Direito da mulher: autorizar aborto é preservar o Princípio da vida e da dignidade da pessoa humana

Ao elaborar este  estudo tive por objetivo primordial
destacar as dores e os sofrimentos da 
mulher: vítima histórica  do poder
dos dogmas religiosos  e  da prepotência dos dogmas jurídicos. O médico
que detém de conhecimentos médicos, tecnológicos e científicos,  capacitado,
portanto, para curar, minorar a dor e até 
de salvar vidas humanas,  não pode
ser punido na antecipação do parto  de
feto anencefálico.

O feto  ainda não existe, pois não está no
mundo. O seu único “mundo”, ou lugar,  é o ventre materno.  Os dogmáticos religiosos e  os do direito posto consideram o feto
mais importante que a saúde física, mental e social da mulher. O feto tem
apenas a  expectativa
de tornar-se  pessoa e assim adquirir
personalidade jurídica se nascer com vida viável; isto é, a de  iniciar a existência  que se consubstancia no estar no-e-com o mundo.

Por outro lado, o feto anencefálico é
possuidor de deformação congênita irreversível, ou seja, inviável para a vida e
para a existência.  A antecipação do
parto ainda não legalizado 
constitui do  momento
oportuno para  o magistrado criar a norma
do caso concreto para fazer prevalecer o 
Direito,   porque  não há 
regra jurídica que  obrigue a
mulher (preferencialmente a pobre) – permanente vítima de nossas leis obsoletas
–  abrigar no ventre  (a 
monstruosidade de)  um ser anencéfalo.

Magistrados sensíveis à realidade da
vida têm autorizados a 
interrupção da gravidez, 
quando confirmado por conclusivos laudos médicos, de enfermidade  incurável 
ou  deformidade anatômica  e  estrutural de feto sem nenhuma possibilidade
de  vida viável após o parto.  Enquanto seres racionais,  não podemos nunca  duvidar da razão, mesmo quando se
constata  o inusitado e a irracionalidade
de decisões morais e judiciais que dizem respeito à  saúde 
de  todas a mulheres.  Como já enfatizou Fabio Konder Comparato:  “estamos todos nas
mãos dos nossos Juízes”.  Portanto,  para o bem  ou 
para o  mal.

Por fim,  o 
presente trabalho representa tão-somente o meu ponto de vista à questão
do aborto terapêutico (antecipação do parto de feto anencéfalo)  em que as 
mulheres pobres estão entre 
as  principais  e 
indefesas  vítimas  do sistema legal  com 
suas  interpretações divorciadas
da  realidade   e   submetidas 
também  aos  seculares dogmas religiosos. Contudo,  os dogmas jurídicos
podem  ser  mutáveis  
quando transformados em problemas, 
pois  o  Direito é dinâmico!

A  interpretação  literal  
do  nosso  arcaico 
Código Penal  no  concernente 
ao   aborto  mostra-se 
insuficiente  para  compreender 
a  realidade  e 
a  violência  perpetrada 
pelo Estado contra a  única  vítima 
desta  tirania  exegética: 
a  mulher  pobre.
Mãe da Humanidade, 
a mulher pobre é punida covardemente  pela inquisição dogmática  dos operadores do Direito, condenando-a  abrigar no ventre  (a monstruosidade de) um ser  anencéfalo.  Ela
tem de ocupar um lugar ao sol, dispor de peso e voz na sociedade civil.  Gerando a morte ao invés da vida, não há
consolo  porque
a  história da humanidade tem sido até o momento a 
história do próprio sistema capitalista.

É sabido que neste sistema os
princípios são humanos, porém a realidade é chancelada nas diversas formas de  violências e nas
diferentes modalidades de fraudes. A ordem capitalista tem mostrado que não é
uma fase transitória do processo histórico, mas a  forma absoluta e definitiva da
produção social. O nosso sistema capitalista é tosco e brutal, pois não oferece
à maioria dos cidadãos um padrão de vida decente, um mínimo de segurança e de
igualdade perante a lei. O Direito posto e imposto à coletividade tem a sua
origem na produção econômica.

