Resumo: Se de um lado a questão agrária no Brasil sempre foi marcada por arbitrariedade, pelo excesso de poder das autoridades e pela inexistência de um programa social sério capaz de redistribuir igualitariamente as terras, por outro lado, temos um Judiciário desatento às condições de vida precárias de uma parcela da população que não tem um lugar para poder morar e constituir uma família. Existem, portanto, deficiências de diversas órbitas e que desembocam em massacres, em casos trágicos, os quais demonstram sucessivamente o impasse entre Estado, sociedade e os movimentos sociais da terra. O caso da Fazenda Rio Novo, em Querência do Norte/PR, mostrou mais uma vez a deficiência do aparato estatal ao despejar pessoas de uma terra improdutiva. Mais uma vez as falhas deram lugar a ofensas ao princípio constitucional da dignidade humana (e princípios correlatos) e ao princípio da função social da propriedade. Cabe ressaltar que é importante colocar todo esse cenário nos aspectos norteadores do capitalismo, no qual não é prioridade a inserção de todos os indivíduos na força ativa e produtiva nacional.[1]
Palavras-chave: Direito agrário brasileiro; Fazenda Rio Novo; Movimentos sociais da terra; Aspectos jurídicos.
Sumário: 1. Introdução. 2. O despejo da fazenda Rio Novo, Querência do Nnorte, Paraná. 3. A questão agrária no Brasil e a formação do MST no Paraná. 4. Análise dos aspectos jurídicos. 5. Conclusão. Referências.
“A polícia chegou à uma da madrugada. Tive sorte de conseguir vestir as calças, antes de me arrastarem para fora. Os dois policiais que entraram no meu barraco se comportaram melhor que os outros. Entendiam nossa situação. Sentiam até pena de nós, enquanto outros chegavam furiosos, gritando, xingando e batendo nos barracos. Fizeram a gente deitar na lama mais de cinco horas. Estava muito frio e não me deixaram vestir uma camisa, até o amanhecer (…). A gente não foi nem ouvido no Fórum, só viemos no Fórum, o escrivão deu o alvará de soltura pra nós, não tinha como me processar, eu não devia nada, não devo nada, né?”[2]
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo discutir o direito agrário do Brasil, partindo-se da repressão agrária no estado federado do Paraná na perspectiva dos princípios basilares do Governo Federal moldado às formas capitalistas, no fim do século XX. Isso porque foi com a modernidade que a população rural, não somente no Brasil, mas também em vários outros países latino-americanos, passou a acreditar nas promessas da reforma agrária.
Sem dúvida, logo após a Segunda Guerra Mundial, houve várias reformas de arrendamento e até a nacionalização e coletivização da terra pelo mundo afora, como na Europa Oriental e na China.
O Brasil, desde sua criação, passa por enormes dificuldades quando se fala na estrutura fundiária. Nos últimos anos, vários acontecimentos efervescem à opinião pública com notícias de que os movimentos sociais da terra agiram de forma ilegal e não ética, os atos de vandalismo do MST acabaram levando a lesões individuais. Percebe-se que a comunicação social pública não trata o assunto como um reflexo sociológico e também crítico.
Na imagem dos brasileiros, o movimento social é composto por baderneiros, sem nenhuma perspectiva, sem nenhum ideal. Tal quadro é preocupante e torna difícil o entendimento coletivo da verdadeira atuação dos movimentos pela terra.
Nesse contexto, justifica-se a escolha do caso ocorrido na Fazenda Rio Novo, Querência do Norte, no estado federado do Paraná. O estudo de caso e a revisão bibliográfica permitirão alcançar o objetivo geral, já elucidado, e os objetivos específicos, quais sejam, detectar os pontos jurídicos envolvidos no caso em comento e refletir sobre os aspectos sociológicos e políticos da Questão Agrária no Brasil.
O tema proposto, portanto, é a repressão dos movimentos sociais da terra, na luta por políticas públicas sociais e pela dignidade da pessoa humana. A questão ora problematizada se trata de como as ações do Estado estão imbricadas nas relações de poder desde os atos judiciais até os mandamentos governamentais e legislativos.
No paradigma do Estado capitalista, cabe ao Judiciário buscar respeitar, antes de tudo, a dignidade da pessoa humana e não apenas aplicar uma lei, temendo um possível vício de forma. Válido ressaltar que a questão fundiária (ou agrária) é cada vez mais uma conjunção de esforços entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e cabe a sociedade compreender o real valor e sentido dos movimentos sociais da terra.
