1978, p. 61).


Somado a essa articulação (produção, gestão e usufruto), um dos  principais requisitos para o sucesso da gestão participativa, como coloca Nogueira (2004), é que a comunidade tenha uma cultura ético-política forte e em constante revitalização. Isto depende de uma educação para a cidadania, é uma questão de consciência política. É impossível imaginar processos deliberativos ampliados (democráticos e participativos) sem cidadãos em condições de deliberar em esferas dominantemente argumentativas, nesta direção apontamos que:


“[…] participar é também fazer-se presente no debate público democrático, no qual os pontos de vista se explicitam e se formatam os consensos fundamentais, no qual se constituem as opiniões, armam-se as lutas pela hegemonia e delineia-se uma idéia de ordem pública e comunidade política. A participação não pode ser dissociada nem da educação para a cidadania, nem da formação de uma cultura política”. (NOGUEIRA, 2004,p. 153).   


Semeraro (1999) ao manifestar-se sobre os escritos de Gramsci coloca que a hegemonia[6] das classes trabalhadoras “[…] é uma relação pedagógica entre grupos  que querem educar a si próprios para a arte do governo […]” ( SEMERARO, 1999, p.81). No processo de formação da hegemonia deve-se instaurar  relações pedagógicas procurando chegar às transformações econômicas e sociais, fundamentais   para  a construção de uma verdadeira democracia.   


A esfera da cultura, enquanto espaço de preparação e elevação da consciência crítica das massas é para Gramsci, como coloca Duriguetto (2007), um fator decisivo no processo de criação desta nova sociabilidade/democracia.  A hegemonia, como direção intelectual e moral, incorpora uma dimensão educativa na medida em que desencadeia um processo que aspira construir sujeitos ativos que buscam formas para romper com a submissão e subalternidade, preparando-os para a participação na construção do consenso e para a superação da relação entre governantes e governados.


O consenso nasce da participação, daí a importância, para Gramsci, dos intelectuais que exercem “[…] uma função de organização, direção, educação, seja no terreno da produção, seja no da cultura, da política, da administração […] é o portador da função hegemônica, o elaborador e difusor das ideologias” (DURIGUETTO, 2007, p. 64).


A construção do consenso, no pensamento gramsciano, é a busca das aspirações e  das  demandas   que  estão  dispersas  nas  classes  subalternas,  então  consenso: “Significa saber convencer, persuadir, ganhar adesão pelo envolvimento ativo, propositivo e não pela manipulação e passividade” (DURIGUETTO, 2007, p. 63).


A  participação da sociedade nos processos de decisão assume um papel central para a democratização. A participação é então concebida fundamentalmente como o compartilhamento do poder decisório do Estado em relação às questões relativas ao interesse público […]” (DAGNINO, OLVERA  e PANFICHI, 2006, p. 49). Estas são  formas não somente de bons governos, mas também de governos que construam “culturas emancipatórias e cidadãos  civicamente superiores “(NOGUEIRA, 2004,p. 159).


Para tanto, existe a necessidade de uma participação  efetiva dos sujeitos, com vistas a transformação da sociedade, como coloca Luiz (2010) “[…] uma participação na qual os sujeitos tornam-se protagonistas de sua história e a partir dele desenvolvem autoconsciência crítica. Chegando a este nível, a participação estará associada à ampliação de direitos e à cidadania” (LUIZ, 2010, p. 67). A participação que se almeja  advém  de um compromisso com a cidadania, e poderá ser utilizada pelos sujeitos como  forma para fiscalizar as atividades de seus representantes, constituindo-se como um espaço de construção de um pensamento social crítico.


Esta participação pode se dar através da sociedade civil empreendida como arena de convencimento, de agregação, de superação de interesses corporativos e particularistas, de articulação das diferentes lutas parciais e cotidianas, que podem ser universalizadas em direção a construção da vontade coletiva, Simionatto (2010).


São desafios a serem vencidos, o enfrentamento a esses desafios poderá ocorrer no ambiente da esfera pública, pois  a concepção de público como espaço de trocas, de consenso e também de conflitos torna este ambiente fértil para a emergência   deste enfrentamento.


A partir da constatação dos limites da democracia representativa, historicamente vai se construindo o projeto democrático-participativo, constituído no aprofundamento da democracia a partir da participação política, como forma privilegiada das relações entre Estado e  sociedade.