A maior vítima é, sem dúvida, a  mulher pobre,
pois  é mantida na ignorância  e  é
dominada pelo poder coercitivo de normas jurídicas caducas e injustas que não
buscam a pacificação social, mediante hermenêutica favorável à dor e ao intenso
sofrimento dela.  Os seus apelos não são  ouvidos  nem fazem eco na consciência dos
privilegiados e dos  poderosos.

A escolha,  em se tratando de aborto em sentido
amplo,  será sempre da competência exclusiva
da mulher, pois é  dona do seu corpo e da
inalienável liberdade de agir, não obstante sofrer da  interferência abusiva dos dogmas jurídicos e
religiosos,  os 
quais constituem em verdadeiro abuso de direito  tal 
invasão em sua  intimidade e
estrita privacidade.    Por outro lado,  o  sistema jurídico e os seus operadores ainda
não conseguiram superar os dogmas e  as
contradições, cujas decisões judiciais são ainda muito prejudiciais  à saúde 
da  mulher e em  especial 
a  da  mulher 
pobre.

Assim se manifestou, sem rodeios, o
Jornalista e Articulista da Revista Veja,   André Petry: “….  o 
STF  deu guarida ao autoritarismo
religioso pelo qual todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não,
sejam crentes, sejam ateus. Afinal, a liminar não obrigava  mulher alguma a  interromper a gravidez de um feto sem
cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor
psicológica de  gerar um filho que
morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente humana, era
conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já em
sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão”
  (1)

Uma das vozes  mais poderosas que impera no social é
a dos formadores de opiniões, 
verdadeiros  dominadores das
mentes e corações do público, em que a mulher 
pobre aceita passivamente, talvez por estar  em avançado estado de alienação,  toda uma situação que lhe é tremendamente
prejudicial. Na realidade, o Direito é uma superestrutura erigida sobre a base
de relações econômicas e de poder que tem o Estado como instrumento de
dominação. Inexiste  neutralidade
do Direito posto e imposto nas leis, pois as relações de produção são
regulamentadas sempre no interesse da classe dominante  cujos detentores do poder utilizam da
ideologia jurídica como instrumento de persuasão. Atualmente, dada às
correlações de forças, é sabido que a mulher  pobre 
continuará sendo ainda a maior perdedora,  no sentido 
de exigir que a ideologia jurídica dominante seja interpretada de
maneira favorável à sua situação.  É
preciso  que
os  operadores do Direito comprometidos
com  a felicidade e a dignidade de  todas as mulheres,  e 
em  especial da  indefesa 
mulher  pobre,    encontrem 
formas de enfrentar a  prepotência
dos  dogmas jurídicos.

Na  ideologia do sistema capitalista
estão  insculpidos
princípios humanísticos,    explicitadas na  nossa 
Lei Maior: Constituição Federal.  Porém,  a 
realidade brasileira é constituída basicamente de mulheres pobres  com suas 
crianças, cujo incipiente 
sistema  capitalista  é 
paradoxalmente infame  e  perverso, 
tal como  se nota na limitada
democracia.  Até quando o  Brasil  continuará sendo o mais desigual entre os
desiguais?  E  também o mais injusto entre os
injustos?

Ponto de partida interessante para
começar a vencer  barreiras
somente  ocorrerá quando  o poder dos 
operadores do Direito estiver 
comprometido na solução jurídica e judicial dos  problemas brasileiros  e 
quiserem  praticar a máxima do
progressista  jusfilósofo  Roberto Lyra Filho: Para um Direito sem Dogmas. 
E sem  esquecer
das  análises e ensinamentos do
nosso  maior  cientista social do século XX: Florestan
Fernandes.  Mestre dos mestres, foi considerado pelo
historiador  Eric
J. Hobsbawm um dos cinco maiores cientistas sociais e
intérpretes de nossa época (2).  Em suma,
o  Direito é
então absorvido na própria lei.  Vitória do positivismo jurídico que tem na
dogmática a sua razão de ser.