2 O DESPEJO DA FAZENDA RIO NOVO, QUERÊNCIA DO NORTE, PARANÁ
Curitiba, 20 de maio de 1999. Em audiência pública com José Gregori, então secretário nacional de Direitos Humanos, a lavradora Adelina Ventura Nunes de 34 anos, despejada da Fazenda Rio Novo, depõe:
“Meu nome é Adelina Ventura, eu sou de Querência do Norte, eu morava naquele morro que foi despejado no dia 6 [de maio de 1999], na madrugada talvez 1hora, 1 e pouco da manhã. Nós tava dormindo neste horário, tava eu com as crianças sozinha na minha casa, só esse menino que tá ali e a menina de dez anos, eles chegaram com facão, com faca nas mãos, gritando muito alto e desesperado, assim: Polícia, polícia! Sai todo mundo com as mão pra cima! E eu acordei na hora com aquele barulhão e eles já tavam no portão das lona, peguei esse no colo, saímo, fomo ali até o meio do barraco, né, que eles tavam rodeado, assim, nos portão todos entrando, e no escuro, eu saí com as criança no colo.”[3]
Os proprietários de terra e a polícia planejaram a ofensiva cuidadosamente. Na noite de sexta-feira, 7 de maio, chegaram 2 mil policiais à região, com ordens de despejo para 34 áreas, acompanhados de dois oficiais de justiça, para fiscalizar a operação. Dois funcionários da Polícia Civil também participavam da operação, preparados para emitir ordens de prisão caso os membros do MST cometessem delitos durante o despejo. Como primeira providência, a polícia fechou as entradas ao redor de Querência do Norte. Tomaram os bonés e camisetas do MST, queimando ou rasgando-os. Atitudes rudes para quem pensa que se mata uma ideia; a ideia do Movimento jamais morreria ou seria queimada. Fizeram ameaças. Grupos de 200 ou 250 policiais foram enviados para desalojar as famílias do movimento em seis fazendas, até mesmo em Rio Novo, onde Adelina Ventura estava acampada. Nem jornalista, nem advogados podiam entrar. Foram despejadas cerca de 2 mil pessoas. Em fazendas vizinhas, a Polícia obrigou despejados a comerem esterco de vaca.
O Secretário de Segurança Pública, à época, Cândido Martins de Oliveira culpou o Movimento Sem Terra pelo ocorrido. Numa entrevista citada na revista Caros Amigos, no auge da ofensiva, afirmou que “nos últimos anos, a partir de 1997, 1998 para cá, o MST passou a invadir áreas produtivas. Nós temos hoje mais de 20 áreas produtivas com laudos técnicos do INCRA considerando áreas absolutamente produtivas e que foram invadidas. […] Começou a vir gente do Mato Grosso, Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e brasiguaios. Transformou-se nuca correia de transmissão de tal forma que não há como atender à demanda por terra”.[4] A realidade mostra dois cenários distintos e que se convergem inevitavelmente: a primeira é a atuação policial e a segunda é o interesse dos grandes proprietários de terra. Tudo é levado ao ponto comum, senão o da busca, o da continuidade do poder da oligarquia rural. Essa onda oligárquica realmente não parece ter tido um colapso.
Depois de acusar o MST de práticas subversivas, o Secretário de Segurança Pública afirmou que os policiais sempre respeitavam a lei. O advogado Avanilson Alves Araújo ponderou que isso não poderia ser verdade porque a própria polícia afirmou que seis despejos ocorreram exatamente ao mesmo tempo, enquanto a equipe tinha apenas dois oficiais de justiça. “Eu estava somente querendo ganhar pontos. Todo mundo sabe que ordens de despejo não significam nada, porque os juízes locais trabalham em estreita colaboração com os proprietários de terra e emitem ordens judiciais por questões políticas. Os latifundiários estão abusando do poder local e zombando da legislação do país”, afirmara o advogado.
O poder de polícia havia perdido o controle e, como se não bastasse até então, praticava o crime tipificado roubo e praticava atos de vandalismo. Não só as famílias do Rio Novo perderam, como a própria estrutura fundiária do Brasil. Os policiais tinham a instrução de enviar as famílias de volta aos estados de origem e, no caso dos brasiguaios, para a fronteira do Paraguai. Para o advogado, o lado bom do acontecido foi o fato de a rede dos juristas simpáticos ao MST começar a funcionar. Era um choque ter uma quantidade de advogados militando a favor daquelas famílias. Entretanto, essa rede não confirmou a afirmativa do INCRA em garantir a terra para as famílias assentadas. Logos após esses trágicos acontecimentos, a liderança do movimento e Adelina Ventura foram a Brasília, no intuito de parar a onda de terror através de uma campanha nacional de publicidade. No congresso foram relatadas as atrocidades e o Secretário Cândido Martins gritava inflamado rebatendo todas as afirmações.
