Direito à vida x Liberdade de crença: ponderação frente aos Direitos da Personalidade

Resumo:O presente artigo traz considerações acerca da PEC 215/00 tratando de sua tramitação e possível aprovação, a referida Proposta de Emenda mudará alguns pontos da Constituição e determinará que a demarcação de terras indígenas passará a ser feita por lei de iniciativa do Executivo, e não mais por decreto, como acontece atualmente, ou seja, com essa medida o Congresso Nacional terá a palavra final sobre novas demarcações. As controvérsias relativas à demarcação de terras indígenas têm como ponto central, justamente o fato de uma dada porção de terras ser ou não considerada indígena, diante das dificuldades relativas ao entendimento do sentido de determinados dispositivos constitucionais, será abordado também quanto ao direito à terra dos povos indígenas e seu processo de demarcação, trazendo os pontos de afetação positivos e negativos de tal medida no que se refere à proteção e estabilidade aos direitos que são inerentes aos nativos, bem como no âmbito jurídico e social de toda uma população que já vem sofrendo duras perdas. Neste artigo utilizou-se de um método exploratório através de técnica bibliográfica simples com o intuito de verificar bibliografia e documentos mais relevantes a fim de obter como resultado, a confirmação ou não da violação de preceitos fundamentais de nossa Carta Magna, e também mostrar as facetas que essa alteração à lei trará de forma positiva ou negativa a liberdade dos indígenas e quanto a demarcação de terras, que sem dúvida é o tema mais relevante no âmbito do Direito Indigenista. [1]

Palavras- chave: Povos Indígenas. Demarcação de Terras. Direito Originário.

Abstract: This article presents considerations about PEC 215/00 regarding its procedure and possible approval, said Amendment Proposal will change certain points of the Constitution and will determine that the demarcation of indigenous lands will be done by law of initiative of the Executive, and not more by decree, as it is now, that is, with this measure the National Congress will have the final word on new demarcations. Controversies relating to the demarcation of indigenous lands have as their central point, precisely the fact that a given portion of land is considered indigenous, in the face of difficulties related to the understanding of the meaning of certain constitutional provisions, will also be approached as to the land rights of indigenous peoples. Indigenous peoples and their process of demarcation, bringing.  the positive and negative aspects of this measure with regard to the protection and stability of the rights inherent to the natives, as well as in the legal and social context of a population that has been suffering losses. In this article we used an exploratory method through a simple bibliographic technique with the purpose of verifying bibliography and more relevant documents in order to obtain as a result, confirmation or not of the violation of fundamental precepts of our Magna Letter, and also show the facets that this amendment to the law will positively or negatively affect the freedom of indigenous peoples and the demarcation of lands, which undoubtedly is the most relevant issue in the context of Indigenous Law.

Keywords: Indigenous Peoples. Demarcation of Lands. Right of Origin.

Sumário: Introdução; 1. Da natureza jurídica das terras indígenas; 2. Breve histórico sobre a evolução da questão indígena no Brasil Colonial; 3. Extensão no território brasileiro; 4. Do direito a posse tradicional dos índios; 5. Do processo de demarcação; 5.1. O caminho da regularização; 6. PEC 215/00 e seus efeitos; 6.1. Impactos sobre os povos indígenas. 7. Considerações finais.

INTRODUÇÃO

A diversidade étnica brasileira é uma característica que faz do Brasil um país multicultural, graças ao patrimônio cultural dos diversos grupos sociais formadores da sociedade nacional, dentre as várias contribuições desses inúmeros grupos destacam-se as dos povos indígenas, povos considerados nativos uma vez que originariamente constituíram comunidades locais nas terras brasileiras, pelas quais lutaram arduamente e incansavelmente contra a ação arrebatadora dos colonizadores europeus.

Durante muito tempo houve bastante sofrimento para os povos indígenas, mas apesar disso, muitos resistiram e atualmente os índios são reconhecidos como sujeitos de direitos, que devem ser promovidos e protegidos pela ordem jurídica nacional, em razão da proteção do patrimônio cultural da humanidade, da qual faz parte a identidade indígena.

Os indígenas estão profundamente ligados à preservação e sustentabilidade do meio ambiente, por serem moradores originários desta terra e possuidores de cultura e definições próprias de nação, e em 1988 depois de muita luta por seus direitos, conseguiu-se incluir à Constituição Federal os artigos que garantem a posse das terras aos índios, bem como a demarcação que se enquadrarem como tradicionalmente ocupadas na data da promulgação da Constituição da República.