Asseverou Roberto Lyra Filho,  com a
competência  de profundo conhecedor desta
realidade,  que  “o
dogma, afinal, atravessa a história das idéias como uma verdade absoluta, que
se pretende erguer acima de qualquer debate; e, assim, captar a adesão, a
pretexto de que não cabe contestá-lo  ou
a ele propor qualquer alternativa”
 
(3).  Por outras palavras,  é  o  dogma  a 
verdade absoluta,  aceita  às cegas e sem crítica, beneficiando sempre  a classe dominante (do momento).  As normas jurídicas estatais são exemplos
acabados  do
dogmatismo  ao defenderem o caduco,  pois combatem 
tudo  que  é 
novo  e  de 
essência  progressista,  sobretudo 
na  ilegalidade  inútil do 
aborto  “lato sensu”,  cujas 
vítimas  preferenciais são,
indubitavelmente, as  mulheres  pobres.

Na Religião Cristã  sobressai o  catolicismo 
com os seus dogmas  como extensão
da palavra de Deus,  que é tão-somente uma idéia  (Adendo: Ressaltou Camus  que: “Se Deus existe, tudo depende  dele e nós nada podemos fazer  contra a sua vontade. Se não existe, tudo
depende de nós. Tanto para Kirilov como para Nietzsche matarmos Deus
(crime metafísico)    é tornarmo-nos nós 
próprios Deus;  enfim é tornar-se
Deus – ou seja,  é realizar  nesta Terra 
a vida eterna de que fala o Evangelho…” …  Por outro lado,  “O homem não fez mais que inventar Deus  para não se matar. Assim se resume a história
universal até este momento” –  O Mito de Sísifo, p. 122/123).  
 A
teologia é feita sistematicamente sempre a  partir das  massas 
oprimidas  e  nunca a partir das elites do poder.

As Religiões  universais são insidiosas para com as
massas; buscam  seres obedientes que
serão domesticados como  fiéis e uma vez
acostumados a essa experiência repetida vezes 
serão incapazes de  renunciar a
abstração de um Deus todo poderoso. 
Assim sendo,  na  certeza de que  o  feto
é anencéfalo
 
o teólogo e o positivista jurídico, 
ambos  presos na camisa-de-força
dos dogmas,  procuram as fontes da vida
numa  autópsia!  Todos os anencéfalos,
se ainda vegetativamente vivos  no ventre materno,   morrem logo após o parto.

Não se  vislumbra nos dogmas  nenhuma 
perspectiva libertadora nem indícios de transformarem-se   pelo menos culturalmente,  porque todo o Direito  é 
arbitrariamente   reduzido  à  
norma    jurídica    formalizada    e  em
decisão fossilizada (injusta e retrógrada). Ou seja,  para 
o positivista o Direito é um saber dos dogmas,  repetidos infinitamente   à  
exaustão.  A  não-autorização  judicial da  
antecipação  do parto  é 
porque   “alguns   juízes   são  
absolutamente  
incorruptíveis.  Ninguém  consegue induzi-los a fazer Justiça” (Bertolt
Brecht).
É em nome da 
segurança jurídica que se quer que o juiz proceda maquinalmente
como juiz obediente à literalidade da lei, 
alheio aos valores do humanismo e 
principalmente  à  circunstância da  vida 
e   da  existência  
das  mulheres  pobres.

Todavia,  a responsabilidade histórica será a do
juiz monocrático  que vai  obrar 
a  difícil missão de fazer  progredir o Direito,  adaptando a ordem jurídica posta à
evolução  das  circunstâncias  protetoras 
da  indefesa mulher pobre.   Se
a circunstância é autorizar a interrupção da gravidez em razão da mulher
carregar no ventre desde 
já um natimorto,   o  magistrado que  assim decidir 
estará não só fazendo a justiça do caso concreto mas projetando na  eqüidade a solução de que  o  Juiz
deve estar subordinado ao Direito (e não simplesmente ao texto da lei e de  norma jurídica injusta e  anacrônica) 
e  à  realidade da vida social. Em ponderação
pertinente, o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio
Mendes de Farias Mello 
assim se  manifestou sobre
o tema:  “O Judiciário não pode se fechar em torno de si mesmo, omitindo-se,
furtando-se de participar dos destinos da sociedade… A sociedade quer, sim,
juízes, e não semideuses  encastelados em torres de marfim… O juiz
tem de ser um cidadão atento ao cotidiano da comunidade em que vive, em vez de
robô repetidor de leis. Só assim será sensível para proferir decisões sábias”.
(4)