No Rio Novo foi possível fornecer uma visão fascinante sobre a complexa rede política do Paraná. De um lado, o retorno do governo civil trouxe, paradoxalmente, aos proprietários mais poder do que tinham na ditadura militar. A força dos proprietários cresceu no Congresso Nacional, onde a bancada ruralista se opõe fervorosamente às reformas democráticas. Em contrapartida aos retrocessos, há uma maior liberdade de expressão e muitos brasileiros, como dois policiais paranaenses fornecedores de vídeos mostrando a atuação policial no Rio Novo, estão dispostos a correr o risco de demissão para a verdade ser divulgada.
Por fim, conta Líria Fisher, “a gente cantava bem alto e gritava os lemas do MST: Ocupar! Resistir! Produzir! Ocupar! Resistir! Produzir!”. [5]
3 A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL E A FORMAÇÃO DO MST NO PARANÁ
A história fundiária brasileira começa logo no momento de sua criação, sob a égide vigorante na Europa dos princípios do Estado Moderno pelos quais os portugueses saem na dianteira em busca de terras para colonizar. A sua conturbada chegada a Vera Cruz representou para os povos indígenas uma imensa catástrofe. As primeiras tentativas de exploração se basearam no sistema de feitorias, adotado na costa africana. O Brasil foi arrendado por três anos a um consórcio de comerciantes de Lisboa, liderado por Fernão de Noronha. Em 1530, a Coroa Portuguesa, então, ficou convicta de que essas terras deveriam ser administradas e coordenou a expedição de Martim Afonso de Sousa. O patrulhamento da costa permitiu estabelecer uma colônia através da concessão não-hereditária de terras aos povoadores que ela trazia, as sesmarias. Logo após foram criadas as capitanias hereditárias, comandadas por um donatário cada uma. Os donatários recebiam uma doação da Coroa, pelo qual se tornavam possuidores e não proprietários da terra, ou seja, aqueles tinham o poder de desenvolver a capitania, mas não podiam alienar, cabendo ao rei o direito de modificá-la ou extingui-la.
Enquanto Portugal definia estratégias de colonização de exploração, os índios viviam à mercê: tirados de suas terras naturais, eles foram obrigados a viver de forma desumana e muitas mortes ocorreram na época. As estatísticas são surpreendentes: milhões viviam no Brasil durante a conquista e apenas cerca de 250 mil existem nos dias de hoje. Além de toda essa ferocidade, podemos verificar que:
“O princípio que, desde os tempos mais remotos da colonização, norteara a criação da riqueza no país não cessou de valer um só momento para a produção agrária. Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios. Ou, como já dizia o mais antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.”[6]
Para ratificar as observações de HOLANDA, a agricultura brasileira foi desenvolvida por grandes ciclos: o ciclo da cana-de-açúcar e o ciclo do café. Essa forma de desenvolvimento destruiu o solo, por não ter sido usado de maneira racional.
Outro marco importante foi a Lei de Terras, aprovada em 1850, duas semanas após a extinção do tráfico de negros. A lei tentou pôr ordem na confusão existente em matéria de propriedade rural, determinando que no futuro as terras públicas fossem vendidas e não mais doadas, estabeleceu normas para legalizar a posse de terras e procurou forçar o registro das propriedades. A Lei foi concebida também como uma forma de evitar o acesso à propriedade por parte dos imigrantes.
Partindo-se para a Primeira República, os coronéis foram figuras marcantes no cenário político do país. Eles eram em sua maioria proprietários rurais com base local de poder. A descentralização republicana, após término do coronelismo, deu maior flexibilidade político-administrativo ao governo, pois houve uma ascensão política de novos grupos sociais, de rendas não derivadas da propriedade – facilitada pelo regime. O controle estadual e federal, antes misturado pelos grandes donos de terra, agora biparte nitidamente.
Esses marcos foram apenas citados para compreender de um modo geral as estruturas que prevalecem na história da República Federativa do Brasil. Há vários momentos históricos nos quais as questões posse e propriedade foram tratadas, seja no Estado Novo, na Democracia, na Ditadura Militar (como o Estatuto da Terra) e na Redemocratização. A característica comum a todas as épocas está nas seguintes palavras de HOLANDA,
“A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”.[7] (grifos nossos)
Para Raymundo Faoro, de D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, a estrutura político-social que resistiu a todas as transformações essenciais, aos desafios mais profundos, foi o capitalismo politicamente orientado.[8] Pode-se ainda ampliar esse campo temporal e afirmar sobre a realização das travessias do capitalismo em todas as jornadas travadas desde Adam Smith, sempre com uma nova roupagem.