O presente artigo fará uma análise dessas populações indígenas, principalmente no que se refere aos direitos fundamentais a elas reconhecidos, fazendo também um levantamento sobre a evolução histórica do direito indigenista quanto à terra tanto no plano constitucional, quanto no infraconstitucional.

Para chegar às informações que serão expostas no desenvolvimento do artigo, foram empregados como procedimento metodológico o estudo bibliográfico de obras e artigos à temática.

No primeiro momento o trabalho abordará quanto a natureza jurídica das terras indígenas, onde será tratado sobre o teor do que consta no art. 231 da Constituição Federal, explanando sobre os pressupostos que levam às terras a serem consideradas tradicionalmente ocupadas pelos índios. Seguidamente mostrará um percurso sobre a questão indígena desde o descobrimento do Brasil, no período colonial até a situação atual, mostrando a evolução quanto a discussão referente aos direitos indigenistas, apresentando também quanto à extensão territorial nacional que atualmente se encontra os povos nativos.

Dito isto, o trabalho passará à análise quanto a posse tradicional dos indígenas, que está prevista no art. 24 do Estatuto do Índio, referindo-se ao usufruto assegurado aos índios ou silvícolas das terras e expondo suas modalidades, logo  adiante será discutido sobre todo o procedimento de demarcação das terras, que atualmente é regulamentada pela União e é presidida pela FUNAI, dado isso, chegará à discussão principal do trabalho, onde se pontuará os efeitos da PEC 215/00, expondo os impactos sobre os povos indígenas, e esclarecendo quanto a discussão, de a referida Proposta de Emenda ser ou não constitucional.

1-DA NATUREZA JURÍDICA DAS TERRAS INDÍGENAS

A Constituição Federal em seu art. 231, garante às comunidades indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e incumbe a União de demarcá-la, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

A finalidade e sentido da atribuição à União para que se regulamente as terras tradicionalmente em posse dos índios é para uma maior segurança e proteção dos direitos indígenas a essa terra. De um lado, a terra possui um significado para a sobrevivência física, mas sobretudo existe o lado da sobrevivência cultural dos índios, então, além da importante relevância sobre a garantia da existência da questão indígena, há também a questão da terra com a fé indígena e os seus conhecimentos.

As terras indígenas são fundamentais à preservação cultural das comunidades que nela vivem e a Constituição estabeleceu um conceito abrangente das “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, onde possui quatro pressupostos:

– Que a terra seja habitada pelos índios em caráter permanente,

– Que os índios utilizem a terra para atividade produtivas,

– Que a terra seja necessária para a manutenção dos recursos indispensáveis ao bem estar dos índios e

– Que a terra seja necessária à reprodução física e cultural, pressupostos estes que estão elencados no parágrafo 1º do artigo 231 da Constituição Federal;

“§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Estes pressupostos são comprovados através de laudos antropológicos, porém não é exigida pela Constituição a imemorialidade da ocupação, ou seja, a ocupação desde o descobrimento do Brasil, para ser identificada como terra indígena, pois o texto constitucional consagrou o indigenato, um instituto de origem luso-brasileira que de acordo com essa noção jurídica os direitos aos índios conferidos são fundadas pelo fato de que eles são os senhores originários e naturais da terra se tratando, portanto, ao direito inato, enquanto que os direitos de outros são adquiridos, como os índios vieram antes mesmo do surgimento do Estado, cabe a este não conceder aos índios esses direitos, mas tão somente reconhecer sua existência.

2- BREVE HISTÓRICO SOBRE A EVOLUÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL COLONIAL

Desde os primórdios do Brasil o índio era escravizado e levado para Portugal, e foi em 1500 que a escravidão passou a ser legalmente permitida e institucionalizada na vida econômica de Portugal. O Direito Civil português possui normas expressas sobre a escravidão, as chamadas Ordenações Manuelinas de 1521.

Durante todo o período colonial a exploração da mão de obra indígena foicombustível para parte política econômica do Brasil e se prolongou até o período Imperial, somente em 1831 através de lei de modo irrestrito e permanente foi proibida a exploração.