(“Tudo  oscila 
com  o  tempo” – Pascal; “ O  meu campo é o tempo” – Goethe; “O inferno não
existe. Todos os demônios estão aqui” – Shakespeare)

Não basta apenas reconhecer  o  paradoxo; é preciso superá-lo.  A  mulher pobre, aprisionada no mundo concentracionário dos homens  e 
excluída do  bem-estar social, é
submetida a mais esta  violência:  levar 
desde já  no  ventre 
um natimorto  e  por vários meses até o parto.  Há magistrados que são déspotas; há
magistrados  que
são indiferentes;  há magistrados que são
análgicos.  Ou
seja,  desaprenderam
a pensar a dor e o sofrimento ínsitos na condição humana.

A mulher é a mãe da humanidade e é
por isso que o humanismo reverencia este ser humano, sabendo que  há  o 
elo  básico de interdependência
entre a mulher  e  o 
feto.  Após o  diagnóstico da anencefalia,  ela 
tem a certeza de que não está gerando vida mas morte,  para não dizer que  é durante toda a gestação do anencéfalo  um  caixão ambulante.  Assim, não ocorrerá o  bem-estar físico, psicológico e social
dela,  porque  os 
seus  olhos  e  
todo   o  sentir  
estão voltados para a morte. A vida inviável a deixou mentalmente ferida  e  com ela 
o  sentimento de  que 
não  será  mãe.

Os operadores do
Direito ainda presos aos dogmas religiosos  costumam repetir com indisfarçável arrogância
que  as mulheres estão condicionadas ao
sofrimento.  Por quê?  Nos primórdios da  Religião e da Igreja  havia o 
consenso, depois transformado em dogma, 
que os gritos angustiados das mulheres agradavam a Deus,  um 
prazer que não lhe devia ser tirado. 
Durante  muito
tempo  a 
Igreja  proibiu  remédios que aliviassem as  dores do parto  justificando que tal conduta contrariava a
vontade de Deus. Enfim, o sofrimento  exclusivo que  hodiernamente está submetida a  mulher 
pobre   também  não chega a causar compaixão nem dos Senhores
da Igreja  nem  da 
maioria dos operadores do Direito  que detêm do poder da função para  concretamente utilizarem  dos dogmas jurídicos em  desfavor da  
saúde da mulher: negando peremptoriamente o aborto terapêutico ou de
antecipação do parto de fetos portadores de anencefalia
  ou  de  outras
 síndromes  incuráveis 
etc.    

É verdade banal que deve ser
repetida, pois na área da 
saúde mental  é  deveras conhecido que uma  gravidez indesejada imposta  pode causar sofrimento em todos os níveis:
psicológico, social, econômico, intelectual e espiritual.  Em resumo,  forçar 
a mulher,  e   principalmente a  indefesa  
mulher pobre,   a  carregar 
no ventre um feto sem vida viável até o final da gravidez é uma das mais
profundas feridas que podem ser infligidas à sua mente e ao seu corpo.  Não há como mudar o dogma religioso   para
fazê-lo aceitar a realidade da vida privada e social das mulheres pobres   e que 
são as únicas a sofrerem desnecessariamente. O feto anencéfalo
não pode ser mais importante que a  mãe! 
Logo,  o  reino cristão não é deste mundo!

No entanto, resta o paradoxo: ou não
somos livres  e  Deus 
todo-poderoso  é  responsável pelo mal, ou somos livres e
responsáveis  mas Deus não é
todo-poderoso.  Logo,  a 
circunstância cruel e desumana de levar adiante uma  gravidez indesejada ultrapassa  na 
mulher  pobre   a  sua  experiência individual. A quem apelar se  se  trata de feto portador de doença incurável e
fatal?  O  Código Penal  comodamente arrola as causas de excludente da
criminalidade (Artigo 128 e incisos), não punindo o médico nas hipóteses ali
descritas.  Médicos  e 
magistrados  não  podem 
ficar  indiferentes  ao  destino 
das  indefesas  mulheres 
pobres.   Médicos sensíveis e
humanizados  tudo
farão  para  preservar a 
saúde física e mental da mulher, isto é, 
o  seu  bem-estar pessoal,  familiar e social.

