Resumo: O cooperativismo é um sistema associativo no qual pessoas livres se unem, somando suas forças de produção, sua capacidade de consumo e suas economias, no intuito de evoluírem econômica e socialmente, elevando seu padrão de vida e, igualmente, beneficiando a sociedade por meio do aumento e barateamento da produção, do consumo e do crédito. Constitucionalmente, o cooperativismo nunca esteve tão fortalecido, basta verificar o disposto no art. 5º, XVIII da Constituição Federal de 1988 que elevou o ideal cooperativista a um patamar nunca antes reconhecido, tratando-o como fundamento básico na esfera econômico-social. Esse reconhecimento constitucional do cooperativismo coincidiu com um momento histórico, de âmbito nacional e internacional, de inegável avanço no tocante à liberdade, à democracia e à justiça social, valores estes de caráter genuinamente coletivo e que culminaram igualmente com os ideais de cooperação, elemento essencial para o desenvolvimento nacional nos termos do que prescreve a Constituição Federal. Vê-se, pois, que o cooperativismo é um instrumental capaz de assegurar esse desenvolvimento, porquanto possui em seu ideário, principiologia baseada primordialmente nos direitos humanos.
Palavras – chave: Direitos Fundamentais. Cooperativismo. Intervenção Estatal
Abstract: The cooperative is a voluntary system in which free people unite , adding its forces of production , consumption and capacity of their economies in order to evolve economically and socially , raising their standard of living and also benefiting society through increasing and cheapening of production, consumption and credit. Constitutionally , the cooperative movement has never been stronger , just check the provisions of Article 5, XVIII of the Constitution of 1988 which raised the cooperative ideal to a level never before recognized , treating it as a basic foundation in the economic and social sphere . This constitutional recognition of the cooperative movement coincided with a historic moment , national and international levels , of undeniable progress regarding freedom , democracy and social justice , values of character genuinely collective, which also led to the ideals of cooperation , which is essential to national development in terms of what the Constitution prescribes . It is seen therefore that the cooperative movement is an instrument capable of ensuring this development , because in his own ideas , based on human rights principles .
Keywords: Fundamental Rights. Cooperatives. State Intervention
Sumário: 1- Introdução; 2-Discussão e Resultados 3- Conclusão
1. Introdução
A inserção de dispositivos específicos ao cooperativismo na redação da Carta Constitucional advém de influências da doutrina cooperativista. A intenção dos constituintes foi utilizar as cooperativas como instrumento eficaz para melhorar a condição socioeconômica da população. Dessa forma, as cooperativas não poderiam deixar de ser inseridas no Título II, Capítulo I da Constituição da República Federativa do Brasil, por se tratarem de instrumentos aptos para a consecução dos direitos fundamentais.
2. Discussão e Resultados
A noção de direitos fundamentais está interligada à ideia de Estado de Direito e Constituição desde o século XVIII, com as revoluções burguesas e os novos paradigmas lançados por documentos, como a histórica Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão[1]. Entretanto, a doutrina que deu origem aos direitos do Homem, que representa importante aspecto do Constitucionalismo, não surgiu no século XVIII como se acredita, pois ela, na realidade, é uma versão aprimorada da doutrina do direito natural que se deflagrou ainda na Antiguidade.
Ferreira Filho apresenta tais considerações:
“Remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais é, na Antiguidade, a referência a um Direito superior, não estabelecido pelos homens nas dado a estes pelos deuses. Neste passo cabe a citação habitual à Antígona, de Sófocles, em que isso é, literalmente, exposto, em termos inolvidáveis. A mesma ideia, com tratamento sistemático, acha-se no diálogo De legibus, de Cícero”.[2]
A partir dessa época, desenvolveu-se a concepção de um Direito independente da vontade humana e tal ideia perdurou por muito tempo, prevalecendo até o final do século XVIII. Este entendimento só foi substituído pela doutrina desenvolvida pela Escola do Direito Natural e das Gentes, guiada pelo pensamento Iluminista e, posteriormente, expresso nas Declarações.
Ferreira Filho traz apontamentos salutares:
“Deve-se a Grócio a laicização do direito natural. O jurista holandês entende decorrerem da natureza humana determinados direitos. Estes, portanto, não são criados, muito menos outorgados pelo legislador. Tais direitos são identificados pela “reta razão” que a eles chega, avaliando a “conveniência ou a inconveniência” dos mesmos em face da natureza razoável e sociável do ser humano. […]. Deste jusnaturalismo racionalista a doutrina dos direitos do Homem é um aspecto. Mas é o que o pensamento político iluminista imortalizou.”[3]
A doutrina dos direitos do Homem já estava consolidada desde o século XVII, contudo, tomou maior proporção no século seguinte, ao se tornar elemento básico da reformulação das instituições políticas. Tal doutrina substituiu sua denominação por uma terminologia mais correta, “direitos humanos fundamentais”, abreviada como “direitos fundamentais”. A respeito do assunto Bonavides tece o seguinte comentário:
“[…]. Temos visto nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica, ocorrendo, porém o emprego mais frequente de direitos humanos e direitos do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em coerência, aliás com a tradição e a história, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita à preferência dos publicistas alemães.”[4]
A denominação “direitos do homem” ficou encharcada de uma conotação histórica, contudo o feminismo conseguiu o repúdio dela, restando apenas o reconhecimento de sua utilização em documentos internacionais importantes, que trouxeram o conteúdo declaratório dessa doutrina, tal como a já mencionada Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789), e, ainda, a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (EUA, 1776) ou a Declaração Universal de Direitos do Homem, editada em 1948 pela ONU[5].
