Autora: Thaís Carvalho de Sá – Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: thais1998.carvalho@gmail.com.
Orientador: Agnelo Rocha Nogueira Soares – Professor Mestre do curso de Direito na Universidade de Gurupi – UnirG. E-mail: prof.agnelonogueira@gmail.com.
Resumo: O presente artigo científico aborda o direito constitucional à saúde, temática cada vez mais recorrente no mundo jurídico, diante da crescente demanda ao Judiciário, perfazendo assim, a chamada judicialização da saúde. Em primeiro lugar, expõe-se acerca do direito à saúde e sua eficácia, direito este, fundamental e social garantido pela Constituição Brasileira. Posteriormente, discute-se a atuação do Judiciário na garantia desse direito. Também será analisado o posicionamento da Suprema Corte Brasileira quanto ao fornecimento de fármacos de alto custo, bem como, os problemas que provém dos cumprimentos de medidas judiciais que atendem ao pedido de medicamentos. Nesse contexto, infere-se a notoriedade da missão constitucional do Judiciário ante o dever de atender os anseios da cidadania, ressaltando-se a necessidade de análise casuística dos objetos em demanda.
Palavras-chave: Direito à saúde. Judicialização. Medicamentos de alto custo.
Abstract: The present scientific paper is about the constitutional right to health that has been more and more recurrent in the legal world due to the increasing demand at the Judiciary, resulting in the called ‘judicialization of health’. Firstly, the right to health and effectiveness are explained, what is essential, social, and granted by the Brazilian Constitution. Secondly, the Judiciary performance to guarantee such right. Thirdly, the Brazilian Supreme Court positioning will also be analyzed due to high cost drug request as well as the problems that originate with the judicial measure fulfillment. So, in this context, the constitutional mission notoriety of the Judiciary is inferred in the presence of the citizen’s yearning, highlighting the need of casuistic analysis of the objects in demand.
Keywords: Right to health. Judicialization. High cost medicine.
Sumário: Introdução. 1. Direito Fundamental Social à Saúde. 2. Eficácia das Normas Constitucionais. 3. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 4. Importância do Judiciário na concretização do Direito Social à Saúde. 5. Impactos Provenientes da Judicialização. 6. Análise de caso: Fornecimento de Medicamentos de Alto Custo RE 566471/RN. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Não há dúvidas de que o direito à saúde é um dos mais valiosos direitos estabelecidos em nossa Constituição Federal de 1988, e que está intimamente ligado ao direito à vida, e consequentemente ao direito à dignidade humana. Considera-se, portanto, uma enorme conquista aos brasileiros, muito embora seja desafiador converter esse direito abstrato em real.
O direito à saúde é garantido pela Constituição Cidadã, tanto no seu artigo 6º, quando o consagra como direito social, como no artigo 196, em que esse direito é assegurado a todos, atribuindo-se ao Estado o dever de dispor de serviços para a sua promoção, de maneira universal e igualitária, por meio de políticas sociais e econômicas. Assim, cabe ao ente público a prestação de serviços essenciais à população, no entanto, é cada vez mais frequente a sociedade recorrer à prestação jurisdicional, para alcançar determinado socorro, haja vista a discrepância entre o que é garantido e o que realmente é experenciado.
Um estudo apresentado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) [1] ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que as demandas judiciais relativas à saúde aumentaram 130% entre os anos de 2008 e 2017. Esse dado demonstra a ineficácia do sistema, por esse motivo, o pleito ao judiciário é usado como alternativa plausível diante de tal situação, gerando, por conseguinte, o ativismo judicial.
Diante disso, o Judiciário assume o papel de atuar na preservação de direitos fundamentais, conforme disposto no artigo 5º, inciso XXXV da CF: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Nesse contexto, o juiz defrontando-se com uma demanda que visa assegurar um direito fundamental, é posto diante de situações de vida ou morte e, na maioria dos casos decide pelo provimento, uma vez que é aclamado o direito à saúde, e este deve ser garantido. No que concerne ao pedido de fornecimento de medicamentos de alto custo, ao conceder-se demanda não prevista orçamentariamente a determinado paciente, a Administração Pública é sujeitada a reposicionar verbas que seriam destinadas a outros, de forma coletiva. Desse modo, percebe-se um tratamento desigual perante a sociedade, em contraditório com as diretrizes de igualdade, conforme consagra a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990).