Magistrados não análgicos
nem dogmáticos  autorizarão
(sem culpa nem remorso)  a  interrupção
da gestação de feto possuidor de malformações congênitas ou com enfermidade
incurável.
   Assim decidindo, não
fazem somente a justiça 
inadiável que o caso concreto pede, mas também  homenageiam as suas mães  e as 
mulheres  despossuídas,  alienadas, 
exploradas e  maltratadas  por 
todos  os  dogmas.    O  feto anencéfalo  é 
um  ser  desconhecido 
que  apenas  sobrevive vegetativamente.  Não tem  consciência nem nunca terá; desconhece
o que é dor e sofrimento porque está totalmente amparado no útero, porém o seu
destino  é a morte, ou dentro do
ventre,   quando  comprometerá a saúde da própria mulher
colocando-a em   risco de morte,   ou 
logo  após o parto.  Afinal,  os 
paradoxos   continuam vigentes: Se
Deus não existe, é impossível demonstrá-lo; mas se existe, é um disparate
querer demonstrá-lo.

A diferença entre Deus e o homem
reside no pecado. Infelizmente, é a fé religiosa  que também costuma guiar a maioria dos
magistrados  no mundo do Direito, misturando os dogmas religiosos  com  o 
Direito feito de dogmas.
 
Neste mundo insensato de absurdos e de  dogmas,  cabe ao magistrado superar estes estados de
coisas mediante  tomada de consciência
para que transforme  todo dogma em
problema. 
No fundo de
toda problemática jurídica está a terrível  força histórica do capitalismo,  indissoluvelmente  unido 
aos  dogmas,
  quando 
proclama o Deus-Dogma   de sua
sobrevivência: o dogma do lucro,  com o  poder real e efetivo de derrogar toda e
qualquer lei conforme a sua necessidade.

É imperativo moral,  ainda não amparado
no sistema jurídico, da  autonomia
da  mulher decidir se quer prosseguir, ou
não, na gestação  até ao final, em se
tratando de fetos incuráveis e fatalmente doentes.  Esta decisão está  fundamentada no  livre  arbítrio 
de querer ou não de cessar gravidez indesejada e de alto risco à sua
saúde.  É, antes de tudo, decisão íntima
dela  pela  antecipação do parto. Extrair um ser inviável
para a vida e  também  para 
a  existência   do seu ventre não pode constituir crime,
pois tal crime é impossível,  por  tratar-se justamente não de  aborto 
“strictu 
sensu” 
mas  de  antecipação do parto;  por 
isso  o médico  não pode  
nem  deve ser criminalizado.

Todos têm a capacidade de evoluir,  inclusive  os 
operadores do Direito, 
pautados  nos avanços  tecnológicos da medicina  e 
nos  conceitos científicos.  Como  a 
indefesa  mulher  pobre 
poderá vencer a  tragédia
proporcionada “inocentemente” pelos dogmas
jurídicos e religiosos
  que se
mostram como  realidades imutáveis?  Mutatis Mutandis 
encontramos a explicação 
na  psicoterapia  ao 
asseverar que é difícil mudar qualquer realidade psicológica
enquanto  ela permanecer
indefinidamente  inconsciente.   O  inconsciente  tem 
a  força de  controlar os atos da pessoa  (mulheres
pobres, magistrados e outros operadores do Direito)
  e 
será  somente  na 
tomada  de  consciência  
que poderá  haver  luz 
para  a  libertação. 
Por exemplo,  o
círculo vicioso da  pobreza  só será rompido quando os pobres chegarem
à  conclusão de que só sairão da situação
de penúria e de miséria em que se encontram 
ao  planejarem o tamanho de suas
famílias.

