Resumo: O presente artigo visa esboçar um panorama sobre os estudos de culpabilidade da pessoa jurídica, pautando-se em noções metodológicas delineadas no contexto de quebras de paradigmas, bem como nos fundamentos teóricos já suscitados sobre o tema. Desenvolve-se o prospecto buscando apresentar um arcabouço teórico que permita ao observador acompanhar a linha de reorganização de conceitos e formação de novas acepções.
Palavras Chave: Culpabilidade; Pessoa Jurídica; Paradigma; Responsabilidade Penal da Coporação
Abstract: The present article aims to sketch an overview of studies about culpability of the corporation, based on concepts outlined in the context of breaks paradigms, besides theoretical foundations that have already been raised on the subject. It develops a prospectus seeking to present a theoretical framework that allows the observer to monitor the line of concepts’ reorganization and training of new meanings.
Keywords: Culpability; Corporation; Paradigm; Corporation Criminal Liability
Sumário: Introdução; 1. Microrrevoluções na Seara da Pesquisa Jurídica; 2. A Metodologia na Construção de Culpabilidade(s); 2.1 O Rearranjo Conceitual da Culpabilidade pela Via Desconstrucinista; 2.2 Fenomenologia – A Busca pelo Eidos no Conceito de Culpabilidade; 2.2.1 Da Fenomenologia da Culpabilidade à Pessoa Jurídica Culpável; 3 Alguns Esboços sobre Culpabilidade da Pessoa Jurídica; Conclusão; Referências.
Introdução
Quando o legislador constitucional abriu caminho para a imputação penal à pessoa jurídica, os problemas que envolviam a ideia de responsabilidade penal da corporação pareciam ser sanáveis por meio da tese de dupla imputação penal – a denúncia ofertada contra a pessoa jurídica em conjunto com a pessoa física possibilitaria a aferição de culpabilidade, requisito indispensável e norteador da imputação penal de acordo com parâmetros constitucionais[1].
Contudo, quase um quarto de século após o texto constitucional, a tese de dupla imputação resulta, muitas vezes, na irresponsabilização corporativa, diante da grande dificuldade de identificar-se o liame entre conduta e resultado lesivo dentro de uma macroestrutura. Com a exclusão das pessoas físicas do polo passivo, a denúncia resta ineficaz quanto à pessoa jurídica, tornando-a praticamente inalcançável.
Com base no estudo dos mais diversos conceitos de culpabilidade e na aferição de noções acerca da constituição da pessoa jurídica, este prospecto busca avaliar a possibilidade de construção de um novo paradigma de culpabilidade que se volte à nova figura delitiva pós-global.
Num primeiro momento, buscar-se-á caracterizar a metodologia das quebras de paradigma, estabelecendo-se um eixo de seguimento. A seguir, o trabalho enveredará pela análise de conceitos e elementos de culpabilidade através dos quais é possível buscar um referencial para a nova construção. Serão expostos modelos de culpabilidade da pessoa jurídica já construídos até a data presente, com a descrição de seus caracteres mais marcantes e seus pontos de adaptabilidade. Por fim, analisar-se-á a possibilidade de verificação da emanação da pessoa jurídica como própria da figura empresarial, tendo por conceitos auxiliares algumas noções extrajurídicas sobre a empresa.
1. Microrrevoluções na seara da pesquisa jurídica
O direito desenvolve-se, aprimora-se e persegue novos modos de maneio das contendas inerentes às relações sociais, buscando, desde seus primórdios, a dissolução ou minoração de conflitos. Nesta persecução, utiliza-se de uma perspectiva crítica, firmando e revolvendo teses e práticas que podem servir de sustentáculos à resolução das altercações com as quais se depara de forma contínua.
Por vincular-se à ininterrupta marcha conceitual das sociedades em que se conforma, o direito – gênero – é essencialmente influenciado pelas revoluções do pensamento científico- filosófico. Contiguamente maturam-se teses e indagações sobre a própria “filosofia da pesquisa”, de modo que se possa aventar ideias menos balizadas por fundamentos essencialmente políticos, se é que se poderia falar em tal isenção.[2]
Buscam-se pensamentos bem embasados e menos influenciáveis diante da formação cultural preconcebida, já que, se disposto à mercê do status quo, restaria ao direito e a qualquer esfera de pesquisa a mera reprodução científica, sem avanços. Nesta senda, uma ciência que ponha em primazia a essência dos objetos analisados pode superar o risco de ser completamente maculada pelo status quo ante.
Não obstante, a cultura e preconcepção dos nichos já formados torna a pesquisa científica usualmente pré-determinada por acepções sociais tão densamente entranhadas que se verifica, muitas vezes, um looping[3] investigativo. Vale dizer, verificam-se como resultado das análises em averiguação as concepções já absorvidas pelo pesquisador e seu seio social. Parece ser o que afirma Balkin[4]:
“Legal doctrine and ideology, in my view, cannot be spoken of as fully distinct forms of social constraint; rather, they partially constitute each other and operate together to generate the internal experience of being subject to a system of law. It is a commonplace that legal doctrine reflects our ideology. Nevertheless, I wish to emphasize instead how ideology makes legal doctrine intelligible to the persons who work with it, producing the subjective experience of knowing what the law requires of us, the internal urge to confrom to legal norms as we understand them, and the inescapable sense that some legal arguments are, in fact, better than others. Ideology, in other words, does not merely produce the content of legal doctrine-it makes the content of legal doctrine intelligible to us and binding upon us”.
