Desjudicialização e Desjurisdicionalização

As expressões em comento, desjudicialização e desjurisdicionalização, vêm sendo empregadas com freqüência no meio jurídico em abertas discussões e em reservados estudos de reformas do sistema jurídico em aspectos que envolvem a função do Poder Judiciário e a atuação jurisdicional de seus membros. O fenômeno não é exclusivo do ordenamento brasileiro, eis que motivado na dificuldade do Estado contemporâneo em corresponder com presteza às demandas judiciais que a sociedade moderna deduz. São exemplos próximos à nossa cultura, com iguais providências, Portugal e Argentina, esta, desde 2001, no art. 38 da codificação processual, ampliando as atribuições dos secretários para dirigir audiências de tomada de testemunhos, quando determinado pelo juiz.


A origem de tudo está na potencialidade das complexas relações jurídico-sociais em gerar conflitos interpessoais e exigir maior atuação do Estado. Entre elas pode-se citar o crescimento demográfico; a limitação dos recursos naturais; a economia de mercado; o desemprego; o impulso consumista; a globalização; a criminalidade; a superação de preconceitos, admitindo a dissolução do casamento e reconhecendo a união estável e a relação homoafetiva; as novas vias de comunicação que encurtam distâncias, como a internet; a biotecnologia cruzando genes de espécies diferentes e criando produtos transgênicos; a biogenética gerando seres em laboratório e desenvolvendo a clonagem.


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

A soberania é o poder inerente ao Estado, ou seja, a organização de todos os cidadãos para fins de interesse geral, como ensina CHIOVENDA[1]. Pois a organização da sociedade, estruturada no Estado, atribui ao ente estatal moderno o encargo de atuar os instrumentos necessários ao desenvolvimento e conservação das condições de vida dos cidadãos, estruturando e realizando a ordem jurídica. O encargo jurisdicional é atribuído ao Poder Judiciário, ao qual a Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXV, assegura o acesso, como direito e garantia individual, diante da ameaça ou lesão. É de justitia que decorre o adjetivo judiciário, e o verbo judicializar.


O termo jurisdição no sentido utilizado por CHIOVENDA é o mesmo do direito romano para o qual a expressão jurisdictio não tem o sentido simples e literal de “dizer o direito”, mas a acepção ampla do mister dos juízes, “administrar a justiça”. É de jurisdictio o adjetivo jurisdicional, e o verbo jurisdicionalizar. No dizer de AMARAL SANTOS[2] “a jurisdição tutela a ordem jurídica e, consequentemente, o direito subjetivo, quando ameaçado ou violado”. Não obstante, o Poder Judiciário, afeto àquela função, também resolve situações que são despidas de caráter litigioso e em razão das quais realiza atividade pública em torno de interesses privados. É a chamada jurisdição voluntária, de natureza controvertida, principalmente pelas correntes doutrinárias formadas no direito italiano por ALLORIO[3] que rebate o seu caráter, dizendo-o substancialmente não jurisdicional; e FAZZALARI que a entrevê como um ens tertium distinto da jurisdição e da administração.


Pois bem, o prefixo negativo acrescentado às expressões judicialização e jurisdicionalização é utilizado para indicar o propósito de subtrair, respectivamente, atividades do Poder Judiciário e atribuições de seus agentes, até então previstos na lei. É nesta sanha que se passou a admitir recuperações falimentares, inventários, separações e modificações de registros públicos sem a necessidade de intervenção judiciária direta; e os Juizados Especiais, a intimação das partes para manifestações ordinárias por iniciativa da escrivania, e quiçá a penhora de imóveis por termo e a averbação de notícia da execução em ofícios públicos.


A especialização do tema recomenda que se prime por não utilizar uma expressão no lugar de outra, reservando-se à desjudicialização a reforma que estimula e dá instrumentos para que os conflitos de interesses resolvam-se sem lide ou pela via extrajudicial, deixando ao Poder Judiciário as situações qualificadas pela resistência continuada de um dos seus sujeitos; e à desjurisdicionalização, aquela que autoriza, no procedimento judicial, maior atribuição aos auxiliares do juízo, ensejando melhor especialização dos atos do juiz permitindo-lhe concentrar esforço no estudo e solução dos casos em concreto.


Nenhuma das situações implica em aberta limitação ao poder constitucional do Judiciário ou restrição à competência de seus órgãos, mas, quando comedidas, em efetivas providências de administração da Justiça.


 


Notas:

[1] CHIOVENDA, JOSÉ. Princípios de Derecho Procesal Civil, Madrid, 1977, tom. I, p. 368.

[2] SANTOS, MOACYR AMARAL. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 14ª ed., vol. I. p. 36.

[3] ANDRIOLI, Apud JUNIOR, HUMBERTO THEODORO. Curso de Direito Processual Civil, 9ª ed., vol. I p. 40

Informações Sobre o Autor

João Moreno Pomar

Advogado – OAB/RS nº 7.497; Professor de Direito Processual Civil da Fundação Universidade Federal de Rio Grande; Doutor em Direito Processual pela Universidad de Buenos Aires.


Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

Requisitos legais para aposentadoria por invalidez

A aposentadoria por invalidez é um benefício previdenciário concedido a segurados que, devido a doenças…

16 horas ago

Como aumentar o valor da sua aposentadoria: estratégias legais e previdenciárias

A aposentadoria é um direito garantido a todo trabalhador que contribui para o sistema previdenciário.…

16 horas ago

Aposentadoria especial por insalubridade: quem tem direito e como comprovar

A aposentadoria especial por insalubridade é um benefício previdenciário destinado a trabalhadores que exercem suas…

16 horas ago

Revisão de benefício do INSS: quando é possível solicitar?

A revisão de benefícios concedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é um direito…

16 horas ago

Como a reforma da previdência afetou as aposentadorias especiais

A reforma da Previdência, aprovada em 2019 por meio da Emenda Constitucional nº 103, trouxe…

16 horas ago

Benefício assistencial ao idoso: o que fazer em caso de negativa do INSS

O Benefício de Prestação Continuada (BPC), também conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…

16 horas ago