Resumo: Técnicas de por termo à vida de pessoas gravemente enfermas e padecendo de sofrimento e dores insuportáveis, a eutanásia e a morte assistida sempre causaram profundos questionamentos de cunho ético e filosófico. Várias correntes defendem a legitimidade ou a repugnância destas práticas, enveredando muitas vezes nos campos da religião. A morte digna é afastada pela legislação da maioria dos países, entretanto existem algumas importantes exceções. Inevitável realidade social, a matéria demanda uma regulamentação apropriada, capaz de evitar abusos e acompanhar as particularidades decorrentes do avanço da medicina.
Palavras-chave: Ética. Direitos humanos. Eutanásia. Morte Assistida. Realidade social.
Abstract: Techniques to end the lives of seriously ill and suffering people, euthanasia and assisted suicide have always caused profound ethical and philosophical questions. Several authors argue the legitimacy or disgust of these practices, often embarking on the fields of religion. The dignified death is prohibited in most of countries, however there are some important exceptions. As an unavoidable social reality, the subject requires an appropriate regulation, able to fight abuses and to follow the progress of medicine.
Keywords: Ethics. Human rights. Euthanasia. Assisted Death. Social reality.
Sumario: 1 – Introdução; 2 – Conceitos; 3 – O comportamento dos povos antigos; 4 – Posições mais recentes sobre a eutanásia; 5 – Eugenia e preconceito racial no regime Nazista; 6 – Doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira; 7 – A opinião da Igreja Católica; 8 – Ética médica, direito à informação, vício de consentimento e dor alienante; 9 – Conclusão. Referencias.
1. INTRODUÇÃO
O termo eutanásia, de origem grega, significa “boa morte”, “morte apropriada” ou “morte piedosa”. O termo foi proposto por Francis Bacon em 1623 como sendo “um tratamento adequado às doenças incuráveis”.
Entende-se como eutanásia a conduta em que alguém, deliberadamente e movido por fortes razões de ordem moral, causa a morte de outrem, vitima de uma doença incurável em avançado estado e que está parecendo de grande sofrimento e dores. A eutanásia seria justificada como uma forma de libertação do sofrimento acarretado por um longo período de doença.
Já a morte assistida, também conhecida como suicídio assistido, consiste na promoção de meios para que o paciente terminal, por conta própria, ponha fim a sua vida. Não se trata de eutanásia, pois a decisão e a execução do ato partem do próprio paciente. Os terceiros, normalmente familiares e pessoas próximas, apenas colocam ao seu alcance os meios necessários para que o paciente se suicide de forma digna e indolor.
Para a morte assistida, portanto, pressupõe-se que o consentimento e o ato executório partam do próprio paciente, enquanto que a eutanásia, dependendo do estado em que se encontre o paciente (ex. inconsciente há bastante tempo), poderá ser realizada por meio do consentimento de terceiros, a exemplo dos familiares.
O ato de promover a morte antes do que seria de esperar, por motivo de compaixão e diante de um sofrimento penoso e insuportável, sempre foi motivo de reflexão por parte da sociedade. Esta discussão torna-se cada vez mais presente na medida em que é aprofundado o estudo dos direitos fundamentais sob a perspectiva constitucional.
Ademais, sempre surgem novos tratamentos e recursos que permitem prolongar em muito a expectativa de vida do enfermo, o que pode levar a um demorado e penoso processo de morrer.
A medicina, na medida em que avança na possibilidade de salvar mais vidas, cria, também, inevitavelmente, dilemas éticos complexos que permitem maiores dificuldades para um conceito ajustado do fim da existência humana.
Por fim, a eutanásia é proibida na maioria dos países, bem como condenada por diversas religiões, a exemplo do Catolicismo, sendo, portanto, um assunto capaz de gerar profundas discussões éticas e morais.
2. CONCEITOS
O estudo da morte digna deve partir da definição de certos termos característicos, alguns dos quais, inclusive, são confundidos por certos autores.