Convivemos hoje com diferentes concepções de sociedade civil, estruturados a partir de distintos programas de ação e influências teóricas. Inicialmente, tomamos como parâmetro, a noção gramsciana de sociedade civil. “[…] em Gramsci, sociedade civil é um conceito, complexo e sofisticado, com o qual se pode entender a realidade contemporânea. Mas é também um projeto político, abrangente e igualmente sofisticado, com o qual se pode tentar transformar a realidade” (NOGUEIRA, 2003).


De Duriguetto (2007), aprendemos que a concepção de sociedade civil em Gramsci pertence a superestrutura, diferente das formulações de Marx, que identifica a sociedade civil com infra-estrutura econômica. “A sociedade civil expressa a articulação dos interesses das classes pela inserção econômica, mas também pelas complexas mediações ideopolíticas e sócio-institucionais” (DURIGUETTO, 2007, p. 54). Em Gramsci, sociedade civil é a esfera em que as classes organizam e defendem seus interesses e disputam a hegemonia.


A hegemonia como apresentada por Gramsci, se refere tanto ao processo em que uma classe torna-se dirigente quanto à direção que uma classe no poder exerce sobre o conjunto da sociedade, é sua maior contribuição para a teoria da democracia, como coloca Duriguetto (2007). Ou seja, “[…] a transição para o socialismo se efetivaria por meio de um processo progressivo de democratização e conquista de espaços políticos e de participação popular crítica e organizada nos espaços da sociedade civil” (DURIGUETTO, 2007, p. 61).


A mesma autora, quando se refere ao pensamento de Gramsci, coloca que este  denomina de sociedade política o conjunto de aparelhos através dos quais a classe dominante impõe coercitivamente a sua dominação. As duas esferas- sociedade civil e sociedade política- formam o Estado. Assim:


“Enquanto na sociedade política as classes exercem seu poder e sua dominação  por uma ditadura através dos aparelhos coercitivos de Estado, na sociedade civil esse exercício do poder ocorre por intermédio de uma relação de hegemonia que é construída pela direção política e pelo consenso” (DURIGUETTO, 2007, p. 56).


No projeto democrático participativo encontramos a concepção de sociedade civil como um elemento central, é dentro desta que se daria o debate entre os vários interesses, e a construção dos consensos que possam configurar o interesse público.


Paoli e Telles (2000) discutem a possibilidade de uma “[…] sociedade civil emergente construída no solo conflituoso da vida social, através de práticas de representação e negociação de atores coletivos reconhecidos na legitimidade de seus interesses e dos direitos reivindicados” (PAOLI e TELLES, 2000, p. 104). Essa é uma possibilidade que existe, pois as lutas sociais nos anos de 1980 construíram um espaço público no qual se difundiu “uma consciência do direito a ter direitos […]  em que a cidadania é buscada como luta e conquista  e a reivindicação de direitos interpela a sociedade enquanto exigência de uma negociação possível” (PAOLI e TELLES, 2000, p. 105). A sociedade civil abre um novo caminho, um caminho para a construção do espaço da esfera pública pautada em preceitos democráticos e ampliação da cidadania e de direitos.


Neste sentido não podemos nos deixar levar pela ideia  de esfera pública como um espaço de cooperação, abstraindo-se  das relações entre o Estado e a sociedade os conflitos de classe e os projetos societários em disputa. A ampliação  da democracia e da cidadania através da  conquista de direitos, a partir da participação da sociedade civil não poderá ser pensada  como um espaço para escamotear os conflitos, as contradições e as desigualdades sociais.


Portanto, pensar em democracia, em sociedade civil e em esfera pública não nos furta de pensá-las repletas de elementos oriundos das contradições das relações econômicas[7] que determinam as desigualdades sociais. Bem sabemos que essas três categorias também são compostas por determinantes ideológicos, políticos e culturais, associados às relações econômicas.


A construção do espaço público é considerada, por Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) como possibilidade de ocorrer a participação, onde a sociedade civil possa encontrar terreno  para a explicitação dos conflitos, discussão, articulação e negociação ao redor das questões públicas, ou seja “[…] de tornar manifesto o que está oculto, de dizer em público o que havia permanecido privado, de dar a conhecer aos outros as opiniões, valores e princípios” (DAGNINO, OLVERA  e PANFICHI, 2006, p. 23).


Para estes autores o debate sobre o espaço público no Brasil  foi defendido pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, e ganhou espaço na Constituição Federal de 1988  com a perspectiva do projeto participativo. Os espaços públicos seriam aquelas instâncias deliberativas que permitem o reconhecimento e dão voz a novos atores e temas, não monopolizados pelo Estado, mas heterogêneos, refletindo a pluralidade social e política.