A necessidade de desentranhamento dos valores preconcebidos, que não se confunde com a exclusão dos mesmos, é sacramental na busca de avanços do pensamento científico-filosófico. Se, de um lado, pretender excluir todo o material já sedimentado seria pretensão estulta, cuja soberba revelaria de logo uma ausência de solidez na pesquisa, do oposto seria também tolice pretender ater-se ferrenhamente aos pilares já estatuídos. Ora, a pesquisa é caminho de desbravamento e inovação ou, no mínimo, aprofundamento. Alicerça-se nos panos de fundo culturais e ideológicos do pesquisador, mas pode (e deve) transcender as formulações pretéritas.
É a interpretação e a predisposição do pesquisador que norteiam o viés de aprofundamentos e a escolha dos basilares na desconstrução de preceitos já formados e na busca pela essência do que se pretende construir. Decerto que a ótica do investigador confere ao objeto analisado as nuances subjetivas que lhe norteiam a pesquisa[5]. Deste modo, a partir dos mesmos elementos observados, surgem teoremas diversas, formuladas através da subjetivação do arcabouço teórico com que o pesquisador se dispõe a trabalhar.
Nos dizeres de Habermas[6]:
“Remeter o quadro das ciências normológicas e hermenêuticas a um conjunto vital, bem como à correspondente dedução da validade relativa a enunciados provindos de interesses cognitivos, torna-se necessário no momento em que um sujeito transcendental e substituído por uma espécie que se reproduz em condições culturais, isto é, que não se constitui, ela própria, senão em um processo de formação a constituir a espécie. Os processos de pesquisa – e esta espécie nos interessa, antes de tudo, como sujeitos de tais processos – são partes do processo formativo global que perfaz a história dessa espécie. As condições de objetividade de uma experiência possível, às quais estão da natureza e do espírito, não apenas não mais explicitam o sentido transcendental de um conhecimento finito, restrito às formas fenomênicas enquanto tais; elas pré-molduram, muito mais, um determinado sentido dos modos metódicos do conhecer, como tal; e isso, a cada vez, de acordo com um critério próprio à conexão vital objetiva, a qual aflora de dentro para fora da estrutura de ambas as direções investigatórias. As ciências empírico- analíticas exploram a realidade na medida em que esta se manifesta no raio da atividade instrumental; enunciados nomológicos acerca deste domínio do objeto estão assim presos, de acordo com seu sentido imanente, a um determinado contexto de aplicação — eles apreendem a realidade em vista de uma disponibilidade técnica que, em condições específicas, é sempre e em toda parte possível. As ciências hermenêuticas não exploram a realidade sob um outro ponto de vista transcendental; elas têm por objetivo, muito mais, uma elaboração transcendental de diversas formas fáticas de vida, no interior das quais a realidade é interpretada de maneira diferente, em função de gramáticas que formulam o mundo e da atividade que o transforma; é por isso que, rastreando seu sentido imanente, as proposições da hermenêutica visam um contexto de aplicação correspondente – elas apreendem interpretações da realidade em vista da intersubjetividade de uma compreensão mútua, suscetível de orientar a ação para uma situação hermenêutica inicial. Falamos, portanto, de um interesse técnico ou prático na medida em que, através dos recursos da lógica da pesquisa, as conexões vitais da atividade instrumental e das interações mediatizadas pelos símbolos prémolduram o sentido da validade de enunciados possíveis de tal forma que estes, enquanto representam conhecimentos, não pos suem outra função senão aquela que lhes convém cm tais com textos vitais: serem aplicáveis tecnicamente ou serem praticamente eficazes”.
Se no campo da pesquisa científico-filosófica do direito enquanto gênero, a interação metodológica possui importância extrema, por permitir avanços e questionamentos com subsídios firmes, na especifica seara do direito penal, é ainda mais cristalina a relevância da metodologia na pesquisa e busca por novas fontes de justificação. Num momento de crise dos paradigmas[7] tradicionais, a revisão crítica, desconstrutiva e a busca pela essência e construção de um novo modelo de pensamento penal são incipientes.
Desde as acepções mais longínquas sobre o direito penal, sua aplicabilidade e seus efeitos, existem discussões sobre os critérios norteadores da efetivação da pena[8]. A evolução da sistemática criminal ocorre quase sempre associada à superposição de óticas e de objetos que servem de escopo à responsabilização penal.
Das variações adotadas pelas mais diversas teorias criminológicas ou filosófico-punitivas, não se verifica um completo abandono dos temas percorridos, mas sim olhares críticos distintos. Vale dizer, não são os objetos em si que se modificam, mas o enfoque que se dá a um ou outro elemento componente da trama que conforma o estudo daquele sistema.
Nesta senda, o estudo da culpabilidade ocupa espaço essencial, pelo que se debruça sobre este ponto específico a análise metodológica a que se dispõe no presente artigo. Preceito fulcral na responsabilização penal[9], o conceito de culpabilidade caminha sem uma resposta definitiva. É por meio da revisão das respostas e dos preceitos já explanados[10] sobre o tema que os mais diversos autores buscam chegar a uma definição do real sentido de culpabilidade, tendo por objetivo solidificar a legitimação penal, essencial à sistemática de responsabilidade criminal num estado de direito[11].
2. A metodologia na construção de culpabilidade(s)
O estudo da culpabilidade tende à busca contínua de um “eidos” conceitual , ou seja, a essência que represente em si a acepção âmago deste importante escopo de legitimação penal. Não é simples, contudo, chegar-se ao conceito final deste preceito. Tem sido através de distintas teses que os mais diversos autores buscam desenvolver uma alusão final.
Contudo, duas práticas, essencialmente, podem ser verificadas com clareza pelos observadores atentos do desvelar de teorias – o desconstrucionismo, que analisa de forma elementar a culpabilidade, apurando seus iters, ao invés de trata-la como conceito univalente, e a fenomenologia, na busca contínua[12] por uma definição eidética.