O termo “eutanásia”, como já mencionado acima, foi proposto por Francis Bacon em 1623 na sua obra Historia vitae et mortis. A origem etmológica vem do grego “eu” (bem, bom, belo) e “thanatos” (morte), sendo traduzida como a “boa morte”. A idéia de eutanásia remota à antiguidade, de onde se encontram os primeiros registros da sua prática.
A eutanásia ativa consiste no ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, com fins misericordiosos. Normalmente executada por parente próximo da vítima e, em alguns casos, pelo médico que a acompanha.
A eutanásia passiva (ou ortotanásia, para alguns) consiste na suspensão do tratamento ou dos procedimentos que estão prolongando a vida de um doente terminal, com o objetivo de lhe abreviar a morte, sem sofrimento. Na maioria dos casos mantêm-se as medidas ordinárias, dentre as quais as que visam reduzir a dor, e suspendem-se as medidas extraordinárias ou as que estão dando suporte à vida.
A eutanásia de duplo efeito ocorre quando a morte é acelerada como conseqüência indireta das ações médicas que são executadas visando o alívio do sofrimento de um paciente terminal, a exemplo da utilização de altas doses de remédios com o intuito de aliviar a dor, sabendo-se que o tratamento também traz como conseqüência a abreviação da vida do paciente.
A morte ou suicídio assistido consiste na facilitação ao suicídio do paciente, onde o agente, normalmente parente próximo, põem ao alcance do enfermo terminal alguma droga fatal ou outro meio congênere.
Técnica congênere, a eugenia consiste na eliminação de pessoas portadoras de deficiências, doenças graves ou idosos em fase terminal. Muito comum em sociedades primitivas, notadamente entre às nômades. Também é conhecida como medida de higiene ou profilaxia social.
De se observar que a terminologia envolvida neste estudo sofreu variações ao longo do tempo e de acordo com cada autor. O próprio termo eutanásia já foi definido no século XIX como “morte em estado de graça” pelos teólogos Larrag e Claret[1]. Existe, aliás, uma profusão de termos correlatos que acabam por dificultar o estudo da boa morte. Termos como distanásia, ortotanásia, mistanásia, por outro lado, não serão estudados aprofundadamente neste trabalho, por gerarem uma dificuldade conceitual desnecessária.
Inúmeras classificações foram propostas na literatura. Dentre as quais destacamos a seguinte:
Eutanásia voluntária (executada conforme a vontade do paciente), eutanásia involuntária (executada contra a vontade do paciente) e eutanásia não voluntária (executada independentemente da manifestação de vontade do paciente). Esta classificação foi proposta por Neukamp em 1937 e visava estabelecer, em ultimo caso, a responsabilidade do agente.[2]
Outras classificações menos importantes foram propostas pelo brasileiro Ruy Santos, em 1928, por Ricardo Royo-Villanova, em 1928 e por Jiménez de Asúa, em 1942.
3. O COMPORTAMENTO DOS POVOS ANTIGOS
A eutanásia e a eugenia eram praticadas por diversos povos primitivos, dentre os quais os Celtas, Fueginos (indigenas sul-americanos), dentre outros.
Povos nômades e alguns índios brasileiros matavam velhos, doentes e feridos para que os mesmos não ficassem abandonados à sorte e às feras, nem tampouco fossem trucidados pelos inimigos.
Na Índia os velhos e doentes eram levados para as margens do rio Ganges, onde tinham as sua boca e narinas tampadas com uma lama sagrada e depois eram lançados no rio para se afogar.
Na Birmânia doentes incuráveis eram enterrados vivos. Eslavos e Escandinavos apressavam a morte de seus pais enfermos.
Em Esparta, cidade-estado eminentemente militarista, as crianças nascidas com deficiências físicas que as tornassem inadequadas para o combate eram jogadas do alto do monte Taijeto (conforme relatado por Plutarco em “Vidas Paralelas”).
Platão, Sócrates e Epicuro defendiam a idéia de que o sofrimento resultante de uma doença dolorosa justificava o suicídio. Platão encorajava velhos, enfermos incuráveis e os deficientes mentais a se matarem para ajudar a sociedade a progredir economicamente.