No período inicial de adaptação quanto a infraestrutura econômica do país a escravidão representava para os portugueses necessidade econômica devido a intensa administração latifundiária e mesmo mais tarde, nos ciclos econômicos posteriores ainda se optava pela mão de obra do índio devidos aos custos serem mais baixos em relação aos negros, o problema da escravidão indígena se tornou o grande ponto central da política indígena portuguesa durante esse período, em função da intensa necessidade econômica dos latifundiários.

A reforma mais significativa quanto a esta questão da escravidão se deu pela Lei de 06 de junho de 1755, onde foi proclamado para o Estado de Maranhão a liberdade irrestrita do índio e como consequência deu ao índio a liberdade de decidir se iriam, e para quem eles gostariam de trabalhar, porém esse mandado legal de liberdade dos índios foi ignorado parcialmente pelo então governador do Maranhão, Mendonça Furtado.

Mais tarde, mais uma vez a liberdade do índio foi confirmada através da carta de Dom João VI, de 12 de maio de 1798 e até o final do período colonial não houve outra ação legislativa que se relacionasse com a liberdade dos índios ou à sua escravidão, e em 1832 a escravidão foi extinta.

Nas palavras de Emanuel Kayser Hartmut (2010, p. 168), pode-se perceber que durante o período colonial o tratamento jurídico voltado para a questão indígena no Brasil foi caracterizado por uma política de submissão, de opressão religiosa e cultural, de exploração econômica e de desapropriação para ônus dos indígenas, sob forma de catequese obrigatória legalmente permitida, trabalho forçado, escravidão, guerras e tomada de terras. Com base nas ordens administrativas fundamentais para o governo central em 1548, foram realizadas guerras contra os povos indígenas que se defendiam das invasões, principalmente nas áreas exploradas pelos portugueses, durante todo o período colonial, e a consequência das guerras foi sem dúvida a expulsão ou o extermínio dos índios.

Ainda no decorrer dessa trajetória em busca de direitos que fossem verdadeiramente reconhecidos, foi possível assegurar pela primeira vez por Portugal durante a União Ibérica em 1609,a propriedade da terra indígena, e confirmada durante toda a legislação colonial que se seguiu, mas devidos a escravidão e as guerras e as consequências que dela sobrevieram, as garantias de propriedade não obtiveram grandes efeitos práticos que oferecesse proteção.

O direito colonial indígena e sua aplicação provocaram no contexto político, a dramática e extensa redução da população indígena que por fim se tornou numericamente não mais do que uma fração da população existente em 1500.

Como se não bastasse, logo mais os povos indígenas se tornaram também empecilho para expansão territorial da sociedade nacional, como aborda  Emanuel Kayser Hartmut (2010, p. 1790), que durante a monarquia a submissão dos povos indígenas hostis já havia sido amplamente realizada, a resistência remanescente foi superada pelo uso de recursos não-bélicos, por isso a escravidão indígena, que foi proibida desde 1831 não tinha mais a qualquer importância, assim como as guerras contra os povos indígenas com a finalidade de assegurar o domínio, a obrigação estabelecida legalmente dos índios pacificados à prestação de trabalho forçado, não foi, no entanto, prejudicada, pois o foco da política indígena do império encontrava-se na área da política de terras, como os índios atrapalhavam a expansão territorial da sociedade nacional, foram procuradas alternativas que possibilitasse o povoamento de território indígena, por isso a tomada de terras indígenas continuou por outros  meios com  a lei da terra de 1850, e numerosas aldeias foram extintas pelos parlamentos das províncias e ocorreu a expropriação das terras indígenas em favor dos particulares.

3- EXTENSÃO NO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Apesar do equívoco histórico, que levou à designação índio, para os primeiros habitantes do Brasil, onde as expressões utilizadas usualmente eram gentios, os nativos são chamados hoje predominantemente como índio no Direito Brasileiro. Desde o descobrimento do Brasil em 1500 até a década de 1970 a população indígena brasileira sofreu em uma escala decrescente e como consequência muitos povos foram extintos, algo visto como lamentável, porém inevitável. Contudo ao longo das últimas décadas do século XX esse quadro foi se modificando, e em 1991, o IBGE incluiu os indígenas no censo demográfico nacional, o número de brasileiros que se consideravam enquadrados nas características indígenas cresceu 150% na década de 90, o ritmo de crescimento foi quase seis vezes maior que o da população em geral, o percentual de indígenas em relação à população total brasileira saltou de 0,2% em 1991 para 0,4% em 2000, totalizando 734 mil pessoas.