Ora, pode-se verificar que desde os primeiros rascunhos sobre a culpabilidade aos dias atuais, em que encontramos esboços iniciais de uma teoria da culpabilidade voltada à pessoa jurídica, o que se verifica é a readequação dos elementos componentes do conceito referido.
2.1 O rearranjo conceitual da culpabilidade pela via desconstrucionista
A confusão na assimilação da culpabilidade parece começar na dificuldade em discernir entre o conceito de culpabilidade em si considerado e seus elementos. Para um esclarecimento diferencial, é mais do que necessário observar-se o entendimento de Welzel, que notou e modificou a compreensão do conceito discutido, “retirando” um de seus elementos e percebendo que tal subtração não ceifava a essência do mesmo.
Para o suprarreferido autor, a culpabilidade reside no caráter reprovável de poder agir de outro modo e não o fazer, não se reduzindo à subjetividade contida na vontade em si. Culpabilidade não se confunde com a vontade do autor, tampouco com um critério de reprovabilidade presente na mente daquele que analisa a conduta. O subjetivismo contido na pretensão associativa da culpabilidade como o simples elementos psíquico é superado quando se verifica que é elemento observado na conduta.
Nos dizeres de Nivaldo Brunoni[13]:
“Welzel desenvolveu o critério do “poder-agir-de-outro-modo”, que se baseia no livre-arbítrio do autor de um injusto. Para ele, o juízo de desvalor da culpabilidade realiza em relação ao autor uma censura pessoal por não haver atuado corretamente, a despeito de haver podido pautar-se de acordo com a norma. Em suas palavras, “a culpabilidade consiste na censura pessoal ao autor por não se haver omitido em relação à ação antijurídica apesar de haver podido fazê-lo”. Portanto, em Welzel a essência da culpabilidade reside no “poder do autor”.
Para Welzel, “culpabilidade é a reprovabilidade da resolução de vontade” [14]. Diferencia-se da vontade em si, sendo uma qualidade negativa da ação do agente. O esvaziamento de elementos de caráter psíquico ou abstrato na construção do conceito delineada pelo autor dá sentido menos metafísico da acepção da culpabilidade. A noção normativa exsurge como elemento marcante de teorias desenvolvidas a partir de então, sendo verdadeiro marco no desenvolvimento do tema.
Importante marco de sua teoria, considerado nesta pesquisa como um dos sedimentos do esclarecimento quanto à possibilidade de culpabilidade da pessoa jurídica, é a percepção distintiva entre os elementos da culpabilidade que não se confundem com o todo. Em trecho da obra do autor, temos sua explanação sobre o tema:
“A identificação de um estado anímico com a culpabilidade obedece à inexatidão do uso da linguagem, que designa muitas vezes o todo com uma simples parte (pars pro todo). Culpabilidade, nesse sentido amplo, é a vontade de ação, antijurídica e culpável ou (no sentido mais amplo) a ação (típica, antijurídica) culpável(…). É evidente que a culpabilidade em sentido amplo (como vontade de ação culpável ou ação culpável) pressupõe conceitualmente a culpabilidade como qualidade ( reprovabilidade), isto é, a culpabilidade em sentido estrito e próprio. Neste capítulo trata-se, contudo, da culpabilidade como qualidade ou reprovabilidade da vontade ou de ação”.[15]
Para Maurach[16], o conceito mais completo seria de atribuibilidade, segundo o qual a culpabilidade se subdivide em responsabilidade pelo fato – exigibilidade de outra conduta diante das circunstâncias, de acordo com o padrão médio da coletividade – e culpabilidade propriamente dita – imputabilidade somada à consciência de ilicitude.
Seu conceito é importante, pois revela a noção de responsabilidade, um dos fundamentos da punibilidade à pessoa jurídica.
Claus Roxin, por sua vez, também aprimorando as teses de Welzel, utilizou-se da referência de bases já assentadas, entendendo, contudo, que a própria culpabilidade caminhava para um sentido de responsabilidade. Para Roxin, a culpabilidade não seria fundamento, mas limite da sanção e caminharia para a responsabilidade no sentido de vincular-se ao caso concreto para até mesmo demonstrar a desnecessidade da sanção penal. O autor afirma[17]:
“El sujeto actúa culpablemente cuando realiza un injusto jurídico penal pese a que (todavía) le podía alcanzar el efecto de llamada de atención de la norma en la situación concreta y poseía una capacidad suficiente de autocontrol, de modo que le era psíquicamente asequible una alternativa de conducta conforme a Derecho. Una actuación de este modo culpable precisa en el caso normal de sanción penal también por razones preventivas pues cuando el legislador plasma una conducta en un tipo, parte de la idea de que debe ser combatida normalmente por medio de la pena cuando concurren antijuridicidad y culpabilidad […]. El concepto normativo de culpabilidad ha de perfeccionarse en la dirección de un concepto normativo de responsabilidad”.
No mesmo sentido de desenvolvimento das ideias já observadas, Muñoz Conde e Mir Puig caminham ainda mais longe. Num resumo do pensamento apontado por ambos, afirma Karina Sposato[18]:
“Em outras palavras, a motivabilidade ou capacidade de motivação para Muñoz Conde é a capacidade para reagir frente às exigências normativas. Sendo que tais exigências ou expectativas se estruturam à luz de necessidades preventivas, e vale-se das lições de Mir Puig:
“O fundamento da culpabilidade não pode derivar-se, sin más (apenas), da natureza das coisas, como crê a concepção tradicional não cabe castigo ao inculpável porque não pode atuar de outro modo e perigosamente como dá a entender a teoria da motivação normativa, não cabe castigo ao inculpável porque não pode ser motivado em absoluto pela norma -; é imprescindível introduzir um momento normativo essencial […].”