A eutanáisa e o suicídio assistido eram muito praticados na Grécia e Roma antigas. Na cidade de Marselha, por exemplo, existia um depósito público de cicuta a disposição de todos que pretendessem se suicidar[3].
Em Atenas, o Senado tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação de velhos e incuráveis, dando o conium maculatum – bebida venenosa, em cerimônias especiais.[4]
Aristóteles, Pitágoras e Hipócrates, entretanto, condenavam o suicídio. Hipócrates, particularmente, era avesso à eutanásia. Ele deixou registrado em seu juramento: “A ninguém darei, para agradar, remédio mortal, nem conselho que o induza à perdição”
A eutanásia e o suicídio aparecem até mesmo na Bíblia: O Rei Saul, ferido em batalha, lançou-se sobre a sua própria espada com a intenção de se matar, mas não conseguiu. Depois solicitou a um amalecita que lhe tirasse a vida.[5]
No Novo Testamento consta que no calvário os soldados romanos deram a Jesus uma esponja embebida de vinagre, que fora por ele recusada. Segundo Cícero e Dioscorides, antes de ser zombaria e crueldade, este ato foi piedoso e visava amenizar o sofrimento de Cristo, pois a bebida oferecida seria o vinho da morte, uma mistura de vinagre e fel que “produzia um sono profundo e prolongado, durante o qual o crucificado não sentia nem os mais cruentos castigos, e por fim, caía em letargo passando à morte insensivelmente”.[6]
Assim, admitida na Antiguidade, a eutanásia só foi realmente condenada a partir do judaísmo e cristianismo, em cujos princípios a vida tinha o caráter sagrado. No entanto, foi a partir do sentimento que cerca o direito moderno que a eutanásia passou a ser criminalizada.
4. POSIÇÕES MAIS RECENTES SOBRE A EUTANÁSIA
A discussão sobre o tema evoluiu ao longo da história da humanidade, com a participação, dentre outros, de Lutero, Thomas Morus (Utopia), David Hume (On suicide), Karl Marx (Medical Euthanasia) e Schopenhauer.
Hegel, na sua filosofia, entoava: “tenho a vida e o corpo porque são meus, tudo depende da minha vontade. Assim, o homem pode matar-se e mutilar-se a seu entendimento”.[7]
Nelson Hungria, por outro lado, defendia que “a mais elementar prudência aconselha que nenhum homem, a pretexto de piedade, ante o padecimento alheio, se atribua a faculdade ou o direito de matar”.[8]
Binet Sanglé propôs na França a criação de um tribunal composto por um médico, um psicólogo e um jurista exclusivamente para julgar pedidos de eutanásia.
Francis Galton, primo de Charles Darwin, escreveu em 1865 a obra Hereditary Talent and Genius, onde defendeu a tese de que a inteligência é predominantemente herdada e não fruto da ação ambiental. Utilitarista, ele propunha a seleção artificial para melhorar a espécie humana. Afirmava que:
“As forças cegas da seleção natural, como agente propulsor do progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução nos tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral no futuro.”[9]
No início do século XX a eutanásia e a eugenia foram muito discutidas no panorama mundial.
Autores se destacaram, dentre os quais o argentino José Ingenieros, que publicou em 1900 a obra “La simulación en la lucha por la vida” e o Professor Jiménez de Asúa, penalista espanhol considerado como um dos mais importantes autores que estudou do tema e que inaugurou os debates atuais sobre a Eutanásia. Em 1925 proferiu inúmeras palestras e publicou várias obras, dentre as quais “Libertad de amar y derecho a morir: ensayos de un criminalista sobre eugenesia y eutanásia”,[10] que serviram de inspiração para a legislação penal uruguaia de 1934, uma das pioneiras a descriminalizar a eutanásia (homicídio piedoso).