Outros importantes autores introduzem a discussão da esfera pública neste contexto, Habermas para analisar a temática da democracia, também desenvolve a noção  de esfera pública, sendo que Duriguetto (2007), em referência as contribuições de Habermas aponta que: “Sua preocupação central é a de criar uma nova perspectiva para a ampliação de arenas sociais participativas e solidárias face a constatação da diminuição de espaços societais para a prática democrática ao longo do século XX” (DURIGUETTO, 2007, p. 107).


Assim, Habermas introduz uma nova concepção para se pensar a prática democrática, a partir da espontaneidade e solidariedade. Esta nova esfera possui a função de atuar como sistema intermediário entre os interesses privados presentes na sociedade civil e o poder político estatal. Ao contrário da concepção marxista sobre a natureza da política, Habermas analisa esta nova esfera como desvinculada de qualquer expressão direta dos interesses classistas. Para Habermas, “[…] a democracia supõe uma dimensão comunicativa e interativa, na qual os atores sociais participam de um debate crítico-racional acerca da organização normativa e política da sociedade”.  (HABERMAS, apud DURIGUETTO, 2007, p. 109). 


Segundo Habermas (1997), a esfera pública não pode ser entendida como uma instituição ou organização, nem como um sistema, constitui-se principalmente, como uma “estrutura comunicacional” (HABERMAS, 1997, p. 92), a qual tem a ver com o espaço social  gerado no agir  comunicativo, sem o viés da luta de classes. Este espaço movimenta-se num espaço público, constituído através da linguagem, aberto para o diálogo. Ao conceituar esfera pública Habermas se pronuncia:


“A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem  em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos […] a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.“(HABERMAS, 1997, p.92).


Temos assim concebida a ideia de que a partir da discussão e comunicação  haverá a obtenção de um possível consenso. Neste sentido, a democracia  supõe a relação entre os interesses da sociedade civil e o poder político estatal  através da  comunicação.


A categoria esfera pública nesta perspectiva  tem como característica o âmbito do discurso, da discussão, pressupondo a acesso aberto e a participação paritária de todos. Em relação a este aspecto Becker (2010) aponta as colocações de Fraser (1996), que supõe que esta concepção de esfera pública não evidencia as desigualdades de condições, tanto sociais e econômicas, que ocorrem nesta instância. Estas desigualdades  não propiciam uma participação paritária, pois os sujeitos não encontram-se nas mesmas condições, e faz-se necessário questionar como o consenso poderá ser obtido numa esfera em que não há a igualdade de condições, como propõe  Habermas. 


Esta concepção de esfera pública, influenciada principalmente pelo pensamento de Habermas, afasta-se da centralidade de classe  presente nas concepções marxistas de sociedade civil, e concebem esta última como uma esfera autônoma em relação ao Estado e à economia ( Simionatto, 2010, Duriguetto, 2007). Nesta perspectiva abstrai-se da sociedade civil as possibilidades de disputa pelo poder, a construção de contra-hegemonias  e de novos Estados, aproximando-se das formulações liberais em que a sociedade civil é vista como uma instância autônoma, com neutralidade de classe, neste sentido lembramos das colocações de Simionatto (2010):


“É notória, no entanto, a ruptura dos teóricos da sociedade civil liberal-democrática com conceitos e categorias importantes da tradição marxista, tais como: luta de classes, classes sociais, contradição capital/trabalho, totalidade, relação entre estrutura e superestrutura, substituídas por argumentações subjetivas relacionadas à dinâmica do “mundo da vida” em que boa medida acabaram por esvaziar a compreensão da sociedade civil como arena de luta política para além dos direitos de cidadania” (SIMIONATTO, 2010, p.38).


 A partir das distintas concepções de esfera pública, sociedade civil e democracia, percebemos que é um campo pleno de contradições e de diferentes perspectivas. Porém,  acreditamos que não é negando estas contradições, ou às secundarizando que vamos fazer avançar perspectivas contra hegemônicas, mas sim, estar inserido no debate e na prática, exercitando  e construindo novas possibilidades.


Estas novas práticas participativas se reportam a construção da esfera pública como um espaço não estatal e democrático. Porém, há que se ressaltar que esta esfera pública é um espaço de contradição entre o Estado e a sociedade civil, como exemplo destes novos canais, podemos colocar os conselhos de gestores de políticas públicas, que nesta perspectiva, somente garantirão o aprofundamento da democracia se, em suas interlocuções, forem fomentados os interesses coletivos das diversas classes sociais, que transformados em direitos contribuirão no enfrentamento das desigualdades sociais.