Até os anos 1950, o Paraná estava esparsamente povoado. Na década de 1960, as terras com cafezais no estado de São Paulo estavam se exaurindo o que levou os paulistanos a procuram por terra no estado vizinho. Entretanto, a busca durou pouco: as geadas haviam esmagado as plantações e alguns fazendeiros optaram pela pecuária, enquanto outros passaram a cultivar outras culturas. Tais atividades não dependiam de muita mão-de-obra. Outro fator contribuiu para expulsão de famílias rurais de suas terras: a construção da usina hidrelétrica de Itaipu. O rápido processo de desapropriação da terra criou uma onda de protestos entre as famílias afetadas, ajudadas pelas igrejas católica e luterana, criando o Movimento Justiça e Terra. Com o apoio das igrejas, os trabalhadores sem terra do estado criaram uma série de organizações no início dos anos 80. Os primeiros militantes que sonhavam com a criação de um movimento nacional, vindos do Rio Grande do Sul, ficaram entusiasmados com a ideia de trabalhar com os movimentos importantes e poderosos do Paraná.
O incentivo do primeiro Congresso Nacional, em janeiro de 1985, levou o MST a atuar com mais intensidade no estado do Paraná. Apesar de muitos despejos, as famílias tiveram importantes vitórias e ganharam confiança. Uma das conquistas mais celebradas foi a reocupação da fazenda Giacometti, em 1986. Os camponeses sentiram a revanche da violência enfrentada nas mãos dos pistoleiros em 1980. O fotógrafo Sebastião Salgado participou da ocupação e tornou público o evento para o mundo todo,
“Era impressionante a coluna sem-terra formada por mais de 12 mil pessoas, ou seja, 3 mil famílias, em marcha na noite fria daquele início de inverno no Paraná. O exército de camponeses avançava em silêncio quase completo. Escutava-se apenas o arfar regular de peitos acostumados a grandes esforços e o ruído surdo dos pés que tocavam o asfalto.”[9]
Confrontados com ocupações como esta, os governos federal e estadual frequentemente negociavam com o MST. Até o final dos anos 90, cerca de 15 mil famílias conquistaram terras no Paraná. Viviam em 233 assentamentos, que totalizavam quase 30 mil hectares. O estado tornou-se uma importante região para o movimento. Só havia dois estados – Pernambuco e Alagoas – onde o MST se expandira com maior rapidez. Dentro do Paraná, o movimento crescia mais forte no noroeste, onde começava a desafiar a força da burguesia agrária, ultrapassada e autoritária.
4 ANÁLISE DOS ASPECTOS JURÍDICOS
Já descrito o fato e feitas as considerações teóricas no contexto do capitalismo e do movimento social agrário, passa-se a analisar o contexto constitucional e judicial observáveis na determinação jurisdicional da ordem de despejo na Fazenda Rio Novo. A princípio, considera-se uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana tão defendida pelo ordenamento jurídico constitucional. Há dois planos de análise: o primeiro quanto à emissão da determinação de despejo e o segundo quanto à falta de amadurecimento do Judiciário. O despejo não podia ser processado da maneira que ocorreu: uma hora da manhã, aos golpes e aos gritos inflados de policiais enraivecidos. Isso configura uma afronta direta aos princípios constitucionais. Além disso, para se dar uma ordem de despejo, cabe esmiuçar a função social da propriedade. Terras não produtivas devem servir para atender a sociedade. Esse é uma atitude que está na esfera da ética, moral e social. O Juiz pode fundamentar sua exposição baseado nas preocupações internacionais em defesa dos direitos humanos. O Tribunal Constitucional da Espanha asseverou que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”. Preocupado com os aspectos morais do exercício do Direito, Rui Barbosa aclama:
“A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresce em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade”.[10]
Ratificando, o despejo realizado deveria ter sido objeto de nulidade porque não atendeu aos requisitos processuais necessários: horário possível e quantidade de oficiais a realizar o despejo. Outro aspecto foi a prática da tortura, incondicionalmente proibida pela Lei Maior de 1988. Por que os policias fizeram os despejados (ou seres humanos) comerem esterco de vaca? As agressões físicas, os roubos e os furtos foram outros crimes cometidos pelos policiais. Não se pode esquecer do fechamento da Fazenda, impedindo a chegada de jornalistas e advogados ao local. As atitudes arbitrárias não pararam por aí. Violações quanto à liberdade de ir e vir foi uma constante logo após o processo de despejo, afinal a Polícia deveria enviar as pessoas aos seus lugares de origem.