Dada a complexidade da questão envolvida, objetiva-se identificar os impactos trazidos pela a judicialização da saúde, especificamente conceituar o direito fundamental à saúde e sua eficácia, verificar o controle jurisdicional das políticas públicas e análise quanto à sua legitimidade, assim como apresentar casos práticos e ponderar os efeitos trazidos pela judicialização excessiva, especialmente com relação ao fornecimento de medicamento de alto custo. Trata-se de uma pesquisa elaborada a partir de materiais publicados, especialmente: doutrinas, legislação, artigos, jurisprudências, a partir da pesquisa qualitativa, prevalecendo a pesquisa bibliográfica, com a finalidade de realizar uma análise conceitual e jurídica, em busca de apresentar as dificuldades na concretização do direito à saúde.
1. DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE
Os direitos sociais são aqueles que o indivíduo deve exigir uma postura positiva do Estado com o propósito de que este, esteja à disposição daquele, para propiciar prestações de natureza jurídica ou material que efetivam o exercício das liberdades fundamentais e que possibilitam igualar situações sociais desiguais (CUNHA JÚNIOR, 2012, p.759), ou seja, tem como escopo atender a coletividade de maneiro igualitária.
O direito à saúde no Brasil, passa a ser positivado na Constituição Cidadã de 1988, tendo forte influência do Movimento da Reforma Sanitária no início da década de 1970, o que consequentemente trouxe a criação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS). Desse modo, o direito à saúde foi ampliado, materializado no artigo 196 da CF garantindo este direito a todos, razão pela qual demonstra um progresso democrático a população, pois é essencial para obtenção de uma vida digna. Desde então, essa garantia gera debates em busca da efetividade.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua constituição (1946), define saúde como “Um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”. Percebe-se que esta definição é muito mais abrangente, do que apenas a proteção e a recuperação, pois está muito ligada ao termo “promoção” descrito no artigo 2º §1º na Lei 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde), cujo seu objeto é a “alimentação, moradia, saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Artigo 3º da Lei 8.080/90). Desse modo, o direito a saúde está em constante evolução, abrangendo não só o bem estar fisiológico do homem, mas engloba-se também tudo que traz bem estar, estará corroborando na saúde, por conseguinte vivendo-se dignamente.
É consagrado também pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) no artigo XXV que “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica”.
É importante salientar que o constituinte de 1988, traz como fundamento intrínseco ao Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[…]
III – a dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1988)
Uma vez fixando-o como base do Estado Constitucional, o constitucionalista Paulo Bonavides ( 2001, p. 233) preconiza que a densidade do princípio da dignidade da pessoa humana há de ser máximo no sistema constitucional, e caso tenha um princípio no topo da normas deve ser esse, pois todos os ângulos éticos da personalidade são a ele consubstanciado.
Desta maneira, sendo garantido o direito a saúde engloba-se também a dignidade da pessoa humana, isto é, estão intrinsicamente ligados, pois o direito a saúde torna-se condição mínima para uma vida digna.
2. EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Em relação a eficácia das normas constitucionais, o doutrinador José Afonso da Silva (1998, p.82-84), desenvolveu a teoria tripartida clássica brasileira, na qual se dividem em: normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada.
As normas constitucionais de eficácia plena seriam aquelas que a partir da sua entrada em vigor, desde logo, passam a produzir todos os seus efeitos jurídicos essenciais, com incidência direta e imediata. Já as normas constitucionais de eficácia contida, também são capazes de produzir efeito direto e imediato, porém seu alcance é delimitado, podendo sofrer restrições do Poder Público.