Tem sido bastante discutido a importância das décadas de 1970 e 1980 no Brasil,  quando reemergem os movimentos sociais[8], que se organizaram como espaços de ação reivindicativa. Em  referência a estes movimentos, Carvalho (1998)  coloca que esses sujeitos sociais constroem uma cultura participativa e autônoma, constituindo uma teia de organizações populares que se mobilizam em torno da conquista, da garantia e da ampliação de direitos, ampliando sua agenda para a luta contra as mais diversas discriminações.


Os movimentos sociais, sindicatos, intelectuais, ONGs e outras organizações da sociedade civil, bem como partidos políticos de esquerda contribuíram para a formulação do aprofundamento democrático, por meio da extensão da participação. Esta concepção de participação:


“[…] se concretizou institucionalmente na Constituição de 1988 que, ao consagrar o princípio de participação no exercício do poder no seu artigo 1º, abriu caminho para a implementação de instâncias participativas de vários tipos, tais como os Conselhos Gestores e os Orçamentos Participativos”  (DAGNINO, OLVERA  e PANFICHI, 2006, p. 49).


A idéia de participação no campo da gestão pública, avançou de forma significativa decorrente do avanço da democratização  e valorização da democracia participativa. Ocorreu um re-significado para a idéia de democracia o qual preconizava:


“[…] que é possível construir um novo projeto democrático baseado nos princípios da extensão e generalização do exercício dos direitos, da abertura de espaços públicos com capacidades decisórias, da participação política da sociedade e do reconhecimento e inclusão das diferenças “(DAGNINO, OLVERA  e PANFICHI, 2006, p. 14).


A questão da participação social esteve presente no processo de transição do regime autoritário ao democrático no Brasil, como aponta o Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática (1999), neste período houve várias experiências participativas nas gestões públicas, que incluíram setores vulnerabilizados nas discussões e  deliberações.


 Uma importante reivindicação de participação apresentada ao Constituinte, era a “necessidade de desprivatizar o Estado” (IDEIAS,1999, p. 78), retirando da elite o acesso exclusivo aos espaços de produção das decisões políticas, ampliando a participação e garantindo instrumentos que possibilitassem um maior controle social sobre as ações estatais. 


A Constituição Federal de 1988  ampliou os diretos de cidadania e introduziu  novos modelos de gestão e organização nas áreas sociais, através da garantia constitucional da participação da sociedade civil na formulação das políticas e no controle das ações públicas em diferentes níveis.  De acordo com a manifestação de  Duriguetto a este respeito, temos  que  […] passa-se a ter, como foco de convergência, a defesa de que uma nova estratégia para a democratização estaria na criação e ocupação, pela sociedade civil, de novos espaços públicos de debate, negociação e deliberação. (DURIGUETTO,2007,p.168).


Entre as várias formas organizacionais[9] que compõe esse cenário estão os conselhos gestores de políticas públicas, vistos como uma das novas configurações da relação entre a democracia representativa e a democracia participativa, nos quais há mecanismos de participação direta de segmentos da sociedade civil, através da eleição e/ou representação.


Esta perspectiva constitui um avanço na prática da democracia e se apresenta como uma expressão contemporânea de democracia, pois permite que segmentos da sociedade civil exerçam uma forma de controle sobre o poder executivo. Os conselhos gestores indicam a participação de segmentos da sociedade civil nas políticas públicas que podem  decidir, controlar, fiscalizar e  promover a introdução de formas de democracia direta junto à democracia representativa já existente,  não substituindo esta forma de  democracia, mas sim articulando uma com a outra.


Esta nova relação entre o Estado e a sociedade civil através da dinâmica conselhista e participativa, é resultado  da “[…] ampliação dos canais institucionais de participação das organizações da  sociedade civil nos espaços de discussões das políticas públicas”[…] (DURIGUETTO,2007,p.196), possibilidade aberta  pela Constituição Federal de 1988.