Os direitos do homem são tidos como direitos naturais, inalienáveis e sagrados, e também tidos como imprescritíveis, compreendendo a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão como valores inerentes. Já a expressão “direitos fundamentais” possui maior precisão, até mesmo por sua abrangência, e será nessa concepção que se aterá a conceituação proposta neste trabalho. Quanto aos vocábulos, Araújo e Nunes Júnior comentam:
“[…] O vocábulo direito serve para indicar tanto a situação em que se pretende a defesa do cidadão perante o Estado como os interesses jurídicos de caráter social, político ou difuso protegidos pela Constituição. De outro lado, o termo fundamental destaca a imprescindibilidade desses direitos à condição humana”.[6]
Os direitos fundamentais podem ser conceituados como:
“Normas jurídicas, intimamente ligadas a ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitima todo o ordenamento jurídico”.[7]
Por essa perspectiva de normas constitucionais fundantes do ordenamento jurídico, tem-se que os direitos fundamentais devem ser utilizados também para a solução de conflitos privados, não impondo limitações apenas às ações estatais.
Por essa razão é que as cooperativas têm espaço neste contexto quando se trata da norma constitucional brasileira. Os direitos fundamentais, no sentido material, são aqueles considerados indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual. Desta forma, não basta ao Estado reconhecê-los formalmente, deve-se buscar concretizá-los, incorporá-los no contexto social e na vida de seus cidadãos e este é o papel do cooperativismo, porquanto é capaz de outorgar ao cidadão uma vida digna através da renda advinda do trabalho como cooperado e ainda, o fortalecendo com os valores éticos inerentes a toda principiologia cooperativista.
Interessa observar, que a Constituição Federal origina-se em um período marcado pelo fim de longa restrição à participação popular nas decisões políticas do país e isto colaborou para que possuísse características históricas relevantes, assumindo importância sem precedentes dentre as constituições brasileiras. Não bastando, o atual texto constitucional também recebeu diversas influências doutrinárias no sentido de ampliar sua abrangência e sua capacidade e isso fez com que a Constituição de 1988 apresentasse diversas inovações:
“Dentre as inovações, assume destaque a situação topográfica dos direitos fundamentais, o que, além de traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais”.[8]
Ao enumerar as inovações da Constituição Federal de 1988, no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais, Coelho constata algumas modificações importantes no que tange ao direito de associação, reconhecendo que tais direitos também foram estendidos às cooperativas, como segue:
“O direito de associação foi estendido às cooperativas, quanto a estar sujeito à legislação. Trata-se de um desafio interessante, já que o sistema cooperativo era controlado pelo Estado, através de autorizações, fiscalizações e intervenção. Aliás, no campo do cooperativismo a preocupação da Constituição é grande, recebendo ele tratamento em vários pontos do texto.[9]
Consta da Carta Constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […];
XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;”
O conteúdo desse dispositivo é fundamental para o cooperativismo brasileiro, haja vista o impedimento que se criou ao Estado, não permitindo mais que este interfira na criação e no funcionamento das cooperativas.
Há aqueles que exaltam a conquista dessa liberdade institucional concedida às cooperativas. Bulgarelli representa a doutrina que parabeniza o marco liberalizatório caracterizado no art. 5º, da Constituição Federal em relação ao cooperativismo:
“Conforme já foi visto, com a Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que se iniciou um novo período no ciclo legislativo do regime jurídico das sociedades cooperativas até então presas e submetidas às imposições estatais decorrentes do regime autoritário. Vários artigos da Constituição referem-se às cooperativas no sentido não só de reconhecê-las, de livrá-las das peias estatais como também para apoiá-las. De todos esses dispositivos sem desmerecer os demais, destaca-se o art. 5º, XVIII.”[10]
O referido artigo assegura então a livre criação e permanência de cooperativas, materializando-se no plano constitucional o princípio da auto-organização ou da autogestão, ou ainda, da autonomia cooperativa[11]. Entretanto, persistem dúvidas quanto à extensão do livre exercício associativo. Na realidade, como já exposto, ainda há posições que entendem por resistir a qualquer tipo de interferência. No entanto, trata-se de setor que integra a ordem econômica nacional, sujeito, portanto, a regramentos específicos para o bom e fiel desenvolvimento econômico da nação.
Importante clarear que os atos internos da cooperativa, seu funcionamento e outros devem ser respeitados e não devem estar sujeitos a qualquer espécie de interferência de terceiros, sejam estes entes estatais ou não. Mesmo porque tal entendimento segue, como já visto, o 4º princípio do cooperativismo de acordo com a ACI: princípio da autonomia e da independência, que, em suma, estabelece que a organização e a administração das cooperativas devem ser exercidas com independência por seus membros, não se acatando qualquer interferência externa.