As noções de culpabilidade evoluíram num sentido de capacidade de reagir diante do comando normativo através da conduta. Este conceito já era verificado em Roxin, na sua acepção de responsabilidade, e adotado pelo doutrinador como “dirigibilidade normativa”.
Welzel analisou de forma atômica, decomposta, a culpabilidade e deu margem larga à composição de teses de culpabilidade da corporação com base em duas premissas básicas – reprovabilidade e dirigibilidade normativa. As teses neste esboço partem deste pressuposto e da noção de que os elementos da culpabilidade não se confundem com a culpabilidade como um todo, como sugeriria a sinédoque a que usualmente se submete o termo.
Ora, é cristalina a prática do método desconstrutivista[19] na busca da acepção de culpabilidade do ponto de vista atomicista de Welzel, continuado pelos doutrinadores que o sucederam. De imediato, verifica-se correspondência entre esta metodologia e as explanações de Balkin[20] sobre o desconstrutivismo. Afirma o autor:
“Described in its simplest form, the deconstructionist project involves the identification of hierarchical oppositions, followed by a temporary reversal of the hierarchy. Thus, to use Derrida's favorite example, if the history of Western civilization has been marked by a bias in favor of speech over writing we should investigate what it would be like if writing were more important than speech. We should attempt to see speech as a kind of writing, as ultimately parasitic upon writing, as a special case of writing, rather than the other way around. In so doing, we reverse the privileged position of speech over writing, and temporarily substitute a new priority. This new priority is not meant to be permanent, for it may in turn be reversed using identical techniques. The point is not to establish a new conceptual bedrock, but rather to investigate what happens when the given, 'common sense' arrangement is reversed. Derrida believes that we derive new insights when the privileging in a text is turned on its head”.
Não é outro o modus operandi de grande parte da vasta gama de autores que se debruçam sobre a culpabilidade, buscando delineá-la de modo menos impreciso. A tarefa é exaustiva, decerto, por se tratar de princípio não explícito, mas deduzido da reprovação à imputação de sanção penal que viole direitos do indivíduo, em diversas constituições[21].
Em trecho de obra de Juarez Tavares[22], corroborando com o método exposto:
“A concepção psicológica de culpabilidade, centralizando o juízo de responsabilidade na vinculação subjetiva entre agente e fato, através das formas de dolo e culpa, para daí considerar que se lhe devesse atribuir jurídico-penalmente o fato, retrata o delito como algo separado da pessoa que o tenha praticado. O delito é visto, portanto, como uma conduta objetiva, cujos elementos se configuram na realidade fenomênica e são retratados de fora.(…)Por sua vez, a concepção normativa de culpabilidade, embora se tenha desfeito do critério de identificar a responsabilidade com base exclusivamente nos elementos do próprio fato, continua a retratar a imputação de fora do agente. Agora, entretanto, com outro condicionante ainda mais afastado: o juízo de censura pronunciado pela ordem jurídica. Abandona-se, aqui, o fato e alicerça-se a responsabilidade não no agente, mas no juízo que dele juridicamente se faz. Na concepção psicológica anterior, a responsabilidade derivava da imputação, mas era consequência do que o agente, na verdade, realizava.(…)A questão primordial que deve servir de base à análise da teoria jurídico-penal da culpabilidade não pode se afastar desses parâmetros. O que se discute é se efetivamente as posições até agora utilizadas como critérios de responsabilidades do agente correspondem ou não às necessidades de um Estado democrático e em que medida podem subsistir no futuro”.
Mas não é só. O desconstrutivismo em si mesmo pôde auxiliar na verificação de que os conceitos até então tratados podem ser decompostos e revisados sem que se perca a sua finalidade. Contudo, mister ir além para o alcance do real sentido da culpabilidade. É neste ponto que a fenomenologia surge como ferramenta adequada.
2.2 Fenomenologia – a busca pelo eidos no conceito de culpabilidade
Por trazer consigo preceitos decorrentes da busca por um direito penal menos matizado pelo fundo ideológico[23], aquele não aplicado em função da pessoa – seus caracteres, sua origem, opções, condições – mas sim em função dos atos praticados consciente e livremente pelo indivíduo observado, caminha a culpabilidade como esteio essencial da legitimação penal, ainda que sem uma definição final e exata advinda das mais diversas teorias que se dispõem a explicá-la.
E é através do revolvimento crítico e da análise dos conceitos já construídos que se verifica a busca pelo âmago do princípio supra referido. É possível observar a reiterada utilização dos fundamentos já consolidados do tema, que se desdobram em novas teses por meio de desconstruções hierárquicas ou reorganização dos elementos que a compõem. A utilização deste método é recorrente entre os autores, o que sedimenta o desconstrutivismo como um dos trilhos percorridos na busca por um conceito idôneo.
A construção de novo modo de pensamento não invalida o outrora construído. Ademais, parte-se, neste esboço, de uma perspectiva comparativa de aperfeiçoamento – com certo distanciamento da pesquisa pautada na simples refutabilidade[24] – que muito embora encontre críticas, parece ser o caminho lógico ao desenvolvimento de novo parâmetro de análise da temática. E é neste ponto que se intenta aprofundar ainda mais a pesquisa – parte-se à hipótese de criação de uma culpabilidade da pessoa jurídica.