Segundo a Fundação Nacional do Índio, são conhecidos no Brasil 225(duzentos e vinte e cinco) povos indígenas, que se caracterizam por sua enorme diversidade, que se constata não apenas em relação à sociedade nacional brasileira, mas também na comparação dos povos indígenas entre si, nos aspectos linguísticos e culturais, e pode se analisar também pelo grau de contato com a sociedade nacional, portanto não é possível estimar com exatidão ao número total de povos indígenas, visto que ainda subsiste povos que não possuem nenhum tipo de contato com o Estado Brasileiro e o mundo exterior, ou seja, são completamente isolados.

De acordo com dados mais recentes obtidos pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), no Brasil há cerca de 462 (quatrocentos e sessenta e duas) terras indígenas regularizadas, ou seja, demarcadas,  que representam cerca de 12,2% do território nacional, tendo sua maior concentração na região da Amazônia Legal e isso se deu devido a processos de demarcações inicializados na década de 1980 no âmbito da política de integração nacional e consolidação da fronteira econômica do Norte e Noroeste do País.

Mas ao se falar sobre a terra, refere-se diretamente ao habitat para a cultura indígena, lugar esse, onde as comunidades que se formam mantêm profundo vínculo afetivo e  sobretudo espiritual é na terra que os integrantes dessas comunidades sentem a liberdade de viverem conforme seus costumes, tradições e dessa forma conseguindo reproduzi-la e refleti-las para as próximas gerações a garantia do direito à terra é, portanto, condição “sinequa non” para a proteção de todos os demais direitos dos indígenas.

4- DO DIREITO A POSSE TRADICIONAL DOS ÍNDIOS

Há duas consequências jurídicas que ficaram estabelecidas pela Constituição sobre a posse tradicional dos índios à terra que são, a garantia da posse futura e o direito dos índios ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos, cuja concretização deve ser consolidada através de outras normas o direito ao uso desses recursos abrange art. 24 do Estatuto do Índio, especialmente os direitos a caça e pesca de coleta, assim como o direito à obtenção de extratos vegetais. 

“Art. 24. O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.

§ 1° Incluem-se, no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos nas terras ocupadas.

§ 2° É garantido ao índio o exclusivo exercício da caça e pesca nas áreas por ele ocupadas, devendo ser executadas por forma suasória as medidas de polícia que em relação a ele eventualmente tiverem de ser aplicadas”.

Nos termos da Constituição da República e do Estatuto do Índio e Decreto n° 1.775/96 atual legislação vigente, as terras indígenas podem ser classificadas nas seguintes modalidades:

1) Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas: São as terras indígenas de que trata o art. 231 da Constituição Federal de 1988, direito originário dos povos indígenas, cujo processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto n. º 1775/96.

2) Reservas Indígenas: São doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, que se destinam à posse permanente dos povos indígenas. São terras que também pertencem ao patrimônio da União, mas não se confundem com as terras de ocupação tradicional existem terras indígenas, no entanto, que foram reservadas pelos estados-membros, principalmente durante a primeira metade do século XX, que são reconhecidas como de ocupação tradicional.

3) Terras Dominiais: São as de propriedade das comunidades indígenas, havidas, por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.

4). Interditadas: São áreas interditadas pela FUNAI para proteção dos povos e grupos indígenas isolados, com o estabelecimento de restrição de ingresso e trânsito de terceiros na área. A interdição da área pode ser realizada concomitantemente ou não com o processo de demarcação, disciplinado pelo Decreto n. º 1775/96 (FUNAI, 2015).

5- DO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO

Com a intenção de garantir os direitos especiais territoriais, Emanuel Kayser Hartmut (2010, p. 247) frisa fragmentos da Carta Magna, onde dispõe sobre a responsabilidade da União:

“A obrigação de demarcação é um instrumento importantíssimo, e quem ficou incumbido de regulamentar estas terras foi a União, de acordo com o caput do artigo 231 da Constituição Federal, dessa forma a Constituição obriga a União de estabelecer os limites das terras que os índios tradicionalmente ocupam, o que na falta dessa verificação causa incertezas jurídicas referente a responsabilidade governamental em relação a vigilância e a proteção dessas terras o que evita possíveis conflitos sobre a posse”.

Esta proteção é atribuída pela Constituição, pois os Estados federais e os municípios não podem agir referente a este assunto e compete à FUNAI a proteção extrajudicial podendo se valer de auxílio da Polícia Federal e das Forças Armadas para garantir a proteção das terras ocupadas pelos índios e pelas comunidades indígenas, conforme dispõe o art. 35 do Estatuto do Índio.