Em maio de 2007, João Pedro Stedile elenca os anseios do MST, de uma forma geral, observadas as peculiaridades de cada região. Entre eles, podemos destacar: a. a desapropriação de fazendas improdutivas, priorizando algumas regiões em cada estado, de preferência próximas a centros consumidores, para facilitar acesso ao mercado de alimentos; b. desapropriação de fazendas estrangeiras predatórias ao meio ambiente; c. assentamento de 140.000 famílias acampadas; d. desenvolvimento de um amplo programa de educação ao campo; e. subsídios de um programa nacional de reflorestamento nos lotes da reforma agrária e f. diálogo entre o INCRA e a Conab (empresa nacional de abastecimento) para viabilizar e acelerar a reforma agrária.
Até mesmo a liberdade de expressão foi colocada em xeque, mas felizmente conseguiram tornar pública a situação da Fazenda Rio Novo e as ondas de terror tiveram um fim. Tudo parecia estar indo para a solução do conflito. Entretanto, os policiais, agora desalojados, fecharam a Fazenda. Como os habitantes iriam se alimentar e se hidratar? A safra estava totalmente destruída pelas autoridades policiais. Mais uma vez: várias ofensas ao princípio da dignidade humana.
Elizabeth Khater, a juíza do distrito onde se localizava Rio Novo, participava de um jantar com os proprietários de terras. Um jornalista da Folha de São Paulo chegou-se à mesa dela. Tomando-o por um policial, a juíza cumprimentou-o: “Parabéns pelo serviço! Eu estava agora mesmo elogiando o trabalho de vocês para meus amigos fazendeiros. Estamos aqui comemorando. Pode ser o início de uma união entre fazendeiros e a PM. [ao perceber o engano, a juíza ficou branca e tentou justificar] Mas a amizade não influenciou [nas decisões judiciais]”. A capacidade jurisdicional no nosso direito é plenamente do juiz: a quem procurar se o Poder Judiciário local é condizente com as mazelas do governo e dos grandes proprietários de terra? Não há mesmo como se fazer Justiça. A ação dessa juíza deveria ser investigada, conforme os preceitos da Constituição e da Magistratura. As decisões dos despejos deveriam ter sido revogadas. Mas não foram. Os habitantes da Fazenda Rio Novo permaneceram no local e o MST continuou a agir na opinião pública. Para finalizar, ratifica-se que nas ações de despejo realizadas muitos direitos foram violados e os responsáveis pelas violações não foram julgadas, contrariando mais uma vez a CF/88.
5 CONCLUSÃO
O Sul veio, mais uma vez, na figura épica do estado do Paraná, mostrar todo seu valor quanto à realização de movimentos sociais. Os heróis estão nas pessoas agredidas, violentadas. Manter acampamentos em áreas improdutivas significa lutar por sua sobrevivência, uma vez que o sistema expurga pessoas como Adelina, Líria e Orélio.
O caso acontecido no estado do Paraná mostrou mais uma vez a necessidade de união entre todos aqueles que sentem sua integridade ameaçada. A luta por terras em nosso país atravessa os tempos e os governos fecham seus olhos, ignoram quaisquer possibilidades de mudança.
O intuito do trabalho foi demonstrar o quanto o país perde em não agir com ética e com zelo às instituições que a Constituição Federal de 1988 defende. Em primeiro lugar, devemos preservar a dignidade da pessoa humana porque aqui repousa a essência de todas as relações sejam elas jurídicas ou sociais. As questões formais jurisdicionais são fruto de um trabalho contextualizado.
Como devemos adequar nosso Direito à realidade atual? Qual o papel do jurista dentro de uma sociedade estigmatizada pelas heranças coloniais?
O jeito é se libertar ou viver na estática motora da racionalidade. A libertação vem com sangue, mas é duradoura e dinâmica. A estática motora da racionalidade não dói, não inflama, mas ela não é capaz de mudar o mundo.
Devemos enxergar a Fazenda do Rio Novo como um grito de liberdade ecoante de norte a sul, capaz de transformar as gerações. Capaz de manter a integridade de uma Nação. Os movimentos sociais da terra são importantes porque representam a manifestação de pessoas da sociedade civil na busca de direitos, tais como: direito à propriedade; direito à dignidade da pessoa humana; direito à família e direito a condições de sobrevivência dela; direito à igualdade entre os desiguais; direito a tratamento ético por parte dos agentes do Estado.
Acadêmico de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana/BA
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