De maneira oposta, as normas de eficácia limitada não começam a produzir efeito a partir da entrada em vigor da lei, necessariamente precisam de atuação positiva do Poder Público. Subdividem-se em norma institutiva e programática, sendo que esta última delineia objetivo ético-social, através de programas de ação social, todavia, sujeita-se à vontade política, enquanto aquela não tem conteúdo ético-social, está ligada a parte estrutural, são aquelas que dependem de lei para a criação de instituto e órgãos, por exemplo.
As disposições normativas sobre os direitos sociais, especialmente o direito à saúde, trata-se de uma norma programática, ou seja, precisa de um plano de ação por meio da criação de políticas públicas para sua efetivação, tal qual alerta o Ministro Celso de Mello em seu julgado:
“Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política “não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
3. CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA SAÚDE
O artigo 196 da Carta Política de 1988 consagra o direito a saúde como direito fundamental, passando ser atribuição do Estado criar e executar políticas públicas para que se possibilite acesso universal e igualitário à população. Essa percepção é disciplinada também no artigo 2º da lei 8.080/90, que dispõe “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”
Bucci (2002 p. 241) atesta que políticas públicas “são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.”
Mendes e Branco (2012 p. 924) ressaltam que não cabe ao Poder Judiciário elaborar as políticas públicas sociais e econômicas, mas sim verificar se tais políticas atendem o acesso universal e igualitário à saúde.
O Estado deve garantir, portanto, condições mínimas para viver com dignidade, pois sem o mínimo, torna-se incompatível com o Estado Democrático de Direito. Ana Paula Barcellos (2011, p. 292) conceitua o mínimo existencial como a prestação de “condições materiais básicas para a existência, corresponde a fração nuclear da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer a eficácia jurídica positiva e simétrica.”. Entretanto, muitas vezes a Administração Pública tem levantado a cláusula da reserva do possível como fator limitador à garantia do mínimo existencial, argumento que não merece prosperar, como já definiu o STF:
“A Administração não pode invocar a cláusula da ‘reserva do possível’ a fim de justificar a frustração de direitos previstos na Constituição da República, voltados à garantia da dignidade da pessoa humana, sob o fundamento de insuficiência orçamentária.” (AI 674.764-AgR/PI, Relator Ministro Dias Toffoli)
A cláusula da reserva do possível originou-se na Alemanha, em um caso emblemático chamado numerus clausus, na qual estudantes, não foram aceitos na universidade por insuficiência de vagas, então, postularam ao Judiciário a referida vaga com fundamento no artigo 12 da Lei Fundamental Alemã no qual dispõe que todos têm direito de escolher livremente sua profissão e a instituição onde pretende estudar. O pedido foi negado e se firmou uma jurisprudência entendendo que o pedido de prestação estatal deve ser razoável, e que mesmo o Estado obtendo recurso, não necessariamente deve dispor desses recursos que não estejam dentro de um limite razoável. (SARLET, p. 255, 2012)
Em decisão proferida na ADPF n.º 45/DF, o Min. Celso de Mello consignou o seguinte:
“Desnecessário acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausentes qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos […] a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.”. (ADPF N.º 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004).
Ingo Sarlet (p. 309, 2012) apregoa que a limitação da reserva do possível não são, em si mesma uma falácia, o que tem acontecido de falacioso é usar da cláusula como pretexto de vedação da intervenção judicial, assim como, para justificar a omissão estatal. Ora, se os recursos são insuficientes o Poder Público deve, com fundamento comprovar a indisponibilidade total ou parcial de recursos, atestando o não desperdício de recursos existentes, bem como, seu útil emprego.
Afirma Morozowski (2018) que, não obstante o art. 196 da CF garantir que a saúde é direito de todos e dever do Estado, esse dispositivo não deve ser interpretado como se todos os cidadãos tenham direito a todo e qualquer medicamento, pois não existe direito absoluto, exatamente em razão da falta de recursos disponíveis.
4. IMPORTÂNCIA DO JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
Uma vez não concedido determinado direito pela via administrativa ou nem mesmo ter feito o pedido, o paciente, insatisfeito, busca na via judicial do que se pretende, seja procedimentos hospitalares ou determinado medicamento. O Judiciário então começa a julgar causas individuais ao invés de o Poder Legislativo formular políticas públicas e o Poder Executivo dar a efetiva execução, o que resultaria no bem coletivo, nesse contexto, gera a judicialização da saúde.