5.1 O CAMINHO DA REGULARIZAÇÃO

Todo o procedimento para regularizar as terras é presidido pela Funai, o órgão do governo que estabelece e executa a Política Indígena no Brasil, as organizadoras Flávia Piovesan e Maria Garcia abordam de forma clara em sua obra esse processo que e se desenvolve em 10 etapas (2011, p.237)

1) “Estudo antropológico de Identificação: através de estudos será apontado como se deu a ocupação de determinado grupo étnico indígena observando critérios culturais.

2) Formação de grupo técnico organizado: o grupo é coordenado por antropólogo que ao final apresenta Relatório circunstanciado de identificação e delimitação através de estudos de caráter ambiental, histórico, etno- histórico, cartográfico que é necessário para demonstrar ocupação tradicional e apresentação de proposta de delimitação de área.

3) Aprovação do Relatório Circunstanciado: no prazo de quinze dias após a aprovação pela Presidência da Funai será, portanto, publicado resumo dos estudos nos diários oficiais da União e Estados.

4) Contraditório: quaisquer manifestações quanto ao procedimento podem ser apresentadas desde o início dos trabalhos de identificação até noventa dias depois da publicação, onde a Funai responde eventuais contestações no prazo de sessenta dias e encaminha processos de identificação e de contestação para a apreciação pelo Ministério da Justiça.

5) Haverá a emissão de Portaria Declarando pelo Ministério da Justiça, reprovações ou solicitações de diligências.

6) Demarcação Física: a materialização dos limites é feita apenas nas linhas secas, através de abertura de picadas, implantação de marcos e placas indicativas e medição topográfica e geodésica, os limites naturais são definidos através de conversão digital das cartas topográficas. Em seguida é elaborado o mapa e o memorial descritivo da demarcação, que instrui o decreto de homologação do Presidente da República.

7) Ocorre então a Homologação do Presidente da República.

8) Atualização do levantamento fundiário e cadastro pelo Incra.

9) Seguirá o Registro no Cartório de Registro de Imóveis e anotação na Secretaria de Patrimônio da União-SPU.

10) Regularização Fundiária: quando ocupações forem feitas de boa-fé, a legislação prevê o pagamento de indenizações relativas a benfeitorias derivadas dessa modalidade de ação.”

É sabido, que a princípio não é necessário a publicidade do registro aos bens da União com a intenção de se tornar válido aos direitos de seus titulares, mas é perceptível a presença cada vez mais marcante do Registro de Imóveis como um importante instrumento que reforça a publicidade legal.

6- PEC 215/00 E SEUS EFEITOS

Em 2000, o deputado federal Almir Moraes de Sá, do Partido da República (PR-RR), apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) denominada  215, através dessa PEC, foi proposto que as demarcações de terras indígenas, a titulação dos territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental passassem a ser uma responsabilidade do Congresso Nacional, ou seja, uma atribuição dos deputados federais e senadores, e não mais do poder Executivo, como é atualmente, porém neste presente trabalho será abordado especificamente no se que refere as demarcações de terras indígenas.

Em 2004, a PEC 215 foi apresentada a comissão de deputados chamada Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. O deputado Luiz Couto, do Partido dos Trabalhadores do estado de Pernambuco (PT-PE), foi escolhido para fazer um parecer sobre esta proposta e pediu o arquivamento dela por entender que ela seria inconstitucional, mas somente no início de 2015, o deputado Luís Carlos Heinze do Partido Progressista o Rio Grande do Sul (PP-RS) entrou com um pedido de desarquivamento da PEC e no dia 17 de março, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) reinstalou a Comissão Especial, Atualmente aguarda publicação para apreciação do plenário.

A proposta da PEC 215/00 é fazer modificações no texto Constitucional nos artigos 49 e 231:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

XVIII – Aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas.

Art. 231 São reconhecidos aos índios (…) e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Parágrafo 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.”

Com a aprovação da PEC o artigo passará a ser lido assim:

“As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis.”

Além dessas alterações, com a aprovação definitiva da PEC, ocorrerá alteração também no  Decreto 1775 de 1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, diz que essa mudança será feita através de uma Lei Ordinária, portanto os deputados elaborarão a lei, que irá descrever o procedimento da demarcação de terras indígenas o sítio da Câmara dos Deputados disponibiliza o inteiro teor da proposta:

“PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 215, DE 2000 (Do Sr. Almir Sá e outros) Acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o § 42 e acrescenta o § 82 ambos no Art. 231, da Constituição Federal.