Interessante observar que a discussão acerca da eutanásia foi acompanhada pela sociedade. Em 1908, foi fundada a Eugenics Society em Londres, primeira organização a defender estas idéias de forma organizada e ostensiva. Um dos lideres era Leonard Darwin, filho de Charles Darwin. No Brasil, foi fundada em 1918 a Sociedade Paulista de Eugenia, a primeira no país. José Roberto Goldin relata que inúmeras teses foram desenvolvidas neste assunto entre 1914 e 1935 nas Faculdades de Medicina da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, o que demonstra a grande profusão das idéias eugências na época.
Em 1968, por outro lado, a Associação Mundial de Medicina adotou uma resolução contrária a eutanásia, considerando a mesma como sendo um procedimento eticamente inadequado.
5. EUGENIA E PRECONCEITO RACIAL NO REGIME NAZISTA
As idéias eugênicas da Alemanha nazista foram teorizadas, dentre outros, pelos pensadores Günther e Rosenberg, os quais se inspiraram nas idéias de Conde de Gobineau, que escreveu a obra “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” em 1854. Gobineau, que, proferiu palestras até mesmo no Brasil, pregou a idéia da pureza e superioridade da raça ariana antes mesmo do advento das idéias Darwinistas.
Foram editadas em 1935 as Leis de Nuremberg, que proibiam o casamento e o contato sexual de alemães com judeus e o casamento de pessoas com transtornos mentais, doenças contagiosas ou hereditárias. Para casar era preciso obter um certificado de saúde. Em 1933 já haviam sido publicadas leis que propunham a esterilização de pessoas com problemas hereditários e a castração dos delinquentes sexuais. Alemães portadores de defeitos físicos ou mentais eram sacrificados para purificar a raça ariana.
Em outubro de 1939, finalmente, foi implantado um programa denominado “Aktion T 4
Com o tempo, foram acrescidos os critérios étnicos, de modo que os que não possuíam cidadania ou ascendência alemã eram discriminados, especialmente judeus, negros e ciganos, ocasião em que foram mortas mais de 100.000 pessoas.[11]
Tal programa não pode ser visto como eutanásia, posto que fugiu completamente da idéia de morte misericordiosa. Trata-se de prática eugênica com fortíssimos traços de discriminação racial, que foi criticada, inclusive, por Jiménez de Asúa.
6. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E ESTRANGEIRA.
Um dos primeiros países a descriminalizar a eutanásia foi o Uruguai, em 1934, onde foi introduzida no Código Penal a figura do “homicídio piedoso”. Tal inovação legislativa foi elaborada sob influencia dos ensinamentos de Jiménez de Asúa que, a partir de 1925, proferiu diversas palestras que geraram extrema repercussão naquele país e da Espanha.
Posteriormente, em 1993, ainda sobre influencia de Asúa, inaugurou-se na Holanda uma jurisprudência que tolerava a eutanásia. Em 2002, finalmente, foi legalizada e regulada a prática da eutanásia, a qual só pode ser realizada mediante um criterioso procedimento. Tal legislação permite, inclusive, que menores possam requerer a eutanásia (com o consentimento dos responsáveis).
Vários pedidos de eutanásia foram julgados em outros países, dentre os quais na Inglaterra, onde alguns pedidos foram deferidos.
Em maio de 1997 a Corte Constitucional da Colômbia estabeleceu que “ninguém pode ser responsabilizado criminalmente por tirar a vida de um paciente terminal que tenha dado seu claro consentimento”. Esta posição estabeleceu um grande debate nacional entre as correntes favoráveis e contrárias. Vale destacar que a Colômbia foi o primeiro país sul-americano, a exceção do Uruguai, a constituir um “movimento de direito à morte”, que se iniciou em 1979.
Em alguns territórios do Norte da Austrália esteve em vigor de 1996 a 1997 a Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais, que autorizava a eutanásia. A lei foi revogada apensar das pesquisas de opinião acusar que os australianos eram, na sua maioria, favoráveis à eutanásia.[12]
Ouve uma tentativa frustrada de se inserir a eutanásia no estado de Oregon, nos Estados Unidos, entretanto a legislação foi suspensa pela Suprema Corte.