A mensagem dita humanitária dos
religiosos é a de proibir o aborto, recusando-se dar às mulheres – mulheres pobres – o que precisam para
alimentar os filhos. É constatação universal que as mulheres e as crianças são  as primeiras a
sofrer quando os recursos se tornam escassos. Não há nada mais cruel do que o sofrimento de uma criança!  Por vivência e até intuitivamente  todas as mulheres esclarecidas e responsáveis  sabem 
da inviabilidade de ter um filho que jamais será auto-suficiente. É uma
escolha íntima e  privada.

As mulheres sempre exigiram o
direito de  praticar
a  anticoncepção  e 
o  aborto. Por todo o mundo, a  pobreza  é uma realidade para as mulheres,  especialmente para as  mães.  Se a mulher decidir  interromper  a 
gravidez e fomos buscar as suas mais íntimas razões, estas estarão
assentadas na premissa de que é vergonhoso ter um filho que não poderá ser
cuidado adequadamente. Por conseguinte, o  aborto propriamente dito  é  “essencialmente
uma questão de saúde pública. O aborto malfeito está entre as principais causas
de morte de mulheres no Brasil (mulheres pobres, é claro, que não tem dinheiro
para recorrer às boas casas do ramo)… O aborto não é um direito desejável, é
um direito necessário”
(5)

 É preciso reconhecer que a mulher  pobre   está  cansada 
–  lassidão física, mental e
espiritual  –  das 
vicissitudes do cotidiano,  dos
dogmas legais  que não compreende  e 
do   absurdo  de  ter
de carregar no ventre um natimorto. Tudo, enfim, conspirando para  agravar a sua dor
moral
    e  o 
sofrimento físico e mental. Sem entusiasmo nem esperança, resta-lhe
combater o  desespero
que lhe toma o ser na  força da  solidariedade 
emprestada de  seres humanos generosos,  a fim de superar o  impasse criado pelos poderosos (insensíveis e
até  inumanos)  que a 
mantém nesta situação de 
extrema  injustiça. Martinho
Lutero  com  palavras 
terríveis assim se manifestou:  “Se as mulheres ficam exaustas e morrem no
parto, nada há de errado nisso; deixem-nas morrer na hora de dar à luz,  elas
foram criadas para isso”.
  O  aborto é pecado (tipificado
dogmaticamente  também como crime),  mas a morte de milhões de mulheres por aborto
clandestino não é.

 É imperioso deixar registrado as relevantes
reflexões pertinentes de Ginette Paris: “Para ter permissão para matar homens,
mulheres e crianças, cheios de vida e
plenamente cônscios do sofrimento,
é necessário uma fórmula simples – uma
declaração de guerra… Quando as mulheres resolvem abortar, é em nome dos
mesmos princípios invocados pelos fabricantes de guerras:  liberdade  e 
autodeterminação
– questões de dignidade tão importantes quanto a
própria sobrevivência.  Os seres
sacrificados em abortos não sofrem como as vítimas de guerras  e 
desastres ecológicos. A diferença de pensamento entre aquele que faz a
guerra e o que é contra o aborto pode ser explicada  pela divisão de poder  sobre a vida e a morte entre homens e
mulheres.  Os homens têm o direito de
matar e destruir,  e  quando 
o  massacre é chamado de
guerra,  eles são pagos  para 
fazê-lo  e homenageados por suas
ações.  A guerra é santificada, e até 
abençoada por nossos líderes religiosos.
Mas se a mulher decide  abortar um feto,  que nem tem  aparelho neurológico  para 
registrar o sofrimento,  as  pessoas ficam chocadas.  O 
realmente chocante é que a mulher 
tem  o poder de fazer um
julgamento moral que envolve uma opção de vida ou de morte. Esse poder é
reservado aos homens…  As mulheres  dão a 
vida,  e os homens, como heróis de
guerra,  são provedores de morte… A
necessidade  de controlar o corpo e a
alma das mulheres está na  raiz das
religiões patriarcais…  Ao longo dos
séculos,  os  milhões de mulheres que morreram de aborto em
condições horrorosas  foram na realidade
sacrificadas, vítimas  do 
dogma religioso”
(6) 

Por outro lado,  a 
mulher movida por conduta humana altamente altruísta, de  exemplar abnegação  e 
generosidade,  apesar  de 
saber,  com  a 
mais  absoluta  certeza, 
que está  gerando  no 
útero feto anencefálico,   poderá  levar a 
gravidez  até o final  para que os órgãos sejam doados. Repita-se:  o feto anencéfalo somente  
sobreviveu  porque o  corpo da mulher é dotado de todos os  meios 
naturais  para a  mantença da vida intra-uterina.