(Apense-se à Proposta de Emenda à Constituição nº 153, de 1995) As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:(…) No sistema de mútuo controle entre os Poderes da: República, adotado pela Constituição Brasileira, busca-se o necessário equilíbrio para evitar que no desempenho desmedido das respectivas competências se criem entraves na área de atribuição de outro Poder OU de outra esfera de Poder. Assim, por exemplo, pode o Congresso sustar ato normativo do Executivo, sempre que este exorbite o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa; por sua vez, o Executivo dispõe do poder de edição de medidas provisórias, antecipando-se a, ou determinando, a iniciativa legislativa do Congresso. No caso da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, verifica-se que implementada a atribuição pela União Federal no caso, por meio do Poder Executivo – sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos estados-membros, têm criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação. No fim e ao cabo, a demarcação das terras indígenas consubstancia-se em verdadeira intervenção em território estadual, com a diferença fundamental de que, neste caso e ao contrário da intervenção prevista no inciso IV do art. 49, nenhum mecanismo há para controlá-Ia, ou seja, a falta de critérios estabelecidos em lei torna a demarcação unilateral. Por isso, e valendo-se do próprio precedente constitucional, que exige a aprovação congressual para a intervenção federal, é que se propõe a presente emenda à Constituição, para que o Congresso, em conjunto com as partes interessadas na demarcação, passem a aprovar a demarcação das terras indígenas. É mantida a atribuição da União Federal e, assim, preservada a separação entre os Poderes, ao mesmo tempo em que se estabelece um mecanismo de convalidação ao desempenho concreto daquela competência. Coerentemente, prevê-se que o Congresso ratifique as demarcações já homologadas. Ao contrário do que a alguns possa parecer, com tal providência outorga-se um inédito nível de segurança jurídica às demarcações das terras indígenas, na medida em que, tendo-se pronunciado sobre elas o Poder que representa o povo e as unidades federativas, ficarão absolutamente isentas de qualquer questionamento. Por tais razões, a que se espera o acréscimo das demais que inspirem os nobres pares, solicita-se a aprovação desta proposta. Sala de Sessões, 28 de março de 2000. – Deputado Almir Sá

Nesse contexto o relator usou como bases que a demarcação de terras indígenas seria   efetivamente uma intervenção federal em território estadual, que nesse caso e ao contrário da intervenção prevista no inciso IV do artigo 49, nenhuma forma há para controlá-la, ou seja, a falta de critérios em lei torna a demarcação unilateral.

A emenda de n° 215 traz como fundo que tal proposta é constitucional uma vez que o Poder Executivo vem identificando e demarcando de forma privada terras indígenas, e que o art. 231 da CF expressa “competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, assim nestas circunstâncias a referida emenda expressa que não houve indicação de qual poder refere-se tal tarefa.

Portanto o principal núcleo da proposta é de que a mesma é constitucional uma vez que em seu entendimento não interfere em cláusulas pétreas, e seria justa a interferência do legislativo uma vez que a união interfere nos territórios estaduais ao homologar terras indígenas.

Após a propositura da PEC, houve grandes discussões, uma vez que pode ser considerada inconstitucional sob alguns prismas, entre eles se ressalta que deve haver equilíbrio ao revisar cláusulas para eventuais emendas, pois conforme o mundo possui sua mudanças  o direito não pode parar no tempo, mas ocorre que, estas cláusulas não são mero reflexo de direito contidos em nossas leis, mas estão previstas em nossa mais alta carta para garantir direitos fundamentais do povo, assegurando segurança jurídica, para que não haja subterfúgio de grupos bem posicionados no intuito de manipular direito de todos pelo bem de poucos.

A referida emenda não fere apenas a cláusula dos três poderes, mas também direitos e garantias individuais previstos no § 4°, IV da CF 88, artigo este que não pode ser interpretado engessadamente, uma vez que os direitos e garantias individuais vão além dos artigos 5° e 17° da Carta da República, como direitos políticos, proteção ao consumidor, direitos sociais entre outros princípios, mas que substancialmente estão todos ligados ao princípio da dignidade da pessoa, que vem como princípio fundamental expresso no art. 1°, inciso III Constituição Federal de 1988. Não há como se referir a direitos e garantias individuais sem ligá-los aos direitos humanos, portanto mais que evidente a conexão de tal princípio ao direito às terras dos povos indígenas, consagrado em seu art. 231.