Ronald Dworkin fala sobre uma interessante prática adotada nos Estados Unidos:
“Hoje, todos os estados americanos reconhecem alguma forma de diretriz antecipada: ou os “testamentos de vida” (documentos nos quais se estipula que certos procedimentos médicos não devem ser utilizados para manter o signatário vivo em circunstâncias específicas) ou as “procurações para a tomada de decisões em questões médicas” (documentos que indicam outras pessoas para tomar decisões de vida e de morte em nome do signatário quando este já não tiver condições de tomá-las).”[13]
No Brasil a eutanásia é tipificada como homicídio privilegiado pelo Código Penal:
“Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena:
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”
A própria exposição de motivos do Código Penal elenca, dentre os exemplos de homicídio privilegiado, a prática de eutanásia, como ressalta Paulo José da Costa Junior.[14]
A morte assistida, por sua vez, é considerada crime de Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio:
“Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”
O Código de Ética Médica, por fim, estabelece o seguinte:
“Art. 6º. O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
É vedado ao médico: (…)
Art. 66. Utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal.”
Percebe-se, assim, que a legislação brasileira não admite a eutanásia, legislação esta que pode ser considerada retrógrada, tendo em vista a legislação de outros países.
Dentre os críticos da legislação brasileira, podemos citar Walter Ceneviva, que considera intolerável comparar a eutanásia ativa com a passiva. Segundo ele se distingue “com bastante clareza a situação daqueles cuja morte é adiada mediante recursos científicos que prolongam a vida sem nenhuma utilidade, sem qualquer benefício para o paciente”.
Continua ele:
“As atuais máquinas das unidades de terapia intensiva, que mantém a vida de modo artificial, criaram uma diversa realidade científica, que nada tem a ver com a eutanásia defendida por Sócrates e Platão, criticada por judeus e cristãos. O direito precisa adaptar-se a essa realidade. Precisa encontrar-se com ela, para perceber que os velhos argumentos sobre a eutanásia estão superados, porque estranhos às novas situações. Acham-se desajustados das UTIs com seus técnicos, computadores e cateteres enfiados por todas as artérias dos pacientes. A lei, enquanto direito escrito, está atrasada. Vem a reboque da ciência. Haverá um momento em que a legislação terá de atribuir a alguém (ao cônjuge, ao filho mais velho, ao irmão) o direito e a autoridade de mandar desligar as máquinas.”[15]
Grande parte dos doutrinadores, com visão puramente formalista do Direito Penal, defendem a tipificação da eutanásia e do suicídio assistido. Mas esse enfoque puramente formal merece ser revisado.
Autores como Luis Flávio Gomes defendem que o legislador deveria dar mais atenção ao assunto. Considera ele a eutanásia e a morte assistida condutas não criminosas, pois não existe o resultado desvalioso ou arbitrário. Pelo contrário, o agente atua imbuído em sentimento da mais absoluta nobreza, em prol da dignidade humana. Não se trata, portanto, de morte arbitrária.[16]
Segundo ele, a eutanásia deveria ser autorizada apenas mediante as seguintes condições: o paciente deve estar padecendo de um sofrimento irremediável e insuportável e estar informado do seu estado terminal, sem expectativas de tratamento útil; deverá expressar inequivocamente o consentimento; deverá haver a aprovação de uma junta médica; em caso de inconsciência deverá haver consentimento da família; etc. [17]
Prossegue o autor, sustentando a atipicidade da eutanásia:
“A essa conclusão se chega quando se tem presente a verdadeira e atual extensão do conceito de tipo penal (dado pela teoria constitucionalista do delito, que subscrevemos com base na doutrina de Roxin, Frisch e Zaffaroni), que abrange (a) a dimensão formal-objetiva (conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra da lei); (b) a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e (c) a dimensão subjetiva (nos crimes dolosos).”[18]
A morte digna elimina a dimensão material-normativa do tipo (tipicidade material), pois a morte, neste caso, não é desarrazoada ou reprovável. Não existe, como dito, resultado jurídico negativo. O bem jurídico vida é ponderado em face de outros valores constitucionais igualmente básicos, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição), a liberdade e a autodeterminação (art. 5º).