A  vida 
inviável extra-uterina  do  anencefálico irá
proporcionar vida  à  criança que receber o órgão dela cuja doação de órgãos  possa dar um sentido humanitário e este  triste acontecimento,  aliviando o 
sofrimento de outros doentes acometidos de doenças graves  mas 
recuperáveis.  O  recém-nascido anencefálico
não apresenta possibilidade alguma de recuperação,  inclusive por motivos anatômicos, por não
possuir o  córtex cerebral  nem de ser dotado de estruturas anatômicas
próprias  que presidem as funções
superiores. Na  realidade
constata-se a  ausência completa ou
parcial da calota  craniana  e  dos  tecidos que a 
ela  sobrepõem  deixando parte do cérebro exposto.

Em  conseqüência,  o 
feto  anencefálico  é 
gravemente deficiente no plano 
neurológico.  Falta-lhe
as funções que dependem do córtex e, portanto, não somente os fenômenos da vida
psíquica  mas  também a sensibilidade, a mobilidade e  a integração 
de  quase todas as funções
corpóreas.  Em  suma, 
a anencefalia é uma  condição letal  e 
normalmente  nenhum  neonato 
sobrevive  além dos  três 
dias.

É  imperioso  acentuar 
que o  feto  anencefálico   possui irreparável falência cerebral.  Ele  só 
se  mantém vivo,  biologicamente falando,  porque está 
ligado  ao  corpo da mulher  e é o seu 
aparelho  biológico que  mantém 
a  “sobrevida”  precária deste feto anômalo,  condenado 
à   morte.   Assim, a  morte 
encefálica do feto   é  certa 
e  que  a  
biológica  ocorre  durante 
o  parto  ou 
logo  após  “nascer”, isto é, a  expulsão 
de  um  ser  
para  o  mundo. O  feto 
anencefálico 
não  é 
pessoa
   e  também não   
pode   ser    comparado 
a  situação em   que se encontra o  recém-nascido     que 
teve posteriormente    morte  encefálica 
não  originária   de    
qualquer  deformação   intra-uterina,  pois 
neste  caso  é  pessoa.

Em face do exposto, para adquirir o  status  de pessoa
precisa  nascer com vida viável e com
saúde, quando inicia a personalidade civil (sujeito de direitos, deveres e
obrigações). Qualquer discussão doutrinária fora deste fato é inócua e
estéril.  É falta de honestidade
intelectual dos operadores do Direito negarem os  avanços da medicina tecnológica, assim
como não é possível negar a Ciência e a Razão, cuja interrupção da gestação
somente deverá  ocorrer se a  mulher assim decidir, sobretudo se o feto
possuir malformações congênitas  ou  enfermidade incurável.

Se comprovada, portanto, a
inviabilidade da vida extra-uterina do feto  tornar-se-á  necessário o aborto terapêutico.  Por outro lado, os defensores  do direito
dogma   recusam a  acompanhar a evolução tecnológica  e da 
precisão  dos  diagnósticos médicos,  esquecendo-se da  mulher
pobre  – 
é a  que realmente sofre  da indiferença e da insensibilidade dos
poderosos.
  O  dogma jurídico recusa aceitar a
verdade contida nos fatos da vida; despreza o fato social e a razão nele
encerrado; nega  os  avanços tecnológicos dos aparelhos de
diagnósticos médicos; enfim, a  própria
prova científica irrefutável que autoriza 
a  antecipação do  parto ao afirmar que o feto não possui
qualquer condição de sobrevida  por ser
portador de malformações graves e totalmente incompatíveis com a vida. O dogma
religioso também não respeita a  existência
e a dignidade da mulher… da mulher pobre!