Notadamente, a busca ao Judiciário para efetivação da entrega de medicamentos no Brasil, inicia-se na década de 1990, devido a epidemia do vírus da imunodeficiência humana (HIV), assim, devido à crescente demanda, criou-se a lei 9.313/96 determinando a distribuição gratuita dos coquetéis antirretrovirais aos portadores de HIV. Vislumbra-se diante desse cenário que o Estado por meio de políticas públicas trouxe efetividade ao direito à saúde, fruto do controle jurisdicional, servindo como bom parâmetro, já que trouxe alargamento de políticas públicas em saúde, trazendo a universalização do direito ao medicamento.
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 45 foi excepcional na definição de que o Poder Judiciário, ou seja, o Estado-Juiz poderia atuar no controle das políticas públicas, conforme descreve a ementa:
“EMENTA: Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)”.
Certamente o Judiciário deve intervir, mas é importante notar que o exagero de demandas torna-se inviável, onde de um lado temos o jurisdicionado obtendo um atendimento mais célere e de outro temos pacientes que carecem de atendimento, formando um sistema paralelo e não único, ou seja, a solução individualizada de um direito coletivo por meio do Judiciário, não corrobora com a democratização, como afirma Luiz Roberto Barroso (2009 p. 4):
“Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.”
5. IMPACTOS PROVENIENTES DA JUDICIALIZAÇÃO
Num primeiro momento pode-se observar que o Judiciário não tem legitimidade representativa do povo, bem como, não detém de conhecimento de políticas públicas e sua eventual execução, este, está preparado para decidir casos concretos, exercendo a micro justiça, e não a macro a justiça, aquela que prima pela isonomia de tratamento e faz a correta alocação de recursos e definição de prioridades, de responsabilidade do administrador público. (AMARAL, 2001, p. 39; BARCELLOS 2011, p. 356)
Na audiência pública de saúde que aconteceu em 2009[2], Dias Toffoli relata um acontecimento que ficou marcado, descreve:
“Há um caso que ocorreu no interior de São Paulo – eu sou de lá, tenho conhecimento -, em que um juiz, num determinado caso, num único caso individual, bloqueou bens do orçamento municipal da área de saúde para uma determinada parte. Esse prefeito cumpriu a determinação – era uma determinação imediata – e, depois, foi ao juiz, entregou a chave da prefeitura e disse: eu não tenho mais um centavo para gastar na área de saúde, porque todo o meu orçamento foi única e exclusivamente para um único indivíduo. Então, a cláusula do financeiramente possível é extremamente relevante de ser analisada e levada em consideração.”
Quando liminarmente um pedido de medicamento é deferido, por vezes, o valor é bloqueado das contas dos entes e o paciente recebe o dinheiro para fazer a compra, e não se sabe se efetivamente foi realizado a aquisição. Quando não, o ente é responsável pela compra urgente desses medicamentos – normalmente aqueles não incorporados no SUS e de alto custo- abrindo-se porta para desvio, tendo em vista a possibilidade de dispensa de licitação. Ainda mais, esse fármaco será comprado por um valor altíssimo, considerando a falta de prévia cotação de preço.
Outra consequência é essa formação de um sistema paralelo, em que, por óbvio aquela pessoa que tem mais conhecimento de seus direitos ou maior acesso a advogados vão “furar a fila” em detrimento de outros, ferindo a diretriz da igualdade em “assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”, descrito no art. 7º, IV, da Lei 8.080/90.
Há casos em que a judicialização não se faz necessária, pois o medicamento de forma genérica e de igual efeito já está disponível no SUS, mas o médico prescreve um fármaco de marca não padronizado pelo SUS, precisa-se, portanto, do bom senso dos médicos. É claro que se já foram esgotadas as tentativas de melhora e esta não ocorreu, o melhor a se fazer é ouvir e atender o médico, que é o responsável por aquele paciente.