2.2.1 Da fenomenologia da culpabilidade à pessoa jurídica culpável
Embora a culpabilidade conceituada em face da pessoa física não se demonstre capaz de alcançar as noções de emanação de vontade da pessoa jurídica, os dogmas construídos servem como norteamento das novas percepções e como fundamentos sólidos do ideal de reprovabilidade,[25] que nos parece elemento essencial de qualquer conceito de conduta culpável, muito embora construídos sob a base de pensamento sistemático que considera outra das elementares da culpabilidade o fator humano.
A visão comparativa permite explicar com maior clareza porque falham as teorias vigentes quanto às noções de culpabilidade da empresa, em especial porque se confunde, quanto a seus elementos, a parte pelo todo. Trata-se de “apresentar uma nova aplicação do paradigma ou aumentar a precisão de uma aplicação já feita”[26], ou seja, utilizam-se valores já sedimentados na busca de um novo horizonte.
Balizados por Feyerabend[27]:
“Qualquer idéia, embora antiga e absurda, é capaz de aperfeiçoar nosso conhecimento. A ciência absorve toda a história do pensamento e a utiliza para o aprimoramento de cada teoria. E não se respeita a interferência política. Ocorrerá que ela se faça necessária para vencer o chauvinismo da ciência que resiste em aceitar alternativas ao status quo.”
Ainda neste sentido, podemos observar as considerações de Thomas Kuhn[28]:
“A ciência, apesar de aparentar ser um empreendimento cumulativo e estar em constante progresso, não deve ser compreendida como uma atividade voltada a um único fim ou que se aproxima cada vez mais da verdade. O progresso, nesses termos cumulativos e lineares, acontece somente durante os períodos de ciência normal, dentro de um paradigma em vigor – onde as noções de verdade e de falsidade podem ser aplicadas corretamente e fazem sentido. Ao ser aceito pela comunidade após uma revolução científica, um novo paradigma, em geral, é capaz de explicar apenas alguns daqueles problemas que o anterior explicava. Isso explica por que, com frequência, muitos problemas antes relevantes são abandonados após uma revolução científica. O processo de mudança pelo qual passa a ciência não pode ser comparado com um processo linear no qual tijolos são adicionados um a um visando a conclusão de um único edifício. Neste processo há perdas e ganhos e, portanto, ele não deve ser descrito como conquista de um único território. Não existe o melhor paradigma para qualquer situação possível. O que existe é o melhor paradigma para determinados fins, fins esses que também podem ser amplamente modificados com o tempo”.
Estabelece-se, portanto, o intento inicial de proceder à investigação do tema não de um ponto de vista incendiário das teorias já suscitadas – consoante supraexposição, não se intenta entabular um novo pensamento sob o simples refutar de teorias vigentes.
Dentre as acepções usualmente aceitas, existe crença especial no direito brasileiro[29], que dificulta o questionamento de uma culpabilidade da pessoa jurídica. Não se verifica, em verdade, uma culpabilidade, mas diversos ideais de culpabilidade conformados sob a ótica dos autores que a analisam. Deste modo, a busca pelo eixo, fundamento central da culpabilidade, torna-se ainda mais relevante.
O ponto central e recorrente na fenomenologia da culpabilidade tem sido o ideal de reproche, mencionado pelos mais diversos autores. Não há, contudo, ainda uma definição do que seria a compreensão de culpabilidade da pessoa jurídica, muito embora, no direito estrangeiro, já se discutam diversas possibilidades de culpabilidade corporativa.
Até o momento, nenhuma se demonstrou suficiente ao intenso bombardeio de questionamentos pautados essencialmente na tentativa inócua de determinados doutrinadores de buscar numa teoria voltada à corporação os elementos “psíquicos” que mesmo nas teorias aplicáveis à pessoa física já são rechaçados.
Não é verdadeiro, entretanto, pressupor que a insuficiência na aplicação de teorias vigentes signifique uma vedação real às considerações hipotéticas. Nos dizeres de Feyerabend[30]:
“A condição de coerência, por força da qual se exige que as hipóteses novas se ajustem a teorias aceitas, é desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga e não a melhor. Hipóteses que contradizem teorias bem assentadas proporcionam-nos evidência impossível de obter por outra forma. A proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade lhe debilita o poder crítico. A uniformidade, além disso, ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo”.
A tarefa é essencialmente pautada na necessária ampliação das esferas de observação do direito penal e de seus fundamentos básicos de culpabilidade, cujo exame exige agora uma reapreciação sob a luz de singular ótica, esta voltada à nova figura delitiva pós-global, a “pessoa de concreto”, quanto à qual as expressões de vontade não se verificam por elementos psicológicos unos, mas pela apreensão volitiva emanada de seu conjunto de atos.
Dentre as diversas teorias estrangeiras que buscam analisar o assunto, partindo de uma perspectiva que associa a desconstrução do ideal originário de culpabilidade, pautando-se nos elementos de reprovabilidade e capacidade de decisão, adota-se neste prospecto, como ponto de partida a tese ainda embrionária de Hafter[31], que diferencia a “vontade especial” da pessoa jurídica como distinta da vontade das pessoas físicas que a constituem. A partir daí, seria possível distinguir vontade dos membros da vontade da corporação e firmar-se-ia premissa basilar na construção do conceito de culpabilidade da pessoa jurídica.
Se ainda não se pode, de imediato, afirmar com precisão qual o conceito eidético de uma culpabilidade voltada à pessoa jurídica (já que nem sequer o conceito originário de culpabilidade, trabalhado quanto às pessoas físicas, se encontra definido) é possível dizer que os instrumentos metodológicos – desconstucionismo e fenomenologia – em conjunto parecem ser via segura e eficaz para a busca das respostas perseguidas.