É certo que o próprio artigo 5º da Constituição assegura a inviolabilidade da vida, mas não existem direitos absolutos. A própria Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) diz que: ninguém pode ser privado da vida “arbitrariamente” (art. 4º). O que se quer dizer é que a morte deve ser punida se for arbitrária, abusiva, desarrazoada. Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em resultado jurídico negativo. Ao contrário, trata-se de resultado aceitável.
Assim, a princípio, o direito a morte digna é constitucionalmente admissível, podendo a eutanásia ser permitida no Brasil por meio de legislação ordinária.
Luis Flávio Gomes finaliza:
“Havendo justo motivo ou razões fundadas, não há como deixar de afastar a tipicidade material do fato (por se tratar de resultado jurídico não desvalioso). Essa conclusão nos parece válida seja para a ortotanásia, seja para a eutanásia, seja para a morte assistida, seja, enfim, para o aborto anencefálico. Em todas essas situações, desde que presentes algumas sérias, razoáveis e comprovadas condições, não se dá uma morte arbitrária ou abusiva ou homicida (isto é, criminosa).”[19]
Para finalizar, importante mencionar que está tramitando no congresso o projeto de lei 126/96, elaborado em 1995, para regulamentar a eutanásia. O projeto prevê a possibilidade de se praticar a eutanásia mediante autorização do paciente e aprovação de uma junta composta por cinco médicos. Parentes também poderão requerer a eutanásia, porém sempre pela via judicial. O Projeto ainda merece aperfeiçoamento e pecou por não aproveitar a experiência dos países que já regularam a eutanásia.
7. A OPINIÃO DA IGREJA CATÓLICA
A Igreja Católica, em 1956, posicionou-se de forma contrária a eutanásia por ser contra a “Lei de Deus”.
O Papa Pio XII, numa alocução aos médicos, em 1957, aceitou, contudo, a possibilidade de que a vida possa ser encurtada como efeito colateral (e não intencional) da utilização de drogas para diminuir o sofrimento de pacientes com dores insuportáveis. Desta forma, utilizando o princípio do duplo efeito, a intenção é diminuir a dor, porém o efeito colateral do tratamento pode ser a aceleração da morte do paciente.
João Paulo II, em 1980, publicou a Declaração sobre Eutanásia,[20] onde admite o tratamento de duplo efeito e a suspensão ou redução de esforços extraordinários para prolongar a vida de pacientes terminais, notadamente quando o tratamento passa a ser considerado inútil (terapia fútil).
Ressalte-se, ainda, que a Igreja Católica já fixou o entendimento que a determinação do momento da morte é um ato estritamente médico, sendo atribuição da ciência da Medicina definir a partir de que ponto um paciente terminal ainda tem vida, tal como entendemos condizente com a do ser humano.
Assim, a suspensão do tratamento de indivíduo com morte encefálica não é condenado pela Igreja, pois a medicina considera a interrupção irreversível da atividade cerebral como marco para a definição da morte. Assim, o desligamento dos equipamentos não chega sequer a ser considerado eutanásia, pois o paciente já está morto.
Registre-se que no Brasil, a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.480/97 estabelece um procedimento clínico uniforme e seguro para se constatar a morte encefálica.
8. ÉTICA MÉDICA, DIREITO À INFORMAÇÃO, VÍCIO DE CONSENTIMENTO E DOR ALIENANTE
Genival Veloso de França tem posicionamento contrário à eutanásia praticada por médico. Segundo ele:
“O médico não pode nem deve, de forma alguma e em nenhuma circunstância, contribuir ativamente para a morte do paciente, pois isso se contrapõe ao seu compromisso profissional e à sua formação moral”.
Afirma ele, ainda, que entre a ação e a omissão do profissional existe apenas um vácuo filosófico, mas a intenção do resultado é a mesma. [21]
Por outro lado, indaga até que ponto o médico teria o direito (ou o dever) de manter os meios de sustentação da vida de paciente com morte encefálica, cujas funções cerebrais são irrecuperáveis.[22]
E mesmo se o direito de decidir recaísse sobre os familiares, podem existir, não raras vezes, interesses materiais em jogo, normalmente relacionados com direitos sucessórios, que podem acabar refletindo em decisões contrárias aos reais interesses do paciente.