Vale destacar a importância da criação do Núcleos de Apoio Técnico (NATs) por meio da determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), composto por uma equipe multidisciplinar, para subsidiar os magistrados em suas decisões, como também, pela Defensoria Pública e membros do Ministério Público antes do ajuizamento da ação que envolve o SUS, pois na maioria dos casos, a falta de esclarecimento e de saber técnico transporta ao judiciário o problema do sistema de saúde brasileiro. Assim, diminuindo o número de judicialização.
6. ANÁLISE DE CASO: FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO RE 566471/RN
O caso concreto que desencadeou o Recurso Extraordinário 566471/RN, diz respeito a uma ação de obrigação de fazer proposta por uma senhora chamada Carmelita Anunciada de Souza contra o Estado do Rio Grande do Norte, cujo o pedido é o fornecimento ininterrupto de Sildenafil 50mg, medicamento de valor superior a R$ 20 mil por caixa, considerado de alto custo. Em primeira instância foi julgado procedente, reafirmada pelo Tribunal de Justiça Estadual, posteriormente, chegou à apreciação do STF.
O julgamento deste caso pela Suprema Corte teve início em 2016, e estava suspenso devido o pedido de vista do ministro Teori Zavascki. O julgamento foi retomado em sessão plenária no STF em 11 de março de 2020, no qual decidiu-se que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos que não estejam no rol do SUS, mas que em algumas situações poderá ser flexibilizado. No entanto, os critérios de flexibilização ainda serão definidos em posterior julgamento.
É importante desenvolver parâmetros que poderão ser capazes de definir com racionalidade congruente determinada situação. O ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, propõe cinco requisitos cumulativos que devem servir como parâmetros para que o medicamento seja fornecido, são eles:
“(I) a incapacidade financeira do requerente para arcar com o custo correspondente, (II) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes, (III) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS, (IV) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências, e (V) a propositura da demanda necessariamente em face da União.” (Supremo Tribunal Federal. RE 566471 RG. Relator: Ministro Marco Aurélio. Diário da Justiça: 7 dez. 2007, p. 2-3)
Esses critérios são validos, e precisam ser analisados, pois tratam-se sobre o direito à saúde, garantido pela Carta da República, e mesmo diante de valores altos destinados a certo paciente, estes, não devem ficar desassistidos pelo Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois das ponderações expostas ao longo deste estudo, é possível afirmar que apesar do risco de não ser uma decisão democrática, podendo beneficiar somente àqueles individualmente demandantes, a judicialização da saúde é uma prática necessária para atender aos interesses daqueles que sofrem pela a omissão do Estado, para que se faça o possível a fim de aumentar a sobrevida do paciente com qualidade de vida, porém, nesse contexto, as decisões devem ser construídas caso a caso.
O ideal seria o Sistema de Saúde funcionar e atender da forma mais efetiva possível, devendo o poder público promover a concretização do direito à saúde, entretanto, quando necessário, deverá o Poder Judiciário agir para garantir direitos eventualmente atacados pela inércia do poder público.
Nesse contexto, caso se identifique uma escassez de recursos, é preciso, através da elaboração de políticas públicas, gerir os recursos disponíveis de forma eficiente ou incluir o gasto necessário para a concretização dos direitos no orçamento no ano posterior. Ressalta-se aqui a importância da participação democrática dos cidadãos, tanto na formulação como na fiscalização das ações estatais como assevera o artigo 204, II, da Constituição Federal.
A nossa Constituição Cidadã completou seus 32 anos, e resta evidenciado que muitos dos direitos fundamentais nela previstos ainda são intangíveis a grande parte da população. Paulo Bonavides (2001, pag. 381) diz “Concretizar o texto, introduzi-lo na realidade social, eis em verdade o desafio das Constituições brasileiras”. Isto posto, evidentemente, o direito fundamental à saúde no Brasil é deficiente e necessita de avanços e sempre poderá ser aprimorado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] CNJ. Demandas judiciais relativas à saúde crescem 130% em dez anos. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em-dez-anos/> Acesso em: 14 jul. 2020.
[2] Audiência Pública de saúde nº 4, dia 18. 04. 2009. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma > Acesso em: 31 ago. 2020.
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