Os conselhos gestores são um exemplo desta nova institucionalidade, supondo um confronto (democrático) entre diferentes posições  político-ideológicas e projetos sociais, como lembra Gohn (2003). Esta construção da participação democrática, em nome da cidadania, é um processo, e não um conjunto de regras como vimos em Borón (1995). Como processo, demanda tempo e é construída por etapas de aproximações sucessivas em que o erro e o acerto têm a mesma importância para o processo educativo. Desenhar estes espaços participativos respeitando a diversidade, objetivando um espaço plural, aberto às identidades de cada grupo, organização ou movimento é um desafio, mas é neste desafio que se encontra o aprofundamento da democracia, neste sentido:


“Heterogeneidade na composição, respeito à diferença e capacidade de construir adesões em torno de projetos específicos parecem ser condições  necessárias tanto para dotar de eficácia as ações dos conselhos como para ampliar seu potencial democratizante. É do confronte argumentativo e da tentativa de diálogo entre grupos que defendem interesses distintos, e por vezes claramente antagônicos, que o conselho extrai a sua força” (TATAGIBA, 2002, p. 62).


Os conselhos gestores apontam para a possibilidade de uma gestão participativa, se na sua composição estiverem inseridos lideranças e grupos qualificados e articulados à propostas e projetos sociais progressistas, caso contrário, o papel dos conselhos será compensatório e integrativo, apenas como instrumentos ou ferramentas, nos reportamos ao conjunto de regras apontado por  Bobbio (2000),  para operacionalizar objetivos predefinidos.


O espaço dos conselhos são espaços participativos importantes para o aprofundamento da democracia. Como expressão contemporânea, estes espaços  somente irão interferir na gestão e na organização das políticas sociais se eles efetivamente funcionarem, para tanto, necessitam ser ocupados com qualidade. Esta qualidade também depende da capacitação e da densidade política dos sujeitos envolvidos, através da formação política daqueles que ocupam estes espaços é que ocorrerá o aprofundamento democrático.


4- Considerações Finais


Democracia é um processo conflituoso de conquistas e derrotas tendo em vista a garantia de direitos nas mais diversas instâncias da vida social. Numa perspectiva liberal, a democracia prevê um conjunto de regras para estabelecer quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Neste processo deverá participar o maior número de membros do grupo, ou seja, a regra fundamental da democracia é a regra da maioria.


Como contraponto desta perspectiva de democracia  se apresenta a concepção gramsciana de democracia, que amadureceu no âmbito das lutas populares e adquire o significado de participação e exercício popular do poder.  Democracia não é apenas a institucionalização das regras do jogo de uma ordem política, mas sim  é a coagulação de um determinado resultado da luta de classes, Borón (1995). Não é vista apenas como método ou forma institucional, mas sim como democracia substantiva, democracia que advém das massas, com vistas a superação das desigualdades, com um novo projeto societário. Nesse sentido Borón propõe uma fórmula: “Democracia: método+substância” (BORÓN, 1995, p. 69).  


A partir da constatação dos limites da democracia representativa, vai se construindo o projeto democrático-participativo constituído no aprofundamento da democracia a partir da participação política, como forma privilegiada das relações entre Estado e  sociedade.


O principal requisito para o sucesso da participação, como coloca Nogueira (2004), é que a comunidade tenha uma cultura ético-política forte e em constante revitalização. Isto depende de uma educação para a cidadania,  uma questão de consciência política. 


Surgem então, novas formas de pensar a democracia, através da incorporação da participação da sociedade, com a concepção de um cidadão portador de direitos, propondo mudanças na forma de pensar e exercer a política, a sociedade civil passa a ser vista como protagonista do processo de consolidação da democracia, abrindo um novo caminho.


No projeto democrático participativo encontramos a concepção de sociedade civil como um elemento central, neste caso, conforme coloca Duriguetto (2007)  a partir de Gramsci, sociedade civil é a esfera em que as classes organizam e defendem seus interesses e disputam a hegemonia, nestes espaços não-governamentais é que os interesses coletivos são transformados em direitos, contribuindo assim, para o aprofundamento da democracia. 


No Brasil, a  Constituição Federal de 1988,  ampliou os diretos de cidadania e introduziu  novos modelos de gestão e organização nas áreas sociais, através da garantia constitucional da participação da sociedade civil na formulação das políticas e no controle das ações públicas em diferentes níveis. 


Os conselhos gestores de políticas públicas constituem-se uma forma de gestão das políticas sociais embasada numa concepção de democracia participativa, permitindo um tipo de participação de segmentos da sociedade civil que não se esgota no processo eleitoral.Participar da gestão passa então a significar também, participar do governo da sociedade, disputar espaço no Estado, nos espaços de definição das políticas públicas, significa questionar o monopólio do Estado como gestor da coisa pública.


A prática democrática no interior dos conselhos gestores, vem contrapor as ideias de  Weber e Schumpeter que tendem a um conceito bastante restrito de democracia, acreditando que os únicos participantes do processo democrático são os membros das elites políticas.