No entanto, frisa-se que o setor cooperativo integra a ordem econômica nacional, estando sujeito a atos de intervenção estatal, dado o modelo seguido pela Constituição Federal de 1988.
“Como agente ‘normativo’, cabe ao Estado fixar diretrizes para a economia. Igualmente, realizar aquilo que os economistas denominam de ‘intervenção conforme’. Ou seja, a que orienta os agentes econômicos e os influencia por meio de uma política global. Financeira, monetária, social, sem lhes eliminar a livre determinação. É a que atua sobre as grandes linhas da atividade econômica – nível de demanda, condições de repartição etc”.[12]
Verifica-se que dentro dessas atribuições intervencionistas, cabe ao Estado atuar como agente regulador da economia, sendo-lhe outorgado constitucionalmente o poder-dever de fiscalizar o respeito às normas da economia de mercado, por parte dos agentes econômicos que podem vir a lesar a sociedade[13].
Aliás, basta analisar o que prevê o art. 174, § 2º da Constituição Federal, para se verificar que as cooperativas, como entes que executam atividades econômicas, estão sob a égide da ação intervencionista do Estado.
No entanto, a fiscalização exercida com base no referido dispositivo constitucional, poderia suscitar a hipótese de certa tensão dialética com o que dispõe o art. 5º, VI da mesma Carta, dado o fato de que o caput do art. 174 determina a submissão ao agente normativo e regulador que é o Estado, enquanto que o art. 5º, VI outorga autonomia às cooperativas.
Verifica-se que a pretensa tensão dialética na realidade é mera retórica, pois que a interpretação do art. 5º, VI da Constituição Federal, abrange a autonomia quanto à criação e ao funcionamento das cooperativas, sem lhes retirar o dever de como entes que integram o sistema econômico, se sujeitarem ao cumprimento das regras impostas a todos que integram esse sistema.
Nesse sentido, a lição de Meinen é incisiva:
“O livre exercício da cooperação, todavia, não quer dizer que as cooperativas nascem e fazem o que bem entenderem, sem respeitar os parâmetros mínimos do que se designa uma conduta digna. Não se pode perder de vista que a Constituição, especialmente pela combinação dos arts. 174 e 173, parag. 3º., outorga ao estado o poder de monitoramento da atividade econômica e lhe impõe o dever de reprimir eventuais abusos. O permanente equilíbrio nas relações econômico-sociais e a elevação do interesse público são valores ou fundamentos que se sobrepõem à livre iniciativa, inclusive a materializada na forma cooperativa. Há de se ter, portanto, um controle oficial mínimo (sem prejuízo da autogestão) de modo a evitar a criação descontrolada de cooperativas, sem objeto preciso e sem preocupação com a viabilidade econômico financeira, muitas vezes gerida por administradores sem os mínimos atributos profissionais; sem a menor consciência de suas responsabilidades, quando, não raro, também inescrupulosos. Nesta dimensão, em nada acrescentará, para a sociedade (cujos interesses públicos estão sempre acima de qualquer organização ou iniciativa particular) e para o próprio setor, a festejada (e bem vinda) liberdade de criação, organização e funcionamento. O abuso do direito, como é concebido, costuma trazer inconvenientes irreversíveis.”[14]
Este papel interventivo do Estado não pode ser visto de outro modo que não o de contribuir para o Estado do Bem-Estar Social, porquanto, por meio desse dirigismo em relação às questões econômicas, é que assegura ao individuo um melhor viver, o exercício de todas as suas prerrogativas como cidadão, mormente porque dá ao Estado o poder de, quando necessário, obstar atitudes danosas à sociedade, efetuadas por quem detém um maior poder econômico, ou mesmo por atitudes fraudulentas, como por exemplo as quem vêm ocorrendo em relação às cooperativas de trabalho, apesar do advento de recente diploma legal visando refrear tal situação .
3. Considerações Finais
Percebe-se que o legislador constituinte fez inserir no texto constitucional em vários momentos o cooperativismo, na expectativa de que este sistema venha a colaborar na outorga dos direitos fundamentais aos cidadãos, porquanto toda a sua história e ideário convergem nesse sentido.
Em vários países o cooperativismo é importante referencial socioeconômico, pois é elemento capaz de outorgar vida digna ao cidadão. Nesse sentido, reconhecidamente, há uma forte movimentação no sentido de viabilizar as cooperativas em todo mundo.
Como visto, o cooperativismo foi contemplado pela Constituição Federal com a proposta de liberdade para a sua criação e independência para seu funcionamento, mas sujeito a certa intervenção estatal dado integrar o sistema econômico nacional.
Mas, acima de tudo o cooperativismo tem garantida previsão constitucional em razão de sua essência e principalmente por se adequar aos Objetivos da República, considerando-se principalmente o ideário defendido pela doutrina cooperativa desde o seu surgimento e que se coaduna com toda principiologia da Constituição da República Federativa do Brasil.
Advogada, graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Servidora Pública Mestre em Direito Econmico pela UNIMAR professora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
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