O objetivo deste estudo não é o de definir uma teoria de culpabilidade aplicável à pessoa jurídica, haja vista que o próprio conceito de culpabilidade moderno é altamente volátil. No entanto, para tratar-se de responsabilidade penal da pessoa jurídica aplicando-se o procedimento restaurativo aos casos em que o crime é perpetrado por este ente faz necessário ao menos percorrer esta discussão.
3. Alguns esboços sobre culpabilidade da pessoa jurídica
Doutrina e jurisprudência brasileira, em minorias cuja expressão tem se tornado mais firme, parecem caminhar no sentido da necessidade de observar-se nova conceituação, com base na existência de uma figura delitiva cuja essência difere da pessoa física, até então cerne dos estudos penalísticos. Fora do país, as discussões são cada vez mais comuns e ressonantes.
A perspectiva é positiva. Primordialmente, nem sequer a responsabilização penal da pessoa jurídica era considerada, e ainda há autores de renome que se posicionam de forma veementemente contrária a tal possibilidade. Neste sentido, Gracia Martín[32] afirma
“no caso das pessoas jurídicas[…] sujeito da imputação e sujeito da ação têm que ser sempre e irremediavelmente diferentes, pos aquelas só podem atuar através de seus órgãos e representantes, é dizer, as pessoas físicas(sujeitos da ação).[…] Se a ação é concebida, como eu entendo, como exercício da atividade finalista e a omissão como não realização de uma ação finalista, então é evidente que a pessoa jurídica carece de capacidade de ação no sentido do Direito Penal”
Partindo da mesma premissa, o Superior Tribunal de Justiça[33] possuiu posição consolidada no sentido da impossibilidade de imputação penal à pessoa jurídica sem o elemento subjetivo atribuível à pessoa física.
Não obstante, gradativamente, a barreira de aversão à responsabilização cede diante da ratificação do pensamento de que a conduta da pessoa jurídica não se confunde com a conduta de seus entes individuais, ou mesmo de seus órgãos.
O entendimento ganha força no direito, em especial no direito brasileiro, com certo atraso em relação a outras ciências que tratam do tema. As acepções referentes à organização e planejamento nas empresas já denotam a distinção entre intuito e ação do indivíduo e da corporação. Os conceitos empresariais são claros ao explanar tal perspectiva. Chiavenato e Sapiro[34], doutrina cediça nas Teorias de Administração, afirmam:
“A estratégia tem muito a ver com o comportamento sistêmico e holístico e pouco a ver com o comportamento de suas partes. Isto é, ela envolve a organização como uma totalidade. Ela se refere ao comportamento adaptativo da organização”.
No âmbito jurídico, Franz Von Liszt já afirmava que “quem pode firmar contratos, pode firmá-los fraudulentamente”[35], distinguindo ato da pessoa jurídica dos atos da pessoa física que o representa. No mesmo sentido, Paulo Queiroz[36] afirma que quem age pela pessoa jurídica é pessoa jurídica.
Os questionamentos caminham para a compreensão de que são necessários conceitos novos para tratar da nova figura delitiva. O Supremo Tribunal Federal[37], até pouco tempo pautado nas teses de dupla Imputação, já denotava a percepção sobre a necessidade de reavaliação de conceitos e construção de novas teses capazes de abarcar a pessoa jurídica.
“EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. HABEAS CORPUS PARA TUTELAR PESSOA JURÍDICA ACUSADA EM AÇÃO PENAL. ADMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE RELATOU a SUPOSTA AÇÃO CRIMINOSA DOS AGENTES, EM VÍNCULO DIRETO COM A PESSOA JURÍDICA COACUSADA. CARACTERÍSTICA INTERESTADUAL DO RIO POLUÍDO QUE NÃO AFASTA DE TODO A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. EXCEPCIONALIDADE DA ORDEM DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA. I – Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus. […]”
Ainda que de forma tardia e forçosa, a noção sectária entre responsabilidade da pessoa jurídica e física e a formação de uma teoria apartada sobre sua culpabilidade têm ganhado força, acercando-se da ideia de uma imputação única e não objetiva à empresa.
Em julgado recente[38], o Pretório Excelso reconheceu a possibilidade de recebimento de denúncia com base em imputação única à pessoa jurídica, tornando vertente e cristalina a noção de que é possível, sim, considerar um novo escopo que permita a responsabilização da corporação em apartado dos sujeitos que a compõem. Isso porque percebeu-se, consoante a doutrina visionária já afirmava, que não há imperativos legais proibitivos da imputação penal única e a própria previsão constitucional é explícita em tratar do tema.
A maior parte das teses que trabalham a acepção de culpabilidade do ente corporativo veste nova roupagem para conceitos já sedimentados. Neste estudo são utilizadas apenas as formulações que parecem possibilitar avanços reais, não havendo uma preocupação de explanação de todos os vislumbres, mas tão somente dos que, somados, representam uma perspectiva mais densa do novo tema.
Partindo de noções balizadoras já firmadas, é possível verificar em determinadas teses sobre a culpabilidade da empresa elemento de conexão, que ratificam o caráter do termo “culpabilidade” quando da avaliação da prática de ilícitos pela pessoa jurídica, usualmente associadas ao conceito de responsabilidade, ou seja, a capacidade de se organizar e atuar conforme as normas vigentes.
Dos conceitos supraexpostos de culpabilidade como violação ao comando normativo, adotados pela noção de responsabilidade de Maurach e, a seguir, Roxin, Mir Puig e Muñoz Conde, decorrem concepções das teorias de culpabilidade da empresa.