Finalmente, é preciso repetir à
exaustão que a anencefalia é para  a 
medicina uma anomalia fatal  porque a vida está condicionada a atividade
cerebral. É, contudo, de uma perversidade ímpar obrigar a  mulher
pobre,
  pois  é a única a levar à exaustão este sofrimento
de quem está condenada a viver  e  a 
sobreviver  na  pobreza, a 
carregar no ventre  um  natimorto. É  a 
manifestação suprema do 
poder  dos dogmas jurídicos e religiosos 
ao  ignorar o Direito da Mulher
que  está 
consubstanciado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Porém, há
magistrados  comprometidos
com  a 
saúde  da  mulher pobre  e 
que  são  guiados no dia-a-dia para atender aos fins
sociais e  às  exigências do bem comum na  aplicação do Direito  têm autorizados a cirurgia para a retirada de
fetos anencefálicos ou  possuidores de  outras anomalias    incompatíveis   com a vida extra-uterina.

Para que prevaleça a  concretude
 dos fatos da vida é preciso humanizar o
(poderoso) operador do direito dogmático. O fato concreto não pode diluir na
abstração, pois o conteúdo é mais importante que a forma.  A existência
da mulher  é muito  mais 
importante que a  expectativa de
vida de feto com vida  extra-uterina
inviável. Portanto, a  saúde
da mulher  é bem mais  importante 
que a do feto, mormente se é portador de deformidade irreparável e  fatal  ou 
está  acometido de  doença incurável.  Por outro lado,  é 
direito da mulher  decidir se 
deseja prosseguir na gestação,  ou  não.

Não pedimos para nascer!  E se estamos no mundo é porque somos
amados.  Concluo este  breve 
estudo sobre tema que diz respeito a 
todas as  mulheres cônscias de
suas responsabilidades de mães, nas 
acertadas e  iluminadas  ponderações de  Ginette Paris: “Até
hoje o aborto tem sido julgado de acordo com o dogma cristão; é pecado porque é
proibido pela Igreja,  e  a 
Igreja não pode mudar de posição, pois está escrito na Bíblia, e se
começarmos a mudar o dogma escrito a 
realidade toda ruirá.  As  religiões 
monoteístas baseadas num livro 
(cristão, judeu, muçulmano) 
funcionam de acordo com códigos escritos (dogma),  que 
divide o comportamento em 
pecado  e  virtude, 
de  uma vez por todas. Mas,  tão 
logo adotemos uma  perspectiva
mais global  e  menos 
dogmática,  podemos ver a  loucura 
que  é  sacrificar  a  mãe  pelo   bebê,  
a  estupidez dos  procedimentos obstétricos  que 
só  consideram  o 
conforto e a segurança do feto 
(como  se  a  mãe
e filho  não  fossem 
interdependentes),   e  a  loucura  de 
uma  posição moral  que 
força as mulheres  a  ter filhos quando a primeira necessidade de
uma criança é ser querida”.
  ( 7)  

 

Notas:

(1) 
Revista  VEJA de 27/10/2004

(2) 
Florestan ou
Sentido das Coisas – Boitempo Editorial, 1998, p. 11

(3) 
Para um Direito
Sem Dogmas – Sergio Antonio Fabris, 1980, p. 12

(4) 
Artigo
publicado  na
“Folha de S. Paulo”  de 30/12/2001,  sob o título:”Dias Melhores se Avizinham”

(5) 
Revista VEJA
de 17/08/2005 – Articulista André Petry

(6) 
O Sacramento
do Aborto – Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1992, p. 36/37

(7)  op. cit., Ginette Paris  


Informações Sobre o Autor

Antonio de Assis Nogueira Júnior

Funcionário Público Federal do Quadro Permanente da Secretaria do E. Tribunal Regional do Trabalho da 2a. Região – São Paulo – no exercício do cargo de Analista judiciário. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU – São Paulo. PÓs-Graduação não concluída na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Licenciatura Plena do Curso de Estudos Sociais na Faculdade Ideal de Letras e Ciências Humanas de São Paulo


Equipe Âmbito Jurídico

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