6.1 IMPACTOS SOBRE OS POVOS INDÍGENAS

Após a aprovação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988, os direitos indígenas foram lentamente, sendo colocados em prática algumas poucas terras foram sendo demarcadas, e conforme as demarcações foram aumentando também cresceram as manifestações contra esse direito dos indígenas entre elas, pessoas, empresas e, principalmente fazendeiros e donos de empresas mineradoras começaram a se manifestar contra.

Desde então, a luta e movimentação dos povos indígenas, juntamente com seus aliados e parceiros tem sido nesse combate contra a redução dos direitos já existentes.

Portanto a PEC 215 é uma desconsideração aos direitos individuais dos povos indígenas, uma vez que para eles a terra representa sua cultura e seu modo de vida, o índio sem suas terras perde sua identidade.

7- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ser elaborada a Constituição de 1988, houve o reconhecimento aos povos indígenas seu direito a tradições, organização social, língua, crenças e a terras tradicionalmente ocupadas, tais terras são bens da União com intuito de preservar e garantir os direitos indígenas sobre as terras que, portanto, são inalienáveis, indisponíveis e o direito sobre elas é imprescritível.

As terras já demarcadas e as que ainda serão, constituem em apenas a posse aos indígenas, uma vez que o domínio é da União que deve demarcá-las, mas deve se ressaltar que o direito indígena não depende de demarcação, a constituição de 1988 declarada como cidadã, assumiu com os povos indígenas um compromisso de demarcar todas as terras em cinco anos, mas era um momento muito diferente do que se vive hoje, o país tinha a preocupação de assegurar a vida e o bem estar da diversidade brasileira, mas principalmente do meio ambiente e a pauta era essa, mas o tempo foi mudando os interesses do representantes, que também são financiados por grandes corporações, a bancada ruralista já soma mais de 160 deputados e 24 senadores, que estão à frente de projetos polêmicos como a alteração do Código Florestal, o enfraquecimento de obras ambientais e a PEC 215.

A referida emenda proposta pelo Deputado Almir Sá, gera inúmeras discussões, pois ao pretender modificar atribuição do Executivo de homologar as demarcações das terras indígenas para o legislativo, estaria interferindo em cláusula pétrea, mas tem de se analisar, que as demarcações são atos administrativos, pois apenas reconhecem um direito já existente, reconhecido na data da promulgação da república.

O processo de homologação dos territórios indígenas requer laudos antropológicos e estudos técnicos; desta forma o executivo apenas reconhece aos indígenas seus direitos originários a terra, com essa emenda as demarcações estarão nas mãos daqueles que priorizam a agricultura capitalista porém não há como esquecer que a referida emenda prejudica não só o direito às terras, e ultrapassa seus limites ao querer interferir em cláusulas pétreas bem como afronta o princípio da dignidade da pessoa, uma vez, que o índio sem-terra não tem identidade, o que acaba ocasionando inúmeros problemas sociais.

Esta luta não é apenas das nações indígenas ou comunidades quilombolas, mas está entranhada a um modelo de sociedade do país se aprovada não só será um retrocesso, mas um perigo aos direitos adquiridos de todos sem distinção.

A demarcação é ato administrativo de mero reconhecimento, portanto não cabe ao poder legislativo, permitir-se alterar cláusulas que são consideradas essenciais aos direitos, como as cláusulas pétreas não restará nada do restante dos direitos, diante de toda a análise proposta  evidencia-se que a demarcação de terras indígenas, são direitos adquiridos com a promulgação da mais alta carta em 1988, declarando que o Executivo é responsável por sua homologação, pois ao homologar tais glebas reconhece por ato administrativo e de caráter técnico que as mesmas são tradicionalmente ocupadas, se aprovada trará resultados catastróficos aos povos indígenas e quilombolas, pois a terra para eles é reflexo de sua própria cultura, e está ligada à sua constituição como indivíduo.

 

Referências
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Nota
[1]Artigo orientado pelo Prof. Osnilson Rodrigues Silva, Professor do Curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins; Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins; Orientador deste artigo de conclusão de curso;

Informações Sobre o Autor

Rubia Mara Silva

Acadêmica de Direito na Faculdade Pitágoras de Betim


Equipe Âmbito Jurídico

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