O mesmo autor aponta para a real possibilidade do doente, em estado gravíssimo e padecendo de fortes dores, conseguir se autodeterminar racionalmente e autorizar a sua própria morte. Neste caso, pode-se falar em autêntico vicio de consentimento.
A dor crônica certamente é um fator alienante, pois reduz as possibilidades de escolha do paciente à zero, conforme ensina Dworkin. Entretanto, Genival Veloso de França lembra que existem diversos tratamentos que podem reduzir as dores, alguns que acarretam, inclusive seqüelas irreversíveis. Em pacientes terminais, as seqüelas ou a dependência química não são muito relevantes, sendo, portanto, uma conseqüência aceitável. Além das drogas analgésicas existe até mesmo o recurso a intervenções cirúrgicas para seccionar nervos responsáveis pelas sensações dolorosas. Todos estes tratamentos podem certamente ser preferíveis à morte do paciente.
Entretanto, a dor ainda é um campo muito pouco conhecido da Medicina, sendo certo que soluções teóricas simplistas nem sempre se aplicam a todos as situações. Em casos em que nenhum esforço terapêutico surte efeito, a eutanásia desponta sempre como uma saída radical e definitiva.
Certamente que a eutanásia não deve ser banalizada. Trata-se de uma providencia extrema, que só deve ser cogitada depois de esgotadas todas as possibilidades terapêuticas acessíveis e seja insuportável a situação de convalescência do paciente.
Ademais, o paciente terminal, se ainda em condições razoáveis de raciocínio, deve ter o direito de ser informado com detalhes da situação de sua doença, das opções de tratamento, das expectativas de melhora, etc. A visão paternalista comumente associada à medicina deve ser afastada nesse momento, pois o paciente só poderá decidir efetivamente sobre o seu destino se tiver pleno conhecimento dos fatos.
Contar toda a verdade ao paciente, por outro lado, pode ser uma providencia funesta na visão da psicologia. Deve-se, no caso, procurar conciliar o direito de informação com os benefícios obtidos pela motivação psicológica do enfermo.
O tema é difícil de ser esgotado. A abordagem, portanto, deve partir de diversos prismas, em uma ambiência multidisciplinar. A morte digna merece ser estudada não apenas sob o enfoque jurídico, mas também sociológico, psicológico, etc.
9. CONCLUSÕES
A eutanásia e a morte assistida são técnicas de por fim a vida de pacientes em estado terminal e que padecem de dores crônicas e insuportáveis.
Estas modalidades de morte digna não são novidades, eram muito praticadas por povos pré-históricos e na antiguidade. Na verdade, remontam ao início da civilização, decorrentes, talvez, do sentimento mútuo de compaixão e solidariedade humana.
Atualmente, muito se discute sobre a eutanásia, sendo certo que a legislação da maioria dos países civilizados condena tal prática, apesar da mesma ser uma realidade social.
No Brasil a eutanásia é proibida, sendo taxada inclusive como crime. Em outros países, notadamente na Holanda, a prática já é regulada pela lei, sendo utilizada em vários casos, para minimizar o sofrimento de pacientes muito doentes.
Devido aos avanços da medicina, começaram a surgir questionamentos que antes inexistiam, a exemplo do dever moral do médico manter vivo indefinidamente um paciente que se encontra em estado vegetativo, sem a menor condição de recuperação.
Ademais, a legislação penal que trata da eutanásia no Brasil é criticada por estudiosos, sendo taxada como retrógada e descompassada com a realidade social. A descriminalização da eutanásia e a sua regulamentação parecem ser importantes passos a serem seguidos pelo legislador pátrio.
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Procurador Federal em atuação no Estado do Ceará, pesquisador e autor de livros e artigos sobre temas de Direito Administrativo e de Direitos Fundamentais
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