Klaus Tiedmann[39] é o expoente reconhecido da tese de Culpabilidade por Defeito da Organização, que ganhou força com a reforma do Código Penal espanhol, receptor da imputação penal à pessoa jurídica. Segundo sua tese, a culpabilidade da empresa está associada à noção de responsabilidade, com vinculação à política empresarial de promoção do cumprimento da norma.
Dar-se-ia através da ação ilícita de pessoas físicas por defeito organizativo da empresa que poderia e deveria ter evitado o ato lesivo. Os feitos da pessoa física, aqui, consideram-se de responsabilidade da pessoa jurídica porque a organização deve tomar medidas de compliance[40] necessárias para evitar a infração.
Muito embora capaz de sorver o ideal de culpabilidade por não cumprimento ao dever normativo quando se poderia fazê-lo, a tese de Tiedemann é severamente criticada por não prever exculpação à pessoa jurídica[41] – necessariamente vinculada ao ato da pessoa física, mesmo quando demonstrada a organização suficiente.
O autor aproxima-se de uma responsabilização objetiva sob o pano de fundo de acepção de culpabilidade da corporação. A proposição de Tiedemann, portanto, não parece madura para a fundamentação da responsabilidade penal com imputação única à empresa, muito embora seja a usualmente mais aceita por aproximação com um fator concreto de culpabilidade.
Carlos Díez[42] propõe, diante da falha da Teoria de Culpabilidade por Defeito de Organização, uma perspectiva construtivista de culpabilidade. Para o autor, a obrigação de fidelidade ao direito é reflexo direto da autonomia adquirida pela pessoa jurídica. Se o Estado não pode controlar os aspectos internos da organização, é mister que esta tenha uma postura de cidadã(ainda que dotada de uma cidadania corporativa) fiel ao direito.
Trata-se de observar a disposição jurídica do sujeito corporativo quanto à norma a que se subsume. A disposição consoante a norma faria parte do rol de obrigações decorrentes da auto-organização empresarial e, baseando-se em conceitos que tentam travar uma noção sobre a emanação da vontade da pessoa jurídica, o risco da empresa engloba o risco de um ilícito penal quanto ao qual a corporação deve se precaver.
Muito embora a teoria possua a preocupação de adotar teses de exclusão da culpabilidade para os casos em que a postura empresarial e o compliance são perceptíveis, parece tratar-se de uma nova roupagem para uma tese já apresentada. É preciso questionar, além da postura da empresa e de sua política, de onde se poderia apreender a emanação de sua vontade no sentido de evitar a infração à norma ou, ao reverso, de assumir o risco do dano.
Gunter Heine[43] entende a culpabilidade da corporação como fator apreensível através da condução da cultura empresarial. A atuação defeituosa da empresa no decorrer do tempo denotaria uma cultura falha em atender aos preceitos normativos. A deficiência na organização fundamentaria a preservação de certa filosofia criminógena no seio empresarial, que deveria ser observada em caso concreto.
O conceito de Heine é aprofundado por Dannecker[44] para o qual a capacidade de culpabilidade da empresa se verifica pela reprovabilidade ético-social advinda de suas falhas organizativas. A culpabilidade individual não se confundiria com a culpabilidade da empresa, e o estabelecimento de uma filosofia empresarial pautada na responsabilidade social é possível à empresa que o estabelece como parâmetro. A culpabilidade se confunde com o injusto sempre que se verificar a filosofia falha de contenção, pois, no momento em que o ato ilícito ocorre, a empresa falhou em seu dever de atuação. Não obstante, quando a empresa tomou as atitudes cabíveis, é possível falar em exculpação.
As teorias de culpabilidade da pessoa jurídica se assemelham em diversos pontos. Algumas, contudo, apresentam-se mais voltadas ao aspecto objetivo do cometimento da ofensa, como é o caso das ideias de Tiedemann, Díez e Schunemann[45]. Outras voltam-se aos possíveis elementos subjetivos que norteiam a apreensão de culpabilidade da pessoa jurídica. As teses de Heine e Dannecker se aproximam da acepção de uma emanação de vontade própria da corporação através de sua filosofia.
Aprofunda-se a subjetividade ao analisarem-se as proposições de Hafter[46], que diferencia a “vontade especial” da pessoa jurídica como distinta da vontade das pessoas físicas que a constituem. A vontade especial surgiria pela formação da vontade da empresa, que difere da vontade individual de seus componentes. Sob um viés similar, Hirsch[47] desenvolveu o argumento de que a culpabilidade da pessoa jurídica não se confunde com a de seus membros.
O autor afirma que a essência da pessoa jurídica não é o mesmo que a junção das essências que a compõem – o todo é maior que a soma das partes. A culpabilidade residiria na evitabilidade das deficiências de seleção e supervisão de seus representantes e das tendências criminógenas. A tese de Hirsch foi ponto de partida para as noções desenvolvidas por Anne Ehrhardt[48], para a qual a evitabilidade foi o elemento mais trabalhado na acepção de culpabilidade.
Segundo essa prospecção, as pessoas jurídicas possuem o dever de reprimir fatores criminógenos alocados em seu seio, estimulando o comportamento diante dos padrões normativos e evitando o ilícito. Neste trabalho, parece-nos mais adequado falar em um esboço de culpabilidade da pessoa jurídica através da soma da teoria da vontade especial e da evitabilidade. Ora, a vontade inicial da organização é sua pedra basilar. Até ser criada a soma de valores da empresa e sua perspectiva de atuação, nada mais existe senão a soma de indivíduos associada.