Não podemos deixar de enfatizar, que para que esta participação democrática de efetive é necessário  que a comunidade tenha uma cultura ético-política, conforme leciona Nogueira (2004) e isto depende de uma educação para a cidadania. Lembramos de Pateman (1992), e levantamos o questionamento: serão os conselhos o espaço que proporciona a aquisição de prática de habilidades e procedimentos democráticos?


Entendemos que  este assunto é complexo e dotado de amplitude,  a ideia  foi pontuar alguns aspectos  para futuros  aprofundamentos, nos quais o tema poderá e deverá ter novas contribuições no sentido de que a sua natureza é constantemente recriada pela dinâmica social e política na qual esta inserida.


 


Referências bibliográficas:

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Notas:

[1]  “Concepção significa noção, ideia, conceito, compreensão , modo de ver, ponto de vista, opinião, conceito ( Dicionário Aurélio, 1995, p.166).

[2] Bobbio após ter definido a democracia como conjunto de regras  que consentem a participação da maior parte dos cidadãos nas decisões que interessam à coletividade toda, apresenta as seguintes regras: a) o direito de tosos os cidadãos ao voto; b) o peso idêntico de qualquer voto; c) a liberdade de votar e de formar grupos políticos organizados; d) a possibilidade real de expressar alternativas diversas; e) o princípio da maioria   numérica; f) o respeito das minorias. (SEMERARO, 1999, p.201)

[3] Segundo Sader (2002) a qualidade da democracia seria medida pelo nível de participação política, enquanto o grau de legitimidade dos governos seria dado pela capacidade de satisfazer as demandas populares,  temos assim configurada a ideia de que a democracia está articulada com a participação popular.

[4] Teixeira (2001) ensina que “independentemente das formas de que se pode revestir, a participação significa “fazer parte”, “tomar parte”, “ser parte” de um ato ou processo, de uma atividade pública, de ações coletivas” (TEIXEIRA, 2001, p.27).

[5] Neste sentido ver  AMMANN, S.B. Participação Social. 2º Ed. São Paulo: Cortez e Moraes, 1978. Neste trabalho a autora reflete teoricamente o problema da participação social estabelecendo um diálogo com a sociologia, tendo implícito em seu estudo sobre participação social o conceito de democracia.

[6] Segundo Semeraro(1999) para Gramsci a concepção de hegemonia supõe diferenças, multiplicidade, conflito e interdependência entre partes sociais. De modo que o grupo que se propõe a ser hegemônico deve demonstrar as suas capacidades de persuasão  e de direção, muito mais do que a força e a dominação. A hegemonia  tem intima ligação com a democracia, entendida como forma de busca pública da verdade, como consenso obtido através de uma escola permanente de liberdade e de autonomia, como construção de uma racionalidade coletiva, animada pelas paixões  e pelos afetos de indivíduos conscientes de suas diversidades. A hegemonia […] é acima de tudo a permanente movimentação de iniciativas que elevam a capacidade subjetiva e a participação dos indivíduos (SEMERARO, 1999,p.85).

[7] Neste contexto nos parece indispensável retomar  a tendência teórica  presente na concepção marxista de sociedade civil, diretamente advinda das relações econômicas, da produção e da reprodução das condições materiais  como determinantes da estrutura da sociedade, assim: “A sociedade civil compreende todo o conjunto das relações materiais dos indivíduos numa determinada etapa do desenvolvimento das forças produtivas. Compreende toda a vida comercial e industrial de uma etapa, e nesta mesma medida transcende o Estado e a nação” […] ( MARX E ENGELS, 2005, p.111).

[8] “Os movimentos sociais constituem-se como um dos sujeitos sociopolíticos presentes no associativismo no Brasil porque eles foram, e ainda são, as bases de muitas ações coletivas  no Brasil a partir de 1970. […] Sabemos que os movimentos sociais tem sido considerados […] como elementos e fontes de inovações  e mudanças sociais” (GOHN, 2010, p.40-41).

[9] Formas organizacionais – são diferentes movimentos sociais, fóruns, conselhos nas suas várias concepções, que através de suas práticas podem contribuir na construção de novas culturas, diferentemente da cultura hegemônica.

Informações Sobre os Autores

Carla Buhrer Salles Rosa

Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa e Assistente Social da Secretaria Municipal de Assistência Social de Ponta Grossa.

Danuta E. Cantóia Luiz

Professora doutora do curso de serviço social e do mestrado em Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa.


Equipe Âmbito Jurídico

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