A partir de sua criação, no entanto, a vontade simples dos indivíduos, mesmo dos que criaram os pilares da organização, já não é capaz de confundir-se com o corpo axiológico empresarial. Formam-se núcleos de operacionalização dos ideais firmados em sede basilar, com o fito de adequar e instruir os indivíduos que compõem o corpo funcional da empresa. E é neste ponto que, além da vontade especial, se verifica também a evitabilidade.
A cultura empresarial, que não se confunde com a vontade da pessoa jurídica, mas dela decorre, é perceptível através dos esforços que fazem os núcleos operacionais sob comando da corporação para evitar infrações jurídicas. Daí que se pode perceber a vontade, num plano prático, através do modus operandi daqueles núcleos empresariais. Isto não quer dizer que o cometimento de infração por uma pessoa física que é parte da empresa, por si só, incorra na responsabilização do conjunto. É preciso diferir e entender como paralelas as possibilidades de responsabilização penal.
Vale dizer, o indivíduo que, ainda quando instruído de uma cultura empresarial pautada na evitabilidade das infrações, as comete em seu benefício, incorre em responsabilização própria. Não se está aí propondo qualquer teratologia, desde quando, nos moldes atuais, as pessoas físicas são responsabilizadas na medida de sua culpabilidade e contribuição ou omissão quanto a fato ilícito.
As visões que tratam do discernimento entre a vontade da corporação e a dos indivíduos que a compõem encontram barreiras no olhar binário do mundo jurídico, mas em verdade possuem escopo doutrinário nas ciências de organização empresarial.
A administração de empresas trata de organização e planejamento estratégico com base na acepção de criação de valores, missão e objetivos da corporação, bem como de sua aplicação e adequação dos indivíduos que a compõem. No traçado inicial de uma corporação, dispõe-se sobre seu cronograma estratégico, que consiste em sua emanação inicial de vontade. Nos dizeres de Jauck e Glueck[49]
Estratégia é o conjunto de decisões coerentes, unificadoras e integradoras que determina e revela a vontade da organização em termos de objetivos de longo prazo, programa de ações e prioridade na alocação de recursos.
Há verdadeira distinção entre a vontade e valores dos indivíduos e a vontade e valores da organização, e a perspectiva distintiva se acentua ao observar os conceitos sobre o planejamento estratégico[50], que é a formulação de atuação corporativa, desde a concepção de valores, missão e objetivos empresariais até a elaboração de um plano de execução, pelos membros da empresa, de acordo com o estabelecido pela corporação.
Ora, parece ser perfeitamente possível observar uma emanação de vontade da pessoa jurídica, a partir do momento de criação do seu referencial de missão, objetivos, valores e metas – estes diferem da simples somatória de valores de seus componentes e devem ser absorvidos por tais membros que se unem à empresa após a formação da vontade original. Se tais valores e metas precisam ser absorvidos pelos indivíduos e pela própria direção da empresa, não se poderia dizer que são equivalentes aos valores dos próprios membros.
É certo que o desenvolver de teorias de uma vontade não humana assusta desde o princípio a usualmente atávica teoria normativa do direito. Contudo, se a dogmática jurídica não se permitisse discorrer e aventar novas teses em relação ao direito da corporação, jamais se poderia falar sequer em avanços já vastamente aceitos modernamente, como a própria noção de personalidade jurídica da corporação.
Destarte, se não é possível ainda falar em culpabilidade da pessoa jurídica como um conceito bem definido( pois a culpabilidade em si não o é), demonstra-se possível traçar um caminho para o conceito. É cada vez mais certo o rumo da aceitação do ideal de uma pessoa jurídica culpável, que se submete ao ordenamento jurídico em direitos e também em deveres, a despeito dos indivíduos que figuram como seus componentes transitórios. Uma nova sistemática penal pós-globalização apresenta-se, ainda que em seus primeiros passos, e merece atenta observação.
Conclusão
1. A pretensão de discutir-se a culpabilidade da pessoa jurídica envolve, necessariamente, a quebra de paradigmas relativos às acepções de culpabilidade hodiernas, essencialmente voltadas para o estigma subjetivo, relacionado à culpabilidade da pessoa física e notoriamente inaplicáveis à corporação.
2. A quebra de paradigmas não quer dizer a negação de todo e qualquer preceito de culpabilidade firmado anteriormente, mas o reconhecimento da ineficácia dos parâmetros estabelecidos para a pessoa física como conceitos aplicáveis sem ponderação à pessoa jurídica.
3. O desenvolver das teses de culpabilidade demonstra a priorização de determinados elementos em face de outros na depuração do conceito. Os elementos, portanto, não se confundem com a própria noção de culpabilidade.
4. Algumas das recentes teses de culpabilidade relativas à pessoa física possuem uma base também presente na avaliação aprioristica da culpabilidade corporativa – a reprovabilidade e a análise do dever se subsunção à norma. Ainda que com etiquetamentos distintos, os conceitos são similares.
5. Muito embora diversos autores hajam buscado uma definição de culpabilidade para a empresa, os conceitos ainda restam insuficientes. As teses ainda encontram dificuldade na dissociação entre a vontade da organização e a vontade das pessoas físicas que a compõem.
6. Não obstante, fora do direito, as ciências relativas à organização e sedimentação da empresa falam claramente na dissociação entre valores, objetivos, missão e metas da empresa e o capital humano de que esta se reveste. Além disso, a Constituição de 1988 já deixava espaço para a percepção de dissonância entre a responsabilidade dos sujeitos da organização e a responsabilidade da própria organização, indicando a possível realidade de autonomia de conceitos relativos a cada um.
Mestra em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Pesquisadora em Justiça Restaurativa pela Universidade Federal da Bahia, Professora de Direito Penal, Advogada, Conselheira membro do Conselho Consultivo de Jovens Advogados da OAB/BA
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